402 MANUEL DOS SANTOS ALVES Depois de nos descrever as flechas de Apolo, a ofensa de Agamemnon, a cólera e a vingança do deus, Eça de Queirós pinta-nos o quadro cénico da situação presente: agachados à sombra das naves, que se rachavam em seco nas abas da praia, os homens fortes, com os longos cabelos sob a face, e os olhos no solo, sentiam o coração tremer; os carros de batalha jaziam acima, brilhando vagamente, com as rodas enterradas na areia; na sombra da tenda, luziam os escudos redondos, as espadas de pregos de prata; os chefes falavam em baixo, e sem cessar, entre os gritos de dor de mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta, as piras fumegavam, carregadas de cadáveres. Ao longe, o mar ressoava em cadência. Como vemos, a descrição aparece estruturada em formas verbais exclusivamente do imperfeito, de que se podem contar oito ocorrências, se incluirmos o gerúndio «brilhando», equivalente pelo seu valor durativo. Esta isotopia temporal é também um dos elos de ligação que prendem este fragmento ao anterior, em que já se destacavam as formas iterativas «trespassava», «tombavam» e «silvavam». A estrutura deste fragmento, cujo referente principal são as vítimas da guerra (e de Apolo), assenta na oposição classemática animado vs inanimado: «os homens fortes» a tremer, «os chefes» a falar e «as mulheres esguedelhadas» a gritar constituem o primeiro pólo da oposição, face aos instrumentos de guerra, que, sob as flechas de Apolo, deixam de ser operacionais e constituem o outro pólo oposto : «as naves que se rachavam em seco», «os carros de combate» que jaziam inúteis, como inúteis luziam, de um luzir trágico, escudos e espadas. Os guerreiros não oferecem a mínima resistência e, apesar de «homens fortes» portam-se como cobardes : não oferecem a mínima resistência — quem poderia resistir às flechas de «Apolo Vingador»? «—Ils ne combattaient pont», diz Homero, na tradução de Leconté de Lisle (p. 41). Embora partindo de Homero, Eça de Queirós efectuou aqui uma sobreposição ou contaminatio de dois planos, quer dizer: na Ilíada, os guerreiros recusam combater por solidariedade para com o seu ofendido chefe e aparecem associados ao motivo da vingança (de Aquiles), sobrevivem ao flagelo da peste ,e fazem exercícios militares: «sur le rivage de la mer lançaient pacifiquement le disque, la pique ou la flèche» (p. 41). Mas no hipertexto queirosiano, embora apareçam também abrangidos pelos projectos de vingança (mas de Apolo), contudo não combatem — não por solidariedade, mas por medo, pois as suas vidas correm perigo, o que contradiz a ideia contida no advérbio hipotextual «pacifiquement».
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 403 Todavia, apesar desta transformação substancial, foi nesse núcleo intertextual que o escritor se baseou, sem qualquer dúvida. Aliás, e como já referimos acima, foi a partir dele que Eça de Queirós formou a relativa expansional «... os cavalos que, amarrados junto à tenda, comiam o lótus»