404 MANUEL DOS SANTOS ALVES Zeus, procura incitar os Acaios ao combate, num discurso em que diz: «le bois de nos nefs se corrompt, et les cordages tombent en poussière» (p. 24). Ambos os textos se encontram interligados pela isotopia da destruição, mas o texto português é literariamente mais rico, devido à ambiguidade ou sobreposição de efeitos: as naus «rachavam-se», porque se encontravam «em secco», sem dúvida; mas também devido às flexas de Apolo dirigidas contra «os homens fortes», «agachados à sombra das naves». Um terceiro núcleo se destaca no mesmo contexto, embora habilmente disfarçado por modificações substanciais: é o que se encontra representado na sequência sintagmática «entie os gritos de dor de mulheres esguedelhadas e com a túnica aberta». Trata-se, sem dúvida, daquele passo da «Rhapsodie XXII», centrado na morte de Heitor. Ao vê-lo maltratado, coberto de pó, depois de Aquiles, para cevar a sua vingança, o ter arrastado no seu carro de guerra a alta velocidade, «dans un tourbillon de poussière» —, a velha Hécuba, «arrachant ses cheveux et déchirant son beau voile, gémissait en voyant de loin son fils» (p. 411). Eça de Queirós, para não concretizar demasiado o texto e o manter a um nível de suficiente generalização — pois trata-se, não de uma personagem individual, mas colectiva, uma comunidade, «os Acaios», «os chefes» —, transferiu a situação particular de Hécuba para um plano geral, assegurado agora pelo plural «as mulheres». Aliás, esse elemento encontra-se também presente ao longo desse mesmo Canto XXII, pois a dor não é nele apenas individual, mas colectiva e participada. A mãe de Heitor surge «parmi les Troiennes» e, quanto à desolada Andrómaca, «les soeurs et les belles-soeurs d'Hektôr l'entouraient»; a viúva, depois de recuperar os sentidos, aparece «gémissant au milieu des Troiennes» (p. 413); enfim, o Canto termina desta maneira: «Elle parla ainsi en pleurant et toutes les femmes se lamentaient comme elle» (p. 414). Como se vê, a tradução de Leconte de Lisle e o hipertexto queirosiano aparecem centrados no mesmo motivo do luto, expresso no pranto e na desordem exterior — cabelo em desalinho e as vestes rasgadas. Assim, o imperfeito durativo «gémissait» aparece metamorfoseado no conjunto de sentido equivalente «entre os gritos de dor», pela interferência de outros elementos, muito abundantes e interligados pela mesma isotopia: «les douleurs et les gémissements» (p. 21), «les cris montaient dans VOuranos» (p. 24), «les Troiens poussaient des cris confus et tumultueux» (p. 71). As participiais paratácticas «arrachant ses cheveux et déchirant son beau voile» aparecem plasmadas nas sequências de belo efeito, também paratacticamente ligadas uma à outra: «mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta».
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 405 É curioso notar como Eça de Queirós, apercebendo-se do carácter primitivo, bárbaro e violento das duas expressões homéricas, tal como se encontram na tradução de Leconte de Lisle, apenas manteve a primeira, «mulheres esguedelhadas» (