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390 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
I>e todos esses processos retóricos de que o ancião se valeu para<br />
comover — «irritar» em seu favor — «o coração do Deus», Eça de<br />
Queirós apenas reteve o topónimo «Ténédos», que associou a um dos<br />
trunfos utilizados por Crises, a imolação das vítimas (mas apenas<br />
«chèvres», não «taureaux»!). De mais não precisava para acentuar a<br />
gravidade da ofensa, resultante dos laços íntimos que ligavam o sacerdote<br />
a Apolo. Em compensação, inseriu no seu texto o sintagma<br />
«entre os loureiros», acrescento feliz que não tem um único correspondente<br />
em toda a Ilíada, mas, como planta consagrada a Apolo,<br />
pertence ao domínio tradicional da interdiscursivídade mitológica.<br />
Por este complexo processo de elaboração, se adivinha o sério<br />
esforço que Eça de Queirós desenvolveu para se manter original e<br />
independente face ao modelo textual utilizado; Mas que o texto<br />
primeiro exercia sobre o texto segundo uma tutela avassaladora, de<br />
que o escritor só conseguia libertar-se após luta renhida, prova-o o<br />
predicado da primeira condicional «j'ai orné», por imposição do qual<br />
ele chegou a escrever «lhe adornava», para depois rasurar este conjunto,<br />
eliminando deste modo a primeira das duas actividades culturais mencionadas<br />
na tradução francesa, e escrevendo entre linhas os elementos<br />
«lhe» è «em seu louvor», correspondentes ao sintagma francês «pour toi».<br />
Digno de nota é também o mais-que-perfeito passivo «fora ofendido»,<br />
que constitui a alternativa preferida a «fora insultado» (rasurado<br />
no manuscrito), e corresponde à expressão hipotextual «avait couvert<br />
d'opprobre» (p. 1; cf. //. v. 11), que reaparece mais adiante, ligeiramente<br />
modificada, na mensagem do adivinho Calcas: «son sacrificateur<br />
qu'Agamemnon a couvert d'opprobre» (p. 4). A presença,<br />
neste contexto, do nome do Atrida bastaria para que o escritor o utilizasse<br />
como agente da passiva, cujo aposto, «rei dos Acaios», é um<br />
evidente decalque do sintagma «roi des hommes», que aparece logo no<br />
início do- poema. Apercebendo-se de que a tradução literal seria<br />
insuportável, Eça de Queirós substituiu o substantivo comum «homens»<br />
pelo etnónimo «Acaios», que repetiu, para manter bem viva no espírito<br />
do leitor a ideia de que são os Aqueus as verdadeiras vítimas de Apolo.<br />
Quanto à proposição relativa, «que lhe arrebatara a filha», trata-se<br />
de um fragmento do discurso narrativizado, em que, pondo de parte<br />
os elementos «lhe» e «filha», correspondentes exactamente a «sa<br />
fille» (p. 2), se destaca a forma verbal «arrebatara», sobredeterminada<br />
pela forma dp infinitivo francês «enlever», que ocorre com frequência<br />
naqueles contextos em que se encontram envolvidos os dois chefes<br />
rivais, Agamemnon e Aquiles, acompanhados do prudente Nestor:<br />
ameaças, interpelações e promessas. Na verdade, assim se, pode 1er