374 MANUEL DOS SANTOS ALVES que apresenta um nexo lógico com os três últimos, e estes referem-se aos três primeiros Cantos da Ilíada. Eis a transcrição: As lendas são, no espírito, o resíduo dos pensamentos exactos, das realidades intelectuais das gerações passadas. O que foi lei governando a alma, num século, torna-se, com o andar dos tempos, lenda, divertindo a imaginação. A imaginação é o depósito dos raciocínios escoados. Este pequeno texto, de natureza prefaciai, constitui um documento valioso quanto ao modo de recepção de Homero na obra de Eça de Queirós. O realce nele concedido ao papel da imaginação aparece na obra editada do escritor português, por exemplo, no prefácio de O Mandarim (1880) e no texto «Positivismo e Idealismo» (1893), onde, preconizando um são equilíbrio entre razão e imaginação, chega a comparar a segunda a «essa Circe adorável que transforma os seus amigos, não em porcos — mas em deuses» (1909: 265). Esta alusão à metamorfose operada por Circe no Canto X da Odisseia mostra bem que, do epos homérico, o que mais lhe seduzia a sensibilidade artística era a porção de sonho que nele encontrava, conforme também se pode ver em certos passos da sua Correspondência e de A Cidade e as Serras. Contista exímio e imaginativo, considerava Homero sobretudo como um efabulador de histórias para crianças. Em carta de 8/2/1895 — bem dentro da «fase homérica» — chega mesmo a dizer (1925: 258-259): «Positivamente, contar histórias é uma das mais belas ocupações humanas: e a Grécia assim o entendeu, divinizando Homero que não era mais que um sublime contador de contos da carochina» 3 . Esta concepção lúdica do universo épico de Homero sobressai ainda mais do autógrafo que se segue imediatamente ao anterior e passamos a transcrever: * 23. Durante nove dias, de pé, sobre nuvens cor de ouro e bronze, com o arco de prata na sua armadura, Febus Apolo arremessava flechas sobre o vasto acampamento dos Acaios, defronte dos muros de Tróia — pesados e negros, no resplendor da lua, e coroados de escudos de bronze. O coração do Deus estava irritado-—porque o seu xacerdote Crises, o que no templo de Tenedos, entre os loureiros, lhe queimava em seu louvor as pernas gordas das cabras, fora ofendido por Agamémnon, rei dos Acaios, que lhe arreba- ' tara a filha, Criseis, virgem forte de seio resplandecente. E o sacrificador, 3 Taine já se tinha exprimido em termos muito semelhantes a propósito das fábulas de La Fontaine a quem ele chamava o Homero gaulês : «Ce sont de petits contes d'enfants, comme l'Iliade et 1' Odyssée, qui sont de grands contes de nourrice» (1860: 47).
1. EI/253-B, fól. [22] EI/253-B, fól.-[23]