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Jose_Cimar - UFF

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA<br />

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA<br />

PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS ESTRATÉGICOS DA DEFESA E SEGURANÇA<br />

RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES:<br />

A INFLUÊNCIA DA DIREITA RADICAL ENTRE 1954 E 1964<br />

JOSÉ CIMAR RODRIGUES PINTO<br />

NITERÓI - RIO DE JANEIRO<br />

2011


JOSÉ C I M A R R O DRI G U ES PIN T O<br />

R E L A Ç Õ ES E N T R E C I V IS E M I L I T A R ES<br />

A IN F L U Ê N C I A D A DIR E I T A R A DI C A L E N T R E 1954 E 1964<br />

Dissertação apresentada à Universidade<br />

Federal Fluminense (<strong>UFF</strong>) como parte dos<br />

requisitos para a obtenção do Título de Mestre<br />

em Estudos Estratégicos da Defesa e<br />

Segurança.<br />

Orientador:<br />

Professor Doutor JOSÉ AMARAL ARGOLO<br />

NI T E R Ó I<br />

2011


P659 PINTO, José <strong>Cimar</strong> Rodrigues.<br />

Relações entre civis e militares: a influência da direita radical<br />

entre 1954 e 1964/ José <strong>Cimar</strong> Rodrigues Pinto. – 2011.<br />

191 f.<br />

Orientador: José Amaral Argolo<br />

Dissertação (Mestrado em Estudos Estratégicos) –<br />

Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas<br />

e Filosofia, Departamento de Ciência Política, 2011.<br />

Bibliografia: f. 132-137.<br />

1. Relações entre Civis e Militares. 2. Brasil 3. Radicalismo.<br />

4. Direita. 5. Segurança nacional. I. Argolo, José Amaral. II.<br />

Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas<br />

e Filosofia. III. Título.<br />

CDD 355.033581


F O L H A D E APR O V A Ç Ã O<br />

JOSÉ C I M A R R O DRI G U ES PIN T O<br />

R E L A Ç Õ ES E N T R E C I V IS E M I L I T A R ES<br />

A IN F L U Ê N C I A D A DIR E I T A R A DI C A L E N T R E 1954 E 1964<br />

Dissertação apresentada à Universidade Federal<br />

Fluminense (<strong>UFF</strong>) como parte dos requisitos para<br />

a obtenção do Título de Mestre em Estudos<br />

Estratégicos da Defesa e Segurança.<br />

Aprovada em de maio de 2011.<br />

Banca Examinadora<br />

_________________________________<br />

Professor Doutor José Amaral Argolo<br />

Orientador – <strong>UFF</strong><br />

________________________________<br />

Professor Titular e Emérito da <strong>UFF</strong> Eurico de Lima Figueiredo<br />

Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e Segurança<br />

_________________________________<br />

Professor Doutor Gabriel Collares Barbosa<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

NI T E R Ó I<br />

2011


Ao meu orientador, pela paciência e a<br />

compreensão<br />

À minha esposa e ao meu filho, pelo<br />

amor e o apoio.<br />

Aos meus pais e sete irmãos, pela força<br />

da união.


A G R A D E C I M E N T OS<br />

Ao Professor Doutor José Amaral Argolo, orientador incansável, paciente e dedicado,<br />

cujo amplo conhecimento científico em geral e sobre o tema em particular em muito<br />

auxiliaram no cumprimento da minha tarefa.<br />

À Universidade Federal Fluminense, nas pessoas do Professor Eurico de Lima<br />

Figueiredo, Vagner Camilo Alves, Jorge Calvario dos Santos e Manuel Domingos Neto,<br />

Severino Cabral, Jayme dos Santos Taddei, Adriano de Freixo, Marcial A. Garcia Suarez,<br />

Thomas Heye e Renato Petrocchi pela oportunidade concedida, a acolhida a este aluno em<br />

meia idade, os conhecimentos transmitidos e o belo exemplo do quanto podem construir<br />

juntos brasileiros bem intencionados que pensam no futuro da nação com grandeza e<br />

generosidade.<br />

Aos meus colegas do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa<br />

e Segurança pelos ensinamentos recebidos e os momentos de alegria e descontração.<br />

À Escola Superior de Guerra, particularmente aos Diretores e componentes do Centro<br />

de Estudos Estratégicos, pelo apoio recebido e por ajudar a manter acesa a chama mais nobre<br />

que sustenta este País: o sentimento de amor a Pátria.


“Peço aos Santos no céu<br />

Que ajudem meu pensamento,<br />

Peço-lhes neste momento<br />

Que vou cantar minha história<br />

Que me refresquem a memória<br />

E esclareçam meu entendimento.”<br />

José Hernandez in Martin Fierro<br />

(Tradução Livre do autor)


R ESU M O<br />

PINTO, José <strong>Cimar</strong> Rodrigues. Relações entre Civis e Militares: a Influência da<br />

Direita Radical entre 1954 e 1964; Orientador: Professor Doutor José Amaral Argolo;<br />

Niterói: Universidade Federal Fluminense – <strong>UFF</strong>, 2011, 182 fl.<br />

No Brasil, desde a redemocratização, em 1985, mesmo com um processo de<br />

aperfeiçoamento não concluído, passou-se a conviver com a noção de que vigia uma<br />

supremacia civil sobre o setor militar; ou seja: uma aceitação do controle exercido por civis<br />

legitimados por eleições democráticas. Entretanto, essas relações nem sempre foram assim.<br />

Por um largo período da História brasileira, particularmente entre a Proclamação da República<br />

e o Movimento Militar de 31 de março de 1964, totalizando quase setenta e cinco anos,<br />

existiam mecanismos, inclusive constitucionais, que colocavam os militares em destaque, o<br />

que os levava a assumir o Poder, ainda que temporariamente.<br />

O período que privilegia o presente trabalho começa com a queda do governo Getúlio<br />

Vargas (1954) e se estende ao Movimento Militar de 31 de Março de 1964, uma vez que,<br />

durante esse lapso temporal, pode ser observada uma efervescência de práticas políticas e de<br />

estratégias, moldadas a partir de influências internas e externas, por um grupo de atores<br />

engajados nas ideologias que nortearam o Século XX e amparados em ações destinadas a<br />

alcançar os objetivos fixados, as quais, conduziam, com regularidade, o País à crises e<br />

conflitos.<br />

Esse conjunto de experiências, valores, convicções, interesses e antagonismos<br />

contribuiu para esfacelar não somente o regime democrático como o próprio modelo<br />

republicano, que pressupunha a primazia do Poder Civil sobre o dos militares, em vigor desde<br />

a Proclamação da República, constituindo-se em um modelo de relacionamento civil e militar<br />

denominado por Alfred Stepan de moderador.<br />

Por sua natureza polêmica, esse tema foi e continua sendo objeto de estudos<br />

acadêmicos e de prospecção jornalística; entretanto, observa-se uma tendência natural dos<br />

historiadores e cientistas políticos em generalizar o papel do núcleo conservador em um só<br />

bloco, sem que se tenha feito maior aprofundamento sobre o papel desempenhado pelas<br />

frações da direita radical e de sua atuação, de modo a atingir os objetivos pretendidos; quais<br />

sejam: a obstrução da chegada ao poder e do seu exercício pleno pelos segmentos da<br />

esquerda, tanto na sua forma moderada, como na versão mais radical (totalitária).<br />

Assim, esta pesquisa pretende examinar o papel desempenhado pela direita radical no<br />

período em estudo e seu impacto no confronto político e ideológico vigente à época. A partir<br />

das observações sobre essas atividades, buscar-se-á verificar as influências dessas atividades<br />

para as relações entre civis e militares e suas consequências para a segurança e a defesa do<br />

País.<br />

Defesa.<br />

Palavras-chave: Relações entre Civis e Militares. Brasil. Direita Radical. Segurança e


A BST R A C T<br />

In Brazil, since the return to democracy in 1985 and despite an improvement process<br />

not completed, we went to live with the notion that was in effect a civil supremacy over the<br />

military, i.e., an acceptance of civilian control exercised by a civilians legitimated by<br />

democratic elections. However, it was not always that these relationships were established.<br />

For a long period in Brazilian history, particularly among the Proclamation of the Republic<br />

and the 31 March of 1964 Military Movement, totaling nearly seventy-five years, there were<br />

mechanisms, including constitutional, which placed emphasis on the military and led them to<br />

assume Power, even temporarily.<br />

The period that favors the present work begins with the fall of Getúlio Vargas (1954)<br />

and extends itself to the 31 March of 1964 Military Movement, since, during that time gap,<br />

may be seen a ferment of political practices and strategies, built upon internal and external<br />

influences, by a group of actors engaged in the ideologies that guided the twentieth century<br />

and supported in efforts to achieve the set objectives, which, conducted with regularity, the<br />

Country to crises and conflicts.<br />

This set of experiences, values, beliefs, interests and conflicts not only helped to<br />

shatter the democratic regime as its republican model but also assumed the primacy of civil<br />

power over the military which was in force since the Proclamation of the Republic, thus<br />

becoming a model of civil-military relationship named by Alfred Stepan moderator.<br />

For their controversial nature, this issue was and remains a subject of academic studies<br />

and journalistic exploration, however, there is a natural tendency of historians and political<br />

scientists to generalize the role of the conservative core in a single block, unless you had done<br />

deeper understanding of the role played by the fractions of the radical right and its<br />

performance in order to achieve the desired goals, namely: the obstruction of coming to power<br />

and its exercise by the full segments of the left, both in its moderate form, as in the more<br />

radical (totalitarian).<br />

Thus, this research is dedicated to examine the role played by the radical right during<br />

the study period and their impact on political and ideological confrontation in force at the<br />

time. From the observations on these activities, it will seek to verify the influences of these<br />

activities to the civil-military relations and their consequences for the security and defense of<br />

the country.<br />

Keywords: Civil-Military Relations. Brazil. Radical Right. Security and Defense.<br />

viii


SU M Á RI O<br />

1 IN T R O DU Ç Ã O 1<br />

1.1 LITERATURA PERTINENTE 8<br />

1.2 BASES METODOLÓGICAS 13<br />

2 B ASES T E Ó RI C AS 15<br />

2.1 RELAÇÕES INTERNACIONAIS 15<br />

2.2 RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES 22<br />

2.3 AS REPRESENTAÇÕES 40<br />

2.4 PODER EM REDE E RESISTÊNCIAS 46<br />

3 A PA R T I C IPA Ç Ã O D OS M I L I T A R ES N A PO L Í T I C A BR ASI L E IR A :<br />

A N T E C E D E N T ES H IST Ó RI C OS E C O NST R A N G I M E N T OS E X T E RN OS<br />

4 A DIR E I T A R A DI C A L 73<br />

4.1 INSPIRAÇÕES PARA O RADICALISMO DE DIREITA 81<br />

4.2 A ATUAÇÃO DA DIREITA RADICAL 88<br />

5 A DIR E I T A R A DI C A L N AS R E L A Ç Õ ES C I V IS E M I L I T A R ES E AS<br />

C O NSE Q U Ê N C I AS PA R A A SE G UR A N Ç A E A D E F ESA<br />

101<br />

5.1 A DIREITA RADICAL NO EQUILÍBRIO DAS RELAÇÕES ENTRE CIVIS E<br />

MILITARES<br />

107<br />

5.2 INFLUÊNCIA SOBRE A SEGURANÇA E A DEFESA 113<br />

6<br />

C O M E N T Á RI OS E C O N C L USÕ ES<br />

7 R E F E R Ê N C I AS 132<br />

7.1 OBRAS CITADAS 132<br />

7.1.1 Documentos Eletrônicos 136<br />

7.2 OBRAS CONSULTADAS 137<br />

8 APÊ NDI C ES 141<br />

8.1 SESSÃO DO CLUBE MILITAR DE 24 DE JUNHO DE 1922 142<br />

8.2 MEMORIAL DOS CORONÉIS 148<br />

8.3 MANIFESTO DOS GENERAIS 154<br />

8.4 DISCURSO DO CORONEL JURANDIR DE BIZARRIA MAMEDE 156<br />

8.5 LEI DO ESTADO DE SÍTIO 159<br />

8.6 CARTA BRANDI 161<br />

8.7 CAPAS DOS N OS 39, 40, 44 E 45 DO MAQUIS 164<br />

8.8 CAPAS DOS N OS 46, 47, 78 E 102 DO MAQUIS 165<br />

8.9 MANIFESTO DOS REBELDES 166<br />

8.10 GOLPE COMUNO-PETEBISTA 170<br />

8.11 INSTRUÇÕES DOS GRUPOS DE ONZE 175<br />

49<br />

119


1 IN T R O DU Ç Ã O<br />

A política 1 é um espaço de disputas, influências, raros consensos e muitos conflitos,<br />

decorrentes do comportamento de pessoas, grupos, instituições e governos que dela<br />

participam e de suas variadas visões de mundo, valores, interesses e objetivos, todos na busca<br />

da conquista e da manutenção do Poder, razão originária da dissensão; ou das restrições,<br />

pressões ou constrangimentos impostos pela dinâmica das estruturas, ou seu mero<br />

funcionamento, estas muito importantes no âmbito do relacionamento internacional.<br />

Nos Estados Nacionais democráticos, esses choques, normalmente, são mediados por<br />

mecanismos estabelecidos e aceitos, portanto, gozam de legitimidade, seja por meio da<br />

competição eleitoral, da representação política e do voto das maiorias, seja por tantas outras<br />

formas de composição política, onde a norma, especialmente aquela oriunda da engenharia 2<br />

política constitucional, exerce papel relevante.<br />

Nem sempre, porém, os regimes estão amadurecidos para a disputa democrática.<br />

Nesses casos, a complexidade do sistema se torna maior e até mesmo aqueles componentes<br />

que poderiam funcionar como instrumentos de pacificação, como os partidos políticos,<br />

transformam-se em fatores de instabilidade e, algumas vezes, de violência, caso resolvam<br />

adicionar o convencimento e a manipulação dos militares aos seus estratagemas.<br />

Por conta das repercussões que exercem sobre as democracias, e, em consequência<br />

1 Política, nesta dissertação, tem seu sentido lato delimitado pelas noções aristotélicas de que se trata da prática<br />

ou do estudo de temas como a natureza, as funções, divisões, formas e governo (arte e ciência), originalmente<br />

concebidas ou aplicadas na polis grega, posteriormente, adaptados para o Estado Moderno, em variadas<br />

vertentes, por exemplo, como reflexão sobre a atividade política (na filosofia política). Por outro lado, tem seu<br />

sentido estrito ao tratar do conjunto de atividades que dizem respeito ao Estado e ao Poder e, neste caso,<br />

pertencem ao âmbito da Ciência Política. BOBBIO, Norberto et al. in Dicionário de Política, Brasília:<br />

Universidade de Brasília, 1998, p. 954-962.<br />

2 Para o Novo Dicionário Aurélio de Aurélio Buarque Holanda Ferreira, Ed. Positivo, 2009, engenhar significa,<br />

dentre outras acepções, criar, construir artificialmente. Em Norberto BOBBIO, op. cit., o termo engenharia é<br />

bastante utilizado com variados complementos como institucional (p. 54), social (p. 80, 141, 462 etc.), eleitoral<br />

(p. 1105) e constitucional (p. 279 e 853). Portanto, o fato do homem poder estabelecer, racionalmente, a<br />

organização do Estado, a limitação e a separação dos Poderes, a garantia de direitos, entre outras, e que têm<br />

amparo na Teoria das Constituições, constitui uma obra de engenharia política, no caso, Constitucional.


disso, para a segurança e a defesa dos Estados Nacionais, uma das questões mais sensíveis<br />

para os governantes trata da delimitação das esferas de influência entre os civis e os militares<br />

no espaço da política de cada Estado. Muitas vezes, os limites entre esses espaços são<br />

submetidos a provações, como ocorre nos instantes que antecedem as crises e/ou<br />

transformações políticas, ocasião em que determinadas ações podem ser convertidas em sinais<br />

de prestígio junto às massas e, em consequência, utilizadas para conquistar o Poder.<br />

Por isso, esses processos que tratam de Poder e influência constituem marcos<br />

significativos na História Contemporânea, tendo sido mais recentemente transmutados em<br />

objeto de reflexão para diversas disciplinas acadêmicas, notadamente no eixo da Ciência<br />

Política, onde passaram a ser analisadas sob o indicativo de relações entre civis e militares.<br />

Normalmente, tais relações são estudadas sob o viés do controle por parte dos civis<br />

sobre os militares (ou seja, do grau de autonomia 3 ou de subordinação dos militares aos civis<br />

eleitos democraticamente), dos níveis de institucionalização e do grau de profissionalismo das<br />

forças militares, os quais vieram a servir como paradigmas para o relacionamento civil-militar<br />

mais próximo possível do ideal. Samuel Huntington, integrando-os, introduziu a importante<br />

noção de equilíbrio 4 . Isto, ao menos em tese, garantiria que as imposições originárias dos<br />

contextos acima assinalados não comprometessem tanto os valores democráticos dos<br />

chamados governos de maioria como os direitos e as liberdades das minorias.<br />

Por um largo período da História Política brasileira, notadamente entre a Proclamação<br />

da República e o Movimento Militar de 31 de Março de 1964, essa harmonia não existiu, por<br />

diversos motivos, inclusive devido à existência de mecanismos constitucionais 5 , todos<br />

tendentes a alterar a normalidade democrática e a levar os militares a assumir o Poder Civil 6 ,<br />

ainda que temporariamente. Tal contexto envolvendo a relação entre os civis e militares era<br />

muito complexa, extrapolando o âmbito da segurança e da defesa nacionais e alcançando o<br />

âmago da sociedade como um todo, especialmente, nas vertentes ideológica e econômica.<br />

3 Samuel Alves SOARES, em Controles e Autonomia: As Forças Armadas e o sistema político brasileiro (1974-<br />

1999). São Paulo: EDUSP, 2006, p. 22 e 23, relaciona dois tipos de autonomia: uma política e outra<br />

institucional.<br />

4 Samuel P. HUNTINGTON, em O Soldado e o Estado: teoria política das relações entre civis e militares, Rio<br />

de Janeiro: Bibliex, 1996, indica três situações que caracterizariam esse equilíbrio. A primeira, diz respeito ao<br />

confronto entre autoridade, influência e ideologia dos militares vis a vis a dos civis (p. 16); a segunda tem por<br />

paradigma o denominado controle civil objetivo (aquele que eleva ao máximo a segurança militar) (p.16); e a<br />

terceira que trata das exigências originadas dos imperativos de segurança em relação aos sociais (p. 20).<br />

5 As Constituições de 1891 (art. 14), 1934 (art. 162) e 1946 (art. 176-178) seguiam uma mesma linha de<br />

entendimento quanto ao papel dos militares: o da garantia da lei, da ordem e do funcionamento dos três poderes;<br />

e de que a obediência dos militares ao Poder Executivo, somente, devia ocorrer “dentro dos limites da lei”. Tais<br />

dispositivos atribuíam discricionariedade aos militares, uma vez que as ordens do executivo ficavam<br />

dependentes de decisão, normalmente dos chefes militares ou dos outros poderes, sobre sua legalidade e<br />

legitimidade, com reflexos sobre a obediência. Por razões óbvias, foram suprimidos na Constituição de 1937.<br />

6 Samuel Alves SOARES, op. cit., 2006, p. 16, considera que, no período ora em análise, vigorava uma<br />

autonomia orientada para o exercício do poder político pelos militares frente aos civis.<br />

2


Observando-se o desenrolar da política no período que interessa a esta pesquisa, entre<br />

1954 e 1964, verifica-se, inicialmente, o peso da continuidade histórica, pois, na verdade,<br />

desde a Proclamação da República manteve-se viva a participação dos militares na política,<br />

particularmente, por meio de intervenções classificadas como golpistas; estas, como observou<br />

Alfred Stepan 7 , faziam parte da própria cultura política latino-americana e, no caso do Brasil,<br />

representavam até mesmo uma solução para a resolução de conflitos políticos, porquanto<br />

evitavam impasses institucionais e a eclosão de guerras civis e asseguravam o retorno pacífico<br />

da supremacia civil após cada movimento golpista, como ocorreu nas duas vezes em que<br />

Getúlio Vargas foi forçado a deixar o poder, na novembrada (1955) de Henrique Lott, na<br />

implantação do Parlamentarismo, na derrocada de João Goulart, entre outras. Essa premissa<br />

era civil e, conforme assinalado, foi reiterada nas várias Constituintes a partir de 1891.<br />

Para isso, era necessário admitir que o sistema político fosse naturalmente falho, o que<br />

de fato ocorria por muitas razões: por um institucionalismo frágil, um Executivo que excedia<br />

em seus poderes, um establishment excessivamente corrupto ou oligárquico (como ocorreu,<br />

particularmente, até 1930) 8 , tudo levando à corrosão da legitimidade, à fragmentação e à<br />

falência dos governos. Para Alfred Stepan, os militares, em tal sistema, exerciam um papel<br />

instrumental, determinado pelos civis, o qual incluía limitações, sendo que a principal dizia<br />

respeito à negação da permanência deles no Poder. O objetivo era conservar o sistema político<br />

em funcionamento, seja com a manutenção do governo vigente, ou com a sua substituição.<br />

O resultado era a cooptação e utilização dos militares como força de sustentação<br />

adicional na busca de objetivos políticos. Da parte do governo, isso ocorria por intermédio da<br />

designação dos ministros e da nomeação dos comandantes de área, os quais carreavam<br />

lealdade e liderança. Da mesma forma, os opositores estimulavam as dissidências e<br />

mantinham os governos em permanente estado de alerta e, não raras vezes, admitiam a<br />

radicalização em razão dos seus próprios objetivos políticos.<br />

Para tanto existiam determinados rituais, com a legitimação dos atos 9 pelo sistema<br />

parlamentar, jurídico e, particularmente, pela mídia e – como extensão desta – a opinião<br />

pública, conforme fica constatado ao se perscrutar os diversos editoriais 10 antecedentes e<br />

posteriores às crises. Outro elemento importante consistia na devolução do poder aos civis,<br />

7 STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. Rio de Janeiro: Artenova, 1971.<br />

8 René Armand DREIFUSS em 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe,<br />

Petrópolis: Vozes, 1981, p. 21 afirma que: “Até 1930, o Estado Brasileiro foi liderado por uma oligarquia agroindustrial<br />

[...]”, à qual se deve adicionar a corrupção endêmica e a manipulação eleitoral em eleições censitárias.<br />

9 Por exemplo, com a partida de João Goulart em direção ao Uruguai, após o Movimento Militar de 31 de março<br />

de 1964, na madrugada de 2 de abril de 1964, o Presidente da Câmara de Deputados e sucessor constitucional do<br />

Presidente da República, Ranieri Mazzili, declarou a vacância do cargo e marcou a data da eleição dos novos<br />

Presidente e Vice-Presidente da República no prazo constitucional de trinta dias, o que de fato ocorreu.<br />

10 Muitos dos quais foram transcritos por Alfred STEPAN, op. cit.<br />

3


após o ato político cirúrgico e a volta dos militares aos quartéis e às atividades políticas<br />

conspiratórias. Com essa atitude, os militares reafirmavam, implicitamente, a incapacidade de<br />

governar e o acatamento da supremacia civil sobre eles.<br />

Em todo esse hiato temporal, entretanto, o período que se estende da queda do governo<br />

Getúlio Vargas (1954) ao Movimento Militar de 31 de Março de 1964 representa uma espécie<br />

de clímax nesse enredo dramático que, a partir da Proclamação da República, já durava<br />

setenta e cinco anos, uma vez que se observava uma efervescência de práticas políticas e de<br />

estratégias, moldadas a partir de influências internas e externas por um grupo de atores<br />

engajados nas ideias-força que nortearam o Século XX e amparados em ações destinadas a<br />

alcançar seus objetivos. Desse embate ideológico redundaram crises 11 , que se multiplicaram<br />

até que um dos contendores conquistasse os objetivos almejados.<br />

Com relação às influências externas, não se pode esquecer o enquadramento<br />

hemisférico do Brasil, o que acrescentava outro elemento às manipulações internas dos<br />

militares, levava a ultrapassagem dos limites da soberania do País pelos Estados Unidos da<br />

América (EUA) e contava com o apoio interno de governadores da oposição, de políticos e de<br />

militares. Ressalta-se, por exemplo, o impacto da vitória da Revolução Cubana, consolidada<br />

em janeiro de 1959, sobre o imaginário estadunidense. O certo é que aquele país não queria<br />

outra Cuba pró-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas nas Américas, muito menos com<br />

a dimensão do Brasil, e, conforme as ameaças a seus interesses, suas ações e pressões eram<br />

ampliadas ou reduzidas.<br />

Esse conjunto de experiências, valores, convicções, interesses e antagonismos<br />

contribuiu para esfacelar o regime democrático e o próprio modelo republicano que<br />

pressupunha a primazia do Poder Civil sobre o dos militares (em vigor desde a Proclamação<br />

da República), constituindo-se em um modelo de relacionamento civil e militar denominado<br />

por Alfred Stepan de moderador 12 . A ruptura final ocorreu em 31 de Março de 1964.<br />

Enfim, a partir do cenário que demarcou os conflitos políticos e ideológicos travados<br />

entre 1954 e 1964, verifica-se que a complexidade vigente na política brasileira tinha motivos<br />

– históricos, políticos, econômicos, sociológicos e culturais – que representavam o choque de<br />

visões tidas como mais conservadoras diante daquelas apresentadas como progressistas,<br />

convivendo sobre as bases frágeis e artificiais do padrão moderador, o que, a bem da<br />

verdade, corroia o sistema democrático e dificultava sua manutenção. O esgotamento desse<br />

11 A relação de conflitos é ampla. Apenas para citar alguns, no âmbito interno, pode-se relacionar a sucessão de<br />

golpes militares, de 1945 a 1964, atentados, conflitos no campo (Ligas Camponesas) e nas cidades. No âmbito<br />

externo, todas as fricções oriundas da Guerra Fria, com impacto direto no chamado Terceiro Mundo.<br />

12 Alfred STEPAN, op. cit. Para Samuel HUNTINGTON em A ordem política nas sociedades em mudança, São<br />

Paulo: EDUSP, 1975, trata-se do modelo pretoriano.<br />

4


modelo materializou-se em 1964, com a ruptura desse pacto, não ocorrendo a devolução do<br />

Poder aos civis pelos militares, que se estabeleceram para governar.<br />

Nesse contexto multifacetado, existiam segmentos, tanto à esquerda como entre os<br />

conservadores, com atuações diferenciadas, dentre os quais se pretende destacar o da direita<br />

radical. Nesta investigação, essas parcelas radicais equivalem aos denominados (por René<br />

Dreifuss) extremistas de direita 13 – “basicamente, um grupo marginal, com posições fanáticas<br />

anticomunistas e antipopulistas”. Para ele os oficiais participantes desses grupos,<br />

majoritariamente sediados no Rio de Janeiro, “estavam ligados a alguns dos mais agressivos<br />

membros do IPES-São Paulo [...] o grupo paulista de ‘linha dura’, que pregava uma forte<br />

mensagem anticorrupção e anticomunismo”.<br />

Apesar das muitas similaridades em termos de práxis e objetivos, dentre os quais<br />

podem ser destacados “a tendência em ver as relações políticas nos moldes das alternativas<br />

radicais, a conseqüente recusa em aceitar a gradualidade e parcialidade dos objetivos, a<br />

repulsa à negociação e ao compromisso, e a urgente busca do ‘tudo e agora’” 14 ; ou “o<br />

abandono de qualquer hipótese temporizadora e de toda tática moderada para impulsionar um<br />

processo de vigorosa (e portanto ‘radical’) renovação nos vários setores da vida civil e da<br />

organização política” 15 ; esses dois termos tiveram origens históricas e inspirações<br />

diferenciadas 16 , por isso são tratados como equivalentes. A opção pelo termo radical se deve<br />

ao fato de que o extremismo “traz implícita uma conotação negativa, que evoca remotos<br />

antecedentes filosóficos: já na ética aristotélica, o equilíbrio, a racionalidade, a virtude<br />

coincidem com o justo meio, enquanto que os extremos são as paixões de que é preciso<br />

fugir” 17 ; conotação que implica em um pré-julgamento que não se quer fazer neste trabalho.<br />

Acrescenta-se aqui ser esta uma facção do conservadorismo que cometeu violência, na<br />

forma de crimes políticos, militares ou conexos, vale dizer, aqueles cuja finalidade tenha sido<br />

política, por ser esta a interpretação, pode-se dizer histórica, dos tribunais brasileiros.<br />

Por isso, o objeto dessa investigação consiste em examinar a influência desse<br />

segmento radical, integrado por civis e membros da caserna, sobre as relações entre civis e<br />

militares, no período entre a queda do segundo governo do Presidente Getúlio Vargas e o<br />

13 DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe.<br />

Petrópolis: Vozes, 1981, p. 370-371. DREIFUSS considerava João Paulo Moreira Burnier como a personalidade<br />

mais representativa desta tendência.<br />

14 BELLIGNI, Silvano. Extremismo, em BOBBIO, Norberto et al., Dicionário de Política, Brasília:<br />

Universidade de Brasília, p. 457-458, 1998.<br />

15 COLOMBO, Arturo. Radicalismo, em BOBBIO, Norberto et al., in Dicionário de Política, Brasília:<br />

Universidade de Brasília, p. 1062, 1998.<br />

16 Cf. BELLIGNI, Silvano, Extremismo; COLOMBO, Arturo, Radicalismo; em BOBBIO, Norberto et al., in<br />

Dicionário de Política, Brasília: Universidade de Brasília, p. 1062, 1998.<br />

17 BELLIGNI, Silvano. Extremismo, em BOBBIO, Norberto et al., Dicionário de Política, Brasília:<br />

Universidade de Brasília, p. 457, 1998.<br />

5


desencadeamento do Movimento Militar de 31 de Março de 1964. Além disso, pretende<br />

verificar possíveis reverberações dessa atuação na segurança e na defesa nacionais.<br />

Como assinalado, a nação se viu confrontada com uma sucessão de turbulências. Tais<br />

momentos apresentam, aos pesquisadores, oportunidades de extrair lições maiores do que<br />

daqueles ditos de normalidade, dada a dinâmica das relações sociais estabelecidas.<br />

Sabe-se que as diversas frações da direita radical exerceram papel relevante, mantendo<br />

o Estado nacional sobressaltado. Ao mesmo tempo, apresentavam-se como vanguarda na<br />

disseminação de políticas e estratégias condutoras do País para um desenlace que contrariava<br />

a percepção da lenta, porém contínua, tendência de inclinação do País à “esquerda”.<br />

Por sua natureza polêmica, o tema vem sendo objeto de estudos acadêmicos e de<br />

registros jornalísticos; entretanto, observa-se uma tendência natural dos historiadores e<br />

cientistas políticos no sentido de generalizar o papel do núcleo conservador em um só bloco,<br />

sem que se tenha feito maior aprofundamento sobre o papel desempenhado pelas frações da<br />

direita radical no sentido de obstruir a chegada ao poder e o seu exercício pleno pelos<br />

segmentos da esquerda, tanto na forma moderada, como na versão radical (totalitária), contra<br />

esta última sob a forma do anticomunismo 18 .<br />

Tal suspeita foi alçada ao status de hipótese segundo a qual a parcela radical de direita,<br />

em que pese estar incluída no contexto geral do conservadorismo, teve atuação autônoma,<br />

chegando a constituir uma vanguarda, no sentido de opor resistência à força, organização e<br />

domínio dos comunistas e de grupos radicais de esquerda sobre o cenário nacional, de modo a<br />

diminuir suas importância e influência, e, também contra os males decorrentes do sistema<br />

político vigente, particularmente quanto à corrupção, e, ainda, quando o fiel do equilíbrio<br />

estatal do modelo moderador, o Exército Brasileiro, apresentasse indícios, na percepção dos<br />

radicais, de afastamento do exercício do seu papel de manutenção do funcionamento da<br />

democracia, o que ocorria quando adotava postura de inclinação à esquerda ou de<br />

neutralidade, uma vez que na primeira, reforçava a tendência dominante de inclinação do País<br />

à esquerda, enquanto na segunda não impedia tal resultado.<br />

Tal hipótese foi formulada nos seguintes termos: no período entre 1954 e 1964, os<br />

segmentos radicais da direita, civil e militar, atuaram como vanguarda para contrarrestar 19 :<br />

18 De acordo com Luciano BONET, no Dicionário de Política de Norberto BOBBIO et al., p. 34, o<br />

anticomunismo, aos olhos do comunismo, assumiria um inequívoco valor de “direita”, sendo que, na realidade,<br />

ele não é, necessariamente, de direita. Além dos anticomunismos reacionários e fascistas, existem os clericais, os<br />

liberais, os sociais-democratas e, até mesmo, o anticomunismo radical libertário, o qual muitas vezes ocupa<br />

posições de extrema esquerda.<br />

19 Contrarrestar tem o sentido de fazer frente a um ataque ou opor resistência a uma força ou domínio. Diminuir<br />

o efeito ou a importância de uma coisa com uma ação contrária. Compensar.<br />

6


a neutralidade ou aparente inclinação do Exército Brasileiro (centro de gravidade do modelo<br />

moderador) à esquerda, a pretensa comunização do País e o “sistema”; contribuindo, dessa<br />

forma, para desequilibrar as relações entre civis e militares, e, por consequência, afetar a<br />

segurança e a defesa nacionais.<br />

Verifica-se, assim, a necessidade de uma pesquisa mais densa e acurada sobre o papel<br />

desempenhado por esse segmento e seu impacto no confronto ideológico de então, a qual se<br />

torna mais instigante em função das influências, tanto internas quanto no âmbito das relações<br />

internacionais. São as possibilidades proporcionadas por esse estudo, em aportar conteúdo<br />

acadêmico à literatura existente, que motivaram a abordagem do presente tema.<br />

Dessa forma, investiga-se:<br />

a) Quais as inspirações que nortearam a Direita Radical?<br />

b) Quais os indícios de neutralidade ou inclinação do Exército Brasileiro à esquerda,<br />

de aprofundamento da comunização do País ou de deterioração do “sistema”?<br />

c) Como essas frações radicais se estruturaram para contrarrestar as tendências<br />

percebidas, ou seja, como atuaram como mecanismos compensatórios?<br />

d) Quais os seus objetivos?<br />

e) Que influências as suas ações causaram para as relações entre civis e militares e,<br />

também, para a segurança e a defesa nacionais?<br />

Para cobrir esses questionamentos, esta pesquisa tem como objetivo geral a análise das<br />

influências da Direita Radical sobre o relacionamento entre civis e militares, no período que<br />

se estende do fim do segundo governo Getúlio Vargas ao início do Movimento Militar de 31<br />

de Março de 1964, inclusive no que diz respeito aos influxos provenientes das relações<br />

internacionais do Brasil, particularmente, por meio da investigação dos parâmetros de fixação<br />

dessa convivência (em suas origens, influências e atos) e dos seus desdobramentos para a<br />

consolidação ou modificação do pensamento e do status quo da época (em termos de<br />

relacionamento civil e militar, segurança e defesa) e no encaminhamento das forças ativas da<br />

Nação até o desenlace ocorrido com o Movimento Militar de 31 de março de 1964.<br />

Com o intuito de alcançar esse objetivo geral torna-se necessário atingir os seguintes<br />

objetivos secundários:<br />

a) apresentar referênciais teóricos aplicáveis ao tema;<br />

b) obter um retrato do contexto político nacional e internacional do período a partir da<br />

análise dos registros históricos, literários, jornalísticos, militares e diplomáticos relacionados;<br />

c) com base nesse contexto político, estudar a participação da direita radical, localizar<br />

as origens e as influências políticas e ideológicas dessa(s) facção(ões), ações e objetivos; e<br />

7


d) identificar as repercussões da atuação dos segmentos radicais de direita na esfera<br />

das relações civis e militares e verificar as possíveis consequências para a segurança e a<br />

defesa nacionais.<br />

Para facilitar a análise, a pesquisa em tela adotará a distribuição geométrica do<br />

espectro político nas tradicionais denominações de esquerda e direita, da mesma forma que o<br />

seu espelhamento nas tendências progressistas e conservadoras. Essa distribuição permite a<br />

simplificação da análise das interações que ocorrem na estrutura democrática e a inserção da<br />

categoria a ser estudada, no caso a direita radical nesse todo.<br />

Com a finalidade de complementar essa exposição introdutória ao tema, abordar-se-á,<br />

em seguida, a literatura existente e o delineamento metodológico visualizado.<br />

1.1 LITERATURA PERTINENTE<br />

A literatura que trata da participação militar na sociedade e na política brasileiras é<br />

abundante 20 , incluída aquela originada dos estudos de brasilianistas. Nesta revisão, estará<br />

dividida em três abordagens: a primeira, de caráter contextual; a segunda, destacando aquelas<br />

obras que se direcionaram para o estudo dos militares no contexto do conservadorismo; e a<br />

terceira, da literatura existente sobre a direita radical.<br />

As referências bibliográficas de caráter contextual, aqui destacadas, foram realizadas<br />

em importantes obras, das quais destacam-se quatro autores em três obras: René Armand<br />

Dreifuss e Otávio Soares Dulci 21 , Antônio Carlos Peixoto 22 e Edmundo Campus Coelho 23 ; a<br />

partir de cujas leituras inferem-se as seguintes categorias gerais de abordagem para o estudo<br />

do fenômeno: sistêmicas, estruturais, institucionais, ideológicas, sócio-econômicas ou<br />

identitárias, as quais serão explicitadas abaixo.<br />

Tanto Dreifuss como Dulci destacam as pesquisas de Alfred Stepan 24 no quesito de<br />

abordagem sistêmica dos militares, uma vez que este último postula que seus padrões de<br />

conduta são politicamente coerentes com a realidade externa aos quartéis e que, como<br />

20 A presente revisão apóia-se, em parte, em Um Estudo da Escola de Guerra Naval na Formação dos Oficiais<br />

Superiores da Marinha de Guerra do Brasil, de Sylvio dos Santos VAL. Dissertação (Mestrado em Ciência<br />

Política) – Programa de Pós-Graduação de Antropologia e Ciência Política, Universidade Federal Fluminense,<br />

Niterói, 1998.<br />

21 DREIFUSS, René Armand e DULCI, Otávio Soares, “As Forças Armadas e a Política”, em A sociedade e a<br />

Política no Brasil Pós 64, organizado por Bernardo SORJ e Maria Hermínia Tavares de ALMEIDA. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1985, p. 87-117.<br />

22 PEIXOTO, Antônio Carlos. “O Exército e a Política no Brasil: Uma Crítica aos Modelos de Interpretação” em<br />

Os Partidos Militares no Brasil, organizado por Alain ROUQUIÉ. Rio de Janeiro: Record, p. 27-42, 1982.<br />

23 COELHO, Edmundo Campus. “A Instituição Militar no Brasil: Uma Análise Bibliográfica”, em Revista<br />

Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n.19, p. 5-15, jul., 1985. São Paulo: ANPOCS.<br />

24 STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.<br />

8


instituição, atuariam em “sinergia” com essa realidade, em termos políticos e ideológicos,<br />

caracterizando-se como um verdadeiro subsistema político. Para estes mesmos autores,<br />

Eliezer Rizzo de Oliveira 25 representaria a corrente de análise estrutural dos militares,<br />

entendendo que a ação das Forças Amadas resultaria de sua estruturação interna e se<br />

expressaria por suas posições ideológicas em relação à sociedade.<br />

Já Edmundo Campos Coelho se inclinaria para a perspectiva institucional/<br />

organizacional, centrando seus estudos na estrutura interna das Forças Armadas, cujas<br />

manifestações ocorreriam por meio das suas formas de institucionalização - princípios,<br />

normas e padrões das organizações - a partir dos quais se pode avaliar a atitude política e a<br />

identidade dos militares 26 .<br />

Antônio Carlos Peixoto 27 acrescenta às propostas anteriores de Dreifuss e Dulci as<br />

contribuições de Nélson Werneck Sodré 28 e Hélio Jaguaribe 29 . Para Sodré a atuação militar<br />

teria sido sempre motivada pelas correlações de forças e ideologias externas a elas. Já em<br />

Jaguaribe seriam as diversas conjunturas sócio-econômicas que influenciariam o ritmo dos<br />

agentes – a burocracia ou os militares – cujos determinantes permitem as suas manifestações<br />

em ações estratégicas externas que podem ter ou não consequências político-institucionais,<br />

não havendo sinergia ou interação perfeitas entre os agentes e o “ambiente”. Peixoto,<br />

pessoalmente, advoga a análise das organizações militares em sua “interação com o meio<br />

externo”, uma “visão global”, a qual, nesse sentido se aproxima daquela sistêmica de Stepan,<br />

apesar de que reprova generalizações a partir de “visões excessivamente organizacionais”,<br />

como considera que ocorreu com o próprio Stepan em sua ênfase sobre o papel<br />

desempenhado pela Escola Superior de Guerra, por exemplo, ou com Coelho em<br />

circunscrever sua análise ao Exército Brasileiro.<br />

Edmundo Campus Coelho, em sua revisão bibliográfica 30 , considera a abordagem de<br />

Alfred Stepan como institucional e inclui neste contexto a sua própria obra 31 , bem como as de<br />

Alexandre Barros 32 e José Murilo de Carvalho 33 . Coelho defende o “paradigma<br />

25<br />

OLIVEIRA, Eliezer Rizzo de. As Forças Armadas: Política e Ideologia no Brasil (1964-1968). São Paulo:<br />

Papirus, 1976.<br />

26<br />

COELHO, Edmundo Campus. Em Busca da Identidade: O Exército e a Política na Sociedade Brasileira. Rio<br />

de Janeiro: Campus, 1976.<br />

27<br />

PEIXOTO, Antônio Carlos. “O Exército e a Política no Brasil: Uma Crítica aos Modelos de Interpretação” em<br />

Os Partidos Militares no Brasil, Alain ROUQUIÉ (org.). Rio de Janeiro: Record, p. 27-42, 1982.<br />

28<br />

SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.<br />

29<br />

JAGUARIBE, Hélio. “Economic and Political Development: a Theoretical Approach” in the Brazilian Case<br />

Study. Cambridge: Harvard University Press, 1968.<br />

30<br />

COELHO, Edmundo Campus, op. cit., 1985.<br />

31<br />

COELHO, Edmundo Campus, op. cit., 1976.<br />

32<br />

BARROS, Alexandre. The Brazilian Military; Professional Socialization , Political Performance and State<br />

Building. Chicago: University of Chicago, Departament of Political Science, 1978. (Tese de Doutorado)<br />

33<br />

CARVALHO, José Murilo de. “As Forças Armadas na Primeira República”, em História Geral da Civilização<br />

9


organizacional”. Afirma que a perspectiva de Peixoto seria insuficiente pela dificuldade na<br />

obtenção de elementos empíricos versando sobre as Forças Armadas. Para ele, a tentativa de<br />

relacionamento dos elementos externos com os internos das organizações militares implicaria<br />

na possibilidade de exclusão dos elementos externos em prol dos elementos internos.<br />

Edmundo Coelho 34 acredita que a identidade militar e, portanto, a finalidade institucional<br />

seria determinada a partir de elementos internos da própria organização como posições<br />

hierárquicas, dogmas e ideologias, e, nesse sentido, construída de “dentro para fora”, a partir<br />

de seu processo de estruturação, funcionando o ambiente exterior, apenas, como uma<br />

referência para a organização, membros e lideranças.<br />

Pode-se ainda incluir, nesse rol de pesquisadores, sobre os militares brasileiros, alguns<br />

autores que direcionam suas análises para aspectos específicos da estrutura organizacional<br />

militar, privilegiando fatores ambientais em relação à ação política, tais como ideologias,<br />

inclusive intervencionistas, sistema de recrutamento e educacional, doutrina, composição<br />

social, entre outros, de forma a estabelecer generalizações válidas para a identidade e, em<br />

consequência, para o comportamento militar.<br />

É o caso de José Murilo de Carvalho 35 , por exemplo, ao propor que as antinomias<br />

ideológicas cidadão-soldado/intervenção reformista, soldado profissional/não-<br />

intervencionismo, dentre outros, compõem um substrato ideológico comum a todas as Forças<br />

Armadas, constituindo um sistema de crenças. A partir da alteração desses fatores, o autor<br />

sugere que ocorreriam alterações drásticas no comportamento político dos militares,<br />

mobilizando-os ou não para as intervenções. Vale ressaltar que, nas suas conclusões,<br />

direciona o centro da ação política para as elites militares, a cúpula dirigente.<br />

Feita esta breve contextualização sobre a bibliografia geral, apresenta-se uma base da<br />

literatura que procura analisar a participação militar na sociedade e na política brasileiras, a<br />

partir de posições conservadoras.<br />

Nesse caso, assoma importância a obra de René Armand Dreyfuss 36 , State, class and<br />

the organic elite: the formation of the entrepreneurial order in Brazil – 1961-1965, derivada<br />

de pesquisa realizada na Universidade de Glasgow, Escócia. Esse estudo, amparado em ampla<br />

documentação, demonstra a articulação política, econômica, psicossocial e militar, para a<br />

conquista do poder pelos militares em 1964, destacando os papéis das associações de classe<br />

empresariais, das multinacionais, dos empresários brasileiros e de outros países, dos políticos,<br />

Brasileira, t. 3, v. 2, n. 9. São Paulo: DIFEL, p. 160-162, 1978.<br />

34 COELHO, Edmundo Campus, op. cit., 1976.<br />

35 CARVALHO, José Murilo de, op. cit. 1978, p. 160-162.<br />

36 René Armand DREYFUSS, 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe.<br />

Petrópolis: Vozes, 1981.<br />

10


dos militares, dos diplomatas, particularmente estrangeiros e, principalmente, do Instituto de<br />

Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) 37 , do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e<br />

da Escola Superior de Guerra, no desencadeamento do Movimento Militar de 31 de Março de<br />

1964. Trata-se de exame amplo e revelador sobre a atuação do conservadorismo na ação<br />

política, embora não tenha se aprofundado na análise da participação dos radicais de direita,<br />

aos quais denomina extremistas de direita 38 .<br />

Alfred Stepan 39 , também, dedicou-se ao mapeamento do conservadorismo, entretanto,<br />

da mesma forma que Dreifuss, não se atém a atuação política particularizada dos radicais da<br />

direita. O mesmo ocorre com Ricardo Antônio Souza Mendes 40 , o qual enfoca o<br />

conservadorismo em sua vertente nacional-desenvolvimentista.<br />

Dessa forma, verifica-se que, no âmbito da pesquisa acadêmica, não há um<br />

direcionamento específico para a questão central deste trabalho. Entretanto ela não está<br />

ausente da literatura.<br />

O próprio Dreifuss, em 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe<br />

de Classe, levanta a possibilidade de que ações perpetradas pelos radicais estivessem inseridas<br />

dentre as atividades dos organizadores da reação conservadora, encastelados no Instituto de<br />

Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e no Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD).<br />

Observa-se esse posicionamento, por exemplo, nas recomendações de Glycon de Paiva, um<br />

dos fundadores do IPES, ao admitir que os filiados àquela organização, além de outras<br />

atividades, deveriam efetivar a:<br />

“criação de um caos econômico e político, o fomento a insatisfação e profundo<br />

temor ao comunismo por patrões e empregados, o bloqueio de esforços da esquerda<br />

no Congresso, a organização de demonstrações de massa e comícios e até mesmo<br />

atos de terrorismo [sem itálico no original], se necessário.” 41<br />

O mesmo ocorre, quando este mesmo autor se refere ao Tenente-Coronel Ardovino<br />

Barbosa do IBAD - Guanabara, Chefe do Policiamento ostensivo da Guanabara, acusado de<br />

sublocar as salas 1120 e 1908 do Edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, 156,<br />

Centro, usadas como depósito de material explosivo e de onde teria sido preparada a bomba<br />

37 DREIFUSS, op. cit., 1981, ao apresentar o relacionamento da Elite Orgânica do Complexo IPES/ IBAD,<br />

demonstra que estes Institutos organizavam a reação conservadora ao governo de João Goulart, em dois níveis:<br />

de Planejamento (no IPES) e de execução (no IBAD).<br />

38 DREIFUSS, idem, Cap. VII, p. 369, refere-se às três tendências de movimentos políticos (civis)-militares: o<br />

grupo do IPES/ IBAD/ ESG, os extremistas de direita e os tradicionalistas.<br />

39 STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.<br />

40 “Direitas, desenvolvimentismo e o movimento de 1964” in MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.).<br />

Democracia e Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006.<br />

41 DREIFUSS, op. cit., 1981, p. 230.<br />

11


que quase explodiu na exposição soviética de 1962 42 ; ou quando trata especificamente dos<br />

extremistas de direita 43 ; ou, ainda, ao mencionar a existência de uma subseção de sabotagem,<br />

no Departamento de Informações do IPES – São Paulo 44 . De resto, apesar dos indícios que<br />

contém, não ficou provada, na obra citada, ação efetiva que corroborasse com tais<br />

declarações, vale dizer, que não se tratavam de mera retórica.<br />

Mais recentemente, em 1990, 1996 e 2004, José Amaral ARGOLO, inicialmente<br />

como pesquisador atuando de per se, e posteriormente associado, faz um relato<br />

pormenorizado da atuação da Direita Radical em três trabalhos esclarecedores. No primeiro,<br />

Autoritarismo e Poder: o Pensamento de Golbery do Couto e Silva 45 , apresenta sua pesquisa<br />

sobre figura-chave na articulação da reação conservadora e que, além da sua conhecida<br />

atuação no período correspondente ao estudo atual, teve participação ativa no Complexo<br />

IPES/IBAD. No segundo, juntamente com Kátia Ribeiro e Luiz Alberto M. Fortunato, em A<br />

Direita Explosiva no Brasil 46 , relata ações sobre a atuação dos radicais de direita em<br />

Jacareacanga, Aragarças e no quase-atentado à Exposição Soviética de 1962, no Pavilhão de<br />

São Cristóvão, Rio de Janeiro, além de mais de quarenta ações que aterrorizaram o País,<br />

abrangendo um período de trinta e cinco anos de conspirações. Em sua terceira obra, Dos<br />

Quartéis à Espionagem: Caminhos e Desvios do Poder Militar 47 , com Luiz Alberto M.<br />

Fortunato, obtém os depoimentos de dois ex-oficiais do Exército Brasileiro, com ativa<br />

participação nos acontecimentos históricos que antecederam à tomada do poder pelos<br />

militares. Estas duas últimas obras, pela sua importância e pertinência com esta dissertação,<br />

serão objeto de avaliação pormenorizada ao longo deste trabalho.<br />

Tais fontes bibliográficas foram complementadas com os depoimentos de participantes<br />

ativos no processo político do período considerado e que estão arquivados no Centro de<br />

Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação<br />

Getúlio Vargas, dentre os quais se destacam, pelo lado da direita radical, o depoimento,<br />

concedido em 1993, por João Paulo Moreira Burnier, no qual traça um panorama geral da sua<br />

atuação que, em muito, complementa aquele concedido a José Amaral Argolo 48 (1996).<br />

42<br />

DREIFUSS, op. cit., 1981, p. 367.<br />

43<br />

Idem, p. 370-371.<br />

44<br />

Ibidem, p. 380.<br />

45<br />

ARGOLO, José Amaral. Autoritarismo e Poder: o Pensamento de Golbery do Couto e Silva. Dissertação<br />

(Mestrado em Filosofia) – Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 1990.<br />

46<br />

ARGOLO, José Amaral, RIBEIRO, Kátia e FORTUNATO, Luiz Alberto M. A Direita Explosiva no Brasil.<br />

Rio de Janeiro: Mauad, 1996.<br />

47<br />

ARGOLO, José Amaral e FORTUNATO, Luiz Alberto M. Dos Quartéis à Espionagem: Caminhos e Desvios<br />

do Poder Militar. Rio de Janeiro: Mauad, 1996.<br />

48<br />

Ressalta-se que o depoimento concedido a José Amaral Argolo foi direcionado para o Putsch de Henrique<br />

Lott, Jacareacanga, Aragarças e à articulação para o Movimento Militar de 31 de Março de 1964; e ocorreu sob<br />

circunstâncias mais informais, devido à presença, na entrevista, do seu companheiro de lutas, Carlos Alberto<br />

12


1.2 BASES METODOLÓGICAS<br />

Preliminarmente, a pesquisa foi precedida de consulta e sistematização das fontes<br />

primárias, levantamento bibliográfico das fontes secundárias, pesquisas em arquivos públicos,<br />

institucionais e privados, os quais foram secundados por ampla pesquisa hemerográfica, em<br />

editoriais e artigos assinados e difundidos em diários e revistas de expressão nacional.<br />

Ressalta-se, nesse contexto, que a presente pesquisa teve como base a investigação<br />

conduzida sob o enfoque da teoria, pois:<br />

“A teoria envolve ver e pensar; a teoria gera reflexão. Concebida de modo vago, a<br />

teoria abrange conjuntos de generalizações sistematicamente relacionadas. Mais<br />

especificamente, a teoria é um corpo coerente de generalizações e princípios<br />

associados com a prática de uma área de investigação. Estas generalizações e<br />

princípios poderiam ser hipotéticos e conceituais”. 49<br />

Sob essa orientação, ela foi conduzida em uma sequência que procurou discriminar,<br />

classificar, explicar e confirmar os fatos levantados. Embora a utilização dessa metodologia<br />

não esteja configurada como uma ferramenta exclusiva da análise política tem mostrado sua<br />

utilidade na investigação dos fenômenos afetos à Ciência Política, ao permitir a comparação<br />

tanto sincrônica como diacrônica das continuidades e descontinuidades dos fenômenos<br />

políticos.<br />

Segundo Roy Macridis, citado em Chilcote, a integração da teoria com a metodologia<br />

abrangeria os seguintes passos: inicialmente, a coleta e a descrição dos fatos por meio de<br />

algum esquema classificatório; segundo, as uniformidades e diferenças seriam identificadas e<br />

descritas; terceiro, seriam formuladas as hipóteses experimentais sobre as inter-relações no<br />

processo político; quarto, estas hipóteses experimentais seriam verificadas através da<br />

observação empírica rigorosa; e quinto, são apresentadas as descobertas aceitáveis.<br />

Entretanto, conforme afirma o próprio Chilcote, existem tendências divergentes,<br />

notadamente aquelas de influência weberiana que introduzem os tipos teóricos ideais, ou de<br />

tendência marxista que preferem relacionar a teoria a situações reais, a chamada práxis, no<br />

caso das forças sociais com a produção.<br />

Dessa forma, o formato deste trabalho terá uma configuração mista, incluindo aspectos<br />

da formulação de Macridis, mas admitindo a existência de tipos ideais como referências 50 e a<br />

Costa Fortunato, pai de um dos entrevistadores, posteriormente, autor do livro, que, inclusive, aclarava, em<br />

muitas circunstâncias, os fatos que já estavam esquecidos na memória de João Paulo Burnier.<br />

49 Ronald H. CHILCOTE, em Teorias de Política Comparativa. Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 480-81.<br />

50 Como são os casos dos controles civil subjetivo e objetivo, ambos de Samuel Phillips Huntington, que serão<br />

objeto de apreciações mais detalhadas ao longo da dissertação.<br />

13


elação com situações reais, não necessariamente informados pela dialética marxista,<br />

conforme abaixo descrito:<br />

- Na Seção 1 apresento os Elementos Teóricos que interessam para a pesquisa,<br />

amparados sobre quatro eixos: das Teorias das Relações Políticas Internacionais; das relações<br />

entre civis e militares; das bases ideológicas inseridas no contexto das representações; e das<br />

relações de poder. Todos com as finalidades de: contribuir para o entendimento do contexto<br />

que permeou a política no período em estudo; e permitir o entendimento das raízes, do<br />

desenvolvimento e das motivações para o desencadeamento das ações violentas efetivadas<br />

pelos elementos radicais da direita;<br />

- Em seguida (Seção 2), são descritos os antecedentes históricos e políticos das<br />

relações entre civis e militares, desde a formação da República Nova (1930), com ênfase no<br />

período que se estende de 1954 (suicídio de Getúlio Vargas) até a queda do Presidente João<br />

Goulart, tendo por finalidade apresentar o contexto que gestou o surgimento do radicalismo<br />

de direita e amparou seu desenvolvimento e atuação;<br />

- Na etapa subsequente (Seção 3), com base nos levantamentos realizados junto às<br />

fontes primárias e secundárias e das similitudes e diferenças observadas na atuação dos<br />

radicais da direita envolvidos no processo em curso, notadamente em suas relações com o<br />

conservadorismo em geral, são efetuadas generalizações quanto à existência de paradigmas<br />

comportamentais desse segmento da direita, notadamente a partir do delineamento de<br />

inspirações, repetições de atitudes, objetivos e ações estratégicas que alimentaram a disputa<br />

por influência e poder, os quais, justapostos a diversos episódios históricos, dentre eles<br />

Aragarças, Jacareacanga e o quase-Atentado à Exposição Soviética no Pavilhão de São<br />

Cristóvão, servirão como subsídios para a validação das assertivas iniciais apresentadas<br />

quando da definição da hipótese deste trabalho; e<br />

- À luz dos elementos colhidos na Seção anterior, na Seção 4 examino a influência da<br />

direita radical sobre as relações entre civis e militares e seus desdobramentos em relação à<br />

segurança e à defesa nacionais, correspondente à assertiva que completa a hipótese.<br />

Registra-se, ainda, nesse contexto metodológico, que, embora seja elevado o número<br />

de fatos, personagens e grupos que podem ser registrados ou que tiveram atuação nos eventos<br />

examinados ao longo desta dissertação, não houve preocupação específica com qualquer um<br />

em especial, tendo sido selecionados, tão-somente, aquelas situações, personagens ou grupos<br />

cujos aspectos contidos em registros, factuais ou declaratórios, servissem para a constituição<br />

de generalizações e para a confrontação com a hipótese.<br />

Finalmente será apresentada a síntese que enfeixa o conteúdo desta investigação.<br />

14


2 B ASES T E Ó RI C AS<br />

“Compreender exige teoria, teoria exige abstração e<br />

abstração exige simplificação e ordenamento da<br />

realidade. [...] O mundo real é, obviamente, um mundo<br />

de mesclas, irracionalidades e incongruências:<br />

personalidades, instituições e crenças existentes nem<br />

sempre se ajustam nitidamente a categorias lógicas. Não<br />

obstante, é indispensável que existam categorias lógicas<br />

e nítidas se o homem quiser pensar com proveito no<br />

mundo real em que ele vive, dele tendo que extrair<br />

lições para aplicação e uso mais amplos. Ver-se-á,<br />

então, forçado a generalizar sobre fenômenos que nunca<br />

agem muito de acordo com as leis da razão humana”.<br />

Samuel Phillips Huntington<br />

Pensar as relações entre civis e militares, entre 1954 e 1964, sem considerar as bases<br />

teóricas e/ ou ideológicas que influenciaram ou que aportaram explicações para os fenômenos<br />

ocorridos no País durante aquele período, seria negar as possibilidades de simplificação e<br />

ordenamento da realidade das relações sociais; a lógica que permite sua compreensão. Em se<br />

tratando de assunto tão amplo e complexo, não são poucas as teorias de que se pode lançar<br />

mão.<br />

Entretanto, para melhor delimitar a abordagem do tema, será obedecida uma estrutura<br />

que privilegiará quatro eixos teóricos: 1) Relações Políticas Internacionais; 2) relações entre<br />

civis e militares, segurança e defesa, particularmente, quando aplicados ao contexto latino-<br />

americano e brasileiro; 3) das bases ideológicas que envolveram os atores que fazem parte<br />

desta dissertação; e, finalmente, 4) das relações de poder.<br />

O suporte, a partir dessas bases teóricas, pressupõe três finalidades: contribuir para a<br />

compreensão do contexto que permeou a política nacional e a conjuntura internacional,<br />

durante o período em estudo; permitir o entendimento das raízes, do desenvolvimento e das<br />

motivações que impulsionaram o desencadeamento das ações violentas por parte dos grupos<br />

da direita radical; e servir como instrumento para a análise dos fatos e eventos investigados.<br />

2.1 RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />

No trato das influências externas, emergem as Teorias das Relações Internacionais em<br />

suas múltiplas perspectivas sobre as relações de poder além-fronteiras. Esse referencial<br />

teórico servirá para apoiar os estudos daqueles fatores oriundos do ambiente externo que tanto<br />

influenciaram (como, até mesmo, constrangeram) a política interna.


Considerando-se o recorte temporal que emoldura o presente estudo, assoma de<br />

importância uma dupla arquitetura de teorias. Em primeiro lugar as formulações chamadas<br />

realistas e, em seguida, as concepções ditas liberais; estas, apoiadas particularmente no<br />

sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), secundadas por outras organizações,<br />

como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.<br />

Ressalta-se que, em que pese o fato de as formulações do idealismo já existirem e<br />

estarem operando no campo das relações internacionais, o período foi, preponderantemente,<br />

presidido pelas ideias realistas 1 , particularmente após o início da Guerra Fria que dividiu o<br />

mundo em dois blocos ideológicos e de poder. O Brasil aderiu ao bloco ocidental, liderado<br />

pelos EUA, assinando, no Rio de Janeiro, a 2 de setembro de 1947, o Tratado Interamericano<br />

de Assistência Recíproca (TIAR). Por intermédio desse acordo os Estados Nacionais<br />

participantes assumiam a interação em uma estrutura de segurança hemisférica e se<br />

comprometiam a defender uns aos outros na hipótese de agressão externa. Tais estruturas<br />

seriam replicadas na Ásia e Oceania e no Oriente Médio, por meio de Organizações (como a<br />

Organização do Tratado do Sudeste da Ásia - OTASE) e Tratados. A África e partes das<br />

fímbrias da Ásia permaneceriam como áreas em disputa, a zona de choque da Guerra Fria.<br />

A ameaça contra a qual se erigia tamanho aparato era clara: a expansão da ideologia<br />

comunista originária da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) 2 , inicialmente<br />

para o heartland eurasiático (o Leste Europeu e a própria Alemanha), prosseguindo para as<br />

estratégicas fímbrias (China, Coréia do Norte, Vietnam do Norte, Laos, Cambodja, entre<br />

outros) e, finalmente, espraiando-se para a periferia mundial, onde alcançaria Cuba, a partir de<br />

meados de 1959. Essa expansão representava, no imaginário 3 do mundo ocidental, o perigo da<br />

1 Essas formulações serão apresentadas em seguida. Para corroborar a assertiva, conforme Paulo Roberto<br />

Campos Tarrisse da FONTOURA, em O Brasil e as Operações de Manutenção de Paz das Nações Unidas,<br />

Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1999, a ONU, desde a sua criação, com a Carta das Nações Unidas<br />

(CNU), assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, até 1987, havia realizado apenas treze Operações de<br />

Manutenção da Paz, a sua melhor face idealista, todas no chamado Terceiro Mundo (sete no Oriente Médio,<br />

duas na Índia/ Paquistão e uma em: Congo, Nova Guiné, Chipre e República Dominicana); após 1987 e até 2004,<br />

já em consequência do colapso da URSS, a ONU realizou mais de trinta dessas operações, inclusive na Europa,<br />

fato que demonstra as limitações impostas ao idealismo pelo enrijecimento realista do sistema internacional na<br />

Guerra Fria . (Tabela n o 2 – Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas de 1948 a 1987, pp. 66 e 67)<br />

2 Clemente ANCONA em seu artigo “La influencia de 'De La Guerra' de Clausewitz en el pensamiento marxista<br />

de Marx y Lenin", em Clausewitz en el pensamiento marxista, México: Cuadernos de Pasado y Presente, 1979,<br />

pp. 7-38, cita que “Lênin repensou a práxis sob o ponto de vista da estratégia e das táticas políticas. Partindo do<br />

princípio que a luta de classes era uma espécie de ‘guerra civil oculta’, ele inverte a máxima do general<br />

prussiano e estrategista militar Carl von Clausewitz que afirmava ser a guerra uma simples continuação da<br />

política por outros meios, defendendo a concepção de que a política é a simples continuação da guerra por<br />

outros meios”. Tal interpretação tem profundos significados para a política e a estratégia.<br />

3 Para o Psicanalista Fábio LACOMBE a existência humana teria três registros: o imaginário, o simbólico e o<br />

real. Somente o simbólico seria capaz de acessar a realidade. O “imaginário é o mais primitivo dos registros,<br />

principalmente porque ele se quer real. O sujeito vive a imagem como real. Para ele sustentar essa posição, ele<br />

precisa evitar o simbólico, aquilo que faz o ser humano pensar.” Citado em Merval PEREIRA, Os Conflitos de<br />

Lula. O Globo, Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2010, p. 4. N.A.: a idéia original é de Jacques Lacan.<br />

16


supressão da liberdade e da geração de caos e desordem no sistema democrático, capitalista e<br />

liberal erigido no mundo ocidental após a Segunda Guerra Mundial.<br />

Retornando aos elementos teóricos do realismo, a seguir serão apresentadas suas<br />

origens e aspectos principais. Nesse curso, as primeiras idéias são encontradas em Tucídides 4<br />

no seu relato sobre a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta. No texto ficou registrada,<br />

pela primeira vez, a idéia de equilíbrio de poder, uma das bases teóricas fundamentais do<br />

realismo, onde mais de uma nação, com poderes similares, isoladamente ou por meio de<br />

alianças, sobressaem sobre as demais, mas não entre si, estabelecendo-se uma tensa<br />

competição entre os pólos opostos, em cujo sistema não restam alternativas aos Estados mais<br />

fracos, a não ser aderir a um Estado mais forte que seja capaz de proporcionar segurança<br />

contra outro poder ameaçador.<br />

Outro marco na teoria realista repousa nas formulações sobre a natureza humana, o<br />

Estado e a política, entre outras, assinaladas na obra O Príncipe 5 (Maquiavel). A preocupação<br />

dessa obra do escritor florentino não é com o dever ser da política (que marcara tanto a<br />

filosofia antiga como a medieval e viria a influenciar os idealistas), mas como ela ocorre de<br />

fato, particularmente, diante da questão central da sua análise que consiste em esclarecer<br />

como resolver o ciclo histórico, contínuo e inevitável, que fazia os Estados oscilarem entre os<br />

pólos da estabilidade e do caos. Para que isso sucedesse, muito contribuíam os homens que,<br />

em toda parte e em todos os tempos, carregavam seus traços imutáveis: ingratidão,<br />

volubilidade, simulação, covardia ante os perigos e avidez por lucro. Tais atributos<br />

implicavam na geração permanente de conflitos e na anarquia.<br />

A ordem, produto esperado da política, não é natural, nem divina e tampouco produto<br />

da fortuna. Ela é construída pelas ações dos homens visando a evitar o caos e a barbárie. Tais<br />

ações produzem efeitos não racionais e reconhecíveis, além de gerar consequências<br />

transitórias e circunstanciais. A ordem, mesmo alcançada, não é definitiva, pois sempre<br />

existirá a ameaça de ser desfeita, porquanto esse constante fluir e transmutar dos elementos<br />

ocorre numa realidade mutável.<br />

A História, privilegiada fonte de ensinamentos, é cíclica, alternando ordem e<br />

desordem. O que varia são os tempos de duração de determinado convívio humano, o qual,<br />

por sua vez, depende da capacidade criadora do homem na política, fazendo bom uso do<br />

passado, utilizando meios idênticos ou similares (novos), para auxiliá-lo na previsão e<br />

conformação do futuro. O poder político nasce da própria malignidade da sua natureza, sendo,<br />

entretanto, a única forma de “domesticação” da política disponível, ainda que precária e<br />

4 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. São Paulo: Martins Fontes, 2009.<br />

5 MAQUIAVEL, Nicolas. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2007.<br />

17


transitória.<br />

É nesse contexto que o Príncipe deve operar, sendo-lhe permitido utilizar todos os<br />

meios (independentemente da ética dos homens) desde que sejam justificados pelos fins.<br />

Dessa forma, ele separa as questões éticas da política e do poder, estabelece o Estado como o<br />

ator principal e isenta os governantes no que tange a seguir padrões de comportamento<br />

estabelecidos, submetendo suas decisões aos interesses deste mesmo Estado.<br />

No trato das origens do realismo são fundamentais, ainda, as assertivas introduzidas<br />

por Thomas Hobbes 6 sobre a natureza humana bem como suas influências nas relações sociais<br />

que, por sua vez, foram emuladas pelos pensadores realistas para explicar como são<br />

estabelecidas as relações entre os Estados.<br />

O fundamento dessa visão de mundo é o chamado estado de natureza, onde os homens<br />

viveriam, originalmente, em um eterno conflito, impelidos por três causas principais que<br />

seriam a competição, a desconfiança e a busca da glória. A primeira levaria os homens a<br />

atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, conduzi-los-ia à busca da segurança; e a<br />

terceira, a procura de reputação. A História, o tempo ou a vida social não transformariam a<br />

natureza dos homens. Os homens seriam tão iguais que um não poderia triunfar sobre o outro;<br />

somente fazer suposições malévolas sobre suas atitudes, de modo que o mais razoável para<br />

cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um provável ataque:<br />

assim há uma espécie de generalização da guerra entre eles.<br />

Para agravar essa situação, os homens ainda teriam: “O direito de natureza, a que os<br />

autores geralmente chamam jus naturale, que é a liberdade que cada homem possui de usar<br />

seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja,<br />

de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe<br />

indiquem como meios adequados a esse fim” 7 .<br />

Nesse sentido, o Estado hobbesiano, marcado pelo medo, é monstruoso e habitado por<br />

seres humanos belicosos que rompem com a tradição aristotélica do homem como zoon<br />

politikon 8 (que vive e desenvolve suas potencialidades em sociedade), ao mesmo tempo em<br />

que chama a atenção para a tensão que subsiste na convivência com os demais homens.<br />

Conhecendo os homens como eles são Hobbes tentou construir uma ciência para a<br />

política que permitisse a estruturação de Estados permanentes e não em constante guerra civil.<br />

Para isto sugeriu a figura monstruosa do Leviatã; isto é, um poder mais forte capaz de regular<br />

as relações humanas, à qual os homens se submeteriam em troca de paz e segurança, fórmula<br />

6 HOBBES, Thomas. “Leviatã” in Hobbes (col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1979.<br />

7 Idem, p. 78.<br />

8 Expressão aristotélica que significa animal (ser vivo) social (político).<br />

18


que, embora aplicada ao âmbito interno dos Estados, ainda não foi alcançada para as relações<br />

entre eles, os quais, em tese e por analogia, viveriam em estado de natureza.<br />

Uma síntese das raízes realistas supra assinaladas podem ser encontradas em Hans<br />

Morghentau 9 , um de seus mais importantes teóricos, que em 1948 explicitou em seis<br />

argumentos principais 10 uma teoria da política internacional, na qual:<br />

1) “o realismo político acredita que a política, como aliás a sociedade em geral, é<br />

governada por leis objetivas arraigadas na natureza humana, [...] que é a mesma desde as<br />

filosofias clássicas da China e da Índia”, portanto imutável e, dessa forma, é possível<br />

desenvolver uma teoria racional que reflita estas leis objetivas, cujo parâmetro básico consiste<br />

em submeter qualquer formulação teórica ao duplo teste “da razão e da experiência”, sem pré-<br />

conceitos, uma vez que o fato de ser uma teoria antiga não significa que não é válida;<br />

2) enfatiza o “conceito de interesse, definido em termos de poder”, o “elo entre a<br />

razão que busca compreender a política internacional e os fatos a serem compreendidos”<br />

introduzindo “uma ordem racional” ao objeto da política e, desse modo, tornando possível o<br />

seu entendimento teórico. O realismo político evita “duas falácias populares: a preocupação<br />

com motivos” e “preferências ideológicas” e se apóia no que é racional e objetivo;<br />

3) assume que o “interesse definido como poder constitui uma categoria objetiva que<br />

é universalmente válida, mas não outorga a esse conceito um significado fixo e permanente”,<br />

pois, “o tipo de interesse que determina a ação política em um determinado período da<br />

história depende do contexto político e cultural dentro do qual é formulada a política externa”;<br />

4) afirma que o “realismo político é consciente do significado moral da ação política,<br />

como o é igualmente da tensão inevitável existente entre o mandamento moral e as exigências<br />

da ação política eficaz”, vale dizer, “a ética política julga uma ação tendo em vista as suas<br />

consequências políticas”, portanto, o realismo não é imoral, senão que seu objeto de estudo<br />

não é a moral;<br />

5) acrescenta que o “realismo político recusa-se a identificar as aspirações morais de<br />

uma determinada nação com as leis morais que governam o universo”, o critério deve ser o do<br />

“interesse definido em termos de poder que nos salva” dos excessos morais e políticos; e<br />

6) o “realista político sustenta a autonomia da esfera política”, cujo parâmetro básico é<br />

a realidade do interesse definido como poder, devendo-se perguntar: “de que modo pode esta<br />

política afetar o poder da nação?”<br />

Raymond Aron 11 , outro pensador de base realista, quando examinou as relações<br />

9<br />

MORGENTHAU, Hans. A Política Entre as Nações. Brasília: Imprensa Oficial/ UnB/ IPRI, SP/DF, 2003.<br />

10<br />

Idem, p. 4-28.<br />

11<br />

ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: FUNAG/ IPRI, 2002.<br />

19


internacionais propôs dois modelos: o primeiro deles multipolar, composto de diversas<br />

unidades políticas comparáveis em seu tamanho, seu poder econômico e militar, inexistente à<br />

época das suas pesquisas, embora recorrente na história das relações internacionais; o segundo<br />

bipolar, vigente na mesma época, no qual as forças em pauta abrigam-se em duas coalizões<br />

antagônicas em torno de quem se aglutinam as unidades políticas. Desnecessário enfatizar que<br />

foi este último modelo que presidiu o sistema internacional no período da Guerra Fria.<br />

Em resumo o realismo tem como elementos básicos das relações internacionais: o<br />

Estado como ator, unitário, soberano, indivisível e racional; agindo de forma egocêntrica,<br />

exclusivamente fundamentado nos interesses (nacionais) próprios; onde preponderam as<br />

relações de poder 12 e o mais forte se impõe; operando em um estado de natureza hobbesiano,<br />

de anarquia; submetido a uma lei de sobrevivência (já que cada qual, conta apenas consigo<br />

mesmo), o que implica no reforço das suas seguranças e defesas militares; cuja hipótese de<br />

paz repousa na necessidade do equilíbrio de poder entre os Estados Nacionais (ou das<br />

unidades políticas), mais particularmente, entre as potências, uma vez que - a partir da relação<br />

de forças entre estas unidades - surge o conflito; e, em cujo sistema, não restam alternativas<br />

aos Estados mais fracos, a não ser aderir a outros mais fortes, capazes de proporcionar<br />

segurança contra poderes ameaçadores.<br />

Nesse contexto de relativização do poder, faz-se necessário registrar o aporte<br />

representado por Kenneth Waltz, reconhecido pela ênfase que dá a estrutura do sistema como<br />

determinante para a dinâmica das relações internacionais.<br />

Waltz 13 , representante do neo-realismo 14 , apresentou uma abordagem ampliada do<br />

realismo, ao expandir, sem abandonar, a perspectiva estado-centrista com projeção<br />

essencialmente para o exterior. Suas idéias foram explicitadas em seu primeiro livro O<br />

Homem, o Estado e a Guerra: uma análise teórica, publicado em 1959, e, por isso, tem<br />

12 Para Guillaume DEVIN, in Sociologie des relations internationales, Paris: La Découverte, 2002, o Poder seria<br />

a capacidade de um ator conduzir outros atores a fazerem o que em outras circunstâncias eles não fariam e de<br />

não se submeter a constrangimentos. Para alcançar tal preponderância torna-se importante a disponibilidade de<br />

elementos políticos, militares, econômicos, psicossociais, geográficos, materiais, institucionais e morais, entre<br />

outros.<br />

13 Kenneth WALTZ, em Teoria das Relações Internacionais, Lisboa: Gradiva Publicações, 2002; e O Homem, o<br />

Estado e a Guerra: uma análise teórica, São Paulo: Martins Fontes, 2004. Embora tenha escrito suas<br />

interpretações posteriormente ao período ora em estudo, este autor introduziu um importante conceito para as<br />

análises deste trabalho que trata dos constrangimentos impostos pela estrutura do sistema internacional aos<br />

países que dele participam.<br />

14 O neorealismo consistiu na retomada da epistemologia realista clássica dentro de um contexto que procurava<br />

introduzir um maior rigor científico e objetividade conceitual, que evitasse as categorias consideradas vagas e<br />

mutáveis da corrente anterior, apoiando-se particularmente nos novos aportes teóricos do behaviorismo e das<br />

teorias da escolha racional e dos jogos – cuja metodologia deveria, por meio de critérios de objetividade<br />

científica, contribuir para a validação teórica das suas hipóteses. Para os autores dessa nova corrente teórica, a<br />

corrente clássica, entre outros erros, teria falhado em separar aspectos objetivos e subjetivos da política<br />

internacional e negado autonomia ao sistema internacional, atribuindo o papel central de suas análises sobre a<br />

dinâmica internacional a atores estatais desumanizados.<br />

20


acentuadas referências aos conflitos e à guerra, as quais, posteriormente, seriam adaptadas<br />

para uma análise mais direcionadas no livro Teoria das Relações Internacionais.<br />

Inicialmente, portanto, atribuiu três imagens, para localizar o nexo onde ocorreriam<br />

essas interações (conflitos) entre as unidades políticas: o homem (a natureza humana); o<br />

Estado; e o sistema de Estados (estrutura). Em seguida, transferiu da segunda (o foco dos<br />

realistas) para a terceira imagem a centralidade das análises, pois seria onde se situariam as<br />

origens dos conflitos.<br />

Para examinar com maior precisão a estrutura do sistema de Estados, Waltz introduziu<br />

três parâmetros:<br />

1) um princípio ordenador de sistema, que seria hierárquico no interior das unidades<br />

políticas, onde predominam as relações de dominação e subordinação, ou anárquico, para a<br />

estrutura internacional, devido à ausência de uma autoridade acima dos Estados capaz de<br />

prevenir e conciliar os conflitos;<br />

2) uma diferenciação formal (funcional) entre as partes, somente possível dentro de<br />

um princípio ordenador hierárquico; e<br />

3) uma atribuição de capacidades relativas às unidades, uma vez que é a distribuição<br />

dos recursos entre os Estados que os diferenciam e apontam os pólos vigentes de Poder<br />

(bipolar ou multipolar), dessa maneira dependentes de posicionamento relativo e estrutural,<br />

tudo isso implicando em uma relação que antecede e independe dos Estados visualizados<br />

como unidades políticas isoladas, uma espécie de ordenamento primitivo, cuja força é capaz<br />

de constranger e condicionar os padrões de comportamento das unidades.<br />

Nesse sentido os Estados Nacionais buscariam ampliar seu poder relativo de forma a<br />

aumentar de per se a capacidade de impor sua vontade aos outros atores e, ao mesmo tempo,<br />

não se submeter à vontade de outrem.<br />

Uma síntese sobre os constrangimentos que o sistema internacional impõe às unidades<br />

políticas periféricas pode ser encontrada em Vágner Camilo Alves 15 , quando descreveu o<br />

envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial:<br />

“A influência que o sistema internacional exerce sobre o comportamento dos<br />

Estados é reconhecida por todos os estudiosos de Relações Internacionais, ainda que<br />

a importância desse condicionamento varie bastante de autor para autor. A hipótese<br />

desenvolvida aqui tem como premissa a existência de um grau muito elevado de<br />

coação sistêmica para os atores periféricos do sistema internacional da época, tão<br />

grande que é considerado como suficiente para explicar o envolvimento do Brasil e<br />

até os ganhos de sua política exterior na guerra. Em razão disso, é necessária uma<br />

15 Vágner Camilo ALVES, “O Brasil e a Segunda Guerra Mundial: paradigma de inserção em conflito total e<br />

global para países periféricos e estrategicamente importantes”, in Contexto Internacional, v. 21, n. 1, 1999, p.<br />

49-81.<br />

21


explanação clara do conceito de sistema internacional aqui utilizado. Ele parte do<br />

conceito elaborado por Kenneth Waltz de que os Estados são os atores<br />

predominantes no cenário internacional, cuja característica mais saliente em termos<br />

teóricos é a descentralização, ou ausência de qualquer órgão ou instituição política<br />

hierarquicamente superior aos países. Essa anarquia internacional ensejaria, através<br />

do processo de socialização e competição/emulação entre os Estados, um sistema<br />

internacional composto por atores assemelhados. A diferença entre eles estaria<br />

circunscrita somente à capacidade ou poder relativo desfrutado por cada um,<br />

característica que, de qualquer modo, não faria parte das unidades e sim da estrutura<br />

do sistema (Waltz, 1988, caps. 4 e 5).” 16<br />

Dessa forma, após a apresentação das idéias que condicionaram a visão de mundo dos<br />

principais protagonistas das relações internacionais, particularmente considerando o período<br />

desse estudo, de vigência da Guerra Fria, que inclinou o mundo para uma clivagem<br />

ideológica e de poder nitidamente realista e bipolar, verifica-se que aos Estados Nacionais<br />

periféricos não restavam alternativas que não fossem a adesão a um dos blocos de Poder<br />

vigentes, fato que não os isentava de conflitos, originários das suas fragilidades políticas<br />

internas e dos avanços expansionistas dos contendores, com preponderância econômica pelo<br />

lado da aliança liderada pelos EUA e ideológica da URSS.<br />

Ao mesmo tempo, embora não explicitado pelos autores acima mencionados, é lícito<br />

inferir que, para os pólos de poder determinantes; quais sejam, EUA e a URSS, a<br />

configuração de uma hierarquia entre os Estados Nacionais sob suas respectivas esferas de<br />

influência seria desejável, adicionando funcionalidade aos mesmos, o que poderia ser obtido<br />

por intermédio de tratados e acordos que, de alguma forma, vinculassem e subordinassem os<br />

Estados, porque não dizer dependentes, aos seus ditames.<br />

2.2 RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES<br />

As bases teóricas para as relações entre civis e militares constituem a essência deste<br />

trabalho, especialmente no que afeta a segurança e a defesa do Estado nacional.<br />

Para Samuel Huntington 17 :<br />

“A relação entre civis e militares constitui um dos aspectos da política de segurança<br />

nacional. O objetivo da política de segurança nacional é fortalecer a segurança das<br />

instituições sociais, econômicas e políticas contra ameaças que surjam de outros<br />

países independentes [...] tendentes a enfraquecer ou destruir um país através de<br />

forças armadas que operam de fora de suas fronteiras institucionais e territoriais. [...]<br />

A relação entre civis e militares forma o principal componente institucional da<br />

política de segurança militar. 18<br />

16 Vágner Camilo ALVES, 1999, p. 1.<br />

17 HUNTINGTON, Samuel P. O Soldado e o Estado: teoria política das relações entre civis e militares. Rio de<br />

Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996.<br />

18 HUNTINGTON, op. cit., 1996, p. 19.<br />

22


[...]<br />

Em nível institucional o objetivo dessa política é desenvolver um sistema de relação<br />

entre civis e militares que eleve ao máximo a segurança militar com sacrifício<br />

mínimo de outros valores sociais. A consecução desse objetivo envolve um<br />

complexo equilíbrio de poder e atitudes entre grupos militares e civis. Países que<br />

mantêm um quadro adequadamente equilibrado de relação entre civis e militares<br />

desfrutam de grande vantagem na busca por segurança. São maiores suas<br />

probabilidades de obter respostas certas para questões operacionais de política<br />

militar. Países que não conseguem manter um quadro equilibrado de relação entre<br />

civis e militares desperdiçam recursos e correm riscos incalculáveis. [...] As<br />

instituições militares de qualquer sociedade são moldadas por duas forças: um<br />

imperativo funcional, que se origina das ameaças à segurança da sociedade, e um<br />

imperativo societário, proveniente das forças sociais, das ideologias e das<br />

instituições dominantes dentro dessa mesma sociedade. Instituições militares que só<br />

refletem valores sociais podem ser incapazes de desempenhar com eficiência sua<br />

função específica. Por outro lado, poderá ser impossível conter dentro de uma<br />

sociedade instituições militares moldadas exclusivamente por imperativos<br />

funcionais. É na interação dessas duas forças que está o nó do problema das relações<br />

entre civis e militares. O grau em que elas entram em conflito depende da<br />

intensidade das exigências de segurança e da natureza e força do padrão de valores<br />

da sociedade.” 19<br />

Ao tratar dos paradigmas de controle civil, Huntington observa que, até a data em que<br />

redigiu O Soldado e o Estado, ou seja, em 1957, esse conceito não tinha sido definido a<br />

contento, admitindo-se “em geral que o controle civil tem algo a ver com o poder relativo de<br />

grupos civis e militares. Presume-se daí que o controle civil é alcançado na medida em que se<br />

reduz o poder de grupos militares”. 20 Daí o seu questionamento básico na busca de uma<br />

definição para o controle civil, que consistiria em descobrir como minimizar o poder militar.<br />

Para tanto, ele sugere dois modelos clássicos de controle: o civil subjetivo e o civil<br />

objetivo. Quanto ao primeiro, busca maximizar o poder de grupos civis (por determinadas<br />

instituições governamentais, como o Presidente da República, o Parlamento, segmentos<br />

sociais ou preceitos constitucionais) e minimizar o dos militares, incorporando-os às suas<br />

políticas e estratégias. Seria, pois, a única forma de controle na ausência de um corpo militar<br />

profissional. Entretanto, como cada grupo civil procuraria incrementar o seu próprio poder em<br />

relação aos outros, inclusive mediante a incorporação de grupos militares favoráveis (ou que<br />

se tornassem favoráveis) e a ascensão do profissionalismo militar imporia interesses,<br />

igualmente corporativos, haveria um permanente potencial de desestabilização desse controle,<br />

chegando ao ponto de que, entre outras possibilidades deletérias, em países democráticos, os<br />

militares possam “solapar o controle civil e adquirir grande poder político através de<br />

processos legítimos e instituições de governo e de política (por exemplo, nos Estados Unidos<br />

na Segunda Guerra Mundial)” 21 ou, como ocorre em regimes totalitários, serem fragmentados<br />

19 Samuel P. HUNTINGTON, O Soldado e o Estado, p. 20.<br />

20 Idem, p. 99.<br />

21 Ibidem, p. 101.<br />

23


em unidades competitivas, como a Waffen-SS (Schutzstaffel) e o MVD<br />

(MinisterstvoVonoutrennikh Diel) 22 , ou infiltrados na hierarquia militar por cadeias<br />

independentes de comando (comissários políticos) e submetidos pelo uso do terror,<br />

conspiração e espionagem.<br />

O modelo do controle civil objetivo, que seria o ideal na percepção de Huntington,<br />

maximizaria o profissionalismo militar, uma vez que atingiria o seu fim ao militarizar os<br />

militares e, dessa forma, deixá-los neutros politicamente, em contraposição ao fim do controle<br />

subjetivo que tenderia a envolvê-los na política institucional, classista ou constitucional, onde<br />

a “essência do controle civil objetivo é o reconhecimento do profissionalismo militar<br />

autônomo; [...] a negação de uma esfera militar independente.” 23 Para Huntington:<br />

“O elemento essencial e prioritário de qualquer sistema de controle civil é minimizar<br />

o poder militar. O controle civil objetivo atinge essa redução profissionalizando os<br />

militares, tomando-os politicamente inúteis e neutros. Isso produz o nível mais baixo<br />

possível do poder político militar com relação a todos os grupos civis. Ao mesmo<br />

tempo, preserva aquele elemento essencial de poder que é indispensável à existência<br />

de uma profissão militar. Um corpo de oficiais altamente profissional mantém-se<br />

pronto a realizar os desejos de um grupo civil que detenha autoridade legítima,<br />

dentro do Estado. Com efeito, isso estabelece limites definidos do poder político<br />

militar sem referência à distribuição de poder político entre os diversos grupos civis.<br />

Qualquer outra redução de poder militar, além do ponto em que o profissionalismo é<br />

maximizado, só redunda em benefício de um determinado grupo civil e só serve para<br />

realçar o poder desse grupo em sua luta com outros grupos civis. A distribuição de<br />

poder político que mais facilita o profissionalismo militar é também, portanto, o<br />

ponto mais baixo ao qual o poder militar pode ser reduzido sem posar de favorito<br />

entre grupos civis. Em virtude disso, a definição objetiva de controle civil<br />

proporciona um singular e concreto padrão de controle civil politicamente neutro e<br />

que todos os grupos sociais podem reconhecer.” 24<br />

Também, segundo Huntington, o ideal das relações entre civis e militares seria aquele<br />

em que os militares integrassem um organismo profissional desvinculado da política e onde<br />

houvesse uma única fonte de autoridade legítima reconhecida:<br />

“[...] Onde há autoridades ou idéias conflitantes quanto a saber a quem cabe a<br />

autoridade, o profissionalismo se torna uma coisa difícil e até impossível de<br />

22 HUNTINGTON, Samuel P. O Soldado e o Estado, p. 99-102. N.A.: O modelo nacional-socialista<br />

compreendia, basicamente, o Partido, as forças militares e as de segurança. Como forma de controle, foram<br />

estabelecidos núcleos de poder complementares e competitivos. No caso a que se refere o autor, as Tropas de<br />

Proteção, Schutzstaffel (SS), tinham por rival as Divisões de Assalto, Sturmabteilung (SA), neste caso como<br />

guardiãs do sistema, e, até, a própria Wehrmacht; o MVD, Ministério do Interior da antiga URSS, foi a<br />

organização de inteligência sucessora do NKVD, o Comissariado Popular do Interior, e conviveu em regime de<br />

competição com o MGB, o Ministério de Segurança do Estado, entre 1946 e 1953, quando foi unificado por<br />

Lavrenti Beria no contexto da sucessão de Stalin, e, novamente separado, após a sua execução determinada pelo<br />

Presidium, quando o MGB foi transformado no Comissariado de Segurança do Estado (KGB), com funções de<br />

segurança interna e externa.<br />

23 Idem, p. 101.<br />

24 Ibidem, p. 101.<br />

24


alcançar. O conflito de ideologias constitucionais e de lealdades governamentais<br />

divide a oficialidade e superpõe considerações e valores políticos sobre<br />

considerações e valores militares. A natureza das lealdades políticas de um oficial se<br />

torna mais importante para o governo do que o nível de sua competência<br />

profissional. [...] Na verdade, o profissionalismo vê-se mais tolhido do que ajudado<br />

quando as classes oponentes se tornam identificadas com instituições<br />

governamentais em conflito, cada qual querendo reivindicar alguma autoridade<br />

sobre a oficialidade, ou quando as duas classes têm opiniões fundamentalmente<br />

diferentes sobre a estrutura constitucional do Estado.” 25<br />

Conforme é possível observar em o Soldado e o Estado, Huntington delineia duas<br />

situações e somente uma delas seria aplicável ao Brasil dos anos cinquenta e sessenta: o<br />

modelo do controle subjetivo, do envolvimento dos militares com a política.<br />

Talvez, por ter percebido que as condições estudadas em O Soldado e o Estado não se<br />

adequavam perfeitamente a uma vasta faixa de países - que ele considerou em processo de<br />

modernização 26 - localizados na Ásia, África e América Latina, a zona de choque da Guerra<br />

Fria, e assolados pela violência política 27 , Huntington procurou abordá-los em um estudo<br />

subsequente, que abrange o período posterior à Segunda Guerra Mundial e se estende até<br />

1965, publicado sob o título A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, em 1968, no<br />

qual, embora sem direcioná-las especificamente para as relações entre civis e militares, adapta<br />

suas ideias, introduzindo novos modelos, de forma que pudessem ser aplicadas a esses países.<br />

Huntington examina a Ordem Política defendendo a tese de que a desorganização e a<br />

violência políticas são produtos da rápida mudança social e da mobilização de novos grupos<br />

para a política, em descompasso com o lento desenvolvimento das próprias instituições<br />

políticas. “A instabilidade política nos países em modernização é, em grande parte, uma<br />

função do hiato entre aspirações e expectativas, produzido pelo aumento das aspirações que<br />

ocorre principalmente nas primeiras fases da modernização” 28 .<br />

Para corroborar sua hipótese rememora Tocqueville “Entre as leis que regem as<br />

sociedades humanas, há uma que parece ser mais precisa e clara que todas as outras. Para que<br />

25 HUNTINGTON, Samuel P. O Soldado e o Estado, p. 53-54.<br />

26 “A modernização, que se confunde com a plena eficiência, é uma associação de urbanização, industrialização,<br />

secularização, democratização, educação e participação nos meios de comunicação. Esse conjunto realiza uma<br />

mudança fundamental de valores e exige mobilização social e desenvolvimento econômico. O processo de<br />

modernização em si provoca desagregação da democracia e tendência para regimes militares autocráticos e<br />

regimes unipartidários. [...] A modernização é uma crise.[ ...] Nas fases de modernização, acrescenta o<br />

historiador, a corrupção pode significar uma certa dose de lubrificação e cita a propósito exemplos tirados da<br />

história contemporânea do Brasil”. “Prefácio” de Carlos Castello BRANCO, em A Ordem Política nas<br />

Sociedades em Mudança, p. 3. N.A.: O exemplo de corrupção a que se refere C. Branco é do governo de<br />

Juscelino Kubitschek.<br />

27 Samuel P. HUNTINGTON, em A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, São Paulo: Forense/ EDUSP,<br />

1975, cita que, entre 1958 e 1965, ocorreram 373 atos de violência política tais como golpes de estado,<br />

insurreições, revoluções e, até mesmo, guerras nessas regiões. (Fonte: Departamento de Defesa dos Estados<br />

Unidos da América, op. cit., p. 16)<br />

28 HUNTINGTON, 1975, p. 69.<br />

25


os homens permaneçam ou se tornem civilizados é preciso que a arte de se associarem cresça<br />

e melhore na mesma proporção em que aumenta a igualdade de condições” 29 . Assim sendo,<br />

“A instabilidade política na Ásia, África e América Latina decorre precisamente do<br />

insucesso em preencher essa condição: a igualdade de participação política está<br />

crescendo muito mais rapidamente do que a arte da associação. As mudanças social<br />

e econômica – urbanização, aumento da alfabetização e da educação,<br />

industrialização e expansão dos meios de massa – estendem a consciência política,<br />

multiplicam as demandas políticas e ampliam a participação política. Essas<br />

mudanças minam as fontes tradicionais de autoridade política e as instituições<br />

políticas tradicionais; complicam imensamente os problemas de se criar novas bases<br />

de associação política e novas instituições políticas que combinem legitimidade e<br />

eficiência. As taxas de mobilização social e de expansão da participação política são<br />

altas; as taxas de organização política e institucionalização são baixas. O resultado é<br />

instabilidade política e desordem. O problema fundamental da política é o atraso no<br />

desenvolvimento de instituições políticas em relação às mudanças social e<br />

econômica.” 30<br />

Comparando essas regiões mais tumultuadas da Ásia, África e América Latina com a<br />

estabilidade nos países desenvolvidos, como os Estados Unidos da América (EUA), Europa e<br />

os países que integravam o bloco comunista, conclui que não são as formas de governo que<br />

importam para esta estabilidade, mas os graus (efetividade) dos governos 31 , sendo aqueles<br />

países, estáveis, comunidades políticas que apresentavam um consenso surpreendente “entre<br />

os indivíduos quanto à legitimidade do sistema político. Em cada país, os cidadãos e os seus<br />

dirigentes têm uma visão comum do interesse público da sociedade e das tradições e dos<br />

princípios em que se baseia a comunidade política” 32 . Neles, os governos efetivamente,<br />

governam,<br />

“[...] há instituições políticas fortes, partidos bem organizados, grau elevado de<br />

participação popular, sistemas viáveis de controle civil sobre os militares, extensa<br />

atividade do governo na economia e procedimentos razoavelmente eficazes para<br />

regular a sucessão e controlar o conflito político. Dispõem da lealdade dos seus<br />

cidadãos e as decisões do Politburo, do Gabinete e do Presidente são implementadas<br />

pela máquina governamental.” 33<br />

Em posição oposta, os países asiáticos, africanos e latino-americanos, protagonistas do<br />

arco de violência política, eram:<br />

29 Alexis de TOCQUEVILLE, in Democracy in America (A Democracia na América), Nova York: Phillips<br />

Bradley, Knopf, 1955, 2, 118. Citado em HUNTINGTON, A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, p. 16.<br />

30 HUNTINGTON, 1975, p. 17.<br />

31 Para Samuel HUNTINGTON, em A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, p. 16, “as diferenças entre<br />

democracia e ditadura são menores que as existentes entre os países cuja política compreende consenso,<br />

comunidade, legitimidade, organização, eficiência, estabilidade e os países cuja política é deficiente nessas<br />

qualidades. Tanto os estados comunistas totalitários quanto os estados liberais do Ocidente se enquadram<br />

geralmente mais na categoria de sistemas políticos efetivos do que na de sistemas políticos fracos.”<br />

32 HUNTINGTON, 1975, p. 13.<br />

33 Idem.<br />

26


“[...] carentes de alimentos, alfabetização, educação, riqueza, renda, saúde e<br />

produtividade. [...] Além dessas carências e por trás delas, entretanto, há outra<br />

maior: a carência de comunidade política e de um governo com eficiência,<br />

autoridade e legitimidade. [...] onde a comunidade política é fragmentada contra si<br />

mesma e onde as instituições políticas têm pouco poder, menos majestade e não<br />

apresentam flexibilidade – onde, em muitos casos, o governo simplesmente não<br />

governa.” 34<br />

Para Samuel Huntington, esta situação caracterizaria um governo com baixo nível de<br />

institucionalização, fraco, um mau governo, uma vez que a função primordial dele é governar,<br />

por isso, um “governo que carece de autoridade, deixa de cumprir a sua função é tão imoral<br />

quanto um juiz corrupto, um soldado covarde, ou um professor ignorante.” 35<br />

Conforme assinalado em seu livro, a modernização se desenvolve sobre três eixos: o<br />

central é o político, cujo parâmetro de referência seria o grau de institucionalização política 36<br />

e que se direcionaria para a estabilidade política; ou seja: a ausência de violência política. Um<br />

segundo eixo, pode-se considerar como horizontal, econômico, cujo parâmetro é o<br />

desenvolvimento econômico e humano, com o aumento da oferta de emprego, renda,<br />

poupança, investimento e consumo, entre outros e que se dirigiria para a superação do atraso e<br />

a redução das desigualdades – da pobreza, do analfabetismo, das condições de saúde da<br />

população e outras. Por fim, um eixo vertical, social, cujo parâmetro de acompanhamento<br />

seria o das forças sociais 37 na sua continua incorporação à atividade política, sob a forma de<br />

participação 38 , e que teria como finalidade prover o bem estar da população em condições<br />

sociais avançadas.<br />

Esse processo teria início em países com estruturas oligárquicas, denominadas<br />

comunidades políticas tradicionais, caracterizadas pela reduzida participação política,<br />

normalmente circunscrita a um pequeno segmento da população, as elites aristocráticas e<br />

burocráticas dominantes; em que pese o fato de, até então, gozarem de estabilidade política e<br />

assegurarem referência de autoridade e governabilidade. Ele perduraria até o esgotamento do<br />

34 HUNTINGTON, 1975, p. 13.<br />

35 Idem, p. 40.<br />

36 “A institucionalização é o processo através do qual as organizações e os processos adquirem valor e<br />

estabilidade. O nível de institucionalização de qualquer sistema político pode ser definido pela adaptabilidade,<br />

complexidade, autonomia e coesão de suas organizações e procedimentos. [...] Se esses critérios podem ser<br />

identificados e medidos, os sistemas políticos podem ser comparados em termos de seus níveis de<br />

institucionalização”. Ibidem, p. 24. Sobre instituições e institucionalização o autor cita copiosa literatura<br />

acadêmica na nota n o 7, p. 24.<br />

37 Essas forças sociais seriam representadas, entre outras, por grupos: étnicos, religiosos, econômicos, territoriais,<br />

de status, ocupacionais ou de técnicos; empresários, latifundiários, fazendeiros; intelectuais, estudantes,<br />

trabalhadores, camponeses; burocracias, inclusive a militar; classes; clãs; famílias.<br />

38 Desde as atividades parlamentares, passando pelas greves, manifestações estudantis, motins militares,<br />

proselitismo religioso e chegando à violência política nas suas várias formas. Na maioria das vezes ocorre por<br />

meio de mobilização das forças sociais.<br />

27


modelo, por impasses políticos, pelos influxos originados do desenvolvimento econômico,<br />

pelo advento de novas forças sociais, ou pela conjuminação desses efeitos.<br />

“Em muitos casos, especialmente onde a burocracia tradicional é bastante<br />

desenvolvida, os primeiros grupos da sociedade tradicional a ficarem expostos à<br />

modernidade são os burocratas militares e civis. No devido tempo, surgem em cena<br />

os estudantes, intelectuais, comerciantes, médicos, banqueiros, artesãos,<br />

empresários, professores, advogados e engenheiros. Esses grupos desenvolvem<br />

sentimentos de eficácia política e exigem alguma forma de participação no sistema<br />

político. A classe média urbana, em suma, faz o seu aparecimento na política e torna<br />

a cidade a fonte de inquietação e oposição ao sistema político e social que ainda é<br />

dominado pelo campo.<br />

Os elementos urbanos conseguem finalmente impor-se e derrubam a elite rural<br />

dominante, o que assinala o fim do sistema político tradicional. Essa vitória urbana é<br />

geralmente acompanhada pela violência e, a partir desse momento, a política da<br />

sociedade toma-se altamente instável.” 39<br />

Rompidas essas estruturas estáveis, não haveria mais como voltar, exceto um<br />

caminhar para frente, que deveria passar por duas fases de incorporação popular na atividade<br />

política – a da classe média (ou radical) e a das massas – após a qual poderia atingir um<br />

último estágio de participação denominada cívica; um nível de comunidade política moderna,<br />

presidida por maior consenso, legitimidade e elevado grau de institucionalização política.<br />

Cada fase dessa evolução decorrente de avanços no âmbito político, econômico ou<br />

social, seria potencialmente desestabilizadora e promotora de violência política, de reformas<br />

abruptas e revoluções ou até mesmo retrocessos devido à impossibilidade de progressão dos<br />

três eixos em harmonia. Huntington acentua que a “relação entre a mobilização social e a<br />

instabilidade política parece ser razoavelmente direta” 40 . Alterações, entre outras, como maior<br />

“urbanização e os aumentos nos índices de alfabetização, educação e exposição aos meios de<br />

massa provocam um incremento das aspirações e expectativas, as quais, se não satisfeitas,<br />

galvanizam os indivíduos e os grupos para a política”. Tudo isso, somado a “ausência de<br />

instituições políticas fortes e adaptáveis [...] redundam em instabilidade e violência.” 41<br />

Assim examinadas, essas fases se caracterizariam por uma sucessão de hiatos ou<br />

descompassos. O hiato que o preocupa é o político, cujo termômetro é a violência política,<br />

causado pela ausência de governo e caracterizado por:<br />

“[...] crescentes conflitos étnicos e de classe, intermitentes motins e violência de<br />

massa, freqüentes golpes de estado militares, domínio de instáveis líderes<br />

personalistas que tomaram quase sempre medidas econômicas e sociais desastrosas,<br />

corrupção generalizada e clamorosa entre os ministros e os funcionários públicos,<br />

violação arbitrária dos direitos e liberdades dos cidadãos, declínio dos padrões de<br />

39 HUNTINGTON, A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, p. 87.<br />

40 Idem, p. 60.<br />

41 Ibidem.<br />

28


eficiência e desempenho da burocracia, profunda alienação de grupos políticos<br />

urbanos, perda de autoridade de legislativos e tribunais e fragmentação e às vezes<br />

desintegração completa de partidos políticos de ampla base.” 42<br />

O hiato econômico, ainda que relacionado com o político, não seria o mais importante,<br />

porquanto “países de economia subdesenvolvida podem ter sistemas políticos altamente<br />

desenvolvidos e países que atingiram um alto nível de bem-estar econômico podem ter ainda<br />

uma política desorganizada e caótica” 43 . Além disso, diz aquele autor, é falsa a premissa<br />

largamente utilizada de que o desenvolvimento econômico levaria à estabilidade política, pois<br />

“o desenvolvimento econômico e a estabilidade política são dois objetivos independentes e o<br />

progresso em direção a um deles não tem necessariamente ligação com o progresso em<br />

direção ao outro” 44 . Ele tanto pode promover a estabilidade política, como solapar gravemente<br />

essa estabilidade 45 . “Do mesmo modo, algumas formas de estabilidade política podem<br />

incentivar o crescimento econômico; outras formas podem desestimulá-lo” 46 .<br />

Segundo, ainda, Huntington, as condições da fundação dos EUA 47 – com a emulação<br />

de governo, práticas e instituições políticas da Inglaterra do Século XVII; e a linearidade do<br />

seu desenvolvimento econômico, “abençoados” com a abundância, bem-estar social e<br />

estabilidade política de sobra – criaram um “hiato na experiência histórica” 48 e tornaram seus<br />

cidadãos “especialmente cegos aos problemas da criação de autoridade efetiva nos países em<br />

modernização” 49 , de forma que, quando um estadunidense reflete sobe a construção de um<br />

governo “volta-se não para a criação de autoridade e o acúmulo de poder, mas de preferência<br />

para a limitação da autoridade e a divisão de poder” 50 .<br />

E acrescenta que, ao norte-americano, se: “lhe pedirem que projete um governo,<br />

apresentará uma constituição escrita, declaração de direitos, divisão de poderes, formas de<br />

controle e verificação, federalismo, eleições regulares, partidos concorrentes – tudo isso<br />

42 HUNTINGTON, 1975, p. 15.<br />

43 Idem, p. 18. O autor cita a Índia, um dos países mais pobres do mundo na década de 1950 e com baixo<br />

crescimento econômico, que, graças ao Partido do Congresso, alcançara alto grau de estabilidade política; e a<br />

Argentina e a Venezuela, cujas rendas per capita eram dez vezes maiores do que a da Índia e com altos índices<br />

de crescimento econômico, mas não possuíam estabilidade política.<br />

44 Ibidem.<br />

45 Mancur OLSON Jr., "Rapid Growth as a Destabilizing Force" (O Crescimento Rápido como Força<br />

Desestabilizadora), in Journal of Economic History, 23 (dezembro de 1963), p. 532. Citado por HUNTINGTON,<br />

1975, p. 63.<br />

46 HUNTINGTON, 1975, p. 18.<br />

47 “Nascidos iguais e daí não terem tido de se preocupar com a criação da igualdade; gozavam os frutos de uma<br />

revolução democrática sem a haver sofrido”- TOCQUEVILLE, citado em HUNTINGTON, 1975, p. 19. Tal<br />

afirmativa de Tocqueville, apesar de coerente com o raciocínio de Huntington, merece a observação de que<br />

aquele autor francês não levou em consideração as populações negras e indígenas ao fazer tal assertiva.<br />

48 HUNTINGTON, 1975, p. 19.<br />

49 Idem.<br />

50 Ibidem.<br />

29


dispositivos excelentes para limitar o governo” e, mais, em caso de “necessidade de planejar<br />

um sistema político que maximize o poder e a autoridade, ele não tem uma solução pronta. A<br />

sua fórmula geral é que os governos devem basear-se em eleições livres e honestas” 51 .<br />

E complementa:<br />

“Em muitas sociedades em modernização, essa fórmula não tem valor. Para terem<br />

sentido, as eleições pressupõem um certo nível de organização política. O problema<br />

não é realizar eleições mas criar organizações. Em muitos, talvez em quase todos os<br />

países em modernização, as eleições só servem para favorecer o poder das forças<br />

sociais perturbadoras e muitas vezes reacionárias e para derrubar a estrutura da<br />

autoridade pública. ‘Na formação de um governo que deve ser administrado por<br />

homens sobre homens’, advertiu Madison em The Federalist n o 51, ‘a grande<br />

dificuldade consiste no seguinte: deve-se, primeiro, habilitar o governo a controlar<br />

os governados e, em seguida, obrigá-lo a controlar-se’. Em muitos países em<br />

modernização, os governos são ainda incapazes de exercer a primeira função e,<br />

muito menos, a segunda. O problema fundamental não é a liberdade mas a criação<br />

de uma ordem pública legítima. Os homens podem, sem dúvida, ter ordem sem<br />

liberdade mas não podem ter liberdade sem ordem. É preciso que a autoridade exista<br />

antes de ser possível limitá-la e autoridade é o que falta nos países em modernização<br />

onde o governo está à mercê de intelectuais alienados, coronéis turbulentos e<br />

estudantes desordeiros.” 52<br />

“É precisamente essa escassez de autoridade que os movimentos comunistas e de<br />

tipo comunista conseguem quase sempre resolver [sem itálico no original]. A<br />

história mostra conclusivamente que os governos comunistas não são melhores que<br />

os governos livres em atenuar a fome, melhorar a saúde, expandir o produto<br />

nacional, criar uma base industrial e aumentar a assistência. Mas uma coisa que os<br />

governos comunistas sabem fazer é governar; eles realmente proporcionam uma<br />

autoridade efetiva [sem itálico no original]. Sua ideologia fornece uma base de<br />

legitimidade e sua organização partidária provê o mecanismo institucional para a<br />

mobilização de apoio e a execução de políticas. Derrubar o governo em muitos<br />

países em modernização é uma tarefa simples: um batalhão, dois tanques e meia<br />

dúzia de coronéis podem bastar. Mas nenhum governo comunista num país em<br />

modernização foi derrubado por um golpe de estado militar. O verdadeiro desafio<br />

que os comunistas colocam para os países em modernização não é que eles sejam<br />

capazes de derrubar governos (o que é fácil) mas que sejam capazes de constituir<br />

governos (o que é uma tarefa muito mais difícil). Podem não dar liberdade, mas<br />

exercem autoridade; criam governos que podem governar. Enquanto os americanos<br />

se esforçam laboriosamente por diminuir o hiato econômico, os comunistas<br />

oferecem aos países em modernização um método testado e provado de preencher o<br />

vácuo político. Em meio ao conflito social e à violência que afligem os países em<br />

modernização, eles fornecem alguma certeza de ordem política [sem itálico no<br />

original].” 53<br />

Quando se dedica ao eixo social da sua construção teórica, Huntington trata da<br />

participação das forças sociais na política, na busca de condições que garantam o bem estar e<br />

51 HUNTINGTON, 1975, p. 19.<br />

52 Idem, p. 19-20.<br />

53 Ibidem, p. 20.<br />

30


maior igualdade. Para o autor, o critério de aferição do avançar compassado 54 entre as forças<br />

sociais e a institucionalização política é aquilatado pelo grau de comunidade política de uma<br />

sociedade e está refletido na relação entre as instituições políticas e as forças sociais que a<br />

compõem. “A modernização implica, em grande parte, na multiplicação e diversificação das<br />

forças sociais na sociedade”, a partir de famílias, clãs, classes e outras, em movimento<br />

crescente de incorporação e participação de novas forças na sociedade política 55 .<br />

“Quanto mais complexa e heterogênea é, porém, a sociedade, mais a efetivação e<br />

manutenção da comunidade política se torna dependente do funcionamento das instituições<br />

políticas” 56 . Dessa forma, em uma “sociedade em que todos pertencem à mesma força social,<br />

os conflitos são limitados e se resolvem através da estrutura da força social. Não são<br />

necessárias instituições políticas claramente distintas” 57 ; já em uma sociedade “em que há<br />

apenas poucas forças sociais, um grupo - guerreiros, sacerdotes, uma determinada família, um<br />

grupo racial ou étnico - pode dominar os outros e efetivamente induzi-los a aquiescer ao seu<br />

domínio” 58 ; entretanto, em uma sociedade “em que haja maior heterogeneidade e<br />

complexidade, nenhuma força social pode dominar e muito menos criar uma comunidade sem<br />

criar instituições políticas que tenham alguma existência independente das forças sociais que<br />

lhe deram origem.” 59<br />

“ ‘O mais forte’, disse Rousseau numa frase muito citada, ‘nunca é suficientemente<br />

forte para ser sempre o senhor, a menos que transforme a força em direito e a<br />

obediência em dever’. Numa sociedade de alguma complexidade, o poder relativo<br />

dos grupos muda, mas para que a sociedade se torne uma comunidade, o poder de<br />

cada grupo é exercido por intermédio de instituições políticas que refreiam,<br />

moderam e dão novo rumo a esse poder a fim de tornar o domínio de uma força<br />

social compatível com a comunidade de muitas.<br />

Na ausência total de conflito social, as instituições políticas são desnecessárias; na<br />

ausência total de harmonia social, são impossíveis. Dois grupos que se vêem apenas<br />

como arquiinimigos não podem formar a base de uma comunidade enquanto não<br />

mudar essa mútua percepção [sem itálico no original].” 60<br />

Assim sendo, “o grau de comunidade política numa sociedade complexa depende,<br />

grosso modo, da força e do alcance de suas instituições políticas”, uma vez que ela é<br />

“produzida pela ação política e mantida por instituições políticas” 61 . Na história, “as<br />

54 Que adiciona valor e estabilidade para os processos e organizações e, por consequência, traz estabilidade para<br />

as relações sociais e políticas.<br />

55 HUNTINGTON, 1975, p. 20.<br />

56 Idem, p. 21.<br />

57 Ibidem.<br />

58 Ib.<br />

59 Ib.<br />

60 Ib.<br />

61 Ib., p. 22.<br />

31


instituições políticas surgiram da interação e do desacordo entre as forças sociais e do<br />

desenvolvimento gradativo de procedimentos e dispositivos organizacionais para resolver<br />

esses desacordos”, concluindo o autor que foi “precisamente esse desenvolvimento, porém,<br />

que deixou de ocorrer em muitas sociedades em modernização no século XX”, com forças<br />

sociais fortes e instituições políticas fracas o “legislativo e o executivo, as autoridades<br />

públicas e os partidos políticos permaneceram frágeis e desorganizados. O desenvolvimento<br />

do estado ficou atrás da evolução da sociedade.” 62 Nesse caso, quando um “estado que não<br />

possui os meios de mudar, não tem as armas necessárias para a sua própria conservação” 63 .<br />

Para Bertrand de Jouvenel, a comunidade significa “a institucionalização da<br />

confiança”; e a “função essencial das autoridades públicas” é “ampliar a confiança mútua<br />

predominante no âmago do todo social” 64 .<br />

“As sociedades carentes de governos estáveis e eficientes são também carentes de<br />

confiança mútua entre seus cidadãos, de lealdades nacional e pública e de habilidade e<br />

capacidade de organização” 65 . Nessas sociedades, “suas culturas políticas são freqüentemente<br />

assinaladas pela suspeita, inveja e hostilidade latente ou manifesta em relação a todos os que<br />

não sejam membros da família, da aldeia, ou talvez da tribo” 66 e, poder-se-ia acrescentar, das<br />

mesmas categorias econômicas, religiosas, ideológicas, burocráticas, dentre outras,<br />

características encontradas “em muitas culturas, mas talvez sejam mais patentes no mundo<br />

árabe e na América Latina”. 67<br />

Ao discorrer sobre autonomia (e subordinação), critério de institucionalização, já<br />

citado, afirma Samuel Huntington que um “sistema político altamente desenvolvido tem<br />

procedimentos para reduzir, quando não para eliminar, o papel da violência no sistema e para<br />

limitar a influência do dinheiro no sistema a canais explicitamente definidos” e, por isso, em<br />

função da “medida em que as autoridades políticas podem ser derrubadas por alguns poucos<br />

soldados ou influenciadas por alguns poucos dólares é que falta autonomia às organizações e<br />

procedimentos.”, complementando que na “linguagem comum, diz-se que as organizações e<br />

procedimentos políticos a que faltam autonomia são corruptos”. 68<br />

E se essas organizações são influenciáveis por elementos que não tem origem política<br />

da própria sociedade, seriam, também, vulneráveis a influências de fora desta sociedade e<br />

62 HUNTINGTON, 1975, p. 22 e 23.<br />

63 Edmund BURKE, em Reflections on the Revolution in France (Reflexões Sobre a Revolução na França),<br />

Chicago: Regnery, 1955, p. 37. Citado in HUNTINGTON, 1975, p. 31.<br />

64 Bertrand de JOUVENEL, em Sovereignty (Soberania), Chicago: University of Chicago Press, 1963, p. 123.<br />

Citado in HUNTINGTON, 1975, p. 40.<br />

65 HUNTINGTON, 1975, p. 40.<br />

66 Idem.<br />

67 Ibidem.<br />

68 Ib., p. 33.<br />

32


facilmente infiltráveis por agentes, grupos e ideias de outros sistemas políticos. Dessa<br />

maneira, regimes podem ser derrubados com a infiltração clandestina de agentes e armas ou<br />

por uma conversa e milhares de dólares. “O governo soviético e o americano gastam<br />

presumivelmente somas substanciais tentando subornar altas autoridades de sistemas políticos<br />

menos resguardados”, 69 acrescentando que “somas essas que nem sequer pensariam<br />

desperdiçar procurando influenciar altas autoridades do sistema político um do outro”. 70<br />

Nessas sociedades em mudança, com pouca ou nenhuma autonomia, novos grupos<br />

estão sempre entrando no conjunto das forças sociais, em total descaso com as organizações<br />

políticas existentes, com enorme impacto sobre essas organizações e seus procedimentos, ao<br />

contrário dos sistemas políticos mais desenvolvidos, que atenuam e absorvem estes impactos.<br />

“Num sistema político a que faltem tais defesas, novos membros, novos pontos de vista e<br />

novos grupos sociais podem substituir-se uns aos outros, no cerne do sistema, com<br />

desconcertante rapidez.” 71<br />

Vale ressaltar que, para aquele autor, as instituições têm dimensões morais e<br />

estruturais, cujo cerne é o interesse público e não os interesses pessoais, paroquiais ou de<br />

classe. “Uma sociedade com instituições políticas débeis não tem capacidade para dominar os<br />

excessos de desejos pessoais e paroquiais”. Assim, o “familismo amoral” da sociedade<br />

retrógrada de Banfield tem sua contrapartida no “clanismo amoral, no grupismo amoral, no<br />

classismo amoral”. 72 Portanto, os interesses institucionais públicos diferem dos interesses dos<br />

indivíduos que estão nas instituições.<br />

Sobre esse entendimento Lucien Pye alerta que “problemas de desenvolvimento e<br />

modernização estão vinculados à necessidade de criar organizações mais eficientes, mais<br />

adaptáveis, mais complexas e mais racionalizadas” 73 e, acrescente-se, ter confiança nas<br />

mesmas. “A capacidade de criar tais instituições, no entanto, tem um estoque racionado no<br />

mundo de hoje. É precisamente a habilidade de fazer face a essa necessidade moral e de criar<br />

uma ordem pública legítima que, acima de tudo o mais, os comunistas oferecem aos países em<br />

modernização”. 74<br />

Não bastassem todas as desgraças acima elencadas a se abaterem sobre esses países<br />

em modernização, Huntington ressalta o flagelo da corrupção endêmica, que ocorreria por<br />

69<br />

HUNTINGTON, 1975, p. 33.<br />

70<br />

Idem.<br />

71<br />

Ibidem, p. 34.<br />

72<br />

Ib., p. 36.<br />

73<br />

Lucien W. PYE, em Politcs, Personality and Nation-Building (Política, Personalidade e Construção de<br />

Nação), Princeton: Princeton University Press, 1965, p. 38, 51. Citado in HUNTINGTON, 1975, p. 44.<br />

74<br />

HUNTINGTON, 1975, p. 38.<br />

33


diversas causas e geraria muitos efeitos deletérios 75 . A corrupção “é o comportamento de<br />

autoridades públicas que se desviam das normas aceitas a fim de servir a interesses<br />

particulares”.<br />

“Tanto as funções quanto as causas da corrupção são semelhantes às da violência.<br />

Ambas são encorajadas pela modernização; ambas são sintomáticas da debilidade<br />

das instituições políticas; ambas são características do que chamaremos<br />

posteriormente de sociedades pretorianas; ambas são meios pelos quais os<br />

indivíduos e os grupos se relacionam com o sistema político e dele participam,<br />

embora por meios que violentam os costumes do sistema.” 76<br />

O Brasil recebe referências abundantes do autor relativas à época em estudo (1945-<br />

1965), o qual apoiando-se em Martin Needler, cita que juntamente com o Panamá “são<br />

famosos pela corrupção mais 'democrática' e mais amplamente disseminada” 77 . E acrescenta,<br />

que na “maioria dos casos, a corrupção envolve a troca de ação política pela riqueza<br />

econômica” 78 . Sendo assim, “como a corrupção produzida pela expansão da participação<br />

política contribui para a integração de novos grupos no sistema político, a corrupção<br />

decorrente da expansão da intervenção governamental pode contribuir para estimular o<br />

desenvolvimento econômico”, complementando que no Brasil “uma alta taxa de<br />

desenvolvimento econômico aparentemente correspondeu a um alto índice de corrupção<br />

parlamentar, e os empresários industriais compravam proteção e assistência aos legisladores<br />

rurais conservadores”, durante o período Kubitschek. 79 “Também no Brasil, a fraqueza dos<br />

partidos políticos refletiu-se num padrão político e de clientela, em que a corrupção foi um<br />

dos fatores mais importantes” 80 .<br />

Neste estágio, Huntington considera que os “sistemas políticos podem ser, portanto,<br />

distinguidos por seus níveis de institucionalização política e por seus níveis de participação<br />

política”, entre desenvolvidos e subdesenvolvidos ou entre tradicionais, em transição e<br />

modernos.<br />

Em uma primeira síntese conclusiva, Huntington procura operacionalizar os seus<br />

parâmetros de análise, o que faz em um gráfico, abaixo apresentado 81 :<br />

75<br />

Para maiores esclarecimentos sobre modernização e corrupção, ver HUNTINGTON, 1975, pp. 72-85.<br />

76<br />

HUNTINGTON, 1975, p. 77.<br />

77<br />

Martin C. Needler, Political Development in Latin America: Instability, Violence, and Evolutionary Change<br />

(Desenvolvimento Político na América Latina: Instabilidade, Violência e Mudança Evolucionária), Nova York:<br />

Random House, a sair. Cap. 6, págs. 15-16. Citado em HUNTINGTON, 1975, p. 78.<br />

78<br />

HUNTINGTON, 1975, p. 79.<br />

79<br />

Idem, p. 82.<br />

80<br />

Nathaniel LEFF, "Economic Development Through Bureaucratic Corruption", in American Behavioral<br />

Scientist, 8 nov. 1964, pp. 10-12. Citado em HUNTINGTON, 1975, p. 76.<br />

81<br />

HUNTINGTON, 1975, p. 92.<br />

34


Após ampla e complexa explanação deste sistema, apresenta o modelo de interesse<br />

para este trabalho, denominado de pretoriano 82 , o qual, diferentemente do sentido histórico<br />

conhecido na política da Roma Imperial, é aquele onde há uma politização das forças e das<br />

instituições sociais, por meio de grupos – étnicos, religiosos (clero), econômicos, territoriais,<br />

de status, ocupacionais ou de técnicos; empresários, latifundiários, fazendeiros; intelectuais<br />

(universidades), estudantes, trabalhadores (sindicatos), camponeses; burocracias, inclusive a<br />

militar; classes; entre outras – e não existem instituições capazes de mediar os conflitos<br />

gerados pela mobilização política originada nesses grupos.<br />

Nessas sociedades, as “técnicas de intervenção militar são apenas mais dramáticas e<br />

eficientes que as outras porque, como diz Hobbes: quando nada mais se apresenta, o trunfo é<br />

paus”; onde o “líder carismático, a junta militar, o regime parlamentar e o ditador populista se<br />

sucedem um ao outro numa ordem imprevisível e desconcertante”; os “padrões de<br />

participação política não são nem estáveis nem institucionalizados, podendo oscilar<br />

violentamente de uma forma para outra”; essa “instabilidade é a marca-padrão de uma<br />

sociedade carente de comunidade política e na qual a participação na política superou a<br />

institucionalização da política”; e aqueles grupos “são mobilizados para a política sem se<br />

tomarem socializados pela política.” 83<br />

A percepção de Huntington, abarcando o arco de crises e violência dos países em<br />

processo de modernização, encontra em Alfred Stepan 84 (Os Militares na Política), um<br />

adequado aprofundamento sobre essa participação na política brasileira. Neste livro, resultado<br />

82 Termo originado de David C. RAPOPORT, Praetorianism: Government Without Consensus (Pretorianismo:<br />

Governo sem Consenso), University of Califórnia, Berkeley, 1960 (tese de doutorado não publicada); e<br />

RAPOPORT, in HUNTINGTON, ed., Changing Patterns (Padrões em Mudança), pág. 72. Citado em<br />

HUNTINGTON, 1975, p. 95.<br />

83 HUNTINGTON, 1975, pp. 95-96.<br />

84 STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. Rio de Janeiro: Artenova, 1971.<br />

35


de Tese apresentada para obtenção do título de doutor, abrangendo o período de 1945 até<br />

1968, o autor realiza densa pesquisa, sob o prisma dos indivíduos e das instituições<br />

envolvidas, abarcando origens, recrutamento, formação, treinamento, organização, comandos,<br />

promoções, regulamentos, hierarquia, disciplina, relações internas nos quartéis e com o<br />

mundo exterior, influência e participação na política, entre outras 85 .<br />

Segundo Alfred Stepan, para os militares brasileiros, as elites tradicionais tinham<br />

interesses estreitos e pessoais, da mesma forma que as classes desfavorecidas, especialmente<br />

dos trabalhadores sindicalizados, defensores de objetivos corporativos, sectários e<br />

mesquinhos, opostos, muitas vezes, ao bem-estar nacional. Eles, ao contrário, consideravam-<br />

se um grupo sem interesses especiais de classe, cujos ideais se dirigiam para o pleno<br />

desenvolvimento nacional, auto-imagem que ia além daquela que visa, exclusivamente à<br />

defesa nacional, fato que contribuía para a legitimação do arbitramento de eventos políticos<br />

em momentos de crise. Isso, aliado à crença de ser o povo fardado, transformou-se em um<br />

fundamento lógico para a ampliação do Poder Militar. Embora, em tese, os militares não<br />

devessem imiscuir-se em questões políticas, eles tinham preocupação com a ordem pública<br />

(política) e os Clubes Militares institucionalizavam o debate político, chegando a radicalismos<br />

verbais, conforme será visto mais a frente neste trabalho. Entretanto, o fato de serem, em sua<br />

maioria, de classe média 86 , tornava-os partícipes das características dessa classe como:<br />

heterogeneidade, ausência de objetivos aglutinadores da classe como um todo, desunião e<br />

temor pela ascensão das classes desfavorecidas.<br />

Apesar disso, por serem militares, apresentavam elevado grau de articulação e coesão,<br />

sendo o único setor, monitorado/controlado pela classe média, possuidor desses atributos,<br />

razão pela qual ela apelava para as suas intervenções nos momentos de crise, pois não se<br />

sentia ameaçada por eles, uma vez que tenderiam a representá-la, além de protegê-la.<br />

Para Stepan, no Brasil, as instituições militares seriam comparáveis a subsistemas<br />

políticos (iguais aos partidos políticos, grupos de pressão, membros dos legislativos, entre<br />

outros) e, portanto, participariam, com reivindicações específicas, da regulação entre grupos,<br />

da formulação e implementação de políticas e, mesmo, da escolha e remoção de presidentes,<br />

sendo sensíveis às experiências de carreira, particularmente a política, comuns na época,<br />

posições funcionais, critérios para a ascensão profissional, exercício de cargos, ao<br />

85 Aspectos interessantes foram levantados nessa pesquisa que contrariavam a auto-imagem do Exército<br />

Brasileiro. Por exemplo, a idéia de que o recrutamento era nacional e integrador (“Exército, fator de integração<br />

nacional”), na prática, por motivos econômicos, selecionava os recrutas tão próximo quanto possível das cidades<br />

das guarnições, tornando-se regionalizado, e evitava o êxodo rural e os analfabetos, tornando-se excludente.<br />

86 Alfred STEPAN, em Os Militares na Política, referindo-se aos cadetes matriculados entre 1941 e 1943 e 1962<br />

e 1964, apresenta, respectivamente, 76,4% e 78,2%, como sendo oriundos da classe média. Op. cit., p. 29.<br />

36


desenvolvimento histórico do país, à percepção de ameaças e alianças entre grupos de<br />

nacionais e estrangeiros e ao interesse nacional, entre outras preocupações.<br />

Depois de descartar a aplicabilidade no Brasil dos modelos de controle civil liberal,<br />

aristocrático, comunista e profissional 87 e dos modelos de controle militar (ditadura militar e<br />

militar modernizante), Stepan adota um, para definir a participação dos militares brasileiros<br />

na política, que denomina de moderador 88 . Antes de apresentar esse modelo, Stepan concorda<br />

com Huntington de que está analisando uma cultura política pretoriana, onde “os militares<br />

também são politizados e todos os grupos tentam cooptá-los para aumentar sua força<br />

política” 89 , o que exclui qualquer possibilidade de profissionalização, embora admita que<br />

existiriam indícios desse profissionalismo.<br />

Em virtude da herança cultural européia das elites brasileiras, estas, historicamente,<br />

recusavam-se a aceitar a permanência dos militares no governo, o que se por um lado servia<br />

para esclarecer a natureza e os limites do papel a ser desempenhado pelos militares na<br />

política, por outro configurava o componente principal do modelo moderador 90 de relações<br />

entre civis e militares para o período. Prossegue Alfred Stepan:<br />

“Tipicamente, os processos parlamentares tentados como a forma ideal de governo<br />

fornecem um mecanismo ineficaz para resolver os conflitos políticos numa<br />

sociedade pretoriana. Os partidos políticos, geralmente, são fragmentados.<br />

Considerando o desejo das elites políticas de manter a ordem interna, de frear o<br />

executivo e de controlar a mobilização política de novos grupos e tendo em vista<br />

também a ausência de outras instituições para executar estas tarefas de modo eficaz,<br />

as elites políticas geralmente julgam conveniente conceder aos militares um grau<br />

limitado de legitimidade para desempenhar estas funções específicas sob certas<br />

87 Definidos por HUNTINGTON, em O Soldado e o Estado, p. 109-112. Huntington trata o que Stepan chama<br />

de modelos por éticas profissionais e as relaciona com diversas ideologias. Stepan não cita a ética/modelo<br />

fascista e chama o modelo do controle objetivo de profissional.<br />

88 Segundo STEPAN, 1971, p. 52, a inspiração para o termo vem do poder moderador atribuído ao Imperador<br />

durante a monarquia, pelo qual ele detinha a faculdade constitucional de intervir no conflito político em épocas<br />

de impasse institucional. Para muitos brasileiros, após a queda da Monarquia, em 1889, os militares não só<br />

assumiram como também lhes foi delegado o tradicional poder moderador.<br />

89 STEPAN, 1971, p. 49.<br />

90 Cf. STEPAN, 1971, p. 50-51, os principais componentes deste padrão de relacionamento civil-militar podem<br />

ser resumidos em alguns pontos básicos: 1) Todos os principais protagonistas políticos procuram cooptar os<br />

militares. A norma é um militar politizado; 2) Os militares são politicamente heterogêneos, mas também<br />

procuram manter um grau de unidade institucional; 3) Os políticos importantes garantem legitimidade aos<br />

militares, sob certas circunstâncias, para agirem como moderadores do processo político, controlando ou<br />

depondo o executivo, ou até mesmo evitando a ruptura do próprio sistema, especialmente quando isto envolve<br />

uma mobilização maciça de novos grupos anteriormente excluídos da participação no processo político; 4) A<br />

aprovação dada pelas elites civis aos militares politicamente heterogêneos para depor o executivo facilita<br />

bastante a formação de uma coalizão golpista vencedora. A negação, pelos civis, de que a deposição do<br />

executivo pelos militares seja um ato legítimo, inversamente, impede a formação de uma coalizão golpista<br />

vitoriosa; 5) Existe uma crença firme entre as elites civis e os oficiais militares de que, embora seja legítima para<br />

os militares a intervenção no processo político e no exercício temporário do poder, é ilegítimo para eles assumir<br />

a direção do sistema político por longos períodos de tempo; 6) Tomado genericamente, este valor-congruência é<br />

o resultado da socialização civil e militar através da educação e da literatura. N.A.: Em virtude de suas<br />

características, esse modelo teve seu ocaso em 31 de março de 1964, quando os militares se estabelecem para<br />

governar.<br />

37


Acrescentando o autor:<br />

condições. Contudo, somente se confere um grau reduzido de legitimidade à idéia de<br />

um governo controlado pelos próprios militares.<br />

Em tal modelo das relações entre civis e militares, estes são chamados repetidas<br />

vezes para agir como moderadores da atividade política, mas lhes é negado<br />

sistematicamente o direito de tentar dirigir quaisquer mudanças dentro do sistema<br />

político. Longe de se constituírem nos “construtores da nação” ou nos<br />

“reformadores” como são encarados em alguns países, no modelo moderador os<br />

militares têm uma tarefa que consiste essencialmente na atividade conservadora de<br />

manutenção do sistema. O papel dos militares, de modo geral, se restringe à<br />

deposição do chefe do executivo e à transferência do poder político para grupos civis<br />

alternativos. A aceitação deste papel pelos militares está condicionada à sua<br />

aceitação da legitimidade e da praticabilidade das formas políticas parlamentares,<br />

bem como à constatação, por parte destes militares, de que possuem, em<br />

comparação com os civis, uma capacidade relativamente reduzida de governar.” 91<br />

“Dada a perspectiva deste padrão de relações entre civis e militares, muitas<br />

características algo paradoxais da política latino-americana tornam-se menos<br />

obscuras. Atendendo que a intervenção militar foi considerada, tradicionalmente,<br />

como representativa da decomposição do sistema político, no modelo moderador ela<br />

pode ser reputada como o método normal de composição na vida política. O que<br />

antes fora julgado golpes de estado rápidos, secretos ou unilaterais, executados pelos<br />

militares contra governos civis, agora é visto como um tipo de resposta desenvolvida<br />

lentamente, clara e dual das elites civis e militares a crises políticas particulares, nas<br />

quais tanto os civis como os militares procuram nas Forças Armadas a solução da<br />

crise. O que foi chamado “intervencionismo patológico” no modelo liberal, torna-se<br />

o funcionamento normal do sistema político no modelo moderador, por meio do<br />

qual os civis confiam aos militares o desempenho de um papel moderador em<br />

determinados momento.” 92<br />

Para Alfred Stepan, “historicamente, os civis que formam as camadas politicamente<br />

importantes da sociedade brasileira sempre tentaram servir-se dos militares para atingir seus<br />

próprios objetivos políticos” 93 , no que eram correspondidos pela “diversidade e a abertura da<br />

instituição militar brasileira” 94 e por militares que “sempre foram altamente politizados” 95 ,<br />

além de que, em “conseqüência das cisões internas das Forças Armadas e das tentativas que<br />

fizeram os grupos civis para atraí-los à política” 96 eles não eram unânimes em suas<br />

convicções políticas e ideológicas, refletindo a ampla diversidade da opinião pública. 97<br />

Segundo aquele autor, a manipulação dos militares pelos civis se dava por três grupos<br />

de políticos. O primeiro era representado pelo governo, isto é, pelo Presidente da República e<br />

seus conselheiros, como forma de contrabalançar a pouca margem de manobra concedida<br />

91<br />

STEPAN, 1971, p. 50.<br />

92<br />

Idem, p. 51.<br />

93<br />

Ibidem, p. 53.<br />

94<br />

Ib.<br />

95<br />

Ib.<br />

96<br />

Ib., p. 53.<br />

97<br />

Ib.<br />

38


pelas persistentes restrições econômicas e um Congresso resistente às reformas, barradas “por<br />

elites poderosas, fortemente entrincheiradas, ou por reivindicações conflitantes de seu<br />

eleitorado” 98 . Isso ocorria, particularmente, por meio das nomeações e atuações dos ministros<br />

militares 99 e dos comandantes militares de área e da participação destes em apoio às manobras<br />

do Executivo, mas incluía outros militares e, até mesmo, unidades militares, constituindo-se,<br />

na opinião de um jornalista francês, como “os instrumentos de pressão mais eficientes contra<br />

o Congresso” 100 , no caso, ao se referir às pressões dos Comandantes do I, II e III Exércitos, a<br />

favor do retorno do Presidencialismo no governo de João Goulart.<br />

Um segundo grupo era constituído pelos civis anti-regime, opositores ao governo e ao<br />

próprio regime, com pretensões de alterar as leis básicas e a estrutura da autoridade. Para<br />

Alfred Stepan, esse conluio teve início com o recrutamento sistemático de militares pelos<br />

republicanos para a derrubada da monarquia, prosseguiu com a derrubada da República<br />

Velha, em 1930, com a queda do Estado Novo (1945) e em outros eventos que se estenderam<br />

até o Movimento Militar de 31 de março de 1964. Os participantes deste grupo “empregavam<br />

constantemente a retórica de que a responsabilidade especial dos militares pelo destino do<br />

Brasil requer que se tornem participantes ativos na criação de nova ordem política” 101 .<br />

Finalmente, o último grupo é composto pelos civis pró-regime que, “embora apoiando<br />

as leis básicas do regime, freqüentemente discordavam do governo e desejavam controlar o<br />

executivo através de outros métodos que não o legislativo e os meios eleitorais” 102 . Isso<br />

“Inclui elementos do Congresso, governadores, líderes políticos, editores de jornais e eleitores<br />

que geralmente aceitam o quadro constitucional e apóiam o regime existente, mas que podem<br />

ou não apoiar o governo em períodos específicos” 103 . Para Stepan, este grupo, historicamente,<br />

é o mais importante, por sua efetividade na fixação da participação dos militares no sistema<br />

político e no curso dos golpes militares no Brasil e esperava, desde os primórdios, que os<br />

militares desempenhassem o papel político de controlador dos atos do Executivo, já que:<br />

“No Brasil, [...] como em muitos países em desenvolvimento, as instituições<br />

políticas do legislativo e do judiciário às vezes estão sujeitas ao controle total do<br />

executivo. As eleições se tornam incertas ou são controladas inteiramente pelo<br />

98 STEPAN, 1971, p. 53.<br />

99 Cf. STEPAN, 1971, p. 54-56, entre outros episódios da extensa utilização do apoio dos Ministros Militares<br />

pelos Presidentes da República, são citados os seguintes: em 1937 para a instituição do Estado Novo; da<br />

manobra mal-sucedida de Jânio Quadros de voltar com mais poderes, o que não ocorreu, segundo o próprio Jânio<br />

devido à “hesitação” dos militares; e das manobras de João Goulart para retomar seus poderes, retirados em ação<br />

forçada pelos Ministros Militares na crise de 1961, inclusive com as vistas grossas às ameaças implícitas ao<br />

Congresso, formuladas pelo General Jair Dantas Ribeiro, comandante do III Exército.<br />

100 J.J. Faust, em A Revolução Devora seus Presidentes, Rio de Janeiro: Saga, 1965. Citado em STEPAN, p. 55.<br />

101 STEPAN, 1971, p. 57.<br />

102 Idem, p. 53.<br />

103 Ibidem.<br />

39


governo. Por isso, vários membros da política não tinham muita confiança na<br />

eficácia destas instituições para controlar as atividades do executivo. De maneira<br />

formal ou informal, os grupos de civis a favor do regime que se acham fora da esfera<br />

do governo costumam atribuir esta tarefa aos militares”. 104<br />

Para fundamentar sua argumentação, Stepan cita as Constituições de 1891 (art. 14),<br />

1934 (art. 162) e 1946 (art. 176-178) que seguiam uma mesma linha de entendimento quanto<br />

ao papel dos militares: o da garantia da lei, da ordem e do funcionamento dos três Poderes; e<br />

de que a obediência dos militares ao Poder Executivo, somente, devia ocorrer “dentro dos<br />

limites da lei” 105 . Tais dispositivos atribuíam discricionariedade aos militares, uma vez que a<br />

as ordens do Executivo ficavam dependentes de decisão, normalmente dos chefes militares ou<br />

dos outros poderes, sobre sua legalidade. Por razões óbvias, foram suprimidos na Constituição<br />

de 1937. Segundo, ainda, Alfred Stepan, o Marechal Deodoro da Fonseca, durante a<br />

Assembléia Constituinte de 1891, foi contrário a esta cláusula e lutou vigorosamente contra<br />

ela, porque ela seria prejudicial à disciplina militar. Para Ruy Barbosa, relator da<br />

Constituição, muitos militares também se opuseram a este artigo; por acharem que ele os<br />

dividiria e os envolveria na política, e viram a cláusula com “profunda apreensão e decidida<br />

antipatia”. 106<br />

Mas não foi este entendimento que prevaleceu, em um ambiente francamente<br />

favorável a participação militar na política e temeroso das ações do Executivo, principal alvo<br />

a ser controlado. Ao contrário, o que persistiu foi uma estimulação constante a essa<br />

participação, a qual, inicialmente restrita a oficialidade, a partir da assunção do Ministro da<br />

Guerra Henrique Lott, como será visto na Seção 3, estendeu-se às praças, adicionando novos<br />

componentes de instabilidade e de ameaças a uma situação já insustentável, notadamente em<br />

função dos matizes ideológicos dos elementos militares atuantes.<br />

2.3 AS REPRESENTAÇÕES<br />

Nesse subtópico sobre os elementos teóricos, não poderia faltar a conformação<br />

ideológica que presidiu as relações sociais e políticas no período que se estendeu de 1954 a<br />

1964. No sentido de entendê-la dentro do contexto da época, será necessário recorrer à<br />

104 STEPAN, 1971, p. 58.<br />

105 Por exemplo, em 1946, no Art. 176 - As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e<br />

Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a<br />

autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei; e o Art. 177 - Destinam-se as forças<br />

armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. Disponível em:<br />

. Acesso em: 25/11/2010.<br />

106 STEPAN, 1971, p. 60.<br />

40


ideologia que aglutinou todas as correntes conservadoras, levada ao paroxismo pela direita<br />

radical, correspondente ao arcabouço de idéias chamadas genericamente de anticomunistas.<br />

O anticomunismo tinha como matriz original o próprio comunismo, ao qual se opunha.<br />

Em seu viés internacionalista, era influenciado pelo ideário de sustentação da Guerra Fria, na<br />

sua versão ocidental. Em sua vertente nacional essa componente ideológica tinha por raízes a<br />

denominada “ameaça vermelha” ou o “perigo vermelho”.<br />

Antes da abordagem da ideologia anticomunista, porém, serão analisados alguns<br />

aspectos atinentes às representações, na forma de crenças, mitos, ideologias e utopias, pólos<br />

aglutinadores de conteúdos psíquicos que apresentam um encadeamento de complexidade e<br />

refinamento crescentes, conforme Marcel Merle estudou em Sociologia das Relações<br />

Internacionais 107 , particularmente nas suas influências sobre o comportamento de atores,<br />

grupos e dirigentes, nas suas relações com o poder e a política.<br />

De acordo com Merle, o comportamento de atores 108 é mais influenciado pela<br />

representação dos fenômenos sociais do que pelo jogo dos interesses envolvidos. Essa<br />

posição é importante para este trabalho porque contraria uma corrente de pensamento para<br />

quem os comportamentos ocorrem, exclusivamente, em função dos interesses 109 e da pura<br />

racionalidade, a qual, embora adequada e necessária para a análise de determinados<br />

comportamentos, não é suficiente para o caso específico da atuação dos elementos radicais<br />

que são o objeto desta pesquisa, os quais operavam em contexto fortemente influenciado por<br />

aspectos emocionais e componentes ideológicos. Da mesma forma como não são suficientes<br />

para explicar certos comportamentos nos casos de interferências, nas decisões estatais e<br />

particulares, da paranóia de Chefes de Estado, como Adolf Hitler, de complexos psicológicos<br />

(Woodrow Wilson) 110 , dos efeitos da xenofobia, preconceitos e, até mesmo, da busca de<br />

prestígio nas decisões econômicas em detrimento da rentabilidade e economia do governo<br />

entre outras.<br />

Considerando-se, de forma simplificada, que os fenômenos sociais apresentem<br />

componentes cognitivos/racionais (interesses frios), afetivos/emocionais (interesses<br />

107<br />

MERLE, Marcel. Sociologia das Relações Internacionais. Brasília: Universidade de Brasília, 1981.<br />

108<br />

Apesar da finalidade do seu estudo estar voltada para as relações internacionais, considera-se que suas<br />

análises são aplicáveis ao objeto desta pesquisa.<br />

109<br />

Seria o caso dos seguidores da filosofia utilitarista, dos teóricos do liberalismo econômico, dos realistas, dos<br />

racionalistas e, mesmo, de Karl Marx, em A ideologia alemã (1846), onde o autor “recusa qualquer autonomia a<br />

sistemas de pensamento, que nada mais são que a produção, no plano intelectual, e a justificação, no plano<br />

moral, das situações concretas na qual seus autores se encontram”[...] “Segundo esta interpretação, todos os<br />

sistemas de pensamento não passam de um disfarce da defesa de interesses e o papel da diligência científica<br />

consiste então em desalojar os interesses que se escondem atrás da cobertura das ideologias”. (MERLE, op. cit.,<br />

p. 191-2)<br />

110<br />

Sigmund FREUD e William C. BULLITT, in Le President Thomas W. Wilson: Portrait psychologique. Paris:<br />

A. Michel, 1967. Citado em MERLE, p. 192.<br />

41


valorados) e psicomotores/voluntarísticos, entende-se que as influências das representações,<br />

particularmente das ideologias, em qualquer desses fenômenos, manifestam uma<br />

preponderância de conteúdo emocional, devido aos aspectos psicológicos envolvidos, que, no<br />

caso das ideologias, envolve escolha e adesão voluntárias. Ao introduzirem visões de mundo<br />

específicas, adicionam filtros às percepções adquiridas por meio dos mecanismos cognitivos<br />

normais, moldando e transformando o conteúdo desses interesses (em imagens) conformes<br />

com as respectivas ideologias e criando sistemas de juízo apriorísticos que interferem com os<br />

pretensos interesses (racionais) dos atores, desfigurando-os, da mesma forma como quando<br />

interferidos pelos complexos, paranóia, xenofobia, preconceitos ou busca de prestígio, e,<br />

dessa forma, tornando-os irreconhecíveis na sua inteireza para o sujeito da ação, levando-os,<br />

inclusive, a errar.<br />

Para Marcel Merle, as crenças, são representações isoladas ou acidentais de um<br />

fenômeno do presente, na forma de percepção de perigos externos ou para a solução de<br />

problemas (como a salvação da pátria), sendo mais influenciadas pela propaganda do que pela<br />

verdadeira hierarquia dos perigos ou problemas. Ele cita, entre outros, o exemplo do temor, à<br />

época (na década de 1970), de uma invasão soviética na Europa Ocidental, não somente pelos<br />

eventos das invasões anteriores na Hungria e na Tchecoslováquia, como pela percepção de<br />

que os soviéticos tinham alcançado um ponderável somatório de poder militar. Para ele é<br />

claro “que as crenças isoladas são frágeis e efêmeras. Só começam a oferecer uma certa<br />

resistência à manipulação a partir do momento em que se ligam a representações constituídas<br />

com mais solidez, como os mitos ou as ideologias” 111 .<br />

Os mitos seriam um conjunto de crenças atraídas ou repelidas por um pólo central e,<br />

diferentemente das crenças que, por serem isoladas, somente se relacionam com uma<br />

categoria de fatos, “o mito propõe uma explicação ou uma solução sumária, a partir de um<br />

elemento deliberadamente privilegiado” 112 , o qual pode ser<br />

“[...] uma fase histórica ou pseudo-histórica de referência, como a ‘bela época’ ou a<br />

‘idade de ouro’, um bode expiatório que responsabilizam por todas as desgraças (a<br />

internacional dos marchands de ‘Canon’ ou ‘o perigo amarelo’), ou, até mesmo, um<br />

princípio (como o mito do “equilíbrio” - seja ele internacional ou orçamentário - ou<br />

da estabilidade ou da revolução)” 113 .<br />

O mito carregaria consigo uma carga de indefinição de onde extrairia sua própria força<br />

e cuja compreensão, embora vaga, ocorre por sua simples existência, ao preencher uma<br />

111 MERLE, op. cit., p. 194 e 196.<br />

112 Idem, p. 196.<br />

113 Ibidem.<br />

42


necessidade lógica de explicação para os fenômenos (inexplicáveis). O autor exemplifica com<br />

o mito do Terceiro Mundo, com as suas múltiplas origens, acepções e destinações, o qual se<br />

sofresse qualquer tentativa de racionalização, apenas, “chegaria a esvaziar o conceito de seu<br />

conteúdo e a tirar-lhe seu caráter mobilizador, pois o mito tira sua força do fato de ser uma<br />

espécie de nebulosidade, em torno da qual gravitam temas mais unidos pela sua carga afetiva<br />

do que pela sua coerência lógica” 114 .<br />

Na interpretação de Marcel Merle, as “ideologias são conjuntos de representações,<br />

implicando ao mesmo tempo uma visão coerente da realidade, querendo fornecer uma<br />

explicação para a totalidade dos fenômenos, e a adesão a um sistema de valores, constituindo<br />

uma justificativa da ação”, o domínio dos “ismos” 115 .<br />

Evidentemente, as ideologias 116 são numerosas e, por isso mesmo, passíveis da<br />

elaboração de uma vasta tipologia. O autor cita como exemplos de tipologia as ideologias<br />

globais que não se relacionam especificamente com os problemas nacionais; tais como:<br />

capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, fascismo, entre outras; e com os<br />

internacionais, onde, paradoxalmente, aparece, em primeira grandeza, entre outras, o<br />

nacionalismo 117 , a ideologia mais universalmente difundida. Além das globais, relaciona as<br />

ideologias expansionistas, internacionalistas, neutralistas e pacifistas, todas com suas<br />

subdivisões.<br />

Para Merle, essas “ideologias (ou utopias) não surgem do nada e não circulam no<br />

vazio: sua força de penetração depende ao mesmo tempo de sua adequação à realidade e do<br />

sustento que recebem ou suscitam” 118 .<br />

Acrescentando:<br />

“O choque das ideologias pode provocar o rompimento do consenso e obrigar o<br />

Estado-Nação a desaparecer ou a transformar-se. Não devemos, portanto,<br />

negligenciar o poder de aceleração do qual as ideologias de protesto dispõem,<br />

114 MERLE, op. cit., p. 197.<br />

115 Idem, p. 197.<br />

116 Apesar de fora do escopo deste trabalho e para não deixar de referenciar “as utopias são uma combinação da<br />

ideologia e do mito, sendo este último uma projeção no futuro do pólo de atração que sustenta e informa a<br />

ideologia. A título de exemplo, podemos citar o mundialismo que comporta uma explicação coerente da<br />

desordem estabelecida e uma incitação à procura de soluções na transformação radical das estruturas”. MERLE,<br />

p. 198.<br />

117 Cf. MERLE, op. cit., p. 201, “Todos os governos são nacionalistas por definição, pelo fato de se apresentarem<br />

como os defensores de uma comunidade determinada face às pretensões dos outros [...] Devido à mesma razão,<br />

os partidos políticos, visando à conquista ou o exercício do poder, hão de ser nacionalistas. Mesmo quando<br />

tentam conseguir o triunfo de uma outra forma de organização social (por exemplo, o internacionalismo<br />

proletário) têm de demonstrar primeiro que este objetivo é conforme ao interesse da comunidade nacional - o que<br />

os leva a pedir emprestados os temas e a linguagem daqueles que querem combater” , o que justifica o “furor<br />

com o qual o partido comunista francês defendeu a independência nacional, durante a campanha eleitoral de<br />

1973”.<br />

118 Idem.<br />

43


principalmente em caso de crise. E isso torna-se ainda mais importante pelo fato<br />

destas ideologias poderem ser manipuladas e dirigidas do exterior por potências que<br />

tentam enfraquecer seu adversário. O debate ideológico portanto não é alheio às<br />

disputas internacionais” 119 .<br />

Neste trabalho, entretanto, o interesse se direciona para o comunismo e às forças<br />

antípodas, ou seja, o anticomunismo. A bem da verdade, mais especificamente para o último:<br />

a ideologia que animava os grupos radicais em estudo.<br />

Segundo Luciano Bonet 120 o anticomunismo vai além da sua conotação vocabular de<br />

oposição ideológica ao comunismo, por ser um movimento difuso, apesar de organizado, e<br />

por constituir-se em uma alternativa efetiva aos regimes tradicionais, tornando-se, dessa<br />

maneira, “um fenômeno complexo, ideológico e político ao mesmo tempo, explicável, além<br />

disso, à luz do momento histórico, das condições de cada um dos países, e das diversas<br />

origens ideais e políticas em que se inspira” 121 . Talvez por isso, apresente tantas variantes. O<br />

próprio Bonet elenca algumas: o clerical, o fascista, o nazista, o norte-americano, o de tipo<br />

social, o democrático – enfeixados, por exemplo no anticomunismo social democrata ou<br />

liberal – e, até mesmo, “um anticomunismo radical libertário que muitas vezes ocupa posições<br />

de extrema esquerda” 122 .<br />

Assim sendo:<br />

“Se o Anticomunismo é, pois, difícil de definir no plano ideológico, no plano mais<br />

especificamente político é entendido como convicção de que não é possível a aliança<br />

estratégica, para além de possíveis momentos táticos, com os partidos e os Estados<br />

comunistas. Isto não se dá necessariamente em atitudes repressivas internas e<br />

agressivas externas: mas tanto a estratégia do confronto quanto a da coexistência<br />

pacífica partem uma e outra da constatação da incompatibilidade radical com o<br />

campo oposto, da inconciliabilidade dos respectivos valores e interesses, mesmo que<br />

isso se mantenha dentro das regras da democracia pluralista e das relações normais<br />

entre Estados” 123 .<br />

Para Luciano Bonet, tanto o anticomunismo interno como o de viés externo<br />

compreendem duas esferas distintas de análise. No âmbito interno esse autor delimita três<br />

manifestações do fenômeno ideológico: o do tipo fascista e reacionário 124 em geral, o<br />

anticomunismo extremo, “que se traduz na sistemática repressão da oposição comunista, e<br />

119 MERLE, op. cit., p. 203.<br />

120 Luciano BONET, em Norberto BOBBIO, Nicola MATTEUCCI e Gianfranco PASQUINO, Dicionário de<br />

Política, 11 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1998.<br />

121 Idem, p. 34.<br />

122 Ibidem, p. 34.<br />

123 Ib.<br />

124 De acordo com o dicionário Michaelis, “Que se opõe às idéias políticas de liberdade individual e coletiva”.<br />

Disponível em:< http://dic.busca.uol.com.br/result.html>. Acesso em: 28/03/2011.<br />

44


tem por norma tachar de comunismo qualquer oposição de base popular” 125 ; o de base<br />

democrática onde não há oposição comunista relevante, conduzindo a uma integração sócio-<br />

política, legitimação do sistema e “na prevenção ou isolamento de possíveis movimentos de<br />

oposição que se refiram, mesmo que genericamente, ao marxismo e às tradições comunistas”,<br />

por meio de “programas e realizações concretas, buscando-se assim privar de conteúdo os<br />

motivos que seriam a base principal da adesão e do voto aos partidos comunistas” 126 . Neste<br />

caso, o anticomunismo “converte-se então em critério discriminante na formação das<br />

coalizões: de um lado, as forças não dispostas à colaboração com os comunistas (a chamada<br />

prejudicial anticomunista), do outro, os comunistas e as eventuais oposições da extrema<br />

esquerda” 127 ; e os de base democrática com forte presença comunista, capaz de constituir uma<br />

alternativa potencial, ou “um elemento de constante dialética e de controle da gestão do<br />

poder” 128 .<br />

Por sua vez, no âmbito externo, o anticomunismo apresentava uma política de alcance<br />

planetário, cujos objetivos seriam simultaneamente: conter os influxos oriundos dos Estados<br />

socialistas; e interferir nos países afetados por movimentos de inspiração comunista de forma<br />

a prevenir e/ou reprimir suas ações.<br />

Para Bonet, a vitalidade anticomunista é inversamente proporcional à estabilidade das<br />

relações hegemônicas em nível mundial, tendo levado a um anticomunismo agressivo,<br />

praticado abertamente nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, liderado pelos<br />

EUA, onde alcançou seu ápice durante o macarthismo 129 , com conotações anti-soviéticas,<br />

notadamente na Coréia, América Latina, Vietnã e no reforço do papel da Organização do<br />

Tratado do Atlântico Norte, entre outras, em função da estratégia expansionista,<br />

essencialmente imperialista, executada pela URSS.<br />

Portanto, ao incluir nestes elementos teóricos a formação das representações e suas<br />

potencialidades como influências psíquicas, pretende-se inserir o entendimento da base<br />

125<br />

Luciano BONET, op. cit., p. 34-35.<br />

126<br />

Idem, p. 35.<br />

127<br />

Ibidem.<br />

128<br />

Ib.<br />

129<br />

Macarthismo foi o termo originado a partir do nome do Senador direitista <strong>Jose</strong>ph McCarthy que descreve um<br />

período de intenso anticomunismo, perseguição política e desrespeito aos direitos civis nos Estados Unidos.<br />

Ocorreu do final da década de 1940 até meados da seguinte, época em que o temor ao comunismo e sua possível<br />

influência sobre as instituições norte-americanas tornou-se exacerbado. Em função de tais condições<br />

psicológicas, milhares de americanos – funcionários públicos, artistas, pesquisadores, educadores e operários -<br />

foram acusados de ser comunistas ou simpatizantes. Objetos de investigações agressivas perderam seus postos de<br />

trabalho, tiveram suas carreiras destruídas, foram presos e muitos se suicidaram. Nos setores culturais as<br />

perseguições alcançaram atores, produtores, diretores e roteiristas que, durante a guerra, manifestam-se a favor<br />

da aliança com a União Soviética e, depois, a favor de medidas para garantir a paz e evitar nova guerra, no que<br />

foi considerado uma verdadeira caça às bruxas. Esta situação somente teve fim quando a opinião pública<br />

americana demonstrou indignação com as flagrantes violações dos direitos individuais, como no caso, que ficou<br />

famoso na época, envolvendo o popular ator Charlie Chaplin.<br />

45


emocional motivadora para o anticomunismo arraigado em amplas camadas da população<br />

brasileira, o qual, corroborado pelas próprias ações extremadas dos comunistas brasileiros,<br />

como a Intentona Comunista de 1935, teve papel determinante no desencadeamento das ações<br />

dos grupos radicais de direita em sua contestação ao poder vigente.<br />

2.4 PODER EM REDE E RESISTÊNCIAS<br />

Finalmente, como último dos assim-chamados eixos teóricos estruturantes, esta<br />

dissertação recorrerá a Teoria da Microfísica do Poder elaborada por Michel Foucault 130 , em<br />

seu entendimento sobre a influência da micropolítica na macropolítica, particularmente<br />

quando trata das resistências opostas às influências do poder político, exercido sob diversas<br />

formas de institucionalização 131 , por considerar que a atuação dos radicais de direita ocorreu<br />

fora do campo macro do Poder Político, da concepção jurídica de poder, ou seja, do poder<br />

exercido dentro da concepção jurídica de direito, na forma de legalidade ou, mesmo, em sua<br />

faceta de coerção e repressão, o poder concebido como violência legalizada; e, também, por<br />

considerar que as ações desses grupos radicais exerceram efetiva influência sobre o poder<br />

político.<br />

Roberto Machado ao elaborar o texto da apresentação da edição brasileira 132 ,<br />

referindo-se ao conjunto da obra 133 de Foucault, divisa duas dimensões de análise histórica:<br />

uma arqueologia do saber que buscaria “estabelecer a constituição dos saberes privilegiando<br />

as interrelações discursivas e sua articulação com as instituições”, e cuja finalidade “respondia<br />

a como os saberes apareciam e se transformavam” 134 ; e uma genealogia do saber, que<br />

procurava o porquê desses saberes, particularmente na explicação de suas existências e<br />

transformações, com característica essencialmente estratégica, as quais, “como peças de<br />

relações de poder”, foram incluídas no dispositivo político e introduzidas em suas análises<br />

históricas como questão de poder 135 “um instrumento de análise capaz de explicar a produção<br />

130 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007.<br />

131 FOUCAULT formulou a questão do poder ao estudar a história da penalidade, direcionando-a, então,<br />

especificamente, aos indivíduos enclausurados, sobre os quais incidia uma tecnologia própria de controle, que<br />

não era exclusiva da prisão, mas se encontrava, também, em outras instituições como no hospital, no exército, na<br />

escola, na fábrica, o que denominou de disciplina ou poder disciplinador. Op. cit., p. XVI.<br />

132 “Por uma genealogia do poder”, FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. VII-XXIII.<br />

133 MACHADO cita: História da Loucura? (1961), O Nascimento da Clínica (1963), As Palavras e as Coisas<br />

(1966), A Arqueologia do Saber (1969), Vigiar e Punir (1975) e A Vontade de Saber (1976).<br />

134 FOUCAULT, 2007, p. X.<br />

135 MACHADO afirma que “Uma coisa não se pode negar às análises genealógicas do poder: elas produziram<br />

um importante deslocamento com relação à ciência política, que limita ao Estado o fundamental de sua<br />

investigação sobre o poder. Estudando a formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas<br />

precisas e minuciosas sobre o nascimento da instituição carcerária e a constituição do dispositivo de sexualidade,<br />

46


dos saberes” 136 .<br />

Machado, entretanto, alerta que é preciso não se equivocar, pois Foucault não propõe<br />

uma Teoria Geral do Poder, possuidor de uma natureza e uma essência capazes de serem<br />

definidas por suas características universais, uma vez que não “existe algo unitário e global<br />

chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação”,<br />

sendo que o “poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal,<br />

constituída historicamente” 137 . E continua enfatizando que as observações de Foucault:<br />

“[...] indicaram claramente que os poderes periféricos e moleculares não foram<br />

confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado. Não são necessariamente criados<br />

pelo Estado, nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma<br />

forma ou manifestação do aparelho central. Os poderes se exercem em níveis<br />

variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes<br />

existem integrados ou não ao Estado, distinção que não parece, até então, ter sido<br />

muito relevante ou decisiva para suas análises.<br />

O importante é que essa relativa independência ou autonomia da periferia com<br />

relação ao centro significa que as transformações ao nível capilar, minúsculo, do<br />

poder não estão necessariamente ligadas às mudanças ocorridas no âmbito do<br />

Estado. Isso pode acontecer ou não, e não pode ser postulado aprioristicamente” 138 .<br />

Nesse contexto, “o aparelho de Estado é um instrumento específico de um sistema de<br />

poderes que não se encontra unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa”, e<br />

“não têm apenas como objetivo dissecar, esquadrinhar teoricamente as relações de poder, mas<br />

servir como um instrumento de luta, articulado com outros instrumentos, contra essas mesmas<br />

relações de poder” 139 .<br />

Dessa forma, embora direcionado para a especificidade de suas análises, qual seja, a<br />

produção de determinados saberes – sobre o criminoso, a sexualidade, a doença, a loucura,<br />

entre outras – Foucault não perde de vista o relacionamento desses micropoderes com o nível<br />

mais amplo do poder constituído pelo aparelho de Estado. Isso tudo para explicitar que o<br />

Estado não é o único centro, ponto de partida, foco absoluto ou origem do poder da sociedade,<br />

embora, em nenhuma hipótese sugira que o poder não esteja no Estado. A sofisticação da sua<br />

proposta consiste em assinalar que o poder não se limita a um ente específico, são poderes,<br />

que estão disseminados na estrutura social, funcionando<br />

“[...] como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa,<br />

Foucault, a partir de uma evidência fornecida pelo próprio material de pesquisa, viu delinear-se claramente uma<br />

não sinonímia entre Estado e poder”. (FOUCAULT, 2007, p. XI)<br />

136 Michel FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. X.<br />

137 Michel FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. X.<br />

138 Idem, p. XII.<br />

139 Ibidem, p. XII-XIII.<br />

47


a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Daí a importante e polêmica<br />

idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma<br />

propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de<br />

outro aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder não<br />

existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder<br />

é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma<br />

maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar<br />

privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um<br />

objeto, uma coisa, mas uma relação. E esse caráter relacional do poder implica que<br />

as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar,<br />

do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência<br />

dentro da própria rede do poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que<br />

ninguém pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma<br />

multiplicidade de relações de forças. E como onde há poder há resistência, não<br />

existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que<br />

também se distribuem por toda a estrutura social [sem itálico no original]. Foucault<br />

rejeita, portanto, uma concepção do poder inspirada pelo modelo econômico, que o<br />

considera como uma mercadoria. E se um modelo pode ser elucidativo de sua<br />

realidade é na guerra que ele pode ser encontrado. Ele é luta, afrontamento,<br />

relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se ocupa, nem um<br />

objeto, que se possui. Ele se exerce, se disputa. E não é uma relação unívoca,<br />

unilateral; nessa disputa ou se ganha ou se perde” 140 [sem itálico no original].<br />

Em resumo, o exame do poder em rede de Foucault destaca a importância das suas<br />

características relacionais, intrínsecas aos sistemas políticos, onde as manifestações<br />

periféricas e de resistência têm a capacidade de influenciar o que seria o núcleo do poder<br />

estatal, portanto, a atuação da micro-política sobre a macropolítica.<br />

Esta última estruturação teórica, juntamente com as demais supra apresentadas¸<br />

emolduram de per se o contexto do País como um todo: em suas interações e<br />

constrangimentos externos; no enfrentamento das contradições e impasses internos,<br />

motivados, em grande parte, pelos problemas decorrentes do processo de modernização; nas<br />

repercussões de uma tradição histórica de intervencionismos, representada no modelo<br />

moderador; e nas implicações de todas essas condicionantes para as relações entre civis e<br />

militares e para os indivíduos e grupos que atuavam sob a inspiração do radicalismo de<br />

direita, configurando um verdadeiro retrato da época em estudo nesta pesquisa e que deve<br />

permanecer em mente durante a sua leitura, uma vez que, devido às restrições impostas pela<br />

necessária objetividade de uma dissertação, nem todas as ilações que tal arcabouço de teorias<br />

permitiria que fossem feitas serão efetivamente realizadas.<br />

140 Michel FOUCAULT, Microfísica do Poder, p. XIV-XV.<br />

48


“Os homens fazem sua própria história, mas não a<br />

fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias da<br />

sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam<br />

diretamente, legadas e transmitidas pelo passado 1 ”. Karl<br />

Marx<br />

3 A PA R T I C IPA Ç Ã O D OS M I L I T A R ES N A PO L Í T I C A BR ASI L E IR A:<br />

A N T E C E D E N T ES H IST Ó RI C OS E C O NST R A N G I M E N T OS E X T E RN OS<br />

A participação dos militares na política em todas as suas manifestações desperta<br />

interesse nos mais diversos segmentos da pesquisa acadêmica. Entretanto, para a delimitar sua<br />

abrangência, o foco desta Seção direciona-se para essa atuação no contexto de violência<br />

política, conforme assinalada por Samuel Huntington em A Ordem Política nas Sociedades<br />

em Mudança, uma vez que ela permitirá a contextualização do ambiente em que se<br />

desenvolveram as ações perpetradas pela direita radical (v. Seção 4), ambas componentes do<br />

vetor que supomos impactar diretamente as relações entre civis e militares e, também, a<br />

segurança e defesa da sociedade, questões que serão, igualmente, examinadas na Seção 5.<br />

Com esse entendimento, é possível dizer que o primeiro ato de violência política<br />

envolvendo a participação de militares contra um governo no Brasil ocorreu por ocasião da<br />

renúncia do Imperador Pedro I 2 , devido à omissão da tropa (então brasileira) em cumprir as<br />

ordens do primeiro mandatário para reprimir as manifestações populares contra a sua<br />

presença, que recrudesceram no episódio da noite das garrafadas 3 , levando-o a abdicar do<br />

trono e a abandonar o País.<br />

1 Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1956, p. 17.<br />

2 Na tentativa de contornar a persistente crise política e conter os radicais, D. Pedro I reformou seu Ministério,<br />

por duas vezes, em 19 de março, com o denominado Ministério dos Brasileiros, e, em 5 de abril de 1831, com o<br />

retorno do Ministério dos Marqueses (portugueses), inflamando as manifestação populares que exigiam o<br />

retorno do Ministério anterior, composto entre outros pelos senadores Nicolau do Campos Vergueiro e José<br />

Joaquim de Campos (Marquês de Caravelas) que, juntamente com o Brigadeiro Francisco de Lima e Silva como<br />

representante do Exército, viriam a compor a Regência Trina Provisória. Em que pese a insistência de setores<br />

civis e militares, o Imperador não voltou atrás, o que o deixou isolado e sem o apoio das tropas imperiais para<br />

reprimir as manifestações de rua. Por falta de alternativas, com o descumprimento das suas ordens, abdicou em 7<br />

de abril e, em seguida, abandonou o País.<br />

3 Como ficou conhecida a série de conflitos envolvendo brasileiros constitucionalistas e portugueses absolutistas,<br />

adeptos do poder concentrado em uma só pessoa, entre 12 e 14 de março de 1831, nos quais os nacionais<br />

passaram a destruir a iluminação pública das ruas por onde a caravana real deveria passar e os portugueses,<br />

indignados, refugiados em suas residências, passaram a atirar pedras e garrafas quebradas em seus adversários,<br />

acirrando de modo incontornável os ânimos na cidade do Rio de Janeiro.


Considerando-se, apenas, episódios de violência política de magnitude, a partir de 15<br />

de novembro de 1989 (data da Proclamação da República) até 1964, podem ser citados alguns<br />

desses eventos, os quais, excetuando-se os golpes de Estado, envolveram revoltas, rebeliões,<br />

insurreições, motins, conspirações e revoluções 4 .<br />

São eles:<br />

Revolução Federalista – revolta com características de guerra civil, originada no<br />

Rio Grande do Sul, entre 1893 e 1895, que tinha como finalidade opor resistência ao<br />

excessivo controle exercido pelo governo central sobre os Estados, a instauração de um<br />

sistema federativo e a adoção da forma parlamentarista de governo;<br />

Revolta da Armada – sublevação militar naval, originada no Rio de Janeiro, entre<br />

1893 e 1894, teve desdobramentos no sul do Brasil, onde alguns de seus líderes se juntaram<br />

aos federalistas, e tinha por finalidade a convocação de eleições presidenciais, nos termos da<br />

Constituição Federal de 1891;<br />

República de Cunani – insurreição popular separatista, no Amapá, liderada por<br />

aventureiros de origem francesa, ocorreu em duas fases, entre 1895 e 1902; tinha por<br />

finalidade declarar livre a parte daquele território brasileiro contestada pelos franceses;<br />

Guerra de Canudos – revolta popular de conteúdo messiânico, na Bahia, entre 1896<br />

e 1897. Impôs sérias derrotas ao Exército Brasileiro e seus adeptos acreditavam em uma<br />

salvação milagrosa dos flagelos do clima e da exclusão social e econômica.<br />

Revolução Acreana – insurreição popular separatista, no Acre, entre 1899 e 1903,<br />

que tinha por finalidade separar aquele território da República da Bolívia;<br />

Revolta da Vacina – sublevação popular, no Rio de Janeiro, em 1903, que<br />

consubstanciava a rejeição popular à vacina contra a varíola;<br />

Revolta da Chibata – rebelião militar naval, no Rio de Janeiro, em 1910, quando<br />

marinheiros rebelaram-se. Objetivavam a extinção dos castigos físicos a eles impostos;<br />

Guerra do Contestado – insurreição popular de conteúdo messiânico, em território<br />

disputado por Santa Catarina e Paraná. Ocorreu entre 1912 e 1916;<br />

Sedição de Juazeiro – revolta política das oligarquias cearenses contra o governo<br />

federal, no Ceará, em 1914, que tinha por meta afastar a interferência do poder central na<br />

4 Nos dicionários revoltas, rebeliões, insurreições, motins, são tratados como sinônimos (representando os atos<br />

de revolta, de rebelar-se etc.) e que guardam semelhanças entre si. Revolução, aqui, tem esse mesmo sentido,<br />

uma vez que o Brasil não testemunhou essa manifestação em seu sentido clássico, como um movimento súbito e<br />

generalizado, por meio do qual uma grande parte do povo tenha conquistado, pela força, o governo do país, a fim<br />

de dar-lhe outra direção, causando uma mudança completa de regime, acompanhada de reformas profundas e<br />

transformações violentas nas instituições políticas e sociais.<br />

50


política estadual;<br />

Revolta dos 18 do Forte – primeira sublevação do movimento tenentista 5 , no Rio de<br />

Janeiro, em 1922, no contexto de amplo descontentamento militar com o sistema político<br />

vigente, o atraso do país e o tratamento que lhes foi dispensado pelo Presidente da República;<br />

Revolta Paulista de 1924 – segunda sublevação no contexto do tenentismo, de<br />

grandes proporções, envolvendo bombardeios pesados de artilharia e aviação, forçou a fuga<br />

do governador e a intervenção do governo federal. Derrotada, seus líderes se dirigiram para<br />

Foz do Iguaçu, onde realizaram a junção com os oficiais gaúchos liderados por Luís Carlos<br />

Prestes, dando início à Coluna Prestes;<br />

Coluna Prestes – insurreição militar, entre 1925-1927, no contexto do Movimento<br />

Tenentista, que percorreu mais de vinte e cinco mil quilômetros pelo interior do Brasil.<br />

Propugnava por reformas políticas e sociais e combatia o sistema de governo vigente<br />

amparado em oligarquias, no voto ostensivo e na corrupção eleitoral, ao mesmo tempo em<br />

que denunciava a miséria da população e a exploração das camadas mais pobres pelos líderes<br />

políticos. A Coluna Miguel Costa - Luís Carlos Prestes contribuiu para a construção da<br />

imagem deste último como um dos líderes militares mais respeitados na sua época;<br />

Revolta de Princesa Isabel – rebelião política coronelista, na Paraíba, em 1930,<br />

contra o governo estadual de João Pessoa, motivadas por questões políticas e econômicas;<br />

Revolução Constitucionalista de 1932 – revolta político-militar, com características<br />

de guerra civil, em São Paulo, em 1932. Foi outra insurreição de grandes proporções e que<br />

envolveu o Estado de São Paulo contra a Federação;<br />

Intentona Comunista – sublevação no Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do<br />

Norte, em 1935, constituiu-se em uma tentativa de golpe de Estado contra o governo de<br />

Getúlio Vargas realizada pelo Partido Comunista Brasileiro e liderada por Luís Carlos Prestes,<br />

agentes estrangeiros infiltrados no país e militares, entre outros; e<br />

Intentona Integralista – insurreição no Rio de Janeiro, em 1938, efetivada por<br />

parcela do Movimento Integralista. Foi mais uma tentativa de golpe de Estado contra o<br />

governo de Getúlio Vargas, por considerar que este havia traído os ideais que o levaram ao<br />

poder ao instaurar o Estado Novo.<br />

Com relação aos golpes militares, nada ilustra melhor a modalidade do que a própria<br />

5 Tenentismo foi o nome dado ao movimento político-militar, entre 1920 e 1935, que, sob a liderança dos então<br />

“tenentes” de 1920, conduziu diversas rebeliões de jovens oficiais de baixa e, depois, média patentes do Exército<br />

Brasileiro. Esses oficiais, por meio de suas insurreições, expressavam seu descontentamento com a situação<br />

política do Brasil. Não tinham ideologia manifesta e propunham reformas na estrutura de poder do País.<br />

Disponível em: . Acesso em: 25/11/2010.<br />

51


República, inaugurada por este instrumento de violência política que não cessou de interferir<br />

nas relações entre civis e militares nas décadas subsequentes. Para citar, apenas os mais<br />

característicos, a partir de 1930, pode-se elencar:<br />

Revolução de 1930 – golpe de Estado civil e militar que foi o desaguadouro das<br />

insatisfações originadas no tenentismo com o sistema oligárquico vigente;<br />

Estado Novo, em 1937 – golpe de Estado perpetrado pelo próprio governante, com<br />

amplo apoio da liderança militar, contra o sistema democrático vigente e que resultou na<br />

instauração de uma ditadura civil;<br />

Deposição de Getúlio Vargas, em 1945 – golpe de Estado efetivado pela liderança<br />

política civil e militar que depôs Vargas do poder;<br />

Segunda deposição de Vargas, em 1954 – golpe efetivado pela liderança política<br />

civil e militar que depôs, novamente, Vargas do poder, levando-o ao suicídio;<br />

Putsch militar de 1955 capitaneado pelo General Henrique Duffles Teixeira Lott,<br />

em 1955 – golpe de Estado efetivado pela liderança militar no contexto da contestação da<br />

eleição de Juscelino Kubitschek à Presidência da República, também conhecido como golpe<br />

preventivo;<br />

Golpe preventivo, em 1961 - golpe de Estado efetivado pelos ministros militares –<br />

almirante Sylvio Heck, general Odilio Denys e brigadeiro Eduardo Gomes – no contexto da<br />

renúncia do, então, Presidente Jânio Quadros, com a finalidade de impedir a posse do Vice-<br />

Presidente João Goulart na Presidência da República;<br />

Contragolpe preventivo de Leonel Brizola, em 1961 – reação liderada pelo então<br />

Governador do Rio Grande do Sul contra o golpe efetuado pelos ministros militares no<br />

sentido de dar posse na Presidência da República ao Vice-Presidente eleito, João Goulart; e<br />

Movimento Militar de 31 de Março de 1964 – intervenção militar efetivada pela<br />

liderança política civil e militar que instaurou o denominado regime militar no Brasil.<br />

Não foram citadas a miríade de revoltas, insurreições, rebeliões, conspirações e<br />

motins, dentre outros eventos, cujo alcance político foi menor, não chegando a causar a<br />

substituição, manutenção ou entronização de um Presidente da República, como aquelas de<br />

Jacareacanga e Aragarças, incluídas nas ações objeto deste trabalho e que serão explicitadas<br />

na Seção 4.<br />

Por isso, a fim de delimitar essa abordagem contendo os antecedentes históricos sobre<br />

a participação dos militares na política, tomar-se-á, como referência, a Revolução de 1930. O<br />

principal motivo é que, a partir dela, percebe-se a configuração daqueles atributos que Samuel<br />

52


Huntington aponta como característicos do início do processo de modernização; vale dizer, da<br />

ruptura de certa estabilidade proporcionada por um sistema oligárquico atrasado e sintônico 6 ,<br />

para dar início às desventuras intrínsecas aos processos de modernização. René Armand<br />

Dreifuss, também, concorda com esse entendimento. Para ele, aliás:<br />

“Até 1930, o Estado Brasileiro foi liderado por uma oligarquia agro-comercial, na<br />

qual predominavam as elites rurais do nordeste, os plantadores de café de São Paulo<br />

e os interesses comerciais exportadores [...] A urbanização e o desenvolvimento<br />

industrial exerceram efeitos desorganizadores sobre a frágil estrutura do estado<br />

oligárquico”. 7<br />

Gestada nas entranhas dessas mesmas elites, a partir do final do século XIX, surgiu<br />

uma fração industrializada, que iria integrar a burguesia 8 brasileira; esta, apoiada pela classe<br />

média, transformou-se na vanguarda e no elemento de sustentação do golpe civil e militar que<br />

viria a deflagrar a Revolução de 1930, ação facilitada pelo enfraquecimento das classes<br />

oligárquicas, entre outras razões, devido às repercussões econômicas negativas oriundas da<br />

Grande Depressão após a crise capitalista de 1929, mas que não significou a destruição<br />

política ou econômica dessas classes; em vez disso, seus valores tradicionais foram mantidos<br />

em grande parte pelos novos detentores do poder, como, por exemplo, na recusa à adoção do<br />

sufrágio universal e na restrição do voto a uma população em torno de 4%, naquela época<br />

1.500.000 pessoas 9 .<br />

Vale ressaltar que, entre os detentores de poder no Novo Regime – a classe média, a<br />

burguesia e os representantes das elites oligárquicas – remanesciam os mesmos conflitos<br />

intrínsecos que assolaram a fase anterior, sendo que nenhum dos grupos representativos<br />

conseguiu estabelecer hegemonia política sobre os outros ou, mesmo, de representar os<br />

interesses nacionais, o que obrigava Getúlio Vargas a se mover em meio a uma complexa<br />

trama de conciliações efêmeras e crises, até o golpe que resultou na instauração do Estado<br />

Novo, em 1937 10 , e mesmo após, como ocorreu com a tentativa de golpe de Estado em 1938,<br />

a Intentona Integralista, praticada por parcela do Movimento Integralista 11 , entre outros<br />

6 O termo sintônico quer dizer que a essência da dominação da oligarquia agro-comercial na aliança política<br />

vigente era mantida, apesar das contradições intrínsecas do sistema tendentes a gerar conflitos periódicos,<br />

conforme se viu na descrição acima.<br />

7 DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Petrópolis:<br />

Vozes, 1981, p. 21.<br />

8 Para DREIFUSS, op. cit., p. 22, agro-exportadores, industriais e representantes dos interesses bancários.<br />

9 DREIFUSS, op. cit., p. 21-22. Ver tb. Nota 9, p. 39.<br />

10 Idem.<br />

11 O Integralismo teve origem em Portugal e sofreu grande influência da Doutrina Social da Igreja Católica: um<br />

conjunto de princípios, critérios, diretrizes e ensinamentos encontrados na tradição secular da Igreja e em<br />

numerosas encíclicas e pronunciamentos Papais, com a finalidade de orientar a organização social e política dos<br />

53


motivos, por considerar-se traída em seus ideais pelas ações implementadas por Vargas.<br />

Os militares, com forte representatividade da classe média 12 , e que, a partir dos<br />

primeiros momentos do tenentismo, passaram a propugnar por maior influência no cenário<br />

político do País, por esta época, forem cooptados pela elite industrial e financeira governante,<br />

por intermédio da atribuição de importantes cargos públicos, particularmente as Interventorias<br />

estaduais, a participação em cargos de empresas estatais e autárquicas 13 e, principalmente,<br />

pela adoção do ideário positivista-militar de ordem nacional e progresso, defendido por larga<br />

parcela da oficialidade, onde o nacional-desenvolvimentismo 14 contribuía para reforçar seu<br />

atrelamento ao projeto financeiro e industrial em execução, principalmente com as suas<br />

participações em cargos executivos. Para René Dreifuss, o “aparelho burocrático-militar do<br />

Estado Novo” exerceu um papel de mediador na competição entre as classes que sucedeu ao<br />

conflito anterior, favorecendo “uma interferência contínua das Forças Armadas na vida<br />

política da nação”, a qual “assegurava a coesão do sistema, ao mesmo tempo em que se<br />

tornava um fator de perturbação nas tentativas de institucionalização política a longo prazo” 15 .<br />

Vale ressaltar que, durante as primeiras etapas do tenentismo, além da gestação das<br />

diversas tendências, tanto à esquerda como à direita, que viriam a transtornar as relações entre<br />

civis e militares, também, vai-se encontrar a gênese de uma disfunção que se pretende<br />

enfatizar, sob o nome de anarquia militar. A título de ilustração sobre essa gênese, no<br />

Apêndice 8.1, está reproduzido o diálogo do Tenente Asdrúbal Gwaier de Azevedo, do<br />

Exército Brasileiro, com diversos oficiais, inclusive de alta patente, ocorrido na sessão do dia<br />

24 de junho de 1922, no Clube Militar, onde o referido tenente faz as mais diversas acusações<br />

aos participantes, aos parlamentares e, até mesmo, ao Presidente da República, conforme<br />

povos. Ele ficou associado ao fascismo por ser ferrenhamente anticomunista, embora possuísse diversas e<br />

incontornáveis divergências com o mesmo, dentre outras por ser antiestatista e contra o sindicalismo de Estado.<br />

Em Plínio SALGADO, O que é o Integralismo, Rio de Janeiro: Schmidt Editora, 1933; e Miguel REALE,<br />

REALE, Miguel. ABC do Integralismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935.<br />

12 Alfred STEPAN, em Os Militares na Política, p. 29, referindo-se aos cadetes matriculados entre 1941 e 1943<br />

e 1962 e 1964, apresenta, respectivamente, 76,4% e 78,2%, como sendo oriundos da classe média.<br />

13 DREIFUSS, op. cit., p. 24, denomina essas práticas comuns no Estado Novo de clientelismo, patronato,<br />

paternalismo e cartorialismo, adjetivação tão extensa quanto as sinecuras distribuídas pelo governo.<br />

14 O nacional-desenvolvimentismo foi como ficou conhecido o modelo de desenvolvimento, praticamente<br />

consensual entre todas as correntes políticas, que pretendia modernizar economicamente o Brasil. Dizia respeito<br />

a três aspectos básicos sobre os quais existiam divergências: a exploração dos recursos minerais, a<br />

industrialização (naquela época, por substituição das importações) e a participação do investimento/<br />

financiamento externo. Os conflitos giravam em torno da implementação essencialmente nacional desse<br />

desenvolvimento (populismo e direita militar), complementado pela participação estrangeira ou “associada”<br />

(Escola Superior de Guerra, militares moderados e udenistas) e de cunho liberal, aberto aos estrangeiros (IPES/<br />

IBAD). Apesar da função essencial desempenhada pelo nacional-desenvolvimentismo no desenrolar dos<br />

acontecimentos que permearam todos os governos de Getúlio Vargas a Goulart e suas repercussões nos diversos<br />

grupos militares participantes da política, este trabalho não se dedicará ao estudo mais aprofundado do assunto,<br />

considerando-o, tão-somente, quando tiver interferência com eventuais atividades efetivadas pelos mesmos.<br />

15 DREIFUSS, op. cit., p. 23.<br />

54


elatado por Werneck Sodré 16 . Mais a frente, já no início do Governo Provisório de Vargas,<br />

segundo Góis Monteiro, “havia uma espécie de Exército duplo: o que obedecia às ordens do<br />

QG revolucionário e o que obedecia ao Ministro da Guerra” 17 .<br />

Uma dessas tendências mais conhecidas foi dirigida por Luís Carlos Prestes. Este,<br />

antes mesmo da fracassada Intentona Comunista, alcançou enorme liderança militar com a<br />

Coluna Miguel Costa - Prestes, e, já na fase política, participou da fundação da Aliança<br />

Nacional Libertadora (ALN), em 1935, juntamente com outros próceres comunistas,<br />

conseguindo amplo apoio militar, especialmente no Exército, e popular. A “arregimentação a<br />

que alcançou atingiu, naturalmente, a área militar, intensamente trabalhada pelo Tenentismo e<br />

pelas lutas que acabaram por liquidá-lo” 18 .<br />

Entretanto, a Intentona Comunista de 1935, imbuída de uma característica de traição<br />

entre companheiros e de influência direta da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas<br />

(URSS), de onde Prestes saíra diretamente para chefiar a sublevação, teria consequências<br />

funestas para o Movimento Comunista Brasileiro, não somente pela perseguição implacável<br />

que os comunistas sofreram em todos os governos conservadores e inclusive nos populistas 19 ,<br />

mas, principalmente por inculcar no imaginário 20 nacional esse senso de solércia 21 , perfídia,<br />

frieza e maldade, tão contrário à índole nacional, além de expor a obediência cega a desígnios<br />

externos, o que colocaria os comunistas, autodenominados nacionalistas e democráticos, em<br />

eterna contradição, idiossincrasia perceptível para a alma nacional que viria a ser corroborada<br />

pelos horrores relatados por Nikita Kruschev 22 , em 1953, sobre a ditadura de <strong>Jose</strong>f Stalin.<br />

Entre os militares, segmento essencialmente coeso, onde as divergências não deveriam<br />

afetar seus valores maiores – hierarquia, disciplina, lealdade (em posição privilegiada), dentre<br />

outros – os efeitos da Intentona foram ainda mais devastadores. A Intentona Comunista, desse<br />

16<br />

SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 202-<br />

208.<br />

17<br />

Alzira Vargas do Amaral PEIXOTO, Getúlio Vargas, Meu Pai, Porto Alegre: Globo, 1960, p. 346.<br />

18<br />

SODRÉ, op. cit., p. 254-255.<br />

19<br />

SODRÉ, op. cit., relata a dura repressão ocorrida no segundo governo de Getúlio Vargas nas p. 330-339.<br />

20<br />

Para maior compreensão do sentido de imaginário neste trabalho v. Nota 3 da Seção 1.<br />

21<br />

De acordo como Novo Dicionário Aurélio, 2 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, solércia é uma<br />

qualidade de solerte (pessoa sagaz, manhosa ou velhaca); ardil, astúcia, manha.<br />

22<br />

O Relatório apresentado no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 25 de<br />

fevereiro de 1956, tinha por base as conclusões da Comissão Chvernik, grupo especial criado para investigar a<br />

repressão contra os delegados do XVII Congresso do Partido de 1934, onde, para um quorum de 1.966<br />

delegados, 1.108 foram acusados de ser contra-revolucionários, sendo 848 executados e 98 declarados inimigos<br />

do povo. Denunciava, ainda, entre outros fatos: os expurgos dos quadros superiores do Partido, a falsificação de<br />

fatos que permitiriam incrementar o culto à personalidade de Stalin; a acusação contra mais de um milhão e meio<br />

de membros do PCUS de atividades anti-soviéticas e de serem inimigos do povo, dentre os quais, pelo menos<br />

680 mil haviam sido executados; criação de provas falsas para acusar seus inimigos; deportação das<br />

nacionalidades e o complô dos médicos (simulação sobre pretensa participação de médicos judeus no assassinato<br />

de altas autoridades). Disponível em: . Acesso em: 10/02/2011.<br />

55


modo, constituiu-se no maior dos erros praticados pelos comunistas. Sem ela seria difícil de<br />

construir o mito da “ameaça vermelha” e do “perigo vermelho”, que iria assombrar o<br />

imaginário popular até o Movimento Militar de 1964, mesmo depois, e conceder a munição<br />

poderosa que alimentaria a ideologia e a propaganda anticomunistas.<br />

Simultaneamente, outros oficiais se inclinaram para a direita, não somente pelas<br />

simpatias com os novos governos fascistas da Europa, mas, também, pelas tendências<br />

fascistizantes do governo Getúlio Vargas e pela crescente simpatia conquistada pelos<br />

integralistas no seio das Forças Armadas. O integralismo, com forte influência entre os<br />

militares, especialmente na Marinha, viria a desencadear, conforme supra citado, a sua<br />

própria Intentona; esta, conduzida por uma dissidência do movimento, não teve as mesmas<br />

repercussões que aquela dos comunistas, talvez pelo compartilhamento de elementos<br />

ideológicos comuns com os varguistas e por ter tido curta influência política, após a queda de<br />

Vargas. Ao longo dos anos seguintes, praticamente não sofreram repressão.<br />

Tanto a Intentona Comunista de 1935 como a Integralista em 1938 são marcos<br />

históricos referenciais. A partir de então, integradas por uma maioria de membros não<br />

engajados nos embates políticos, embora conectados às questões que envolviam a sociedade,<br />

os militares passaram a ser espicaçados por minorias atuantes, não necessariamente<br />

comunistas ou integralistas, tanto à esquerda e como à direita.<br />

Sodré, referindo-se ao governo de Getúlio Vargas, pontua que a “intromissão dos<br />

militares revolucionários na política e na administração do País trazia evidentes perturbações<br />

à vida costumeira das Forças Armadas” contrariando os profissionais “que esposavam<br />

honestamente a tese que reservava aos quartéis a atividade do soldado” 23 . Para Sodré,<br />

entretanto, a Revolução de 1930, “foi, assim, uma etapa do desenvolvimento da revolução<br />

burguesa em nosso país” 24 ; e, por sua vez, no dizer de Martins de Almeida, uma revolução<br />

“fictícia antes que a imensa maioria da massa popular fizesse uma revolução verdadeira” 25 .<br />

O término da Segunda Guerra Mundial cristalizou as grandes transformações que<br />

ocorriam na sociedade brasileira. A industrialização introduziu importante segmento de<br />

operários, cujas reivindicações, diante de condições miseráveis de trabalho, foram amenizadas<br />

por sindicatos “gerenciados” pelo Estado por meio dos chamados pelegos 26 .<br />

Ao se aproximar do fim, o Estado Novo passou a ser desafiado pelos vários segmentos<br />

23 SODRÉ, em A História Militar do Brasil, p. 245.<br />

24 Citado por SODRÉ, idem, p. 250.<br />

25 Martins de ALMEIDA, em Brasil Errado, 2 ed., Rio, 1953, p. 124. Citado em SODRÉ, ibidem, p. 250.<br />

26 Pelego é denominado o couro da ovelha curtido e que tem várias utilidades, particularmente no sul do Brasil,<br />

dentre elas a de servir para amaciar a sela do cavalo que o cavaleiro monta. Da similitude com a atividade<br />

desempenhada pelos Presidentes de Sindicato, servis ao Estado, surgiu a denominação de pelegos para eles.<br />

56


epresentativos, devido ao crescimento das insatisfações populares, inclusive dos<br />

trabalhadores, esses últimos, atuantes de forma incipiente desde a criação de sindicatos<br />

independentes do poder estatal, a exemplo do Movimento de Unificação dos Trabalhadores -<br />

MUT (1930) e da Confederação dos Trabalhadores do Brasil – CTB (1944), de orientação<br />

esquerdista e que, até então, encontravam-se na clandestinidade ou na semiclandestinidade.<br />

Paralelamente ao desenvolvimento de ações dos empresários e trabalhadores, houve a<br />

evolução de uma componente militar entre os vetores que balizavam a insatisfação com o<br />

regime de Getúlio Vargas; esta, proveniente das Forças Armadas, em larga medida, devido ao<br />

paradoxo de estarem lutando, nos teatros de operações marítimo e terrestre, pela libertação da<br />

Europa do totalitarismo nazifascista e, ao mesmo tempo, sustentando o totalitarismo getulista.<br />

Getúlio Vargas, ao perceber a inexorabilidade do desfecho que o esperava e<br />

visualizando um próximo período de democracia, induziu a formação de dois partidos<br />

políticos, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sobre a base sindical montada pelo Ministro<br />

do Trabalho e Justiça Alexandre Marcondes Filho, e o Partido Social Democrático (PSD),<br />

fundamentado nas lideranças regionais dos Interventores, remanescentes da oligarquia agrária,<br />

incluídos os coronéis, e em segmentos industriais. Além disso, concedeu anistia aos presos<br />

políticos, o que beneficiou, principalmente, os integrantes do Partido Comunista, colimando<br />

atraí-los para a sua órbita política. Essa articulação foi alcunhada de populismo, considerado:<br />

“[...] como o bloco histórico construído pelas classes dominantes dentro das<br />

condições particulares do Brasil, isto é, a integração e articulação de diferentes<br />

classes sociais sob a liderança de um bloco de poder oligárquico-industrial. Mesmo<br />

sendo a forma que tentou encobrir a supremacia de classe desse bloco de poder, o<br />

populismo permitiu a existência de um espaço político no qual as classes<br />

trabalhadoras foram capazes de expressar algumas de suas reivindicações e de<br />

desenvolver formas organizacionais que tentaram quebrar a camisa-de-força<br />

ideológica e política populista”. 27<br />

Por intermédio de ações populistas, os detentores do poder procuravam manter a<br />

situação vigente durante o período varguista, com “limitada mobilização política nacional das<br />

massas urbanas, baseado em uma estrutura sindical controlada pelo Estado e no apoio<br />

institucional do PSD e do PTB [...] o primeiro operando como partido do poder e o segundo<br />

como legitimação da ordem vigente”, verdadeiras máquinas de “domínio ideológico e<br />

controle social”. 28 Essa articulação se revelava potencialmente poderosa, ao unir o estrato<br />

dominante com o popular, particularmente por este último, o que alarmou a classe média e o<br />

27 DREIFUSS, op. cit., Nota 55, p. 43.<br />

28 Idem, p. 27.<br />

57


próprio segmento dominante, devido à posição privilegiada e independente de Vargas, capaz<br />

de contrarrestar as pressões oriundas da elite e das Forças Armadas.<br />

Em resposta, a oposição de centro-direita fundou a União Democrática Nacional<br />

(UDN), anticomunista, com uma visão mais flexível sobre a participação do capital<br />

estrangeiro no desenvolvimento nacional e amparada nos segmentos econômicos médios da<br />

população. Essa agremiação política, as Forças Armadas e os segmentos dominantes,<br />

apoiados pela classe média, articularam um golpe de Estado, antes que Getúlio pudesse<br />

consolidar sua estratégia, embora o Presidente gozasse, ainda, de prestígio entre os segmentos<br />

populares. Em face do renovado interesse das empresas multinacionais no Brasil, houve,<br />

também, importante participação do Embaixador dos EUA, Adolf Berle, nessa articulação,<br />

conforme relatado por Arthur Schlesinger quando tratou do governo de John F. Kennedy 29 ,<br />

interesse que não era novo e que iria se aprofundar com o advento da Guerra Fria 30 .<br />

Vale ressaltar que o retorno da Força Expedicionária Brasileira (FEB) da Europa<br />

exerceu importante influência sobre os militares que dela participaram; estes, passaram a<br />

disseminar suas impressões para os demais companheiros nas fileiras do Exército. Entre elas,<br />

destaca-se, a má impressão sobre o fascismo 31 como ideologia e como estrutura política em<br />

bancarrota, cujas idiossincrasias sobressaíam, ainda mais, quando comparados à capacidade<br />

de organização e à perspectiva democrática representada pelos aliados da luta na Itália,<br />

principalmente os Estados Unidos da América (EUA).<br />

Com a erosão da ditadura de Getúlio Vargas, as Forças Armadas atuaram dentro do<br />

perfil moderador, por meio de intervenções no Estado, ou seja, como instrumento civil e<br />

militar de arbitragem, vale dizer, de sustentação da estrutura política em momentos de ruptura<br />

na sociedade indutoras de questionamentos políticos e sociais quanto à continuidade do<br />

regime (crises de legitimidade), seja para mantê-lo ou substituí-lo, o que era precedido por<br />

longos debates, inclusive pela imprensa 32 , e cisão profunda das elites políticas 33 . A<br />

29 SCHLESINGER, Arthur Meier. A thousand days: John F. Kennedy in the White House. Boston: Houghton<br />

Mifflin,1965. Vale ressaltar que a interferência dos EUA na política interna do Brasil é muito antiga. Pode-se<br />

considerar que na Proclamação da República eles já estavam, literalmente, fundeados na Baía da Guanabara.<br />

Nenhum acontecimento político importante, a partir de então, deixou de contar, direta ou indiretamente, com<br />

essa presença.<br />

30 Como ficou conhecido o período, entre o final da Segunda Guerra Mundial e o fim da URSS, que, embora sem<br />

a ocorrência de uma guerra entre as grandes potências, testemunhou uma série de conflitos e crises<br />

internacionais, envolvendo os grandes blocos de poder mundial, as democracias ocidentais, lideradas pelos EUA,<br />

e os países comunistas do Leste Europeu, liderados pela extinta URSS, alcançando os aspectos políticos,<br />

econômicos, culturais (ideológicos), militares, científicos e tecnológicos.<br />

31 STEPAN, Os Militares na Política, p. 67.<br />

32 STEPAN, em Os Militares na Política, p. 68, enfatiza o papel decisivo da imprensa em todos os golpes. Cita,<br />

como exemplo, que o Jornal do Brasil de 11 de outubro de 1945 publicava: “Enquanto o Senhor Vargas estiver<br />

no Catete, o país não terá confiança nem tranqüilidade”, e o Diário Carioca, dois dias depois propagava: “A<br />

58


intervenção, aludida por Alfred Stepan, ocorria sempre em nome de um ou mais dos três<br />

grupos que, tradicionalmente, disputavam o seu apoio: o do governo, dos civis pró-regime e o<br />

dos civis anti-regime, no caso com a tradicional inclinação dos civis pró-regime, os<br />

verdadeiros fiéis da balança para Stepan, em direção aos civis anti-regime.<br />

Segundo Golbery do Couto e Silva, participante em diversas conspirações:<br />

“Os ativistas militares pró ou contra o governo constituem sempre uma minoria. Se<br />

um grupo militar deseja derrubar o governo, precisa convencer a grande maioria de<br />

oficiais que são legalistas estritos ou simplesmente não ativistas. Os ativistas não<br />

querem arriscar derramamento de sangue ou cisões militares, de forma que esperam<br />

até que tenham conseguido um consenso. Deste modo, os movimentos que visam<br />

depor um presidente precisam da opinião pública para ajudar a convencer os<br />

próprios militares”. 34<br />

Embora derrubado Getúlio Vargas, permaneceu no comando do País a mesma elite<br />

política que conduzira o Estado Novo, inclusive pela adoção do sistema partidário getulista. A<br />

manutenção da fisionomia anterior foi sancionada pela Assembléia Constituinte que<br />

promulgou a Constituição de 1946, a qual optou por manter a estrutura institucional existente,<br />

com a notável alteração que retomava as prerrogativas militares de interferência em defesa da<br />

Lei e da Ordem, suprimidas na Carta de 1937.<br />

A principal era a que constava no final do artigo 176 35 , que preconizava: “As forças<br />

armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições<br />

nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade<br />

suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei”. Este artigo, ao mesmo tempo<br />

em que colocava as Forças Armadas sob a autoridade suprema do Presidente da República,<br />

incluía a letra “e” seguida de “dentro dos limites da lei”, significando que se ele próprio não<br />

agisse nesses limites, perdia a autoridade, atribuindo-se o cumprimento de decisões<br />

presidenciais a uma esfera que, nessas condições, encontrava-se fora das atribuições do<br />

primeiro mandatário; uma verdadeira cláusula do golpe, que vigorava desde 1891. Stepan diz<br />

a respeito desta cláusula que: “Com efeito, isto os autorizava a prestar uma obediência apenas<br />

ditadura do Senhor Getúlio Vargas perpetrou mais um golpe repressivo contra o povo brasileiro [...] O povo<br />

agora não confia em seu governo [...] O governo não pode presidir honestamente a eleição.”<br />

33 Para STEPAN, em Os Militares na Política, p. 67, a amplitude e a profundidade do debate era fundamental<br />

para definir a inclinação dos militares, a ponto que os movimentos, onde eles não se manifestaram desta forma,<br />

fracassaram, como em 1955, contra a posse de Juscelino Kubitschek, e em 1961, contra a posse de João Goulart.<br />

Isto porque, coerentes com as suas origens na classe média, os militares são tributários de várias correntes<br />

políticas e de opinião, não havendo um consenso prévio entre eles.<br />

34 Citado em STEPAN, idem, p. 74.<br />

35 O Art. 177 retomava uma cláusula tradicional ao prescrever que “Destinam-se as forças armadas a defender a<br />

Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”. Disponível em: . Acesso em: 25/11/2010.<br />

59


discricionária ao presidente, uma vez que ela dependia de sua decisão sobre a legalidade da<br />

ordem presidencial” 36 .<br />

Um certo monolitismo 37 militar, conquistado efemeramente no primeiro governo<br />

Vargas às custas de todos os tipos de repressão e violência contra as divergências, fora<br />

novamente rompido e os militares voltavam a exercer papel atuante no jogo dos políticos.<br />

Entretanto, devido ao atrelamento do governo de Eurico Gaspar Dutra ao dos EUA e de certo<br />

consenso interno obtido sob pressão, já no contexto da Guerra Fria, as divergências políticas<br />

nas Forças Armadas, permaneceram latentes, até que Getúlio assumiu o segundo mandato<br />

(1950).<br />

Por essa época, o mundo passava por grandes transformações, particularmente devido<br />

ao avanço soviético no intuito de estabelecer um cordon sanitaire entre o Leste Europeu e a<br />

Europa Ocidental e criar a sua própria zona de influência e segurança, antes de se lançar a<br />

outras conquistas 38 . Os EUA, então, estabeleceram uma sequência de Grandes Estratégias 39 ,<br />

no contexto da Guerra Fria, visando a impedir esse desiderato, inicialmente por meio da<br />

Estratégia da Contenção Periférica, emitida na denominada Doutrina Truman 40 , em 1947,<br />

oficializando a bipolaridade absoluta, a qual conviveu com as Estratégias da Retaliação<br />

Maciça, entre 1954 e 1964, da Resposta Flexível, do General Maxwell Taylor, em 1960, e da<br />

Deterrência, posteriormente.<br />

A fim de consolidar sua hegemonia no mundo ocidental, após a Segunda Guerra<br />

Mundial os EUA engendraram uma complexa estruturação de segurança e defesa, vinculando<br />

36 STEPAN, idem, p. 59.<br />

37 Em razão de as promoções dos oficiais, inclusive generais, serem suscetíveis de interferências políticas e<br />

militares pelo exercício de escolha nas promoções, a permanência de um mesmo grupo dirigente por período<br />

prolongado, naturalmente, tendia a conformar essas carreiras aos ditames dessa elite dominante e, por<br />

consequência, torná-las convergentes com os seus objetivos, particularmente sob ambiente totalitário.<br />

38 A situação ficou imortalizada no célebre discurso de Winston Churchill no Westminster College, em Fulton,<br />

no Missouri, Estados Unidos, em 5 de março de 1946: “De Stettin, no Báltico, até Trieste, no Adriático, uma<br />

cortina de ferro desceu sobre o continente. Atrás dessa linha estão todas as capitais dos antigos Estados da<br />

Europa Central e Oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia; todas essas<br />

cidades famosas e as populações em torno delas estão no que devo chamar de esfera soviética e todas estão<br />

sujeitas, de uma forma ou de outra, não somente à influência soviética mas também a fortes, e em certos casos<br />

crescentes, medidas de controle de Moscou.” [Tradução livre do autor] Disponível em: . Acesso em: 10/02/2011.<br />

39 Grande Estratégia como é chamada nos EUA a Estratégia Nacional, aquela que integra todas as demais<br />

estratégias subordinadas, notadamente nas dimensões política, econômica, militar, cultural e científica e<br />

tecnológica. Naquele país, normalmente é expedida a cada novo governante e é designada sob o nome de<br />

Estratégia de Segurança Nacional. Para aquele país, que efetivamente integra suas estratégias, entretanto,<br />

segurança e prosperidade são dois lados da mesma moeda, uma servindo e/ou respaldando a outra.<br />

40 Esta expressão, que levou o nome do Presidente dos EUA à época, Harry S. Truman, designa um conjunto de<br />

medidas daquele governante, no contexto da política externa dos EUA, que anunciavam os primeiros acordes da<br />

chamada Guerra Fria. Em muito, repercutia o discurso de Churchill citado acima. Suas ações estratégicas,<br />

inicialmente no campo econômico (por meio de colaboração financeira e recuperação das economias), visavam a<br />

conter a expansão do comunismo, naquele momento em vantagem na Guerra Civil Grega, um dos chamados<br />

“elos frágeis” do sistema. A ideia central era defender o mundo chamado de livre (capitalista) daquela ameaça.<br />

60


os partícipes à sua férrea liderança, particularmente, no âmbito mundial, por meio da<br />

Organização das Nações Unidas (ONU), onde tinha poder de veto no Conselho de Segurança,<br />

e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), na qual fazia frente à ameaça<br />

militar soviética. No âmbito hemisférico 41 , foi constituída a Organização dos Estados<br />

Americanos (OEA) e formulado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) 42 .<br />

Ao mesmo tempo, em função das suas esmagadoras vantagens competitivas os EUA tratavam<br />

de criar, abrir, capturar e vincular os mercados da sua área de influência ao seu próprio<br />

mercado, por meio da abolição das barreiras alfandegárias e das restrições de qualquer ordem<br />

ao livre fluxo dos bens, serviços, investimentos e ao capital comercial ou financeiro; da<br />

proteção dos seus investimentos e empreendimentos; e da liberdade cambial.<br />

Em resumo, à época, havia o enquadramento hemisférico brasileiro, dentro do eixo de<br />

influência dos EUA, no contexto de uma nova ordem mundial, a da Pax Americana, a qual se<br />

fazia sentir no âmbito político, econômico, financeiro e militar, de forma quase opressiva,<br />

particularmente em meio à Guerra Fria, configurando um quadro de vigência do realismo,<br />

com o estabelecimento, manutenção e imposição dos interesses da potência hegemônica e o<br />

constrangimento dos países periféricos, conforme os termos clássicos descritos por Kenneth<br />

Waltz citados na Seção 2. Os desafios apresentados a esta submissão foram reprimidos por<br />

pressões e ações abertas, consubstanciadas de inúmeras formas, inclusive por elementos de<br />

agitação e golpistas, conforme ocorreu contra Getúlio Vargas, em 1945, e voltaria a ocorrer na<br />

segunda intervenção contra o próprio Vargas, em 1954, na queda de Jânio Quadros, em 1961,<br />

e na de João Goulart, em 1964.<br />

O fato é que, se por um lado, os Estados Unidos representavam historicamente um<br />

fator de constrangimento à maior autonomia brasileira e, até mesmo, latino-americana, vale<br />

ressaltar que, de outra parte, também simbolizavam uma oportunidade, devido ao seu avanço<br />

tecnológico e maior capacidade econômica e financeira, como ficara demonstrado com os<br />

investimentos para a recuperação da Europa e do Japão e com o seu apoio às pretensões<br />

41 As Américas, embora fora do rimland, a zona de contenção do heartland preconizada por Nicholas Spykmen,<br />

tinham importância estratégica para a segurança e a prosperidade dos EUA, conforme ficara mais do que<br />

evidente com a ameaça nazista. Desde a Doutrina Monroe (1823), também conhecida pela frase: "América para<br />

os americanos", este entendimento vinha sendo aprofundado. Segundo Luiz Alberto MONIZ BANDEIRA, em<br />

“A Importância Geopolítica da América do Sul na Estratégia dos Estados Unidos”, in Revista da Escola Superior<br />

de Guerra, v. 24, n. 50, jul./dez. 2008, a verdadeira finalidade dessa doutrina sempre foi a de servir como<br />

disfarce ideológico para o objetivo estratégico dos EUA de manter sua hegemonia sobre todo o Hemisfério<br />

Ocidental e conquistar e assegurar as fontes de matéria-prima e os mercados da América do Sul para as suas<br />

manufaturas, alijando do subcontinente a competição da Grã-Bretanha e demais potências industriais da Europa.<br />

42 Os EUA nunca permitiram a interferência dos acordos globais sobre os hemisféricos, a fim de impedir<br />

interferências externas à região e, ao mesmo tempo, manter a liberdade de iniciativa local. Para isso, fizeram<br />

incluir, tanto no Pacto da Liga das Nações (Art. XXI), como na Carta das Nações Unidas (Art. 52), cláusulas que<br />

determinavam a prioridade dos acordos hemisféricos sobre os demais.<br />

61


desenvolvimentistas de Getúlio Vargas. Esse apoio, anteriormente, ocorrera por meio de<br />

barganhas no contexto da Segunda Guerra Mundial.<br />

A contrapartida à influência dos EUA passou a ser representada pelas forças políticas<br />

de esquerda, abrangidas dentro do populismo, notadamente pelo Partido Comunista Brasileiro<br />

(PCB), o qual – talvez para reduzir a influência dos EUA no Brasil – passou a adotar, no<br />

âmbito econômico, uma postura de ferrenho nacionalismo. Deve-se ressaltar que na eleição<br />

de Eurico Gaspar Dutra para Presidente da República, o PCB obteve o mesmo número de<br />

votos (569.818) do PTB e, nas eleições de janeiro de 1947, para eleger os governadores dos<br />

Estados, ficou em quarto lugar entre os maiores partidos, sendo que, no Estado São Paulo, em<br />

coligação com o PSP conquistou 393 mil votos, ficando à frente da UDN com 93 mil votos.<br />

“Além disso, o PTB demonstrava não ser páreo para o Partido Comunista, nem ideológica,<br />

nem organizacionalmente” 43 . Diante dessa demonstração de força, no contexto supra<br />

mencionado, coerente com a sua aderência total aos EUA, Dutra rompeu as relações<br />

diplomáticas com a URSS, declarou ilegal o PCB, dissolveu a Confederação dos<br />

Trabalhadores do Brasil, interveio em quatrocentos sindicatos e promoveu um expurgo de<br />

“comunistas” no funcionalismo público 44 .<br />

As eleições de 1950, com Getúlio Vargas como candidato à Presidência da República,<br />

já com o PCB na ilegalidade e os sindicatos sob intervenção, por vários motivos trariam<br />

profundas consequências para os anos seguintes. O candidato se aliou ao Partido Social<br />

Progressista (PSP) de Adhemar Pereira de Barros, o qual, além de forte influência sobre os<br />

trabalhadores de São Paulo, era conhecido por ser leniente com a corrupção 45 . O seu<br />

adversário (candidato da UDN derrotado) foi o Brigadeiro Eduardo Gomes, que já havia sido<br />

derrotado na eleição anterior por Dutra e era um dos sobreviventes da epopéia dos 18 do<br />

Forte, com grande prestígio na Força Aérea Brasileira (FAB). Tinha por aliado o Partido de<br />

Representação Popular (PRP) de Plínio Salgado, antigo dirigente do Partido Integralista.<br />

O segundo governo de Getúlio Vargas foi dividido em três fases. Na primeira, para a<br />

decepção da sua base nacionalista e popular, caracterizou-se por forte participação das elites<br />

empresariais, uma política fiscal austera, principalmente contra a inflação, e uma tentativa de<br />

retomada da antiga barganha com os EUA, para quem ofereceu amplas demonstrações de boa<br />

vontade, inclusive com relação à entrada de investimentos estrangeiros, notadamente em<br />

43 DREIFUSS, op. cit., p. 29.<br />

44 Idem, p. 30.<br />

45 Um dos slogans de campanha eleitoral de Adhemar de Barros, não assumido abertamente, era: "Ademar rouba,<br />

mas faz", que apesar de ser uma frase cunhada por seu adversário Paulo Duarte, acabou por ser o lema de sua<br />

campanha eleitoral para prefeito de São Paulo, em 1957. Cf. LARANJEIRA, Carlos. A Verdadeira História do<br />

Rouba, Mas Faz. Rio de Janeiro: Do Autor, 2000.<br />

62


elação ao petróleo, aos recursos minerais e, até mesmo, os estratégicos, isso tudo, apesar de<br />

seus compromissos nacionalistas.<br />

Na segunda fase, em meados de 1953, fracassadas a política antiinflacionária e as<br />

tentativas de obtenção de vantagens junto aos EUA, além de forte pressão dos sindicatos e dos<br />

diversos grupos nacionalistas, inclusive de militares, Getúlio Vargas, embora mantivesse<br />

aberta a via de comunicação com as elites empresariais e os EUA, inclinou-se para os<br />

segmentos populares, passando a utilizá-los como instrumento contra pressões políticas,<br />

ocasião que passou a ser hostilizado, ainda mais enfaticamente, por diversos grupos militares,<br />

situação que culminou com o chamado Memorial dos Coronéis 46 (Apêndice 8.2) e a queda<br />

dos seus Ministros do Trabalho, João Goulart, e do Exército, Ciro do Espírito Santo Cardoso.<br />

A terceira fase, de forte impregnação nacionalista, transcorreu sob pressão política (no<br />

Congresso), militar, empresarial, jornalística e também dos EUA, com acusações de<br />

corrupção e ataques, principalmente de Carlos Lacerda, líder da UDN do Rio de Janeiro, cujo<br />

clímax, em sequência, ocorreu com o atentado da Rua Tonelero contra Carlos Lacerda, a<br />

República do Galeão, a intervenção (branca) militar e o suicídio de Vargas em 1954.<br />

Referindo-se aos eventos decorrentes da República do Galeão 47 , Sodré escreve:<br />

“O fato de oficiais acompanharem o encarregado da tarefa de injuriar as autoridades<br />

e fomentar a desordem e o golpe de Estado mostra a noção de disciplina que agora<br />

imperava [...] E não tardaria o momento em que a disciplina, assim reduzida a cacos,<br />

entrasse em colapso”. 48<br />

A herança deixada por Getúlio Vargas nos campos político, econômico, social e<br />

militar era pesada. Certamente, nem toda poderia ser atribuída a ele. Considerando-se os três<br />

eixos de análise sobre a dinâmica das sociedades em mudança, conforme pesquisados e<br />

assinalados por Samuel Huntington, eles operavam em franco descompasso e, naquele<br />

momento histórico, havia pouco o que fazer. No eixo político propriamente dito, o grau de<br />

institucionalização era baixo e a estabilidade (ou seja, a ausência de violência política) era<br />

uma quimera. O eixo do desenvolvimento econômico e humano deixava a desejar: nos<br />

quesitos aumento do emprego, renda, poupança, investimento e consumo, entre outros; na<br />

superação do atraso industrial; e na redução das desigualdades – da pobreza, do<br />

46 O Memorial dos Coronéis, assinado por oitenta e dois coronéis e tenentes-coronéis, representa bem o grau<br />

alcançado pela anarquia militar e a fragilidade do governo, pois entre outras acusações incluía a generalizada<br />

corrupção governamental. O mais sintomático foi a queda dos ministros e a absolvição dos acusadores.<br />

47 Como ficou conhecido o episódio do Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado pelo Ministério da<br />

Aeronáutica para apurar as circunstâncias da morte do Major Rubens Florentino Vaz, no atentado da Rua<br />

Tonelero que, em menos de dois dias, apontou o chefe da segurança de Getúlio Vargas como mentor da ação.<br />

48 SODRÉ, op. cit., p. 353.<br />

63


analfabetismo, das condições de saúde da população, entre outras. No eixo social, as<br />

chamadas forças sociais – na sua continua incorporação à atividade política sob a forma de<br />

participação – não visualizavam um mínimo de bem estar com condições sociais avançadas;<br />

ao contrário, o que as aguardava era um cenário de luta por melhores condições. As contínuas<br />

intervenções militares no Estado apenas confirmavam esta situação. E essas condições iriam<br />

perdurar até bem depois de 1964.<br />

No âmbito estritamente militar, aprofundaram-se as divergências internas, implicando<br />

no aumento da anarquia, cujo epicentro continuava sendo o Clube Militar e, em menor escala,<br />

os Clubes Naval e da Aeronáutica, mas que se espraiava para as Escolas Militares e as<br />

organizações militares, onde subsistia um complexo jogo de lealdades preponderantes na hora<br />

dos golpes.<br />

Nos Clubes Militares, institucionalizou-se um esquema político que se desenvolvia em<br />

torno das eleições para a Presidência e Diretorias desses Clubes (sendo o Clube Militar o mais<br />

influente). Vale ressaltar que esse padrão de procedimento, que era antigo como já se viu,<br />

persistiu até o Movimento Militar de 1964. Os militares mais politizados organizavam-se em<br />

torno dos postulantes, quase invariavelmente caudatários do governo vigente ou da oposição.<br />

Como essas eleições não eram realizadas concomitantes aos pleitos presidenciais, passavam a<br />

ter um caráter preparatório da opinião militar para as eleições vindouras além de<br />

confirmatório ou reprovatório 49 , quanto ao apoio desse segmento, nos casos de eleições no<br />

meio dos mandatos dos Presidentes da República 50 .<br />

Dessa forma os militares, embora não muito claramente, participavam cada vez mais<br />

do jogo da política partidária, uma vez que representavam as tendências populistas e dos<br />

conservadores e, como consequência, transferiam essa partidarização para dentro dos quartéis.<br />

Essa atividade, que começava na parte mais elevada da hierarquia, estendia-se, por inércia, até<br />

a mais baixa, mesmo que impedida de votar. Para aumentar a balburdia, a Imprensa, também<br />

49 Por exemplo, Newton Estillac Leal, representante do nacionalismo, que, no ambiente das Forças Armadas,<br />

correspondia ao populismo, derrotou o conservadorismo representado pelo General Oswaldo Cordeiro de Farias<br />

e elegeu-se Presidente do Clube Militar seis meses antes que Getúlio Vargas fosse eleito para a Presidência da<br />

República, o qual, em seguida, nomeou-o para ser o seu Ministro da Guerra. Para Getúlio Vargas, isto<br />

significava estar amparado na corrente de opinião militar majoritária. Já demissionário, por divergências com a<br />

conduta “entreguista” da Política Externa do Chanceler João Neves da Fontoura, voltou a concorrer para a<br />

Direção do Clube Militar, em 1952, tendo sido derrotado pala chapa encabeçada pelos Generais Alcides<br />

Etchegoyen e Góis Monteiro e o Brigadeiro Eduardo Gomes da recém organizada Cruzada Democrática<br />

(movimento dos conservadores para se contrapor aos nacionalistas que permaneceu até 1956 e retornou em<br />

1962), prenunciando a reprovação do governo e os graves eventos que se sucederam. SODRÉ, op. cit., p. 326-<br />

340, elenca graves acusações de constrangimentos e ilegalidades sofridas pelos partidários de Estillac Leal.<br />

50 Em maio de 1954, três meses antes do suicídio de Getúlio Vargas, a Cruzada Democrática manteve a Direção<br />

do Clube Militar, com Canrobert Pereira da Costa, ex-Ministro da Guerra do Presidente Dutra e o General Juarez<br />

Távora. Pregava o “nacionalismo sadio”, contra influências “totalitárias”. (V. SODRÉ, op. cit., p. 327)<br />

64


partidarizada, apoiava ou atacava o lado vencedor, conforme a sua linha editorial 51 .<br />

A Revista 52 do Clube Militar, também, não ficava para trás, defendendo a ideia da sua<br />

Diretoria. Os oficiais se posicionavam a favor ou contra aquela linha editorial e numerosos<br />

comandantes de unidade reuniam seus oficiais para debater sobre o conteúdo da Revista.<br />

Os momentos que antecederam ao suicídio de Getúlio Vargas são confirmações<br />

veementes do estado a que havia chegado a deterioração da hierarquia e da disciplina nas<br />

Forças Armadas: a própria República do Galeão com os poderes auto-atribuídos para a<br />

condução de Inquérito Policial Militar não poupou sequer a residência do Presidente da<br />

República, submetendo sua família a inquirições constrangedoras; nos clubes 53 e nas unidades<br />

militares, com pronunciamentos de seus comandantes, a exemplo do Almirante Muniz Freire<br />

– a bordo do Cruzador Barroso – que fez sérias acusações ao Presidente, o que gerou a<br />

determinação da sua prisão por parte do Ministro da Marinha, Renato de Almeida Guillobel,<br />

e, em seguida, o descumprimento da ordem; e, ainda, nos Clubes Militares onde se sucediam<br />

reuniões nas quais eram pontuadas as mais graves acusações contra o Presidente da República<br />

e seus colaboradores, fatos estes que culminaram com o ultimatum 54 dos oficiais generais (o<br />

Manifesto dos Generais, Apêndice 8.3) exigindo a renúncia imediata ou a saída forçada de<br />

Getúlio Vargas, ou seja, a intervenção militar no Estado.<br />

Quanto ao sucessor de Vargas, Café Filho, assumiu o governo em meio à comoção<br />

popular com a sua morte e governou enfrentando diversas crises que contribuíram, ainda<br />

mais, para esgarçar a hierarquia e a disciplina militares. Café Filho, embora tenha sido eleito e<br />

apoiado pela mesma coligação que elegeu Getúlio PTB/ PSP, aliou-se à UDN, inclinando-se<br />

para o centro e à direita, e adotou posturas favoráveis ao capital estrangeiro e ao empresariado<br />

nacional, o que acalmou essas frentes políticas importantes. Entre os seus ministros militares,<br />

nomeou Eduardo Gomes para a Aeronáutica, muito atuante na campanha que levou à<br />

deposição de Vargas, e, no Exército, em função da exacerbação dos ânimos, nomeou um<br />

ministro considerado pela opinião pública eminentemente profissional e imparcial: o general<br />

51 Segundo SODRÉ, op. cit., p. 313, durante o mandato da Diretoria eleita com Estillac Leal para o Clube<br />

Militar, a imprensa conservadora publicava diariamente no País duzentos artigos, editoriais, comentários ou<br />

notas acusando sua Diretoria de comunista. De acordo com Paulo Ribeiro da CUNHA, em “Ortodoxia e coerência<br />

de um general (bom) de briga(da)”, Topoi, v. 11, n. 20, jan./ jun. 2010, p. 149-158, Sodré, embora nunca tenha<br />

assumido publicamente ser comunista, assim como a maioria dos militares esquerdistas, aderiu ao Partido<br />

Comunista Brasileiro (PCB), entre 1943 e 1945. Portanto, quando assumiu a Diretoria Cultural do Clube<br />

Militar, em 1948, já era comunista. Na imprensa conservadora se destacava a Tribuna da Imprensa, do jornalista<br />

Hélio Fernandes.<br />

52 SODRÉ, idem, p. 316.<br />

53 No Clube da Aeronáutica o Brigadeiro Eduardo Gomes exigia a renúncia de Vargas, no que foi logo<br />

secundado pelo Clube Naval e, até mesmo, pelo Almirantado.<br />

54 No dia 23 de agosto de 1954, o Manifesto dos Generais, com a assinatura de trinta e dois deles, repudia a tese<br />

de afastamento temporário do Presidente da República e exige o seu afastamento.<br />

65


Henrique Batista Duffles Teixeira Lott. O influente Gabinete Militar da Presidência da<br />

República foi entregue ao general Juarez Távora 55 , segundo Nélson Werneck Sodré o<br />

“verdadeiro chefe do governo”. 56<br />

Apesar desse aparente avanço dos segmentos conservadores, nas eleições para<br />

Presidente da República, em 1955, a coligação do PSD/ PTB (de caráter populista) venceu as<br />

eleições Presidenciais com Juscelino Kubitschek (Presidente) e João Goulart (Vice-<br />

Presidente), apoiados pelo Partido Comunista Brasileiro. O centro e a direita foram derrotados<br />

com os candidatos à Presidência Juarez Távora (UDN), Adhemar de Barros (Partido Social<br />

Progressista) e Plínio Salgado (Partido de Representação Popular).<br />

Entretanto, as nuvens escuras que pairavam sobre o ambiente político não se<br />

desfizeram. De modo a agravar a situação, a conjuntura externa apresentava sinais de<br />

radicalização em plena Guerra Fria 57 .<br />

Os integrantes da ala golpista, então, perfeitamente inserida na política nacional, não<br />

se conformavam com a derrota conservadora e preparavam nova investida. Esta, ocorreria em<br />

circunstâncias peculiares. Em tudo, lembrava o Manifesto dos Coronéis. O alvo passou a ser o<br />

Ministro da Guerra, o fiel da balança contra quaisquer pretensões golpistas, em razão da suas<br />

respeitabilidade e liderança que exerciam um efeito importante sobre os militares 58 .<br />

Com a morte do General Canrobert Pereira da Costa, em primeiro de novembro de<br />

1955, o Coronel Jurandir de Bizarria Mamede, lotado na Escola Superior de Guerra (ESG) e,<br />

portanto, fora da cadeia de comando do Ministro da Guerra, proferiu discurso (Apêndice 8.4)<br />

de conteúdo político considerado contrário 59 ao reconhecimento da eleição de Juscelino<br />

55 Curiosamente, ambos, Lott e Távora eram signatários do Manifesto dos Generais que havia derrubado Vargas,<br />

o que coloca em dúvida o alentado profissionalismo de Lott.<br />

56 SODRÉ, op. cit., p. 359.<br />

57 A partir da morte de <strong>Jose</strong>f Stálin 1953, para citar apenas alguns, ocorrem os seguintes eventos que podem ser<br />

relacionados com a Guerra Fria: a luta pela sua sucessão, com repercussões em todo o mundo comunista; em 17<br />

de Junho, o Exército Vermelho reprimiu um levante operário em Berlim Oriental; em 1955 os países comunistas<br />

criam o Pacto de Varsóvia em oposição à OTAN; em Bandung (Indonésia) é criado o Bloco dos países não<br />

alinhados; em 1956 revoltas operárias reconduzem Gomulka ao poder na Polônia; na Hungria, Imre Nagy dirige<br />

uma revolta contra Moscou e anuncia a retirada de seu país do Pacto de Varsóvia, Khrushev envia tanques para<br />

esmagar a revolta em Novembro; no Oriente Médio, ocorre a segunda guerra entre árabes e israelitas (Guerra de<br />

Suez); e, em 1959, Fidel Castro a frente de um movimento revolucionário toma o poder em Cuba. Cronologia da<br />

Guerra Fria. Disponível em: .<br />

Acesso em: 15/03/2011.<br />

58 Até Henrique Lott, a parcela numericamente mais significativa das Forças Armadas, a das praças, sempre<br />

ficara alijada de todos os processos, aparecendo, tão-somente, como massa de manobra, embora sofresse<br />

(igualmente com a oficialidade) as eventuais perseguições políticas. Lott passou a cortejar esse importante<br />

segmento militar, talvez, para ampliar a sua base de sustentação interna, o que de fato ocorreu. A consequência<br />

seria a politização das praças e sua entrada no jogo que tinha sido majoritariamente dos oficiais.<br />

59 A posição dos opositores de Juscelino apresentava traços golpistas sob o abrigo de algumas teses<br />

conservadoras e uma conspiração: a tese de Carlos Lacerda favorável a uma chapa única de união nacional,<br />

prejudicada com a candidatura firme de Juscelino; a emenda constitucional udenista de que o Presidente somente<br />

66


Kubitschek. O General Lott considerou o pronunciamento como falta disciplinar e exigiu a<br />

apresentação do coronel Mamede ao Exército para ser punido, o que não foi aceito nem pelo<br />

Comandante da ESG, nem tampouco pelo Chefe do Estado-Maior Geral das Forças Armadas.<br />

O Presidente Café Filho, então, alegando problema de saúde, licenciou-se da<br />

Presidência da República (que foi assumida interinamente pelo Presidente da Câmara de<br />

Deputados, Carlos Luz). Em uma tensa audiência com o Presidente Carlos Luz, no dia 10 de<br />

novembro, Lott recebeu a informação de que este, ouvido o Consultor-Geral da República,<br />

não o apoiaria na sua pretensão de punir o Coronel Jurandir de Bizarria Mamede, uma vez que<br />

ele se encontrava sob a subordinação do Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. O<br />

Ministro da Guerra, então, pediu demissão, imediatamente aceita, seguida de nomeação de<br />

novo ministro para o cargo, o general Adyr Fiúza de Castro. Ficava configurado novo ato de<br />

indisciplina, acobertado por diversos níveis hierárquicos e alcançando o próprio Presidente.<br />

Estava a caminho novo golpe 60 .<br />

Então, na noite de 10 para 11 de novembro, alguns dentre os militares mais antigos,<br />

destacando-se o general Odilio Denys, apoiados pelos comandantes de tropa, decidiram pela<br />

permanência de Lott, em desacordo com o novo Ministro, caracterizando descumprimento da<br />

ordem presidencial, golpe de Estado, ou Contra-Golpe Preventivo, conforme pensam muitos<br />

historiadores. Carlos Luz embarcou no Cruzador Tamandaré e partiu para Santos a fim de<br />

organizar a resistência, sendo hostilizado na saída da Baía da Guanabara, por disparos<br />

oriundos das baterias dos fortes sob o comando do Exército Brasileiro. O Congresso, diante<br />

do impasse, considerou Carlos Luz impedido e, em 21 de novembro, nomeou Nereu Ramos<br />

para assumir a Presidência da República; este, governou o País sob Estado de Sítio (v. Lei –<br />

Apêndice 8.5) até a posse de Juscelino Kubitschek.<br />

Esse episódio abriria feridas incuráveis nas fileiras do Exército Brasileiro e, deste, com<br />

as demais forças singulares, motivadas pelo desdobramento naval em apoio ao Presidente<br />

substituído, pelo bombardeamento de navios da esquadra pela artilharia de costa e em razão<br />

poderia ser considerado eleito com mais de 50% dos votos, inalcançável no Brasil a época, ou a votação deveria<br />

ocorrer no Congresso Nacional (indireta); a tese de Carlos Lacerda de que a diferença de 500 mil votos a favor<br />

de Juscelino correspondia ao voto dos comunistas, na ilegalidade, e, portanto não tinham valor; e uma pretensa<br />

conspiração entre João Goulart e o Presidente da Argentina Juan Domingo Perón para efetivar o apoio, em<br />

homens e armas, a fim de implementar uma República Social-Sindicalista no Brasil, contida na Carta Brandi (v.<br />

Apêndice 8.6), a qual em tudo lembrava o Plano Cohen, e que ficou provada em Inquérito Policial Militar ser<br />

falsa. Disponível em: < http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/Busca/BuscaConsultar.aspx>. Acesso em: 18/02/11.<br />

60 Conforme Almir MATOS, in Em Agosto Getúlio Ficou Só, Rio de Janeiro: Problemas Contemporâneos, 1963,<br />

p. 81, no “cofre do então chefe de polícia do Distrito Federal, Coronel Menezes Cortes, havia um plano,<br />

apreendido no dia 11 de novembro, com o seguinte despacho: ‘De acordo. Ouvido Borer, providenciar’. Era o<br />

plano de repressão a ser posto em prática no Rio, uma vez dado o golpe de novembro: 1.200 pessoas seriam<br />

presas, algumas fuziladas sumariamente; jornais que se opunham ao golpe seriam invadidos e depredados,<br />

matando-se na hora os seus principais redatores, sob pretexto de ‘resistência a prisão’”.<br />

67


dos focos de resistência na Aeronáutica, com a sublevação de diversas unidades, eventos que<br />

foram seguidos pelo esmagamento dos revoltosos e a perseguição dos sublevados, entre<br />

outras medidas, como o chamado lotteamento dos oficiais, ou seja, transferências contínuas,<br />

para unidades distantes da capital, em todo o território nacional, sem ajuda de custo.<br />

O governo que se seguiu, de Juscelino Kubitschek, manteve o posicionamento anterior<br />

de Café Filho, tanto no que tange às relações externas como nas internas, evitando conflitos<br />

com essas frentes políticas. Todavia, persistiam as insatisfações nas áreas militares,<br />

particularmente após a confirmação da permanência do General Henrique Lott no Ministério<br />

da Guerra. Para Sodré “Tratava-se, daí por diante de conquistar o governo do sr. Kubitschek,<br />

enquanto mantinha, aguerridos e em reserva, agrupamentos golpistas, sempre em posição de<br />

ameaça, como fator interno de pressão e manobra” 61 , acrescentando, diante deste quadro, que<br />

as hostilidades se voltariam contra o “Ministro da Guerra, deixando-se de lado o Presidente da<br />

República, que seria ganho por um tratamento suave, uma vez que o seu conteúdo e as forças<br />

que representava não tinham incompatibilidade alguma com o imperialismo” 62 e, pode-se<br />

aduzir, com as elites dominantes e com o populismo. Para corroborar com esse último<br />

segmento, nas eleições para o Clube Militar de 1956 foi eleita a chapa nacionalista liderada<br />

pelo general João de Segadas Viana, com o apoio de Henrique Lott, representando a<br />

aprovação militar da oficialidade do Exército para essa tendência, que se manteve até 1962 63 ,<br />

substituição que anunciaria as mudanças que estavam por vir.<br />

Aliada a essa atitude firme, legalista e intransigente com o golpismo por parte de<br />

Henrique Lott, os militares adeptos dessa tendência tiveram que se retrair, ficando restritos,<br />

segundo Werneck Sodré, às Escolas Militares, o que viria a ser “uma solução perigosa” sob o<br />

prisma ideológico, uma vez que, ocupando essas posições, “em órgãos de controle da doutrina<br />

e de formação de comandos, podia influir, e continuou de fato a influir, na mentalidade dos<br />

oficiais, em particular, e sob orientação americana, no sentido de manter viva a chama do<br />

anticomunismo” 64 .<br />

O contraponto à estabilidade ficou representado nas rebeliões militares de<br />

Jacareacanga e Aragarças, esta última ligada à tentativa de renúncia de Jânio Quadros a<br />

candidatura a Presidente da República. As duas revoltas, embora mais restritas à Aeronáutica,<br />

“apareceram como manifestações de inconformismo da parte dos elementos mais ingênuos e<br />

61 SODRÉ, op. cit., p. 366.<br />

62 Idem, p. 367.<br />

63 Em 1958 o General Justino Alves Bastos, pelos nacionalistas, derrotou Humberto de Alencar Castello Branco<br />

da Cruzada Democrática, tendo sido reeleito em 1960.<br />

64 SODRÉ, op. cit., p. 368.<br />

68


mais combativos, daqueles que, inclusive, começavam a descrer das possibilidades e da<br />

capacidade de seus próprios comandantes” 65 .<br />

A vitória de Jânio Quadros nas eleições de 1959, por intermédio de ampla coligação<br />

que incluía a UDN, levou o conservadorismo ao Poder, particularmente os militares,<br />

representados nas pessoas de Odilio Denys como Ministro da Guerra, Sylvio Heck na<br />

Marinha e Gabriel Grün Moss na Força Aérea. Segundo Werneck Sodré, nunca “existiu em<br />

nosso país dispositivo militar como aquele”, sendo que “o golpismo militar afastou, sem<br />

nenhuma exceção, sem nenhuma tolerância, de todos os comandos, de todas as funções, de<br />

todos os campos, de todas as atividades, todos os elementos que não merecessem a máxima<br />

confiança”. 66<br />

Desde que Jânio assumiu não havia espaço de manobra disponível na vertente<br />

econômica, em razão da grave situação herdada de seu antecessor. No âmbito político passou<br />

a ter sua ação restringida no Congresso Nacional, a sofrer forte reação da imprensa e dos<br />

EUA, deste último, por causa da adoção de uma política externa independente, entre outras<br />

razões, para dispor de algum trunfo que agradasse a área popular, com a qual ensaiava<br />

aproximação.<br />

Inconformado com as restrições sofridas e com uma personalidade tendente a<br />

autonomia, fato esse que aumentava as reações, Jânio “verificou que estava em uma situação<br />

difícil [...] entre a desmoralização e a renúncia” 67 . Optando pela renúncia, ainda tentou obter o<br />

apoio militar para estabelecer um regime de exceção, o que lhe foi negado pelos próprios<br />

ministros militares 68 e, posteriormente, pelo Congresso Nacional, emparedado entre manter<br />

um Presidente que, implicitamente, exigia mais poderes para governar e uma opção que todos<br />

sabiam ser inaceitável para os militares: a posse de João Goulart, Vice-Presidente da<br />

República.<br />

Efetivada a renúncia, em 25 de agosto de 1961, com o legítimo sucessor constitucional<br />

em viagem para a China, os ministros militares conseguiram aplicar novo golpe de Estado,<br />

amparados num dispositivo militar previamente trabalhado, mas não em um dispositivo<br />

político e de opinião pública, o que lhes foi fatal, inicialmente, porque as providências para<br />

censurar a imprensa foram tomadas tardiamente, permitindo uma reação por este meio,<br />

notadamente a partir do Rio Grande do Sul, onde Leonel Brizola, cunhado e correligionário<br />

65 SODRÉ, op. cit., p. 367.<br />

66 Idem, pp. 370-371.<br />

67 Ibidem, p. 371.<br />

68 Uma narrativa interessante sobre a proposta de Jânio ao ministros militares foi feita pelo Ministro Sylvio Heck<br />

a Alberto Fortunato e encontra-se em ARGOLO et al., A Direita Explosiva no Brasil, Rio de Janeiro: Mauad,<br />

1996, pp. 160-162.<br />

69


de João Goulart, estabeleceu a cadeia da legalidade e, apoiado no III Exército, opôs-se<br />

vigorosamente ao golpe, chegando quase ao enfrentamento, o que somente não ocorreu graças<br />

a atuação dos políticos, com a instituição do Parlamentarismo. Tal situação acomodou,<br />

momentaneamente, as insatisfações conservadoras.<br />

Nélson Werneck Sodré narra a participação militar no episódio:<br />

“Nos acontecimentos militares, verificara-se, e nisso estava o novo, que a massa de<br />

oficiais não se dispunha mais a acompanhar golpes de cúpula. A recusa que<br />

começou em casos isolados, e que logo se generalizou, de comandantes de unidades,<br />

apressadamente presos ou substituídos, e de grupos inteiros de oficiais, em cumprir<br />

as ordens, evidentemente ilegais, emanadas dos três ministros subversivos, criava<br />

um fato novo, que constituía perigosíssima ameaça ao aparelho militar em uso, e<br />

sempre usado para golpes brancos, repousando na cega obediência. Isto não era o<br />

mais sério, o que faria tremer a cúpula militar, incapaz de compreender esta<br />

transformação e de sentir-lhe o profundo conteúdo, estava na posição dos sargentos.<br />

Durante toda a crise, e nas três Forças Armadas, em episódios escandalosos, os<br />

sargentos, a que se conferia o direito de cega obediência, e com muito mais forte<br />

razão que aos oficiais, manifestaram a firme vontade de desobedecer, por terem<br />

entendido que obedecer, no caso, era ir contra o país e o povo.<br />

Penetraram assim, no conteúdo da obediência militar e da hierarquia militar. Foram<br />

inúmeros os episódios em que a ação concreta dos sargentos salvou a democracia<br />

brasileira, naqueles dias tristes, amargos e duvidosos”. 69<br />

E exemplifica citando uma dentre muitas atuações dos sargentos:<br />

“Ao regressar, telefonei ao Brigadeiro Passos, achando-o muito confuso ao telefone.<br />

Soube, depois, que o brigadeiro, diante da situação e da confusão entre seus oficiais<br />

resolvera tomar um avião com a família e ir embora para o Rio. Abandonou o<br />

comando. O Comandante da Base Aérea, igualmente, momentos depois, resolveu<br />

decolar num pequeno avião de treinamento, abandonando seu comando. Ficaram a<br />

5 a Zona Aérea e a Base Aérea em verdadeira confusão. Cerca das 14 horas, os<br />

esquadrões a jato, armados com munição e bombas, decidiram decolar, quando<br />

foram impedidos pelos sargentos que tomaram conta do depósito de armas,<br />

muniram-se de metralhadoras e assumiram o controle da Base. Eram mais ou menos<br />

200 sargentos. Os oficiais ficaram retidos, dentro dos prédios, também armados. [...]<br />

Encaminhei-os ao General Machado Lopes que providenciou a ida de um batalhão<br />

do exército para tomar conta da Base”. 70<br />

Como prêmio, o Comandante do III Exército foi convidado para o cargo de Ministro<br />

da Guerra, mas não o aceitou. Jango, então, começou a montar um dispositivo militar que lhe<br />

fosse favorável, o que ocorria normalmente com a designação dos ministros militares, dos<br />

comandantes militares de área, incluídos os Comandos dos Exércitos e da Amazônia, e de<br />

unidades importantes das três forças singulares.<br />

Nesse contexto, o esgarçamento do tecido militar chegara a um ponto em que a<br />

69 SODRÉ, op. cit., p. 382.<br />

70 Depoimento do Governador Brizola, em O Cruzeiro, Rio, de 2.XII.961, citado em SODRÉ, op. cit., p. 382-3.<br />

70


hierarquia e a disciplina estavam comprometidas. A substituição dos ministros militares<br />

golpistas, insustentáveis no cargo em razão das suas atitudes, e a assunção de um dispositivo<br />

favorável ao novo governo e, ainda mais, amparado no populismo e no sindicalismo,<br />

desencadearam uma conspiração permanente, amparada em estruturações políticas, militares e<br />

empresariais, com objetivos estabelecidos, estratégias e táticas que previam, até mesmo, atos<br />

de sabotagem. Aliás, esta trama, foi demonstrada por Dreifuss ao dissecar a atuação do<br />

complexo dos Institutos de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e Brasileiro de Ação<br />

Democrática (IBAD) 71 , mas que não se restringiam a eles; antes pelo contrário, estavam<br />

disseminados por toda a estrutura civil e militar do País.<br />

Os anos seguintes, que se escoaram em lenta agonia até o Movimento Militar de 31 de<br />

Março de 1964, testemunharam a maior deterioração registrada nas relações entre civis e<br />

militares. O descompasso entre as forças políticas, econômicas e sociais chegava ao máximo e<br />

os episódios da retomada do presidencialismo, por João Goulart, amparado em seu<br />

aparentemente leal “dispositivo militar”, o caminho político tomado pelas praças, com as<br />

revoltas de Brasília, dos marinheiros e fuzileiros nos navios e unidades e, em seguida, no<br />

Sindicato dos Metalúrgicos, foram os acordes finais de uma tragédia que já se fazia<br />

insustentável há muito tempo; que começara pela mais alta hierarquia e, finalmente, alcançava<br />

as suas camadas mais baixas.<br />

Evidentemente que os EUA sempre estiveram presentes e vigilantes e, conforme a<br />

situação se aproximava do seu desfecho, ainda mais presentes e vigilantes se tornavam. Desde<br />

há muito tempo apoiavam economicamente os governadores dos Estados que se opunham ao<br />

governo central (principalmente São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os mais<br />

importantes), atuavam com agentes da Central Intelligence Agency (CIA) e, às vésperas do<br />

golpe de 1964, até mesmo, uma Esquadra teve seu deslocamento planejado para as<br />

proximidades da costa brasileira na denominada Operação Brother Sam.<br />

Isto não significa que as forças da situação não estivessem recebendo os mesmos<br />

influxos externos dos movimentos esquerdistas internacionais, nem que eram exclusivamente<br />

ideológicos, entretanto, como gozavam de uma situação mais confortável, por estarem no<br />

governo e, aparentemente, a caminho de aprofundar o seu enraizamento no mesmo, tais<br />

movimentos se revestiam de menor repercussão.<br />

A anarquia civil e militar levara o País a ficar de joelhos, a ser um peão no “grande<br />

jogo” das relações internacionais. Com o 46 o Produto Interno Bruto do mundo, população<br />

71 DREYFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe.<br />

Petrópolis: Vozes, 1981.<br />

71


majoritariamente miserável e analfabeta, ainda largamente amparada na agricultura e sem<br />

capacidade industrial, possuía de grandeza, tão-somente, o seu território: o Brasil era uma<br />

vítima de si mesmo, da luta entre dois titãs – EUA e URSS – e do encontro mortal do seu<br />

atraso com as forças modernizadoras libertadas com a Revolução de 1930.<br />

Foi imerso nesse contexto que operaram aqueles “elementos mais ingênuos e mais<br />

combativos”, no dizer de Werneck Sodré, justamente aqueles que realizaram as revoltas de<br />

Aragarças e Jacareacanga, descrentes já dos seus comandantes, em ações mais radicais que<br />

aqueles costumeiros golpes de Estado. Eles eram os protagonistas “aguerridos e em reserva,<br />

agrupamentos golpistas, sempre em posição de ameaça, como fator interno de pressão e<br />

manobra” para manter o governo na linha.<br />

Eles constituem o foco principal desse trabalho e serão objeto da próxima Seção.<br />

72


4 A DIR E I T A R A DI C A L<br />

“Então eu botei os Douglas todos lá em cima voando, armados<br />

com bombas de cem libras todas elas dentro, e com ordem dos<br />

pilotos de serem utilizadas ou sobre o Exército que estava ali<br />

em frente à Ilha do Fundão, ou sobre qualquer outro alvo que<br />

eu dissesse”. 1 João Paulo Moreira Burnier<br />

Conforme explicitado na Introdução, Dreifuss, em 1964: A Conquista do Estado –<br />

Ação Política, Poder e Golpe de Classe, aponta para a possibilidade de que as ações dos<br />

radicais de direita estivessem inseridas dentre as atividades dos organizadores da reação<br />

conservadora, abrigados no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e no Instituto<br />

Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), e consubstanciadas, verbalmente, nas<br />

recomendações de Glycon de Paiva 2 um dos seus fundadores. O mesmo ocorre com a estranha<br />

coincidência que se refere ao uso das salas 1120 e 1908 do Edifício Avenida Central como<br />

depósitos do material explosivo a partir do qual teria sido preparada a bomba prevista para<br />

explodir na Exposição Soviética de 1962 3 , cujo indiciado foi o Tenente-Coronel Ardovino<br />

Barbosa do IBAD – Guanabara e Chefe do Policiamento Ostensivo da Guanabara, em nome<br />

de quem as mesmas estavam alugadas; ou quando trata especificamente dos extremistas de<br />

direita 4 ; ou, ainda, ao mencionar a existência de uma subseção de sabotagem, no<br />

Departamento de Informações do IPES – São Paulo 5 ; fatos esses, que apesar dos indícios que<br />

contém, não comprovam ações efetivas ou que tais elementos estruturais não constituiriam<br />

mera figuração.<br />

Segundo a mesma publicação, após a sua passagem para a reserva 6 , Golbery do Couto<br />

1 BURNIER, João Paulo Moreira. João Paulo Moreira Burnier (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC,<br />

2005. (Documento digitalizado. Disponível em:< http://www.fgv.br/cpdoc/historiaoral/arq/Entrevista633.pdf>,<br />

p. 34 do arq. pdf. Acesso em: 10/02/2011.) Em depoimento sobre a defesa do Galeão, na resistência ao putsch de<br />

Henrique Lott.<br />

2 V. p. 10 e 11.<br />

3 DREIFUSS, 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe, p. 367.<br />

4 Idem, p. 370-371.<br />

5 DREIFUSS, ibidem, p. 380, embora não se refira a uma estrutura similar no complexo IPES/ IBAD do Rio de<br />

Janeiro é provável que este a possuísse, o que é corroborado pelo uso das salas do Edifício da Avenida Central<br />

pelo IBAD/ RJ, de onde saíram os explosivos para o atentado à Exposição Soviética.<br />

6 Golbery, no curto governo de Jânio Quadros, foi nomeado Chefe de Gabinete da Secretaria Geral do Conselho<br />

de Segurança Nacional, onde já havia servido como Capitão. Após a renúncia de Jânio, cf. Elio GASPARI, em A<br />

Ditadura Derrotada, São Paulo: Companhia das Letras, 2003, Golbery redigiu o Manifesto dos Ministros


e Silva foi convidado para ser o chefe executivo das atividades do complexo IPES/ IBAD, a<br />

quem estavam subordinadas todas as ações desenvolvidas por estes Institutos. Golbery,<br />

anteriormente, havia desenvolvido conhecimento de caráter geopolítico e de inteligência<br />

estratégica quando integrou o Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG),<br />

operacional na Força Expedicionária Brasileira (FEB), além, naturalmente, do militar.<br />

Portanto, não é absurda a hipótese de que tenha preparado o IPES/ IBAD para atuar em<br />

consonância com as recomendações dos seus fundadores, no sentido de utilizar o radicalismo<br />

político como instrumento de pressão, em fase intermediária da tomada do poder. Conhecedor<br />

das atividades de Inteligência, sabia da importância do princípio da estanqueidade nessas<br />

operações, de forma a não comprometer o todo das ações políticas, econômicas, militares,<br />

psicossociais, entre outras, que eram conduzidas coordenadamente, conforme demonstrado<br />

por Dreifuss. Essa assertiva é corroborada pela conclusão do Inquérito Policial que solucionou<br />

o atentado contra a Exposição Soviética, a qual alcançou o IBAD, levando a sua proscrição<br />

mais adiante, mas não o IPES, nem os autores da ação 7 , tornando-se o Tenente-Coronel<br />

Ardovino Barbosa, da Polícia Militar da Guanabara, aparentemente, um bode expiatório, para<br />

aplacar os ânimos dos que exigiam uma apuração.<br />

Entretanto, tais fatos ocorreram em 1962 e neles já estavam envolvidos alguns dos<br />

elementos do denominado grupo secreto 8 e outros mais que serão objeto da presente Seção 4,<br />

os quais já tinham perpetrado ações extremistas e que, nessa fase do processo político,<br />

somaram-se aos esforços conservadores, com a sua expertise.<br />

Por isso, faz-se necessário observar que as operações realizadas durante o período<br />

compreendido neste estudo desenvolveram-se em duas fases. Em uma primeira fase, a partir<br />

do suicídio de Getúlio Vargas, prosseguindo até o final do governo de Juscelino Kubitschek,<br />

estão inseridas, entre outras, a tentativa de golpe contra a posse de Juscelino, as resistências<br />

ao Golpe Preventivo de Lott, as Revoltas de Jacareacanga e Aragarças e o planejamento de<br />

atentados contra instalações e autoridades, entre as quais, o esquema articulado para<br />

assassinar o próprio Lott, por intermédio de franco-atiradores, no ano seguinte ao Putsch de<br />

novembro (isto é, 1956), durante solenidade na qual ele seria homenageado e receberia, como<br />

Militares contra a posse de João Goulart. A derrota da manobra pela Campanha da Legalidade levou-o a pedir<br />

sua passagem para a reserva, no posto de Coronel, no final de 1961, após ter sido transferido para a Paraíba.<br />

7 Cf. José Amaral ARGOLO et al., em A Direita Explosiva no Brasil, Rio de Janeiro: Mauad, 1996, foram<br />

indiciados pelo juiz Eliezer Rosa, da 8 a Vara Criminal: coronel-aviador José Chaves Lameirão, major do<br />

Exército Roberto Godoy Moreira e os civis Ronald James Watters, Nestor Ferreira Souza e Paulo Brissac de<br />

Freitas. Nenhum foi condenado.<br />

8 Nome dado a um dos grupos de militantes radicais de direita por ARGOLO et al., em A Direita Explosiva no<br />

Brasil, Rio de Janeiro: Mauad, 1996, que incluía participantes das três forças singulares nas ações perpetradas a<br />

partir da resistência ao putsch do general Henrique Lott, Jacareacanga, Aragarças, entre outras, e que se<br />

aproximaram por suas convicções e atuações naqueles episódios históricos. Com a adesão de civis e, até mesmo<br />

estrangeiros, teriam ação terrorista destacada após 1964.<br />

74


de fato recebeu, uma espada de ouro, ofertada por lideranças populistas e sindicais. O governo<br />

Jânio Quadros, por ser identificado com o conservadorismo, apesar da atitude progressista no<br />

campo externo, proporcionou um interregno nas atividades desses grupos, ao mesmo tempo<br />

em que possibilitou uma nova e mais articulada atividade na fase seguinte, então, envolvendo<br />

a conspiração contra João Goulart, que se insere no quadro mais amplo da resistência<br />

conservadora.<br />

Conforme destacado na Seção 3, isso representava o desaguadouro de uma lenta,<br />

contínua e perseverante corrente de pensamento que admitia que o Brasil se encontrava diante<br />

de uma ameaça de grandes proporções, capaz de alterar o establishment, para torná-lo,<br />

inicialmente, uma república sindicalista, e, posteriormente, comunista, situação contra a qual<br />

se insurgiam os grupos conservadores e onde estavam inseridos os radicais de direita, os quais<br />

travavam uma luta feroz, tanto na surdina como às claras, contra os adversários de esquerda,<br />

na preparação do embate final que, ambos sabiam, não tardaria a acontecer.<br />

Neste contexto, deve-se considerar o papel do Exército Brasileiro (como centro de<br />

gravidade) no modelo moderador, atividade que, pelas suas características intrínsecas,<br />

apontadas por Alfred Stepan e outros pesquisadores, fazia-o protagonizar, quase que com<br />

exclusividade, o intervencionismo no Estado Brasileiro, conforme os rígidos padrões do<br />

citado modelo (dentre os quais não estavam incluídas ações radicais ou permanência no<br />

Poder), deixando para as demais forças singulares um papel de coadjuvância.<br />

Também, é lícito considerar que a neutralidade do Exército, em uma conjuntura<br />

política tendente à esquerda, representava uma espécie de derrota tática para o<br />

conservadorismo, uma vez que esse posicionamento favorecia a continuidade dessa inclinação<br />

e, em consequência, a estratégia da permanência e aprofundamento do Poder da esquerda.<br />

Nelson Werneck Sodré dizia a propósito, que a missão das Forças Armadas deveria ser a de<br />

“assegurar ao país as condições para realizar-se como nação”, “assegurar as instituições<br />

democráticas”, ou seja, não interferir no processo político. Em a História Militar do Brasil,<br />

obra publicada em 1965, ele explica isso:<br />

“o processo da Revolução Brasileira já atingiu o nível e a etapa que nos permite<br />

verificar claramente a impossibilidade de realizá-lo por uma quartelada, como a<br />

impossibilidade de impedi-lo por uma quartelada. Mesmo porque nada tem de<br />

conspirativo. Assim o militar não representa, no Brasil, a vanguarda da revolução,<br />

em seu sentido sociológico, e as ações isoladas que estão ligadas a essa compreensão<br />

errônea antes distanciam do processo os seus participantes do que os integram nele.<br />

As Forças Armadas ajudarão a cumprir o processo da Revolução Brasileira na<br />

medida mesmo que se conservarem fiéis à sua missão específica, em que<br />

funcionarem como tais, e não fora das suas obrigações normais.<br />

[...] Haverá uma hierarquia mais sólida, uma ordem mais estável, uma subordinação<br />

mais consciente, na medida em que as Forças Armadas completem a sua<br />

transformação em instituições nacionais. Com a aceitação plena de que só é nacional<br />

75


o que é popular”. 9<br />

Não surpreende, portanto, que as ações dos grupos conservadores e radicais de direita<br />

contra o status quo tenham recrudescido nas duas fases já apontadas, coincidentes com a<br />

verdade intrínseca enunciada por Werneck Sodré, exacerbada pela percepção de perda da<br />

capacidade do Exército Brasileiro no sentido de atuar como moderador, entre outros motivos,<br />

por sua neutralidade ou inclinação em direção ao populismo, fato que se tornava verificável,<br />

na ótica daqueles grupos, por exemplo, com a atitude legalista de Lott, seu apoio à posse e na<br />

sustentação do governo de Juscelino e, mais tarde, do Ministro da Guerra e dos Comandantes<br />

Militares de área ao governo de João Goulart, o denominado “dispositivo militar”, ambos, na<br />

ótica conservadora e radical, identificados com os comunistas. E isso tem tudo a ver com a<br />

primeira assertiva da hipótese 10 deste estudo.<br />

Por essa razão e porque o poder estatal (ou militar) nunca consegue preencher todos os<br />

espaços do espectro político, restava, aos demais atores e seus elementos estruturais que<br />

estivessem fora do centro gravitacional do Exército, procurar nichos, onde pudessem<br />

explicitar suas ideias, maximizar poder e influência, exercer suas resistências; enfim,<br />

compensar a neutralidade ou inclinação do centro de gravidade à esquerda.<br />

Foi o caso, por exemplo, da participação do Brigadeiro Eduardo Gomes dentro e fora<br />

da Força Aérea Brasileira (FAB), das suas múltiplas alianças – inclusive com Carlos Lacerda,<br />

seu vizinho no Edifício Cidade de Salvador, na Praia do Flamengo – e da sua posição em<br />

relação às ações dos radicais da sua Força, das quais era conhecedor. Excluído do centro de<br />

gravidade do modelo moderador (no Exército Brasileiro) buscava ampliar sua atuação por<br />

todos os meios ao seu alcance e, dessa forma, proporcionar relevância à FAB e a si mesmo.<br />

9 Nelson Werneck SODRÉ, em A História Militar do Brasil, pp. 408 e 410.<br />

10 De que: “No período entre 1954 e 1964, os segmentos radicais da direita, civil e militar, atuaram como<br />

vanguarda para contrarrestar a neutralidade ou aparente inclinação do Exército Brasileiro (centro de<br />

gravidade do modelo moderador) à esquerda; a pretensa comunização do País e o “sistema”; dessa forma<br />

contribuindo para fragilizar as relações entre civis e militares, e, por consequência, a segurança e a defesa<br />

nacionais”. Sobre a hipótese de trabalho desta pesquisa, vale registrar que se considera difícil estabelecer<br />

critérios isentos para definir a verdade dos fatos ocorridos, dependente que é da narrativa dos protagonistas,<br />

todos envolvidos pela emotividade oriunda das intensas clivagens a que estava submetida a sociedade brasileira,<br />

ocasionando que um mesmo fato tenha duas ou mais versões. Por exemplo, o putsch desencadeado pelo general<br />

Lott: consistiu na defesa da legalidade que se encontrava ameaçada pelos golpistas conservadores e radicais de<br />

direita? (portanto era um contra-golpe, versão mais aceita pela História); ou era um golpe preparado com frieza e<br />

antecedência? (como afirmam os radicais e conservadores). Por não estar na finalidade deste trabalho estabelecer<br />

a verdade histórica, atividade para historiadores, a hipótese acima usa os termos aparente e pretensas, porque,<br />

observou-se, que a realidade dos fatos privilegiou a narrativa dos protagonistas da direita radical e do<br />

conservadorismo em geral. Dessa forma a hipótese será testada sob a ótica das percepções desses protagonistas e<br />

ocorrerá pelo levantamento de indícios obtidos de casos específicos que denotem que as afirmativas constantes<br />

nos argumentos têm correspondência com os eventos ocorridos. A confirmação da validade ocorrerá se os<br />

objetivos das ações realizadas visaram contrarrestar: aquilo que é percebido como neutralidade ou inclinação do<br />

Exército Brasileiro à esquerda; a comunização e o sistema (como a corrupção); e não se alcançaram sucesso.<br />

76


Tal paradigma foi acompanhado por inúmeros personagens em diversas estruturas,<br />

entre as quais se insere o complexo IPES/ IBAD, e inclui os grupos objetos deste estudo.<br />

Argolo et al., referindo-se ao permanente estado de rebeldia da parcela de oficiais radicais,<br />

explicita que “a oficialidade da Força Aérea Brasileira exerceu singular capacidade de<br />

pressão: seja sob a inspiração de Eduardo Gomes (o respeitado ‘tenente dos Dezoito do<br />

Forte’), ou em virtude do esforço para a libertação da influência do Elefante Verde” 11 . Ora, se<br />

essa influência ocorresse de forma congruente com os propósitos dos grupos radicais e<br />

conservadores, para que exercer pressão, ou libertar-se dela?<br />

A segunda assertiva desta pesquisa diz respeito à pretensa comunização do País, tema<br />

que já foi abordado em diversos subtópicos da mesma, e ao qual, ainda, recorrer-se-á. Ela<br />

constitui o elo de ligação que se comunica tanto com a primeira assertiva da hipótese como<br />

com a terceira, que trata da inconformidade dos elementos radicais de direita contra o<br />

“sistema”, noção que será melhor explicitada adiante para esclarecer a intensidade e a<br />

dinâmica dessa motivação nas ações dos grupos radicais e que, somada às anteriores, facilitará<br />

a compreensão da primeira parte do enunciado. A segunda parte, que trata das consequências,<br />

para as relações civis e militares, a segurança e a defesa, será objeto da próxima Seção.<br />

Para Oliveiros Silva Ferreira, então militante socialista (democrático), em As Forças<br />

Armadas e o Desafio da Revolução 12 , coletânea de artigos publicados em O Estado de S.<br />

Paulo entre 1962 e 1963, o sistema dizia respeito à apropriação das forças políticas,<br />

econômicas e sociais pelo Estado brasileiro, por meio dos seus “príncipes” (elites), cuja ação<br />

consistia na supressão da autenticidade da classe operária e dos sindicatos, bem como na<br />

incapacidade da indústria, do comércio, do mundo econômico e financeiro em trazer, por si<br />

mesmo, o desenvolvimento econômico necessário, que, por fim, transformou essas forças<br />

vivas da nação em objetos, retirando-lhes a condição de sujeitos, tornando-os<br />

simultaneamente acorrentados e inconscientes.<br />

Segundo Oliveiros Ferreira, isso ocorreu por diversas vias, a partir de 1930. É o caso<br />

da introdução das leis trabalhistas e da organização sindical, originadas durante o Estado<br />

Novo, “tentativa de planejar as relações sociais mediante o controle das relações entre patrões<br />

e empregados” 13 , dessa forma impedindo “novos comportamentos se tornarem conscientes e<br />

11 ARGOLO et al., A Direita Explosiva no Brasil, p. 63.<br />

12 FERREIRA, Oliveiros Silva. As Forças Armadas e o Desafio da Revolução. Rio de Janeiro: GRD, 1964.<br />

(Edição digital, sem numeração de páginas. Disponível em: <br />

Acesso em: 10/02/ 2011).<br />

13 DREIFUSS, em 1964: A Conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe, p. 24, acrescenta que<br />

“o estabelecimento de um salário mínimo em 1939 permitiu um nivelamento de salário para a força de trabalho<br />

urbana pelo grau mais baixo possível da escala, isto é, a nível de subsistência. Dada a relativa escassez de mãode-obra<br />

qualificada e semiqualificada, o estabelecimento de um salário mínimo impediu que as forças de<br />

77


de elaborarem novas formas de associação entre os homens”, característica de regimes<br />

totalitários 14 .<br />

Ocorreu, também, na incapacidade dos extratos superiores das classes econômicas e<br />

socialmente dominantes em alcançar o desenvolvimento necessário, transferindo para a classe<br />

política – governamental – a responsabilidade em regular e adaptar esse descompasso à<br />

realidade nacional, situação agravada pela tendência da elite econômica se orientar pelo<br />

laissez-faire e a elite política pela intervenção e a regulação – o caminho de um Estado<br />

planificado.<br />

O sistema significava, também, a corrupção endêmica e o peleguismo; este último,<br />

criador de “uma racionalidade quase burocrática dos comportamentos coletivos” 15 , induzindo<br />

“uma relativa paz social” 16 , mas que “tendia a longo termo a impedir a livre concorrência com<br />

todas as suas conseqüências para o desenvolvimento do país” 17 , e com isso “o sistema social<br />

por assim dizer estagnou enquanto processo vital e livre, ainda que desordenado” 18 . Os<br />

sindicatos, dessa forma foram transformados em entes burocráticos e a classe operária em<br />

“quase-funcionários públicos” 19 , permitindo que:<br />

“[...] no plano do Estado, os interesses da liderança operária se identificassem com<br />

os daqueles que sustentavam as estruturas políticas globais da sociedade, vale dizer<br />

os proprietários fundiários, os setores ligados ao comércio de exportação de<br />

produtos primários, os industriais e os banqueiros — sem contar os homens que<br />

controlavam o aparelho do Estado” 20 .<br />

Oliveiros Ferreira complementa a sua interpretação de sistema com um conjunto de<br />

elementos dinâmicos que abrangem uma série de condições da Política brasileira, que ele<br />

chama de jogo, o qual, entre muitas outras idiossincrasias, incluía as rivalidades destrutivas<br />

entre os partidos políticos; “o jogo suave das portas sempre abertas à aproximação com o<br />

Poder — em suma, institucionalizando a corrupção” 21 ; a ausência de requisitos industriais<br />

mínimos para sustentar um Exército estruturado, “consistindo em armar-se com o que a<br />

técnica militar tem de já obsoleto” 22 ; na política internacional, a transformação do País em<br />

mera peça (peão) da Guerra Fria, conclusão que serviria para excluir a interferência do<br />

mercado estabelecessem salários de equilíbrio em níveis mais altos o que tenderia a inibir uma expansão mais<br />

fácil da industrialização capitalista”.<br />

14 Oliveiros S. FERREIRA, op. cit.<br />

15 Idem.<br />

16 Ibidem.<br />

17 Ib.<br />

18 Ib.<br />

19 Ib.<br />

20 Ib.<br />

21 Ib.<br />

22 Ib.<br />

78


Partido Comunista Brasileiro (PCB) na condução da revolução brasileira por ser “Expressão<br />

de um Estado estrangeiro, ele tenderá sempre a encaminhar a revolução para os rumos que a<br />

esse Estado interessarem, e não para aqueles que ao Brasil convierem”; e, ainda no âmbito<br />

internacional, por ser vítima das imposições das forças econômicas internacionais que<br />

impediam o livre desenvolvimento de nossa economia 23 .<br />

Por todos estes fatores, para Oliveiros S. Ferreira, a sociedade foi privada dos seus<br />

principais elementos transformadores, inclusive aqueles oriundos do sistema social, o mais<br />

importante para impulsionar as mudanças:<br />

autor:<br />

Prossegue o autor:<br />

“Nesse quadro, o Estado foi a única formação social capaz de assumir a hegemonia<br />

e a liderança do processo, transformando-se de Poder Soberano, que era, em Patrão e<br />

Sócio da Indústria, do Comércio, das Finanças e, indiretamente, da Agricultura —<br />

Bonapartismo institucional em que o Estado deixa de ser a expressão de<br />

determinados grupos sociais com interesses facilmente identificáveis, para assumir o<br />

papel de sujeito, que faz os grupos sociais que o criaram agirem como criaturas.<br />

[...] A isso acresce que a estatização dos meios de produção e distribuição das<br />

riquezas, processada de forma orgíaca, perseguia também objetivos personalizáveis:<br />

e a classe operária jungida ao carro do Estado, identificada por suas organizações<br />

com os interesses da ‘classe política’, transformou-se também em ‘gado eleitoral do<br />

Estado’, na magistral expressão de Engels ao comentar as nacionalizações de<br />

Bismarck. ‘Gado eleitoral’ que não é passivo, como se poderia supor, pois votando,<br />

exige a prestação de serviço dos homens que compõem o Estado e que reclamam seu<br />

voto, a qual se traduz na burocratização dos serviços e na produtividade marginal<br />

das empresas estatais”. 24<br />

“Destarte, o setor estatal da economia brasileira, ao invés de aproveitar-se dos<br />

privilégios que lhe eram concedidos em nome do ‘nacionalismo’ para sobrepujar o<br />

setor privado, quer em produtividade, quer em qualidade, passou a ser a negação<br />

mesma da racionalidade que deve presidir a empresa econômica. Com isso, o<br />

‘nacionalismo’ — versão brasileira do estatismo — dos burocratas e dos comunistas<br />

que a eles se associam, derrotou Lênin e toda a concepção marxista do domínio e<br />

controle pelo Estado da produção e distribuição da riqueza; com efeito, o fundador<br />

do Estado soviético havia escrito em 1921: ‘A missão histórica do proletariado<br />

consiste em organizar a produção. Se não produzirmos mais e melhor que o<br />

capitalismo é capaz de fazer em sua anarquia econômica, não teremos nada de<br />

melhor a fazer senão nos retirar da cena história’.” 25<br />

Sob essas condições, geradoras de contradições intrínsecas ao sistema, acrescenta o<br />

23 Oliveiros S. FERREIRA, op. cit.<br />

24 Idem.<br />

25 Ibidem.<br />

“Assim, quando todos os interesses se interligam no plano do Estado: Agricultura,<br />

Comércio, Indústria, Finanças e Liderança Sindical, nesse ‘sistema’ não há<br />

possibilidade, no quadro da Constituição escrita, de uma ação renovadora da vida<br />

social para torná-la mais livre, mais agônica, mais criadora, mais autêntica. Não são<br />

79


os trabalhadores rurais que se organizam para reclamar a melhor condição de vida<br />

que a situação do campo impõe e que o desenvolvimento do país reclama — é o<br />

Estado que pretende realizar as reformas para aumentar o poder político dos que o<br />

representam; não são os trabalhadores urbanos que reclamam, espontânea e<br />

organizadamente, os direitos inerentes à condição humana — são os ‘pelegos’ que<br />

negociam com os patrões para aumentar seu poder pessoal; não são os partidos,<br />

enquanto expressão das muitas sociedades particulares que compõem a sociedade<br />

global, que oferecem sua mensagem parcial ou totalizadora à consciência da Nação<br />

— são os líderes que estabelecem, em conchavos com o Poder, como se fará para<br />

perpetuar seu domínio eleitoral sobre a sociedade; não são os fazendeiros e os<br />

industriais que elaboram a sua concepção do processo e dizem, planejadamente,<br />

como se deve dar o desenvolvimento — é o Estado, e a seus planos todos se<br />

submetem, presos que estão aos financiamentos do BNDE, ou ao redesconto do<br />

Banco do Brasil.” 26<br />

Naqueles idos de 1962-1963, segundo Oliveiros S. Ferreira, uma Revolução estava em<br />

marcha e os comunistas exerciam papel de destaque:<br />

Daí:<br />

26 Oliveiros S. FERREIRA, op. cit.<br />

27 Idem.<br />

“Importa assinalar que o Partido Comunista entrou a fazer parte do ‘sistema’ pela<br />

via dos sindicatos e que ao entrincheirar-se na cidadela inexpugnável do Imposto<br />

Sindical, fonte de corrupção e de burocratização das organizações operárias, ligou-se<br />

aos interesses mais retrógrados da sociedade brasileira, os da produtividade marginal<br />

na agricultura e na indústria, os quais sobrevivem graças ao fato de os setores mais<br />

produtivos aproveitarem-se dessa marginalidade, que fixa os preços, para acumular<br />

em proporções não imaginadas pelos teóricos da economia.<br />

[...]<br />

“Esse ‘sistema’ — do qual o Partido Comunista é parte integrante — aparentemente<br />

indestrutível, tal a harmonia de interesses contraditórios, tem dois pontos fracos: a<br />

corrupção, que se transformou num processo institucionalizado de espoliar a Nação,<br />

e a permeabilidade ao comunismo, isto é, aos agentes de uma potência estrangeira,<br />

os quais procuram fazer do Brasil mero peão no sinistro jogo da ‘guerra fria’. O<br />

primeiro, sensibilizando a longo prazo a consciência nacional, desacredita o Estado e<br />

consequentemente o ‘sistema’; o segundo colocando em risco a segurança nacional,<br />

toca fundo na consciência das Forças Armadas. O Povo — a imensa maioria dos que<br />

não participam do ‘sistema’ e da corrupção espoliativa — e as Forças Armadas,<br />

pelos motivos que procuro explicar nos artigos que se lerão a seguir, são as únicas<br />

forças capazes de, unidas numa mesma organização política, vencer a corrupção e a<br />

inépcia, e, realizando a libertação econômica e social do país — isto é, derrotando o<br />

privilégio e tornando mais livre a vida social —, impedir a subordinação do Brasil<br />

aos interesses da luta internacional. Se esta união não se der, se preconceitos e<br />

vacilações acomodatícias impedirem o ‘capitão do povo’ de dar ao Povo um<br />

movimento novo, o ‘sistema’ triunfará e a Nação deixará de cumprir o destino que é<br />

seu”. 27<br />

“A História tem mostrado que o ‘único partido capaz de tomar o Poder é aquele que<br />

tem a coragem de lançar a palavra de ordem mais radical e de tirar dessa todas as<br />

conseqüências’. Em outras palavras, vencerá aquela organização que tiver maior<br />

poder — atual, ou virtual — maior capacidade de mobilização das massas e, o que é<br />

essencial, saiba levar o povo a identificar como suas a esperança da Revolução e as<br />

palavras de ordem mais radicais da frente única, e como da outra organização todas<br />

as hesitações, todos os erros, todos os ‘desvios’ e ‘crimes’ cometidos pela<br />

80


Revolução. Decorre daí, na atual conjuntura brasileira, que a hegemonia do processo<br />

revolucionário pertencerá necessariamente ao Partido Comunista se a ele não se<br />

contrapuser uma organização que tenha uma concepção do processo e se disponha a<br />

ousar”. 28<br />

Sobre esse aspecto, da organização e penetração do Partido Comunista e da revolução<br />

em marcha, Oliveiros Ferreira concorda com Nélson Werneck Sodré. Para Ferreira, a “sua”<br />

esquerda socialista, que considerava autêntica, vaticina:<br />

“Temendo morrer à mão dos ‘gorilas’, a esquerda ‘autêntica’ alia-se aos comunistas.<br />

Com o que se suicida em vida, entregando ao carrasco as armas que são seu pendão<br />

de glórias: sua integridade subjetiva na ação e sua honestidade de propósitos; sua<br />

dedicação sem par à causa do progresso social e da liberdade humana e, por que não<br />

dizê-lo?, sua ingenuidade”. 29<br />

Diante desse quadro, de inclinação em direção à esquerda totalitária, conforme o<br />

reconhecimento de protagonistas da esquerda democrática e da própria esquerda totalitária,<br />

estruturaram-se as resistências, aquelas sobre as quais nos fala Foucault, em redes obedientes<br />

à Lei de Newton das ações e reações, umas mais moderadas e outras mais radicais, visando à<br />

manutenção da liberdade conforme era conhecida e decantada.<br />

Por isso, na presente Seção pretende-se apontar e explicitar:<br />

a) Quais as inspirações que nortearam a Direita Radical?<br />

b) Quais os indícios de neutralidade ou inclinação do Exército Brasileiro à esquerda,<br />

de aprofundamento da comunização do País ou de deterioração do “sistema”?<br />

c) Como essas frações da direita radical se estruturaram para contrarrestar essas<br />

tendências percebidas, ou seja, como atuaram como mecanismo compensatório?<br />

d) Quais os seus objetivos?<br />

e) Se os atos praticados pela direita radical entre 1954 e 1964 validam a primeira parte<br />

da hipótese de trabalho deste estudo.<br />

As influências das ações da direita radical para as relações entre civis e militares e para<br />

a segurança e a defesa nacionais, entre 1954 e 1964, serão abordadas na próxima Seção.<br />

4.1 INSPIRAÇÕES PARA O RADICALISMO DE DIREITA<br />

Nesse subtópico as inspirações motivadoras para as ações dos grupos radicais de<br />

direita serão divididas em três componentes principais: a primeira delas de caráter externo,<br />

28 Oliveiros S. FERREIRA, op. cit.<br />

29 Idem.<br />

81


decorrente do contexto da Guerra Fria com todas as suas influências e constrangimentos, a<br />

qual vem sendo tratada ao longo deste estudo e continuará a ser apontada nos momentos<br />

apropriados, ressaltando-se o seu ápice com a vitória dos revolucionários cubanos, em janeiro<br />

de 1959; outra, orientada pelo estímulo de atuação compensatória a qualquer indício, na<br />

percepção dos radicais de direita, de tendência sistêmica à esquerda, particularmente sob a<br />

égide comunista, e, ainda, originária do inconformismo com o próprio sistema,<br />

nomeadamente a corrupção, conforme apresentados anteriormente; e, finalmente, uma<br />

percepção das componentes histórica, política, sociológica e militar, que alimentavam a<br />

tendência anterior e serão abordadas com maior detalhamento a seguir.<br />

Para desvelar as raízes dessas influências que exacerbavam a componente central das<br />

ações que nortearam a atuação da direita radical do Brasil entre 1954 e 1964, torna-se<br />

necessário um esforço na coleta de informações que ainda são esparsas e podem ser<br />

encontradas em poucas fontes, embora seja conhecida a raiz ideológica comum às ações dos<br />

radicais, o anticomunismo, cujas origens, antes de qualquer outra influência, apresentavam<br />

conteúdo fortemente amparado na história pregressa do País, mas tinham muito a ver com o<br />

seu prognóstico futuro.<br />

Uma primeira pista pode ser encontrada no depoimento de Henrique Couto Ferreira<br />

Mello 30 , integrante destacado de um primeiro instante de atuação dos grupos radicais,<br />

particularmente contra Lott, ao se referir à influência exercida pelo Clube da Lanterna que<br />

funcionava na casa do, então, jornalista Fidélis dos Santos Amaral Neto e tinha como um de<br />

seus mais destacados líderes o Deputado Federal Carlos Lacerda. “A gente enxergava o<br />

Lacerda como o salvador da Pátria”, infere-se, contra o comunismo, a corrupção e o sistema 31 .<br />

A idéia de “salvar a pátria” ou “salvar o Brasil” era claramente integralista. Amaral Neto, por<br />

exemplo, havia labutado, de 1945 até 1949, como jornalista no Correio da Noite, dirigido por<br />

Dom Hélder Câmara, ainda na sua fase conservadora (integralista) 32 .<br />

De acordo com Sérgio Lamarão 33 , o Clube da Lanterna havia sido fundado no Rio de<br />

30<br />

José Amaral ARGOLO et al., em Dos Quartéis à Espionagem: Caminhos e Desvios do Poder Militar, Rio de<br />

Janeiro: Mauad, 2004. Depoimento p. 15-55.<br />

31<br />

Nas palavras de Henrique Mello “A Pátria está em perigo, nós temos que salvar a Pátria”. A ameaça<br />

identificada era, como sempre, o comunismo.<br />

32<br />

A narração integralista da constituição histórica do Brasil mostrava a ausência dos ideais de pátria, nação e<br />

soberania no seio do seu povo, isso, em função da fraqueza do Estado, da inadequação das instituições políticas,<br />

da divisão do povo e, por consequência, da falta de uma unidade nacional, entre outras. “Salvar a Pátria”, além<br />

das ameaças externas (comunismo), significava salvá-la de si mesma, da sua herança, por isso, propunha a<br />

construção de uma nova nação. O integralismo chegou a ter amplo apoio popular. Para maiores informações ver<br />

Miguel REALE, ABC do Integralismo, Rio de Janeiro: José Olympio, 1935; e Plínio SALGADO, O que é o<br />

Integralismo, Rio de Janeiro: Schmidt Editora, 1933.<br />

33<br />

LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. “Clube da Lanterna”, em Dicionário Histórico e Biográfico<br />

Brasileiro, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC). 2. ed. Rio de<br />

Janeiro: FGV, 2001, p. 1378.<br />

82


Janeiro, por Carlos Lacerda, em 28 de agosto de 1953, para combater o governo do Presidente<br />

Getúlio Vargas. Lacerda era um dos ideólogos mais significativos para os radicais de direita,<br />

o que pode ser confirmado pela unanimidade dos depoimentos encontrados em A Direita<br />

Explosiva no Brasil, Dos Quartéis à Espionagem: Caminhos e Desvios do Poder Militar ou,<br />

ainda, no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.<br />

O Clube da Lanterna<br />

“Congregava diversos parlamentares, principalmente da União Democrática<br />

Nacional (UDN), maior partido da oposição. Seu órgão oficial era a revista<br />

Maquis 34 ; o diário Tribuna da Imprensa, de propriedade de Lacerda, também dava<br />

cobertura às suas atividades. Carlos Lacerda era o presidente de honra da<br />

organização, o jornalista Fidélis Amaral Neto, seu presidente efetivo, e Alcides<br />

Carneiro, seu orador oficial. A primeira reunião oficial do clube realizou-se na sede<br />

da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em 19 de maio de 1954. Nela foi<br />

proclamada a finalidade imediata da organização: [...] votar ‘nos bons candidatos<br />

que estão combatendo a oligarquia de Getúlio’.<br />

[...]<br />

Em agosto de 1954, o clube — como toda a oposição civil e militar a Vargas —<br />

conferiu grande importância ao chamado atentado da Toneleros, ocorrido no dia 5<br />

daquele mês, no qual foi assassinado o major-aviador Rubens Vaz e saiu ferido<br />

Carlos Lacerda. [...] No dia 19, o Clube da Lanterna dirigiu um apelo ao ministro da<br />

Guerra, Euclides Zenóbio da Costa, para que as forças armadas promovessem a<br />

renúncia do presidente. A crise teve um desfecho dramático, com o suicídio de<br />

Vargas em 24 de agosto”. 35<br />

Ainda de acordo com Lamarão, a organização apoiou diversos candidatos dos partidos<br />

de oposição ao populismo nas eleições legislativas de 3 de outubro de 1954, em sua grande<br />

maioria da UDN, sendo que, no Distrito Federal, promoveu os candidatos da chamada<br />

Aliança Popular contra o Roubo e o Golpe 36 , elegendo Carlos Lacerda, como o deputado<br />

federal mais votado. Em 1955, apoiou o general Juarez Távora, do grupo de Eduardo Gomes,<br />

e se opôs às candidaturas de Juscelino Kubitschek e João Goulart às eleições presidenciais de<br />

outubro. Ao se aproximar a definição do pleito a favor de Juscelino e Goulart, a 25 de<br />

outubro, o vereador Wilson Leite Passos, ligado ao Clube da Lanterna, leu na Câmara de<br />

Vereadores do Distrito Federal um manifesto da organização considerado um atentado contra<br />

34 Maquis é uma zona de mato muito densa da costa mediterrânea composta por arbustos resistentes<br />

remanescentes de plantações em solos degradados. Inspirou e deu nome à resistência francesa contra a<br />

dominação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial. Algumas capas dessa publicação podem ser<br />

encontradas nos Apêndices 8.8 e 8.9.<br />

35 LAMARÃO, op. cit. pp. 1378-79.<br />

36 Essa organização de caráter conservador, mormente abrigada pela UDN, tinha por sustentáculo uma tendência<br />

crescente na sociedade brasileira em direção a um moralismo, que tinha duas vertentes: uma de moralizar o País<br />

como um todo, por considerá-lo corrompido, e outra de submeter a solução de todos os problemas nacionais a<br />

uma questão moral, de estabelecimento de valores, naturalmente aqueles esposados pelos seus mentores e contra<br />

as mazelas do populismo. Maiores informações sobre o tema podem ser encontrados em “O Moralismo e a<br />

Alienação das Classes Médias”, Republicado em Simon Schwartzman, editor, O Pensamento Nacionalista e os<br />

" Cadernos de Nosso Tempo", Brasília: Câmara dos Deputados e Biblioteca do Pensamento Brasileiro, 1981, pp.<br />

32-38. Disponível em:http://www.schwartzman.org.br/simon/moralismo.htm>. Acesso em: 15/03/2011.<br />

83


as instituições democráticas e, em consequência, foi aberto inquérito pelo coronel Geraldo de<br />

Menezes Cortes, chefe de polícia do Distrito Federal.<br />

Com a vitória do movimento militar liderado pelo general Henrique Lott, agentes do<br />

Departamento de Polícia Política e Social (DPPS) invadiram a sede do Clube da Lanterna,<br />

apreendendo o arquivo e documentos da organização. Em depoimento prestado naquele órgão<br />

da polícia, Amaral Neto, presidente do clube, fez críticas a Juscelino e Goulart, acusando-os<br />

de ausência de condições morais e legais para assumir o governo, aduzindo ter existido “uma<br />

aliança clandestina com o extinto Partido Comunista Brasileiro, que se abrigou sob a legenda<br />

do Movimento Nacional Popular Trabalhista”. Em 1956, a revista Maquis manteve ataques<br />

sistemáticos contra o general Lott e foi apreendida por ordem do novo chefe de polícia do<br />

Distrito Federal, Augusto Magessi Pereira, sob a alegação de que a capa da publicação era<br />

ofensiva ao general Odilio Denys, comandante do I Exército. A liberação das edições<br />

apreendidas por Kubitschek levou Magessi a se demitir.<br />

Com o prosseguimento da crise, secundada por manifestações parlamentares<br />

oposicionistas e militares contra a presença de líderes sindicais ao lado de Lott e do vice-<br />

presidente João Goulart, o governo anunciou que tanto os militares da ativa como da reserva<br />

estavam proibidos de fazer pronunciamentos políticos e o general Juarez Távora foi punido<br />

disciplinarmente por Lott por não cumprir essa determinação, sendo o Clube da Lanterna<br />

identificado como um dos responsáveis pela crise político-militar que o país atravessava e<br />

fechado por decreto assinado por Juscelino, datado de 24 de novembro de 1956, embora a<br />

Revista Maquis tenha continuado a ser editada.<br />

Nesse resumo das atividades do Clube da Lanterna, aparecem motivações e nomes<br />

que serviram de inspiração para os elementos radicais de direita, conforme os depoimentos<br />

descritos nos livros citados de Argolo et al. Acima de tudo, verifica-se a influência da UDN.<br />

O Brigadeiro Eduardo Gomes, que encarnava o ideal integralista de heroísmo e de virtudes<br />

cívicas e morais, assim como o General Juarez Távora, eram conspiradores desde muito antes<br />

destes acontecimentos e continuariam com as suas atividades até o desfecho no 31 de março<br />

de 1964. Juarez Távora ficaria ligado ao denominado Grupo da Sorbonne; aqueles oficiais e<br />

civis que atuavam a partir da Escola Superior de Guerra, tanto na disseminação da sua<br />

ideologia como na sustentação de uma oposição ao populismo mais voltada para o campo das<br />

idéias, apesar do papel exercido por Golbery, elemento oriundo da ESG, junto ao Complexo<br />

IPES/ IBAD.<br />

O Brigadeiro Eduardo Gomes era originário do Exército Brasileiro, tendo sido<br />

transferido para a FAB por ocasião da sua criação. Ele esteve envolvido em quase todas as<br />

84


conspirações e golpes ocorridos no Brasil, desde a sua participação destacada no episódio que<br />

ficou conhecido como Os 18 do Forte, episódio este que inaugurou o Movimento Tenentista,<br />

até o Movimento Militar que derrubou João Goulart. Vale ressaltar que, como vizinhos por<br />

longos anos, ele e o jornalista Carlos Lacerda trocaram informações sobre eventos políticos<br />

importantes.<br />

Glauco Carneiro, em História das Revoluções Brasileiras, conta o evento da<br />

coordenação dos dois políticos por ocasião da Revolta de Aragarças 37 :<br />

[...] o Deputado Carlos Lacerda fora despertado, na madrugada de 3 de dezembro,<br />

por insistentes toques de campainha, no apartamento onde residia, na Praia do<br />

Flamengo. Abriu a porta e encontrou somente o Manifesto Rebelde, de “texto<br />

altamente subversivo”. Imediatamente desceu ao apartamento do Brigadeiro<br />

Eduardo Gomes, morador no mesmo prédio, e o encontrou com outro exemplar do<br />

Manifesto nas mãos [...] Eduardo Gomes telefonara para a base aérea do Galeão:<br />

oficiais haviam levantado vôo nos C-47 de números 2060, 2020 e 2075. Ele<br />

aconselhou Lacerda no sentido de que Bento Gonçalves (presidente da Frente<br />

Parlamentar Nacionalista, a quem o próprio Lacerda acordara pouco depois de ler o<br />

documento) entrasse em contato com o Ministro da Guerra, informando-o sobre os<br />

acontecimentos. 38<br />

É possível encontrar entre os membros do grupo secreto e em outros representantes do<br />

radicalismo de direita afirmações que demonstram suas reverências à liderança de Eduardo<br />

Gomes e a inspiração política e ideológica que era exercida por Carlos Lacerda, ambos<br />

políticos da UDN, apesar de discordarem de algumas de suas atitudes em questões pontuais.<br />

Tanto os integralistas como os udenistas sofreram o impacto da Intentona Comunista,<br />

que desencadeara uma reação resistente ao tempo e que chegava às raias da irracionalidade.<br />

Por exemplo, o Capitão Reformado do Exército Henrique Couto Ferreira Mello, indagado<br />

sobre as ameaças pressentidas pelos militares da sua geração, responde que “O comunismo<br />

sempre pagava o pato de tudo. Quando tinham que escolher um inimigo, os comunistas<br />

tinham que levar porrada” 39 . Era a transfiguração da representação da ameaça vermelha.<br />

Portanto, no que tange às inspirações políticas, pode-se considerar a influência<br />

integralista (idealística e cívica), udenista e golpista na formação da visão de mundo do grupo<br />

de radicais de direita, objeto deste estudo. No quesito ideológico, conforme supra assinalado,<br />

é possível ressaltar o viés anticomunista e as ideias salvacionistas e heroicas.<br />

Sobre as influências nazistas ou fascistas, Alberto Carlos Costa Fortunato, integrante<br />

desde os primeiros tempos do grupo secreto, refere-se às tendências do período que<br />

37 CARNEIRO, Glauco. História das Revoluções Brasileiras. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965, p. 524-525.<br />

38 Citado em ARGOLO et al., 1996, p. 151, Nota 3. A íntegra do Manifesto dos Rebeldes se encontra no<br />

Apêndice 8.9.<br />

39 ARGOLO et al., 2004, p. 28.<br />

85


permaneceu na Academia Militar de Realengo (1940-1943), dividindo-as entre simpatizantes<br />

do Eixo (sobretudo os mais antigos) e favoráveis aos aliados, situando-se entre estes últimos.<br />

Por sua vez, o brigadeiro João Paulo Burnier revela que o entusiasmo que sentiam era pelas<br />

façanhas dos alemães na guerra, “Mas isso não quer dizer que fosse entusiasmo pelo partido<br />

político que dominava o país, o nazismo, o fascismo” e complementa: “desde a Escola Militar<br />

eu nunca senti nenhum entusiasmo pela Alemanha como nazista, pela Itália como fascista” 40 .<br />

Em complemento a os aspectos mencionados acima, existiam numerosas instituições,<br />

entidades e organizações que serviam como celeiros para o florescimento do radicalismo.<br />

Além das plataformas oferecidas pelos partidos políticos, jornais, revistas, rádios, clubes,<br />

inclusive os militares, de orientação conservadora, podem, ainda, ser citadas 41 : Tradição,<br />

Família e Propriedade (TFP), fundada em 1960 por Plínio Corrêa de Oliveira, cuja atuação<br />

em defesa dos valores inscritos em seu título e mais no anticomunismo ferrenho datavam de<br />

muito antes 42 ; Confederação dos Centros Culturais da Juventude, projeto lançado por Plínio<br />

Salgado a partir de 1952 para disseminar o ideário Integralista, com existência até os dias<br />

atuais sem as conotações originais e os radicalismos da época; Comando de Caça aos<br />

Comunistas (CCC) que teve sua origem formal em 1962 na Universidade Mackenzie de São<br />

Paulo, mas que apresenta registro de atuações anteriores a esta data; a Liga das Nações<br />

Cativas 43 ; e as Academias Militares que, também, tinham papel importante na doutrinação<br />

política, embora isso não ocorresse de forma institucional, mas por osmose, nesse sentido,<br />

atuando como plataformas para as tendências à direita e à esquerda.<br />

Não se pode, ainda, deixar de mencionar uma ampla formação psicológica reativa a<br />

um leque de estímulos, dentre os quais se destacam os ideológicos, às ações governamentais e<br />

legislativas e às personalidades, principalmente, nas figuras de Getúlio Vargas, João Goulart,<br />

40 BURNIER, João Paulo Moreira. João Paulo Moreira Burnier (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC,<br />

2005. (Documento digitalizado. Disponível em:< http://www.fgv.br/cpdoc/historiaoral/arq/Entrevista633.pdf>,<br />

p. 12 do arq. pdf. Acesso em: 10/02/2011)<br />

41 Estas e outras organizações de períodos posteriores a esta pesquisa podem ser encontradas em José Amaral<br />

ARGOLO, Imprensa e Terrorismo: a espetacularização do horror. Tese de Doutorado do Programa de<br />

Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. (Inédita)<br />

42 Em 1929 Plínio fundou a Ação Universitária Católica (AUC) e, em 1943, lançou um livro denominado Em<br />

Defesa da Ação Católica, ambas ações já embasavam os valores que viriam a inspirar a TFP.<br />

43 Luiz Helvécio da Silveira Leite, um dos mais ativos integrantes do grupo secreto, em seu depoimento em<br />

ARGOLO et al., em Dos Quartéis à Espionagem: Caminhos e Desvios do Poder Militar, p. 205, assim se refere<br />

a essa organização: “Nós dispúnhamos da Liga das Nações Cativas, que tinha uns caras bons como o diabo!<br />

Lituanos, letões, estonianos, poloneses [...] gente de todas essas nações aqui no Rio, Mas ela mantinha<br />

ramificações em todos os lugares, Gente boa. Você queria fazer umas falsificações, por exemplo, ingressos para<br />

o balé russo. Eles imprimiam bilhetes semelhantes aos do balé russo e enchiam de gente o teatro. Tinha dois, três<br />

bilhetes para a mesma cadeira, As discussões eram inevitáveis: ‘Essa cadeira é minha![...],’ ‘Não senhor! [...]’<br />

‘Era trabalho da Liga das Nações Cativas”. ARGOLO, idem, na Nota 12, refere-se à colaboração da Liga com os<br />

serviços de informações brasileiros, após 1964, e ao fato de ter sido tema de livros de John Le Carré que<br />

descrevem a ação das redes de refugiados da Europa Central e suas colaborações com os serviços secretos<br />

ocidentais.<br />

86


Henrique Lott 44 , estas últimas, atuantes como catalisadores, verdadeiros pára-raios, das<br />

frustrações, raivas e ódios de uma extensa gama de oficiais das três forças singulares<br />

contrárias ao populismo. Juscelino Kubitschek que, em determinado momento, chegou a atrair<br />

o descontentamento da direita radical, deixou de sofrer esse efeito após a anistia que concedeu<br />

aos rebelados de Jacareacanga, o que, em compensação, fez redobrar as energias dos<br />

revoltosos contra Lott.<br />

Dessa forma, no aspecto das ações políticas, a reação era mais dispersa, abrangendo<br />

uma enorme gama de contrariedades com a situação vigente, contra o establishment (o<br />

sistema e o jogo) e contra a manipulação dos altos comandos militares pelos governos em prol<br />

da política de curto prazo, pelos políticos e, ainda, pelas perseguições aos discordantes.<br />

O Brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, ao se referir àquele conturbado período do<br />

final do governo de Getúlio Vargas, declara sobre o general Lott:<br />

“[...] inexplicavelmente, continuava fazendo, vamos dizer assim, vigilância sobre os<br />

oficiais que eles chamavam de conspiradores. Realmente nós todos éramos<br />

revolucionários. Nós queríamos realmente que mudasse a coisa. Que se fizesse uma<br />

limpeza, uma mudança no país. E continuávamos conspirando. Continuávamos<br />

reunindo vários grupos, no norte, no sul, no centro, Minas, nordeste. E o general<br />

Lott continuou fazendo vigilância sobre isso com o pessoal dele. Isso veio<br />

provocando pouco a pouco animosidade muito grande contra o general Lott,<br />

principalmente dentro da Marinha e da Aeronáutica. Mas no Exército também se<br />

avolumou muito isso. Tanto que havia o pessoal lottista e o pessoal anti-Lott. E<br />

vários incidentes houve aí, oficiais que se recusaram a cumprimentar o general Lott<br />

e tudo”. 45<br />

Vale ressaltar, também, a ativa participação comunista no meio militar, ela também,<br />

fomentadora da reação conservadora e radical. Essa pugna, originalmente de conteúdo<br />

político e ideológico, em diversas ocasiões chegou às vias de fato, como na Intentona<br />

Comunista e em quase todos os eventos narrados nesta Seção e na anterior, onde, por trás das<br />

ações realizadas, sempre estavam os elementos mais aguerridos da esquerda e da direita. Os<br />

radicais de ambos os lados não se intimidavam com as possíveis reações e levavam suas ações<br />

a extremos.<br />

Essa ampla articulação conservadora, importante para a compreensão do contexto em<br />

que se desenvolveram as atividades dos protagonistas deste estudo, foi apresentada na Seção<br />

3, a partir das informações detalhadas por Dreifuss, do general Olímpio Mourão Filho 46 e do<br />

44<br />

Aos quais, posteriormente, foram adicionados Leonel de Moura Brizola, Miguel Arraes, Francisco Julião,<br />

entre outros.<br />

45<br />

João Paulo Moreira BURNIER (idem depoimento, 1993), p. 29 do arq. pdf. De acordo com Luiz Helvécio da<br />

Silveira Leite, em ARGOLO et al., 2004, p. 103, entre 70% e 80% dos oficiais do Exército eram antiLott.<br />

46<br />

MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: A Verdade de um Revolucionário. Porto Alegre: L&PM Editores,<br />

1978.<br />

87


general Jayme Portella de Mello 47 , dentre outros. O quadro menor, sobre a direita radical é o<br />

que veremos em seguida.<br />

4.2 A ATUAÇÃO DA DIREITA RADICAL<br />

Devido à multiplicidade dos estímulos e motivações acima descritos, numerosas<br />

instituições, organizações e grupos de conspiradores civis e militares atuavam na<br />

clandestinidade, implementando ações conforme seus próprios interesses, vale dizer, sem uma<br />

coordenação central. João Paulo Moreira Burnier, um dos mais ativos representantes dessa ala<br />

radical, referindo-se aos outros conspiradores, observa:<br />

Acrescentando:<br />

“[...] nós tínhamos ligações com eles, mas eram totalmente independentes. Tanto<br />

que quando eu resolvi tomar a defesa do palácio Guanabara, eu não consultei<br />

ninguém, eu resolvi fazer e fiz”. 48<br />

“É fácil perceber que ninguém mandava em ninguém. Tanto isso é verdade que eu<br />

não recebi determinação alguma e tomei todas as iniciativas por minha conta e risco.<br />

E mais, quando quiseram me dar ordens, retruquei: “Não as recebo de ninguém”. 49<br />

Dessa forma, os grupos radicais de direita replicavam a mesma ausência de<br />

estruturação centralizada que ocorria na ala conservadora como um todo, ou seja, distribuía-se<br />

em vários grupos de conspiradores, atuando independentemente, às vezes estabelecendo<br />

ligações tênues entre eles, mas unidos pelo ideal comum no sentido de impedir o acesso dos<br />

comunistas ao poder.<br />

Para a análise da atuação da direita radical no período em estudo, faz-se necessário<br />

retomar a proposta de divisão das ações perpetradas em duas fases, relembrando-se que,<br />

durante a primeira fase, podem ser analisadas a resistência ao golpe militar do general Lott<br />

(1955), Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Embora inseridos no contexto maior da<br />

interferência dos radicais de direita na política, não serão abordados os eventos relativos à<br />

preparação do golpe contra a posse de Juscelino Kubitschek, que teria levado ao Putsch, por<br />

ausência de registros empíricos da participação daqueles radicais; dos atentados contra altas<br />

47 MELLO, Jayme Portella de. A Revolução e o Governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979.<br />

48 BURNIER, João Paulo Moreira. João Paulo Moreira Burnier (depoimento, 1993). Rio de Janeiro, CPDOC,<br />

2005. (Documento digitalizado. Disponível em:< http://www.fgv.br/cpdoc/historiaoral/arq/Entrevista633.pdf>,<br />

p. 88 do arq. pdf. Acesso em: 10/02/2011.)<br />

49 ARGOLO et al., 1996, p. 184.<br />

88


autoridades 50 e da tomada de Salvador com a prisão imediata do Ministro Juracy Magalhães 51 ,<br />

os quais – embora planejados – não foram desencadeados.<br />

Nesse sentido, conforme explicitado, após o suicídio de Getúlio Vargas e do Vice-<br />

Presidente Café Filho ocupar a Presidência da República, o segmento conservador assumia a<br />

direção do País e acalentava sonhos de permanecer. Para isso, todas as apostas estavam<br />

direcionadas para as eleições presidenciais que ocorreriam em 3 de outubro de 1955.<br />

Entretanto, fruto da recusa de Juscelino Kubitschek em aceitar a tese udenista da candidatura<br />

única para Presidente da República e do apoio recebido por ele dos comunistas, ainda<br />

mantidos na ilegalidade, o conservadorismo iniciou as medidas de hostilidade tendentes a<br />

impedir sua eleição. Além disso, concorreu a Vice-Presidente da República João Goulart,<br />

político mal visto pelos conservadores e radicais. Como fiel do processo situava-se a figura<br />

exponencial do general Lott, Ministro da Guerra de Café Filho, considerado pela opinião<br />

pública como legalista e estritamente profissional, indício de neutralismo no Exército<br />

Brasileiro.<br />

Segundo a opinião do conservador não radical, Osvaldo Cordeiro de Farias, “Lott é<br />

um militar estranho. Por mais que eu tente traçar seu perfil, não consigo. [...] Era um<br />

esquerdista? Ao que eu saiba nunca foi, mas teve no Ministério um comportamento de<br />

esquerdista”. 52<br />

Por sua vez, Alberto Fortunato, do grupo secreto, assim se refere sobre Lott: “Era uma<br />

pessoa de visão estreita, tinha filho comunista e a filha era casada com outro comunista. No<br />

fundo estava sendo conduzido. Sob aquela capa de legalidade, os comunistas conquistavam,<br />

discretamente, mais e mais posições. [...] A imagem vendida à opinião pública sobre o Lott<br />

era a de uma pessoa magnífica, cem por cento etc. No nosso entendimento, porém, isso era<br />

uma jogada cuidadosamente planejada e respaldada pelos comunistas” 53 . Quanto a Juscelino,<br />

complementa, “Para o nosso grupo, o propósito não era impedir que ele governasse, mas<br />

50 Em ARGOLO et al., 2004, p. 35-37, Henrique Mello relata o planejamento dos radicais de direita para<br />

seqüestrar autoridades, no caso próprio o alvo seria Henrique Lott, destruir instalações (o viaduto de Deodoro) e<br />

explodir o gasômetro, segundo ele, opção de todas as conspirações. Para ele, todavia, essas manifestações eram<br />

românticas, no sentido que não chegavam a causar danos pessoais ou materiais, casos em que, os oficiais<br />

designados para tais atos pelos grupos de conspiradores não somente recusavam perpetrar tais atos como nada<br />

lhes acontecia. Luiz Helvécio, idem, p. 102, relata planos não efetivados de assassinato de Lott por ocasião do<br />

recebimento da espada de ouro, em 1956.<br />

51 No depoimento em ARGOLO et al., 1996, p. 98, Burnier considera esse planejamento importante. O Plano<br />

previa a participação de oitenta oficiais da FAB e outros tantos do Exército, inclusive de unidades de Salvador,<br />

além da utilização de três aviões comerciais da Companhia Cruzeiro do Sul. Não foi desencadeado por falta de<br />

quorum de oficiais no ponto de reunião no Rio.<br />

52 Aspásia CAMARGO e Walder de GÓES, em Meio Século de Combate – Diálogo com Cordeiro de Farias,<br />

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 452.<br />

53 ARGOLO et al., 1996, p. 53.<br />

89


loquear o acesso dos comunistas ao poder”. 54<br />

Para Burnier, o Putsch não tinha nada de preventivo; era um golpe que já vinha sendo<br />

preparado há algum tempo, tendo ele tomado conhecimento do seu planejamento pelo menos<br />

com trinta dias de antecedência por meio de oficial do Exército 55 . Outro entre os<br />

conspiradores, Luiz Helvécio da Silveira Leite, que se tornou detentor de cópias fotográficas<br />

da Ordem de Operações do plano golpista de Lott, revelou que o mesmo teria começado em<br />

agosto de 1955, portanto, quase três meses antes, e previa o cerco às bases aéreas e da<br />

Marinha. 56<br />

Do golpe conservador propriamente dito, tem-se o registro de Almir Matos 57 sobre o<br />

Plano de repressão a ser implementado no Rio de Janeiro e apreendido, no dia 11 de<br />

novembro, no cofre do então chefe de polícia do Distrito Federal, Coronel Menezes Cortes (v.<br />

Seção 3, p. 67). Como foi obstado pela ação preventiva (o Putsch) de Lott, não teve<br />

continuidade, embora tenham sido desencadeadas ações repressivas contra os conservadores.<br />

Os indícios da reação conservadora para compensar essa inclinação do governo à<br />

esquerda, amparados em aparente neutralidade do Exército Brasileiro, além da articulação de<br />

um golpe, fizeram-se representar por diversos sinais da reação conservadora: as pregações no<br />

Clube da Lanterna, inclusive o Manifesto lido em plenário por Wilson Leite Passos; o<br />

discurso do Coronel Bizarria Mamede; a campanha na imprensa; além das teses<br />

conservadoras e a Carta Brandi, (v. nota 53, p. 18, Cap. II); entre outras.<br />

Por ocasião do Putsch, em razão da articulação do general Odilio Denys, juntamente<br />

com o grupo de militares componentes do Movimento Militar Constitucionalista (MMC) 58 ,<br />

que inclinou a cúpula do Exército em seu favor, a resistência concentrou-se no apoio da<br />

Marinha do Brasil ao governo constituído, da FAB como um todo e nos oficiais anti-Lott do<br />

Exército. A adesão da Marinha do Brasil disponibilizou o Cruzador Tamandaré que conduziu<br />

o Presidente em exercício à cidade de Santos, da FAB com amplo apoio de seus militares sob<br />

a liderança de Eduardo Gomes; e dos oficiais do Exército anti-Lott, os quais, em muitos casos<br />

viriam a reforçar as ações de resistência nas Bases Aéreas de Santa Cruz e do Galeão.<br />

O dispositivo de defesa da Base Aérea do Galeão, organizada pelo então Major João<br />

Paulo Moreira Burnier, obteve sucesso em impedir o acesso das tropas do Exército enviadas<br />

54 ARGOLO et al., 1996, p. 53.<br />

55 Ibidem, p. 86. O Plano recebeu o codinome de Formiga.<br />

56 Depoimento em ARGOLO et al., 2004, p. 93.<br />

57 MATOS, Almir. Em Agosto Getúlio Ficou Só. Rio de Janeiro: Problemas Contemporâneos, 1963, p. 81.<br />

58 Cf. Jayme Portella de MELLO, em A Revolução e o Governo Costa e Silva, p. 14, Rio de Janeiro: Guavira,<br />

1979, o MMC (trocadilho com o Mínimo Múltiplo Comum) era um grupo de oficiais integrados pelo general<br />

Justino Alves Bastos, chefe do Estado-Maior do general Odilio Denys que participou ativamente da articulação<br />

do putsch de Lott e mais diversos coronéis, entre os quais, Humberto Souza Mello, Orlando Ramagem, Osmar<br />

Osório e Tácito Reis de Freitas.<br />

90


com o fito de ocupá-la 59 . Embora bem articulada e respaldada pelos Ministros da Marinha 60 e<br />

da Força Aérea, a resistência foi derrotada pelo planejamento meticuloso do (contra) golpe de<br />

Lott, que, confirmando a acusação de Burnier, tinha sido feito anteriormente pelo general<br />

Odilio Denys, com “forças equipadas para pronta-intervenção e seguindo planos muito bem<br />

elaborados” que “ocupariam posições estratégicas na Capital Federal e estenderiam as<br />

operações a outras cidades do País” 61 . Ficou consubstanciado na renúncia de Carlos Luz em<br />

mensagem enviada, após a assunção de novo governo encabeçado pelo Presidente da Câmara<br />

dos Deputados Nereu Ramos 62 .<br />

Embora derrotados, os objetivos da resistência conservadora e radical, coerentes com<br />

a sua manobra compensatória, consistiam em apoiar o governo do Presidente em exercício<br />

Carlos Luz, resistir ao contra-golpe de Lott, derrubando-o, e impedir que Juscelino<br />

Kubitschek governasse, bloqueando o acesso dos comunistas ao poder. O insucesso da<br />

resistência não iria impedir a sua continuidade.<br />

Apenas um mês após a posse de Juscelino Kubitschek começou uma nova rebelião, a<br />

Revolta de Jacareacanga, que se estendeu de 11 a 29/02/1956, liderada pelo Major Haroldo<br />

Veloso e o Capitão José Chaves Lameirão. Pode-se afirmar que foi gestada e desencadeada<br />

sob as mesmas condições que conduziram à tentativa de golpe contra aquele Presidente e à<br />

resistência ao contra-golpe de Lott, constituindo-se em uma verdadeira revanche 63 .<br />

“O objetivo de Veloso, principal líder da revolta e profundo conhecedor da<br />

Amazônia, era controlar pontos estratégicos do interior do Brasil e desse modo<br />

forçar um ataque de tropas lideradas por oficiais fiéis a Kubitschek. Essa reação,<br />

segundo os cálculos de Veloso, deveria levar os militares que se opunham ao<br />

presidente a pegar em armas contra o governo. Um elemento essencial para o êxito<br />

do plano dos rebeldes era a tomada de Santarém, cidade localizada às margens do rio<br />

Tapajós e segundo centro urbano do estado do Pará”. 64<br />

Para a maioria dos historiadores e pensadores do período, Jacareacanga corresponde,<br />

juntamente com Aragarças, a uma rebelião romântica e conforme assinalado por Nelson<br />

59<br />

Na doutrina militar terrestre ocupar é uma tarefa atribuída quando não se sabe se haverá resistência. Quando<br />

há previsão de resistência o termo é conquistar e quando não há é apossar-se.<br />

60<br />

A Marinha adotava procedimentos atípicos para evitar o envolvimento do seu pessoal e de navios nos<br />

inúmeros movimentos golpistas que assolavam o País. Um desses procedimentos era realizar exercícios no mar,<br />

que podiam se prolongar por longos períodos, nas ocasiões de tensão mais elevada. No caso do Putsch, Burnier,<br />

embora considerando uma “bobeada” relata que o Comandante-em-Chefe da Esquadra, Almirante Penna Boto,<br />

havia determinado o desarmamento dos navios e a retirada da munição de bordo. ARGOLO et al., 1996, p. 92.<br />

61<br />

ARGOLO et al., 1996, p. 54.<br />

62<br />

Jayme Portella de MELLO, op. cit., p. 23.<br />

63<br />

A Revolta de Jacareacanga contou com escassos recursos em pessoal e material (um caça AT-11 carregados de<br />

explosivos e munição, capturado no Campo dos Afonsos, e batalhões de índios e seringueiros conhecidos de<br />

Veloso) os quais sofreram maior incremento com a adesão das localidades de Cachimbo, Belterra, Itaituba e<br />

Aragarças, além da cidade de Santarém, contando inclusive com o apoio das populações locais.<br />

64<br />

Sérgio LAMARÃO, no Dicionário Histórico e Biográfico do Centro de Pesquisa e Documentação de História<br />

Contemporânea do Brasil (CPDOC), 2 ed., Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 2.826.<br />

91


Werneck Sodré seriam “manifestações de inconformismo da parte dos elementos mais<br />

ingênuos e mais combativos, daqueles que, inclusive, começavam a descrer das possibilidades<br />

e da capacidade de seus próprios comandantes”. 65<br />

Por sua vez Oliveiros S. Ferreira 66 , entende que as ações da ala radical, notadamente<br />

de Haroldo Veloso, fundamentavam-se no seu desencanto com o sistema e o jogo em que a<br />

política havia se transformado, este último incluindo os reflexos da Guerra Fria. Referindo-<br />

se, especificamente, à atuação de Haroldo Veloso na Revolta de Jacareacanga, considera ser<br />

ele um verdadeiro Dom Quixote e:<br />

E prossegue:<br />

“[...] representa, na fase do ‘tenentismo’ iniciada a 29 de outubro de 1945, o<br />

momento de cristalização da náusea de amplos setores com a política e os homens<br />

— o de Jacaré-acanga, não o de Aragarças, inspirado por motivos outros que os do<br />

primeiro gesto romântico e fruto manifesto da impotência do Homem contra a<br />

engrenagem do ‘sistema’. Mas representa também a ausência de organização e uma<br />

visão apenas inconsciente do processo — embora estivesse nele sempre presente, se<br />

não a vontade de conquistar o Poder, aquela ‘coragem de ousar’ que Rosa<br />

Luxemburgo apontava como apanágio dos velhos bolchevistas e condição<br />

fundamental a quantos desejam participar da luta pela transformação das condições<br />

de existência do homem moderno”.<br />

“Ter a coragem de ousar significa que se despreza a Palavra — pois ela foi<br />

conspurcada pelas ‘esquerdas’, que no mais das vezes transformaram as revoluções<br />

na negação dos princípios afirmados, quando não na mera mudança de homens já<br />

saciados por outros ainda não partícipes da distribuição dos empregos e benefícios; e<br />

além de conspurcada, negada pelo Poder que envolve os homens e lhes retira, pela<br />

corrupção que institucionaliza, a capacidade de reagir, por tédio, ou simplesmente<br />

cansaço. Mas significa também que se renega o Poder enquanto expressão única de<br />

governo, afirmando-se contra ele a Vida, que se joga para provar ao Povo que o<br />

protesto contra o ‘sistema’ não é um mero ato verbal para conquistar empregos ou<br />

posições de mando, mas uma idéia que vale a pena ser seguida, pois na<br />

comprovação de sua justeza o revolucionário faz a prova suprema. Nesse sentido e<br />

num contexto diverso, mas animado dos mesmos ideais anticomunistas e<br />

antiimperialistas, o Castro de Sierra Maestra compreendeu com grande lucidez o<br />

drama das revoluções modernas: ‘A um povo cético pelo engano e pela traição não<br />

se pode falar em outros termos: seremos livres ou mártires. Quando chegar esta<br />

hora, Cuba saberá que os que estamos dando nosso sangue e nossas vidas somos os<br />

seus filhos mais leais[...] E se cairmos [...] cairemos [...] pela liberdade do povo’.<br />

Jacaré-acanga foi a Sierra Maestra brasileira — batida pela inércia de alguns poucos,<br />

pela não aceitação, por Veloso, das regras impiedosas do jogo, pela ausência de<br />

organização, pelo desprezo consciente do papel decisivo que esse Povo amorfo e<br />

nauseado pode desempenhar, desde que organizado, no momento em que encontra,<br />

num homem, o gesto que lhe restitui a crença no conteúdo e no sentido das palavras.<br />

Foi a reedição dos ‘18 do Forte’, que traçaram a linha geral do processo — que só<br />

poderá ser civil e militar —, e que desaguaram na ‘Coluna’, que procurou realizá-lo<br />

no seu cenário natural — que há-de ser o interior. Repetiu a gesta anterior, sem<br />

havê-la compreendido no que havia de essencial — que era sua linha geral; sem<br />

atentar para o fato de não se poder combater o Poder num meio praticamente<br />

65 SODRÉ, em A História Militar do Brasil, p. 367.<br />

66 Oliveiros S. FERREIRA, em As Forças Armadas e o Desafio da Revolução, Rio de Janeiro: GRD, 1964.<br />

92


desabitado, sem apoio da população civil, sem um programa que mobilize as<br />

consciências, sem uma organização para estabelecer a ligação entre o Povo e o novo<br />

governo ao instalar-se o poder revolucionário. Por isso tudo malogrou, embora<br />

tivesse despertado de novo a consciência dormida e houvesse paralisado a máquina<br />

de propaganda do Partido Comunista, porquanto ao erguer-se contra o ‘sistema’, ele<br />

proclamou sua inquebrantável fidelidade à plena soberania nacional, acusando o<br />

governo Kubitschek de pactuar a um tempo com o ‘imperialismo’ e o partido<br />

comunista”.<br />

Eis, exposta, por pesquisador qualificado, a essência do gesto de Velloso em<br />

Jacareacanga e o seu alcance, talvez não de todo percebido pelas lideranças políticas, em<br />

função do grau de instintividade do gesto. Coerente com as características psicológicas do seu<br />

autor, e, considerando-se o seu caráter de continuidade da resistência ao Putsch, a revolta era<br />

representativa da atuação da direita radical como vanguarda para compensar o que era visto<br />

como neutralidade ou inclinação do Exército Brasileiro à esquerda, comunização do País e,<br />

ainda, para afrontar o sistema e o jogo.<br />

Assim, passados três anos, não isentos de crises militares 67 , ocorreu nova revolta<br />

militar: Aragarças, 68 entre 02 e 04 de dezembro de 1959, dessa vez liderada pelos então<br />

Tenentes-Coronéis João Paulo Moreira Burnier e Haroldo Velloso. Nessa fase, apesar do<br />

apoio de alguns poucos oficiais das outras forças singulares e, até mesmo de civis, a maior<br />

parte do esforço dos revoltosos provinha da FAB, “ainda que numericamente reduzida,<br />

limitada na quantidade e variedade dos armamentos” 69 .<br />

Aragarças, em termos de motivações, foi a continuação de Jacareacanga, induzida<br />

pelos indícios preexistentes e por novos, originários da ameaça de Jânio Quadros no sentido<br />

67 De acordo com ARGOLO et al., 1996, p. 65, entre outras: a Carta aos Brigadeiros, no contexto da oposição<br />

contra a interinidade de Lott no comando da FAB, com centenas de prisões de oficiais, inclusive generais; e a<br />

recusa do Tenente-Coronel Burnier em carregar tijolos para a construção de Brasília em sua aeronave.<br />

68 A Revolta de Aragarças teve início em 2 de dezembro de 1959 (à noite) e término após 36 horas, em 4 de<br />

dezembro (madrugada). Para a sua consecução foram utilizados três aviões Douglas C-47, um Constellation da<br />

PanAir seqüestrado e dois Beechcraft, sendo um particular. Cf. citado em ARGOLO et alli, Nota 11, p. 153-4, no<br />

processo instaurado para apurar as responsabilidades pelo Movimento de Aragarças foram indiciados: coronel do<br />

Exército Luís Mendes da Silva; capitão do Exército Tarcísio Célio Carvalho Nunes Ferreira; tenentes-coronéisaviadores:<br />

João Paulo Moreira Burnier, Geraldo Labarthe Lebre, Haroldo Coimbra Velloso, Manlio Garibaldi<br />

Fischer Filizola, Lauro Madureira, Jorge Diehl, Nelson Dias de Souza Mendes, Márcio César Leal Coqueiro,<br />

Eduardo Costa Vahia de Abreu, Paulo Victor da Silva, Alfredo Gonçalves Correia; majores-aviadores: Éber<br />

Teixeira Pinto, José Rubens Drummond, Nelson Pinheiro de Carvalho, Dilermano Cunha da Rocha, Aroldo<br />

Paim Pamplona; capitães-aviadores: Próspero Punaro Baratta Neto, Washington Amud Mascarenhas, Gerseh<br />

Nerval Barbosa, Carlos Alberto Bravo da Câmara, Teimo Torres Aires, Valmor Leal Dalcin, José Brandão<br />

Lisboa Filho, Luiz Gonzaga dos Santos; capitão especialista em Comunicação Julio Valente; primeiros-<br />

tenentes-aviadores Leuzinger Marques Lima e Luis Carlos da Silva; primeiro-tenente da Infantaria de Guarda<br />

Paulo Opuska; primeiro-tenente da reserva do Exército e advogado Luís Mendes de Moraes Neto; civis:<br />

Femando Vanderlei, Edmundo Vanderlei, Roberto Rocha e Mário Borges.<br />

69 Cf. ARGOLO et alli, 1996, p. 63 e 67, a articulação militar era ampla, com planejamento minucioso, e<br />

envolvia a guarnição militar de Salvador, de onde os revoltosos deveriam enviar forças para a área da revolta e<br />

em direção à capital federal. Vale ressaltar a quase ausência da Marinha do Brasil neste cenário no conturbado<br />

cenário político da época, operando com características autônomas e tendentes à legalidade, mormente em torno<br />

da liderança do Almirante Sylvio Heck.<br />

93


de renunciar a sua candidatura à Presidência da República, o que favoreceria a candidatura<br />

adversária de Henrique Lott; da percepção de aumento da corrupção 70 na vida pública<br />

brasileira, subproduto do sistema, representando o “abismo entre a política de governo do<br />

presidente Juscelino Kubitscheck e o pensamento daqueles oficiais ultranacionalistas da Força<br />

Aérea e do Exército” a qual, segundo os radicais, “levaria o Brasil a um nível de<br />

endividamento estratosférico” 71 ; da percepção de aumento da infiltração comunista nas Forças<br />

Armadas; e, ainda, a informação sobre a deflagração de um golpe 72 a ser liderado por Leonel<br />

de Moura Brizola, em 15 de dezembro de 1959, que havia sido confirmada “através da<br />

Inteligência Militar e a partir de um comunicado secreto transmitido via Rádio Porto Alegre<br />

(RS) para o Rio de Janeiro” 73 . O Manifesto dos Rebeldes elaborado pelo advogado Luís<br />

Mendes de Moraes Neto (Apêndice 8.9) apresenta um panorama contundente das razões e<br />

emoções envolvidas na Revolta de Aragarças.<br />

Sobre a infiltração comunista, Burnier declara:<br />

“[...] era muito grande a infiltração comunista. Tanto que, nessa época, aconteceu a<br />

expulsão – após inquérito – de oficiais da Aeronáutica sediados em Porto Alegre.<br />

Eles se reuniam em “repúblicas”, pois eram solteiros, e ali distribuíam livros<br />

comunistas de doutrinação pessoal, discutiam política e formavam núcleos. Bom,<br />

esses rapazes foram denunciados e expulsos. [...] Eles recebiam ordens de<br />

suboficiais e sargentos, seus chefes imediatos no Partido Comunista 74 .”<br />

A Revolta, coerente com a atividade de compensar os indícios de esquerdização e<br />

aumento da corrupção, tinha por objetivos evitar a renúncia de Jânio, expurgar da vida pública<br />

os corruptos (bandeira de Jânio), impedir a deflagração do golpe de Leonel de Moura Brizola<br />

e “alertar a nação sobre o que se passava dentro do próprio governo contra o Sr. Juscelino”. 75<br />

O jornalista Prudente de Moraes Neto (pseudônimo Pedro Dantas) sancionava as<br />

ações dos revoltosos com as seguintes palavras:<br />

“O que ainda não foi dito com suficiente clareza, a propósito de Aragarças, é que a<br />

ação militar, tentada pelos rebelados que participaram do movimento, deixou de<br />

constituir crime ou delito no dia em que os principais objetivos militares por eles<br />

70 Vale lembrar a observação de Samuel Huntington, citada na Seção 1, sobre a “proverbial” fama internacional<br />

que havia alcançado a corrupção no governo de Juscelino Kubitscheck.<br />

71 ARGOLO et al., 1996, p. 25.<br />

72 V. a narrativa do referido golpe feita pelo jornalista Hélio Fernandes, na coluna Em primeira mão, em A<br />

Tribuna da Imprensa (Apêndice 8.10). O nome dado ao golpe possuía diversas variantes. Além daquele da lavra<br />

de Hélio Fernandes em sua coluna, chamado de “comuno-petebista”, o golpe ficou conhecido, também, como<br />

“petebo-comunista”, “comuno-petebo-brizolista”, entre outras variantes, sendo que uma delas manipulava<br />

maliciosamente o imaginário nacional ao introduzir o mito da república sindicalista, implantado com a Carta<br />

Brandi, nesse contexto, designando o nome por “perono-comuno-petebista”.<br />

73 ARGOLO et al., 1996, p. 53.<br />

74 De acordo com depoimento em ARGOLO et al., 1996, p. 96.<br />

75 ARGOLO et al., 1996, p. 94.<br />

94


visados receberam a consagração nacional por uma revolução branca, através do<br />

voto popular. Essa revolução branca fez exatamente o que eles pretendiam fazer:<br />

derrubou uma situação política deteriorada e corrupta, substituindo-a por outra, nos<br />

moldes desejados e perseguidos por aqueles revolucionários. E tanto isto é verdade,<br />

tanto estão eles perfeitamente integrados nos propósitos saneadores, moralizadores e<br />

restauradores da atual situação, que alguns foram convocados a colaborar com o<br />

governo, em postos de confiança, administrativos e militares, onde estão servindo<br />

com dedicação e competência, oficiais brilhantes, patriotas e democratas que todos<br />

são”. 76<br />

A renúncia de Jânio Quadros, conforme explicitado na Seção anterior, conduziu à<br />

rejeição dos ministros militares à posse de João Goulart e à sucessão de eventos que<br />

desembocaram na resistência articulada e materializada por Leonel Brizola.<br />

Independentemente da anarquia que se estabeleceu nos diversos escalões hierárquicos, o<br />

conservadorismo e os radicais de direita se articularam para apoiar o status quo estabelecido.<br />

A solução conciliatória alcançada no Congresso Nacional, com a instauração do<br />

Parlamentarismo, citada na Seção 3, tão-somente, retardou o choque entre os populistas e os<br />

conservadores.<br />

Na fase seguinte, após a renúncia de Jânio Quadros e estendendo-se até o Movimento<br />

Militar de 31 de Março de 1964, a articulação da resistência radical/conservadora, embora<br />

mantivesse a característica de descentralização das atividades, apresentava uma estruturação<br />

bem mais ampla que a observada na fase anterior. Vale registrar que o radicalismo de direita<br />

foi perdendo muito do seu caráter de vanguarda 77 e de ineditismo na medida em que os grupos<br />

conservadores se organizavam para o embate final, chegando, na época do Movimento Militar<br />

de 31 de Março 1964, a uma participação restrita à defesa do Palácio Guanabara onde o<br />

Governador Carlos Lacerda preparou uma espécie de bastião Revolucionário.<br />

Mesmo assim, mantinha a sua capacidade de mobilização intacta, recebendo<br />

incremento sensível em termos de participantes, financiamentos, armamentos e material,<br />

inclusive explosivos, para apoiar suas ações.<br />

No quesito financeiro recebiam apoio do Governador de São Paulo, Adhemar de<br />

Barros, que se comprometera a entregar Cr$ 4.000.000 (quatro milhões de cruzeiros), cada<br />

vez que João Paulo Burnier a ele se apresentasse 78 . Burnier não diz quantas foram essas<br />

visitas, mas deixa a entender que tinham certa frequência. Com esse dinheiro, de acordo com<br />

suas palavras “contrabandeava” armas e munições para o seu grupo e para a Polícia Militar de<br />

São Paulo, inclusive com a utilização de um Constellation, vindo dos EUA, que<br />

76 Diário de Notícias, edição de quinta-feira, 11 de maio de 1961, coluna diária de Pedro Dantas.<br />

77 Mesmo assim, para alguns historiadores como Hélio SILVA, em 1964 – Golpe ou Contragolpe, p. 415, o<br />

“pessoal do Burnier era um grupo de choque”.<br />

78 Adhemar de Barros afirmou a Burnier que possuía 50 mil em condições de lutar, mas necessitava armas e<br />

munições. O depoimento de BURNIER sobre o tema aqui descrito está em ARGOLO et al., 1996, pp. 167-172.<br />

95


desembarcava a encomenda em uma das fazendas do “rei do café” Jeremias Lunardelli 79 .<br />

A movimentação do pessoal para efetivar as ligações entre os conspiradores de todo o<br />

país era proporcionada por meio da distribuição – sem restrições – de passagens aéreas<br />

fornecidas por altos executivos da Empresa Aérea Cruzeiro do Sul 80 para serem utilizadas em<br />

qualquer dos aviões da Cruzeiro do Sul ou da Varig e da Vasp, fornecidas pelo governo de<br />

São Paulo. Esse apoio não se restringia aos grupos ligados ao tenente-coronel Burnier,<br />

estendendo-se a outros grupos de conspiradores.<br />

Além desses importantes elementos estruturais, o tenente-coronel, mais tarde coronel,<br />

Burnier e os membros de seus grupos, contavam com o apoio de um fabricante de armas, de<br />

origem húngara, e dono da Fábrica Vale do Paraíba, em Lorena São Paulo, indústria de<br />

armamento e munição fornecedora para a FAB de explosivos e cabeças de combate para os<br />

foguetes dos aviões Gloster Meteor.<br />

Instado por Burnier, o industrial solicitou o armamento supra assinalado à FAB (Base<br />

Aérea de Santa Cruz) para serem (supostamente) recondicionados. Essa atitude, ao mesmo<br />

tempo em que privou a Aeronáutica da sua utilização, permitiu a sua preparação para emprego<br />

sobre automóveis tipo jeeps doados por empresários de São Paulo e adaptados para receber<br />

lançadores de foguetes fabricados em uma metalúrgica no subúrbio do Rio de Janeiro,<br />

transformando-os em foguetes anti-carro.<br />

Esses equipamentos militarizados eram importantes para, no caso de conflito,<br />

enfrentar os carros de combate do Exército, os mais decisivos, pelas Polícias Militares da São<br />

Paulo e do Rio de Janeiro. 81 Além disso, fabricaram bocais para o lançamento de granadas a<br />

partir dos fuzis utilizados pelas Polícias Militares (modelo Mauser 1908), conferindo maior<br />

alcance e letalidade se direcionados contra as tropas de infantaria 82 .<br />

Para checar a eficácia das suas armas e munições os integrantes daqueles grupos<br />

utilizavam diversas áreas afastadas do Rio de Janeiro, cujos proprietários, permitiam a<br />

realização dos testes.<br />

De modo geral, a articulação dos segmentos conservadores nessa fase, apesar da<br />

atomização da sua estrutura de resistência, era dividida em seis grandes grupos: do general<br />

Costa e Silva, do general Mourão Filho, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército<br />

79<br />

ARGOLO et al., 1996, pp. 167-172.<br />

80<br />

Os executivos eram José Bento Ribeiro Dantas, Presidente da Cruzeiro do Sul, e Leopoldino Amorim, Vice-<br />

Presidente.<br />

81<br />

ARGOLO et al., 1996, p. 165. Segundo Burnier foram enviados 60 foguetes para São Paulo. Idem, p. 171.<br />

82<br />

De acordo com o depoimento em ARGOLO et al., 1996, p. 166, o transporte do armamento era feito com um<br />

documento (falso) contendo a assinatura do Comandante do II Exército, Pery Bevilaqua, obtida com a introdução<br />

de um papel em branco entre muito outros documentos burocráticos, e determinando a transferência do material,<br />

cujo custo de serviço foi de Cr$ 3,5 milhões.<br />

96


(ECEME), do IPES/IBAD, da Marinha (almirante Sylvio Heck) e da Força Aérea (brigadeiros<br />

Fernando Melo e os três m 83 ).<br />

O radicalismo de direita estava distribuído entre estes grupos, às vezes atuando em<br />

consonância com eles, outras de forma autônoma. João Paulo Moreira Burnier, assim se refere<br />

ao período:<br />

“Que o nosso grupo, que era o grupo da revolução que eu fazia, que eu era o chefe, o<br />

líder, nós tínhamos muitos oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica,<br />

divididos em 33 grupos. Cada grupo tinha três oficiais. Bom, e aumentaram esses<br />

grupos com adesões depois de civis e de outra pessoas quaisquer, mas sob o<br />

comando desses três oficiais em cada grupinho desse”. 84<br />

E complementa acentuando que “tinha grupo que chegou lá a ter 15 civis adeptos.<br />

Então esses grupos eram criados, eram juntados, então uma coisa inicial que foram cerca de<br />

cem homens, passou no final, quando terminou a revolta, a ter mais de trezentos nesses 33<br />

grupos”, além disso existia “um grupo de número 33, que era da Escola do Estado-Maior do<br />

Exército, formado por oficiais, só por oficiais da ECEME”. 85<br />

“Essa conspiração foi durando um ano e tanto, e deflagrada dessa maneira final, e<br />

tudo isso foi feito em contato sempre com o grupo do general Costa e Silva, grupo<br />

do general Sizeno Sarmento, grupo do almirante Rademaker, do almirante Pena<br />

Boto e principalmente do Heck. Na Aeronáutica tinha o brigadeiro Moss, tinha o<br />

grupo do brigadeiro Márcio, tinha um grupinho que ficava junto do brigadeiro<br />

Francisco de Melo, que ficou chefe da revolução, mas não tinha, efetivamente, um<br />

grupo organizado antes. Mas, organizado grupo antes e ativo era do brigadeiro<br />

Moss, o brigadeiro Muniz e o brigadeiro Márcio. Eram três emes da Aeronáutica.<br />

Muniz, Moss e Márcio. Esses três brigadeiros, majores brigadeiros é que tomavam<br />

parte, que faziam a conspiração, que tinham junto a eles vários oficiais, coronéis,<br />

tenentes-coronéis, capitães, tenentes, para fazer essas ligações e os contatos entre<br />

nós. E junto com eles, e ligados com o Exército e com a Marinha”. 86<br />

Nessa época, a percepção sobre a corrupção no governo havia aumentado. O Coronel<br />

Alberto Fortunato, do grupo secreto, referindo-se ao Presidente João Goulart, dizia que<br />

“todos sabiam, em Mato Grosso e Goiás, que ele comprava fazendas com financiamentos do<br />

Banco do Brasil” 87 . Sobre a esquerdização mais ainda, pois, além de representada no máximo<br />

mandatário do País, ainda existiam as atuações de seus componentes mais radicais como<br />

Leonel Brizola, Miguel Arraes, Francisco Julião, entre outros. Brizola, além das atividades<br />

anteriores, criara os grupos dos onze, com finalidades nada inocentes (Apêndice 8.11).<br />

Ademais, conforme foi apresentado na Seção anterior, estimulava a participação política das<br />

83 Brigadeiros Grün Moss, Antonio Guedes Muniz e Márcio de Souza e Mello.<br />

84 João Paulo Moreira BURNIER (depoimento, 1993), p. 84 do arq. pdf.<br />

85 Idem, p. 84 do arq. pdf.<br />

86 Ibidem, p. 88 do arq. pdf.<br />

87 ARGOLO et al., 1996, p. 164.<br />

97


praças (suboficiais, sargentos, cabos e soldados) como forma de pressão contra a oficialidade.<br />

Francisco Julião atuava abertamente na organização das Ligas Camponesas, pregando a<br />

reforma agrária com métodos agressivos, o que apavorava os proprietários dos latifúndios.<br />

O Exército, na percepção geral, inclinava-se abertamente para a esquerda, com o<br />

dispositivo militar em postura mais proativa desde a vitória sobre os conservadores na posse<br />

de João Goulart e no qual se destacava o III Exército (no Sul) sob a influência de Leonel<br />

Brizola. Na Força Aérea, uma importante parcela de oficiais e praças de esquerda que apoiava<br />

João Goulart. Na Marinha, um segmento significativo das praças era estimulada à<br />

sindicalização e, pelo menos um Almirante, Cândido Aragão 88 , Comandante-Geral do Corpo<br />

de Fuzileiros Navais, manifestara abertamente inclinação à esquerda.<br />

Em contraponto, a ala conservadora ampliava sua capacidade de reação, enquanto o<br />

segmento radical não se mantinha inerte. Foi nesse contexto que ocorreu o quase atentado à<br />

Exposição Soviética, instalada no Campo de São Cristovão, Rio de Janeiro, em 19 de maio de<br />

1962, da qual se tratou nas referências feitas por Dreifuss em sua obra 89 . Argolo et al.<br />

acrescentaram novas luzes ao evento.<br />

Senão vejamos: o Major Roberto Godoy Moreira, “irritado” com o excessivo<br />

protagonismo dos soviéticos “em alguns eventos realizados no Brasil[...] manifestou o desejo<br />

de ‘acabar com a festa’” 90 . A sugestão feita por Alberto Fortunato, um dos articuladores do<br />

atentado e colega do referido militar, foi no sentido de que o petardo de dinamite “fosse<br />

regulado para explodir à noite, quando não haveria ninguém no local”, com o que Godoy não<br />

concordou. Esse comportamento foi rejeitado pelos demais participantes do planejamento<br />

daquela operação e resultou na delação do que se passara por José Chaves Lameirão ao<br />

brigadeiro Guedes Muniz e ao Governador Carlos Lacerda, levando à desmontagem do<br />

artefato antes que a exposição fosse inaugurada.<br />

As investigações conduziram à<br />

“[...] descoberta de uma ‘célula terrorista’ e anticomunista integrada, entre outras<br />

pessoas, por Ronald James Watters 91 , em cujo escritório (na sala 1120 do Edifício<br />

Avenida Central, onde foram encontradas vinte bananas de dinamite) ‘teria sido<br />

88 Aragão possuía uma carreira militar peculiar, embora não estranha para a época: não era oriundo da Escola<br />

Naval, que somente passou a formar oficiais fuzileiros navais após 1939. Entrou para o Corpo de Fuzileiros<br />

Navais como soldado, fez carreira como praça, tendo passado a condição de oficial com a criação do Quadro de<br />

Oficiais Auxiliares, em 1938, alcançando o posto de Contra-Almirante na ativa, fato que nunca mais ocorreu<br />

com uma praça.<br />

89 René Armand DREYFUSS, 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe.<br />

Petrópolis: Vozes, 1981, p. 367.<br />

90 ARGOLO et al., 1996, p. 204.<br />

91 Para ARGOLO et al., 1996, p. 208, Ronald Watters era funcionário do Ministério da Agricultura e<br />

colaborador da Agência Central de Inteligência dos EUA, onde havia frequentara o curso de Inteligência no<br />

início dos anos sessenta.<br />

98


planejada a trama que resultou na preparação do artefato e escolha do alvo’.<br />

Cinco pessoas tiveram suas prisões preventivas decretadas pelo juiz Eliezer Rosa, da<br />

8 a Vara Criminal: coronel-aviador José Chaves Lameirão, major do Exército<br />

Roberto Godoy Moreira e os civis Ronald James Watters, Nestor Ferreira Souza e<br />

Paulo Brissac de Freitas. Uma sexta pessoa, identificada como sendo o coronel Lino<br />

Botelho, foi investigada. Todavia, pouco – ou quase nada – foi apurado durante o<br />

desenvolvimento do inquérito [...] e o nome de Alberto Fortunato sequer foi<br />

mencionado.” 92<br />

René Dreifuss oferece algumas informações sobre o episódio. Segundo ele, havia mais<br />

uma sala utilizada para a estocagem dos explosivos, a de número 1908 do mesmo edifício, e<br />

elas pertenciam ao IBAD, levando este ramo do IPES a ser fechado 93 após a conclusão do<br />

inquérito e a posterior instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito ter concluído pelo<br />

envolvimento dessa instituição com o recebimento de recursos originários dos EUA para o<br />

financiamento da campanha eleitoral de alguns políticos brasileiros, além da ligação com<br />

pessoas engajadas na direita radical, aliás, este foi um dos últimos avisos transmitidos à<br />

esquerda por aqueles radicais.<br />

Ainda ocorreria o suposto planejamento, até hoje não esclarecido, do assassinato de<br />

João Goulart e sua família, a partir da descoberta de um depósito de armamentos no interior<br />

de um sítio próximo à localidade denominada Capim Melado, residência de campo do<br />

Presidente da República em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, por militares do 1 o Batalhão de<br />

Polícia do Exército Brasileiro, sob o Comando do Major Ary Abrahão Ellis, ocasião em que<br />

foram encontradas e apreendidas dez metralhadoras Thompson .45, de modelo inexistente no<br />

País, vinte carregadores, setenta e duas caixas contendo cartuchos de munição para as<br />

metralhadoras, dez granadas com as inscrições Federal Blast Disperson Tear Gas (CN), além<br />

de um rádio-transmissor MOTOROLA, marcado com o símbolo do Programa Ponto IV (mãos<br />

apertadas) da Embaixada dos EUA. O recém criado Serviço Federal de Informações e<br />

Contrainformações (SFICI) incriminou Sandra Cavalcanti e Nina Ribeiro como envolvidos no<br />

crime. Se havia dúvidas de que os EUA estavam envolvidos em atividades ilegais contra o<br />

governo constituído, elas ficavam cada vez mais reduzidas. Pesquisas históricas futuras iriam<br />

comprová-las.<br />

Nesse contexto, de percepção de inclinação do Exército Brasileiro à esquerda, do<br />

aumento da infiltração comunista e da inclinação do próprio governo à esquerda, além do<br />

aumento da percepção sobre a degradação do sistema, o radicalismo de direita passou a agir<br />

92 ARGOLO et al., 1996, p. 205-6.<br />

93 Em 20 de dezembro de 1963, acusado de “exercer atividade ilícita e contrária à segurança do Estado e da<br />

coletividade”. Disponível em: . Acesso em:<br />

08/03/2011.<br />

99


cada vez mais infiltrado entre os diversos grupos conservadores, inclusive junto ao IPES/<br />

IBAD, embora mantendo a sua independência, e prosseguiu com suas atividades de maneira<br />

cada vez mais organizada, chegando ao 31 de março de 1964 entrosado com o movimento<br />

maior, atuando de forma incisiva durante a defesa do Palácio da Guanabara, onde foram<br />

abrigar-se os líderes da ala conservadora.<br />

À sequência das ações que culminariam com o desfecho de 31 de março de 1964 – que<br />

por serem conhecidas não serão objeto de maiores explanações – não faltou sequer um Plano<br />

“Comuno-Petebista”, que deveria ser desencadeado no dia Primeiro de Maio de 1964,<br />

inspirando a tese de que, aquele primeiro, seria, mais uma vez, um contra-golpe.<br />

Ressalte-se que o vanguardismo da direita radical não se fazia mais necessário. A base<br />

conservadora alcançou um elevado grau de consciência e organização, que lhe faltara nos idos<br />

tempos de Jacareacanga e Aragarças, e que, de tão adiantada, estava pronta para assumir o<br />

Poder. Desta vez, porém, não o devolveria.<br />

100


“Países que não conseguem manter um quadro equilibrado<br />

de relação entre civis e militares desperdiçam recursos e<br />

correm riscos incalculáveis”. 1 Samuel Phillips Huntington<br />

5 A DIR E I T A R A DI C A L N AS R E L A Ç Õ ES C I V IS E M I L I T A R ES E AS<br />

C O NSE Q U Ê N C I AS PA R A A SE G UR A N Ç A E A D E F ESA<br />

Os dois mundos representados pelo ambiente civil e o militar ficaram celebrizados na<br />

comparação de Samuel Huntington entre a “serenidade severa” da Academia Militar de West<br />

Point e “a cansativa monotonia e a incrível variedade e discordância do comercialismo de<br />

pequena cidade” referindo-se à simpática e colorida cidade de Highland Falls ao seu lado 2 .<br />

Essa espécie de feitiço que insiste em tornar esses mundos estranhos e tendentes ao<br />

isolamento ainda desafia os estudiosos a pesquisar as formas de eles se comunicarem entre si,<br />

sem que essa interlocução sirva para levá-los ao desequilíbrio.<br />

Na sua obra, vale registrar, aquele autor não esquece sequer de ilustrar seu estudo com<br />

as tragédias do militarismo alemão e japonês e do antimilitarismo dos seus próprios<br />

compatriotas. Os primeiros, por conduzirem seus países a uma guerra catastrófica para seus<br />

povos, em muito devido ao desequilíbrio a que chegaram as relações entre civis e militares, e<br />

os últimos, por uma aversão indevida ao correto tratamento do tema. Por isso, a obra de<br />

Huntington foi incluída entre as concepções teóricas que fundamentam este trabalho,<br />

porquanto, segundo ele, “compreender exige teoria; teoria exige abstração; abstração requer<br />

simplificação e ordenamento da realidade”. 3<br />

Huntington, em seu esforço para auxiliar os pesquisadores, legou um estudo que, até<br />

hoje, permanece atualizado no que tange aos seus instrumentos de análise, embora tenha sido<br />

imaginado para uma sociedade e cultura específicas, no caso os Estados Unidos da América<br />

(EUA), e condicionado por pressupostos específicos, como por exemplo, considerar o mundo<br />

1<br />

Samuel P. HUNTINGTON, O Soldado e o Estado: teoria política das relações entre civis e militares. Rio de<br />

Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996, p. 16.<br />

2<br />

Uma comparação interessante entre esses mundos ocorre quando se compara as finalidades últimas da Justiça<br />

dos “civis” com aquelas da Justiça “Militar”; a primeira na preservação da liberdade e a segunda da obediência,<br />

inclusive nos limites dessa obediência.<br />

3<br />

HUNTINGTON, 1996, p. 15.


militar ideal, como uma totalidade, um subsistema que se equipara ao civil. Apesar disso, seus<br />

paradigmas serão utilizados nesta Seção, por proporcionarem referências, inexistentes em<br />

outros autores para a finalidade desta pesquisa, que permitem a realização de uma<br />

comparação com as condições vigentes no Brasil do período em estudo e a extração de<br />

conclusões para consecução desta investigação.<br />

Na sua formulação, Samuel Huntington considera a existência de três pontos de<br />

equilíbrio essenciais para as relações entre civis e militares, as quais estariam submetidas a<br />

duas esferas de tensão opostas entre si. O primeiro desses pontos de equilíbrio (aliás, um dos<br />

pressupostos metodológicos do autor) estabelece “que em toda sociedade a relação civil-<br />

militar deva ser estudada como um sistema composto de elementos interdependentes” 4<br />

envolvendo “autoridade 5 , influência 6 e ideologia 7 dos militares, por um lado, e autoridade,<br />

influência e ideologias de grupos não-militares, por outro” 8 .<br />

O segundo ponto de equilíbrio está relacionado com o grau de profissionalização dos<br />

militares, com a natureza e a finalidade das instituições militares, o qual ele denominou de<br />

controle civil objetivo, o ideal para Huntigton.<br />

Quanto ao terceiro ponto de equilíbrio, ele deriva de outros pólos de tensão:<br />

102<br />

“As instituições militares de qualquer sociedade são moldadas por duas forças: um<br />

imperativo funcional, que se origina das ameaças à segurança da sociedade, e um<br />

imperativo societário, proveniente das forças sociais, das ideologias e das<br />

instituições dominantes dentro dessa mesma sociedade. Instituições militares que só<br />

refletem valores sociais podem ser incapazes de desempenhar com eficiência sua<br />

função específica. Por outro lado, poderá ser impossível conter dentro de uma<br />

sociedade instituições militares moldadas exclusivamente por imperativos<br />

funcionais. É na interação dessas duas forças que está o nó do problema das relações<br />

entre civis e militares. O grau em que elas entram em conflito depende da<br />

intensidade das exigências de segurança e da natureza e força do padrão de valores<br />

da sociedade. Nem sempre é inevitável que existam ajustamento e equilíbrio entre as<br />

duas forças; sociedades há que podem ser inerentemente incapazes de prover<br />

eficazmente a própria segurança militar – falta-lhes apreço pela sobrevivência numa<br />

era de ameaças contínuas”. 9<br />

Da pesquisa realizada, é possível deduzir das relações civis e militares no Brasil, entre<br />

1954 e 1964, que o primeiro ponto de equilíbrio (autoridade, influência e ideologia) rompeu-<br />

se em desfavor dos civis, entre outras razões, pela existência de dispositivos constitucionais<br />

que atribuíam aos militares a prerrogativa de realizar intervenções, desde que mantidas as<br />

4 HUNTINGTON, 1996, p. 16.<br />

5 Refere-se à posição formal e estrutural das instituições militares no governo. Idem, p. 16.<br />

6 Trata do papel informal e da influência de grupos militares na política e na sociedade como um todo. Ibidem.<br />

7 Diz respeito à natureza da ideologia dos grupos militares (uma só: realista e conservadora) e das ideologias<br />

não-militares (liberal, marxista, fascista e conservadora), que são utilizadas para a comparação. Ib.<br />

8 Ib.<br />

9 Ib., p. 20. Este último ponto de equilíbrio, sem menção direta do autor, foi melhor desenvolvido em Samuel P.<br />

HUNTINGTON, em A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, São Paulo: Forense/ EDUSP, 1975.


condições vigentes do modelo moderador 10 , como a devolução do poder aos civis, e, neste<br />

caso, com o respaldo político, da imprensa e da opinião pública.<br />

Essa prerrogativa concedia-lhes excessiva autoridade e influência, colocando-os em<br />

posição superior a do próprio Presidente da República, conforme ficou evidenciado em todas<br />

as intervenções militares ocorridas no período, inclusive naquelas em que não se formou o<br />

consenso 11 e, ao menos aparentemente, os intervencionistas saíram derrotados, como durante<br />

a campanha da legalidade, ocasião em que se chegou a uma composição política capaz de<br />

atender os desejos dos ministros militares que, na verdade, expressavam também os dos<br />

segmentos conservadores civis. A ruptura do ponto de equilíbrio ocorria, também, em função<br />

do fracionamento civil e militar originado das clivagens ideológicas, exacerbadas a cada nova<br />

intervenção.<br />

A questão ideológica merece maiores comentários, pois não tem a conotação literal do<br />

termo. Como já se sabe, ela se refere à natureza da ideologia dos grupos militares e das<br />

ideologias dos grupos não-militares, considerados como subsistemas isolados. Pelo viés<br />

militar, Huntington, considerava, apenas, uma, que ele chama de ética profissional ou<br />

mentalidade militar, realista e conservadora 12 . Essa última não se adéqua ao perfil dos<br />

militares brasileiros daquele período histórico, porquanto inseridos no modelo moderador e<br />

com uma mentalidade própria de participação na política, a qual, além de segmentar<br />

internamente as Forças Armadas (entre elas) e as próprias forças singulares (dentro de cada<br />

uma), ao criar afinidades que perpassavam esses limites, realizava a aglutinação de tais<br />

10 Conforme visto anteriormente, pelos critérios de Huntington, o modelo de controle que mais se aproximava da<br />

situação vigente no Brasil era o civil subjetivo, de maximização do poder civil, mais particularmente, de<br />

algum(ns) grupo(s) civil(is) sobre os demais, com o envolvimento dos militares na política partidária,<br />

institucional, classista ou constitucional. Entretanto, prefere-se utilizar o modelo moderador por aplicar-se,<br />

especificamente, ao caso brasileiro.<br />

11 Para Golbery do Couto e Silva, os “ativistas militares pró ou contra o governo constituem sempre uma<br />

minoria. Se um grupo militar deseja derrubar o governo, precisa convencer a grande maioria de oficiais que são<br />

ou legalistas estritos ou simplesmente não-ativistas. Os ativistas não querem arriscar derramamento de sangue ou<br />

cisões militares, de forma que esperam até que se tenha conseguido um consenso. Deste modo, os movimentos<br />

que visam depor um presidente precisam da opinião pública para ajudar a convencer os próprios militares.<br />

Assim, ocorreu em 1945, 1954 e 1964. Em 1961, os chefes militares agiram contra a opinião pública e tiveram<br />

de retroceder”. Citado em STEPAN, em Os Militares na Política, 1971, p 74.<br />

12 Cf. HUNTINGTON, 1996, p. 96: “A ética militar enfatiza a imutabilidade, a irracionalidade, a fraqueza e a<br />

maldade da natureza humana. Proclama a supremacia da sociedade sobre o indivíduo e a importância da ordem,<br />

da hierarquia e da divisão de funções. Salienta a continuidade e o valor da história. Aceita o Estado-nação como<br />

a forma mais alta de organização política e reconhece a constante probabilidade da guerra entre países. Destaca a<br />

importância do poder nas relações internacionais e adverte contra os perigos à segurança do Estado. Sustenta que<br />

a segurança do Estado depende da criação e da manutenção de Forças Armadas fortes. Preconiza a limitação da<br />

ação estatal com relação aos interesses imediatos do Estado, a restrição de compromissos exagerados e taxa de<br />

indesejáveis políticas belicosas e aventureiras. Considera a guerra como um instrumento da política, que os<br />

militares são servidores do governante e que o controle civil é essencial ao profissionalismo militar. Exalta a<br />

obediência como a maior das virtudes do militar. Desse modo, a ética militar é pessimista, coletivista,<br />

historicamente influenciada, orientada para o poder, nacionalista, militarista, pacifista e instrumentalista em sua<br />

visão da profissão militar. É em suma, realista e conservadora”. Como se vê, muito similar ao realismo.<br />

103


segmentos com aqueles civis afins, unindo-os, por comunicação externa aos seus subsistemas.<br />

Pelo lado civil da polaridade, Huntington apresenta algumas ideologias 13 , chamadas de<br />

espécies de éticas civis ou mentalidades civis, as quais Stepan denomina de modelos, nome<br />

adotado neste estudo. Esses modelos eram o liberal, fascista, marxista e conservador, sendo<br />

este último, considerado igual ao da ética profissional militar (por isto chamado de<br />

profissional). Por suas características específicas, eles, também, não eram aplicáveis à<br />

estrutura de relações entre civis e militares vigente no Brasil, conforme foi demonstrado por<br />

Stepan em Os Militares na Política, levando-o a adotar o modelo moderador.<br />

Entretanto, para Samuel Huntington, o fulcro da comparação “em cada caso” referia-<br />

se “a extensão em que a ideologia, vista como um sistema de idéias, compatibiliza-se com a<br />

ética militar ou lhe é hostil”. 14 Para ele, das ideologias civis analisadas – liberalismo,<br />

fascismo, marxismo e o conservadorismo – todas, exceto a última, eram hostis à ética militar<br />

e, por consequência, desequilibravam as relações entre civis e militares:<br />

104<br />

“Se a ideologia for inerentemente antimilitar (como o liberalismo, o fascismo e o<br />

marxismo), o militar só adquire substancial poder político sacrificando o<br />

profissionalismo e aderindo aos valores e atitudes que predominam dentro da<br />

comunidade. Numa tal sociedade antimilitar, o profissionalismo militar e o controle<br />

civil são maximizados pela renúncia dos militares à autoridade e à influência, e por<br />

levarem uma existência modesta, isolada e divorciada da vida geral da sociedade.<br />

[...] As concessões que os militares fazem a fim de adquirir poder numa sociedade<br />

que não lhes é simpática são apenas um exemplo do fenômeno geral dos efeitos<br />

aperfeiçoadores e enfraquecedores de poder. Parece um truísmo dizer que o poder<br />

dissipa o princípio e que aqueles que se apegam a sistemas definitivos, dogmáticos e<br />

rígidos de valor são excluídos de poder numa sociedade pluralística. Só aquele que é<br />

flexível, desejoso de se adaptar e pronto a se comprometer pode conquistar apoio<br />

generalizado; o poder terá sempre que ser comprado por um preço. O preço que os<br />

militares têm que pagar depende do tamanho da brecha entre a ética militar e as<br />

ideologias predominantes na sociedade. O efeito que a aquisição de poder numa<br />

sociedade não-conservadora tem sobre os militares é semelhante aos efeitos<br />

moderadores que a aquisição de poder tem sobre radicais. Michels observa em<br />

determinado ponto de seu Polítical Parties que os "socialistas podem triunfar, mas<br />

jamais o socialismo". O mesmo é verdadeiro com os militares numa sociedade que<br />

não lhes é simpática. Os generais e os almirantes podem triunfar, mas não a ética<br />

profissional militar. O efeito domador do poder político faz deles bons liberais, bons<br />

fascistas e bons comunistas, porém maus profissionais. As satisfações de<br />

desempenho profissional e a adesão ao código profissional são substituídas pelas<br />

satisfações de poder, posição, riqueza, popularidade e aprovação de grupos nãomilitares”.<br />

15<br />

Conforme as características apresentadas pelo modelo moderador 16 e explicitadas na<br />

Seção 2, verifica-se ser ele, também, hostil à ética militar ideal, inicialmente pelo fato de não<br />

13<br />

Cf. HUNTINGTON, 1996, p. 108, “Ideologia política é um conjunto de valores e atitudes orientados em torno<br />

dos problemas de Estado”.<br />

14<br />

HUNTINGTON, 1996, p. 109.<br />

15<br />

Idem, p. 113-114.<br />

16<br />

Os principais componentes do modelo moderador são encontrados em Alfred STEPAN, Os Militares na<br />

Política, Rio de Janeiro: Artenova, 1971, p. 50-51. V. tb. Seção 2, p. 37, Nota 90, deste trabalho.


ser o profissional e, também, por estar inteiramente enquadrado no que foi exposto na citação<br />

de Huntington supra explicitada, tornando-o incompatível com um adequado equilíbrio para<br />

as relações entre civis e militares.<br />

Quanto ao segundo ponto de equilíbrio (do controle civil objetivo), em decorrência dos<br />

efeitos impostos pela fratura do primeiro, não tinha a menor possibilidade de realizar-se<br />

naquelas circunstâncias, razão pela qual Alfred Stepan foi levado a descartá-lo e adotar como<br />

paradigma o modelo moderador, admitindo, entretanto, a existência de indícios de<br />

profissionalismo nos moldes preconizados por Samuel Huntington, os quais, pela situação<br />

existente, não tinham condições de vicejar.<br />

No que tange ao terceiro ponto de equilíbrio (imperativo funcional versus imperativo<br />

societário) cujas características são melhor delineadas quando Huntington trata das sociedades<br />

em mudança 17 ele, também, fora rompido por vários motivos em decorrência das questões que<br />

afetavam: no eixo político, o baixo grau de institucionalização 18 e alta instabilidade, fatores<br />

indutores de violência política (intervenções); no eixo do desenvolvimento econômico e<br />

humano – a ausência de emprego, renda, poupança, investimento e consumo, entre outros –,<br />

não superação do atraso industrial e incapacidade de reduzir as desigualdades – pobreza,<br />

analfabetismo, condições de saúde da população, entre outras; e no eixo social, as forças<br />

sociais – em termos de participação – não visualizavam um mínimo de bem estar e sequer<br />

condições sociais avançadas, ao contrário, conforme Oliveiros S. Ferreira, encontravam-se<br />

incapacitadas de dirigir o seu destino, atreladas que estavam a vontade dos príncipes, a elite<br />

política e sindical, vale dizer, tinham se perdido de seus objetivos e virado “gado eleitoral do<br />

Estado, na magistral expressão de Engels” 19 . Assim como os militares, as forças sociais<br />

tornaram-se meros peões do jogo político e detonadores nas lutas ideológicas.<br />

As contínuas intervenções militares no Estado, antecipadas ou secundadas pela<br />

anarquia militar vigente, apenas confirmavam ser esta situação insustentável. Elas se<br />

transformaram em uma forma de corrupção do sistema que, apesar da sua aparência benigna,<br />

ao resolver os impasses políticos, tinha se tornado tão deletéria quanto aquela “proverbial”, de<br />

origem política e econômica, que vicejava em governos instáveis, fracos, geradores de vácuos<br />

periódicos, piores que “os juízes corruptos, os soldados covardes e os professores ignorantes”,<br />

17 V. Seções 2 e 3.<br />

18 Samuel P. HUNTINGTON, em A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, 1975, p. 17, assinala que: “As<br />

taxas de mobilização social e de expansão da participação política são altas; as taxas de organização política e<br />

institucionalização são baixas. O resultado é instabilidade política e desordem”.<br />

19 Cf. citado em Oliveiros S. FERREIRA, As Forças Armadas e o Desafio da Revolução, Rio de Janeiro: GRD,<br />

1964. (Edição digital, sem numeração de páginas). Disponível em: Acesso em: 10/02/ 2011).<br />

105


no dizer de Huntington 20 . A importância do conteúdo teórico de Huntington, descrito no<br />

Soldado e o Estado e na Ordem Política nas Sociedades em Mudança, além da pertinência<br />

dos instrumentos de análise, consiste em esclarecer a condição em que se encontrava o País.<br />

De todos os males que podem afligir um Estado, não há nada maior, do que o vácuo de<br />

poder, raramente ausente naqueles curtos-circuitos que conduziram às intervenções militares<br />

na política. Nos países em transição para a modernidade, democracias frágeis ou em<br />

construção, dos quais fala Huntington, seus efeitos são devastadores, como era o caso do<br />

Brasil na fase histórica em análise neste estudo. Em grau menor, mas não menos prejudiciais,<br />

encontravam-se os descompassos entre os eixos político, econômico e humano e das forças<br />

sociais, condutores dos destinos das nações.<br />

Durante a elaboração desta pesquisa, foi possível detectar que o Brasil era o reflexo<br />

dos seus enormes descompassos, hiatos recorrentes no período de interesse (1954-1964), que<br />

o conduziam a viver numa situação na qual os militares eram partícipes dos cismas que<br />

dividiam a política, com todos os partidos políticos mobilizando esforços para controlar o<br />

Exército Brasileiro (o centro de gravidade) e, em menor grau, as demais Forças Armadas.<br />

Aquela força singular, alternando posicionamentos de neutralidade, engajamento pró ou<br />

engajamento contra contribuía para agravar a situação. A neutralidade favorecia a um dos<br />

lados e isso colocava em um dilema os defensores de um afastamento dos militares da<br />

política.<br />

Para complicar, o Brasil também estava envolvido em uma luta ideológica, de vezo<br />

internacional, que penetrava o estamento militar, tornando impossível o isolamento da classe<br />

castrense daqueles embates, como desejavam alguns oficiais.<br />

Nessa luta, de acordo tanto com Samuel Huntington 21 , como com Werneck Sodré e<br />

Oliveiros S. Ferreira, para citar apenas alguns, a vantagem estratégica estava com os<br />

comunistas, pois ofereciam melhor organização, uma alternativa de acúmulo de poder que<br />

eliminava os vácuos e a escassez de autoridade e forneciam legitimidade: ofereciam governo.<br />

Para complicar o quadro, as propostas dos Estados Unidos da América estavam,<br />

estrategicamente, em desvantagem, pois raciocinavam, num ambiente em franca<br />

decomposição, com eleições livres, alternância e divisão de poder, enfim, uma democracia<br />

liberal, cuja ordem natural seria a assistência econômica, o desenvolvimento econômico e a<br />

estabilidade política.<br />

Vale registrar que a ruptura do equilíbrio nas relações entre civis e militares deitava<br />

influências sobre a direita radical. Mesmo não sendo a pretensão deste trabalho verificar,<br />

20 HUNTINGTON, 1975, p. 40.<br />

21 Idem, p. 2, 3, 20, 44 etc.<br />

106


pormenorizadamente, essas influências e sim o contrário, da direita radical sobre as relações<br />

entre civis e militares, elas existiam, representadas no desequilíbrio vigente, resultado do<br />

processo de transformação modernizante pelo qual o País passava, dentre cujas manifestações,<br />

reafirma-se, a anarquia militar disseminada, a qual, somada aos influxos provenientes da luta<br />

política e dos constrangimentos externos, penetrava até os mais recônditos dos espaços<br />

castrenses, influenciando o processo de decisão dos radicais da direita.<br />

Entretanto, esta investigação – sem desconsiderar tal realidade – pretende verificar,<br />

justamente, as influências da direita radical sobre as relações entre civis e militares, no sentido<br />

de contribuir para desequilibrá-las, e, lembrando Huntington 22 , procurar as consequências<br />

desse efeito para a segurança e a defesa.<br />

Antes de aprofundar a análise, entretanto, ressalta-se a premissa de vigência, no Brasil<br />

do período em estudo, de modelo específico (admite-se o do controle civil subjetivo, na forma<br />

pretoriana ou moderadora). Assim, serão estudados os aspectos atinentes ao primeiro ponto<br />

de equilíbrio (envolvendo autoridade, influência e ideologia) e ao terceiro (do imperativo<br />

funcional versus imperativo societário 23 ). Excluindo-se, a priori, o segundo, do controle civil<br />

objetivo, por ser inaplicável, embora deva sempre permanecer na mente do leitor como uma<br />

referência a ser utilizada como comparação.<br />

5.1 A DIREITA RADICAL NO EQUILÍBRIO DAS RELAÇÕES ENTRE CIVIS E<br />

MILITARES<br />

Huntington acentua que a primeira referência de equilíbrio das relações entre civis e<br />

militares deve ocorrer no confronto entre autoridade (formal), influência (autoridade informal)<br />

e ideologias (éticas ou mentalidades) dos civis em face dos mesmos termos dos militares.<br />

Neste contexto, deve-se reiterar a proeminência da autoridade formal e informal dos militares<br />

perante os civis, tão grande, que desequilibrava tais relações no período em estudo.<br />

É natural que, em razão do grau hierárquico e funcional dos conspiradores engajados<br />

nos segmentos radicais de direita, das camadas médias da estrutura militar, o critério da<br />

autoridade formal, considerada como a “posição formal e estrutural das instituições militares<br />

no governo” 24 , não se aplica diretamente a eles. Entretanto, para investigar a influência desses<br />

22 HUNTINGTON, 1996, p. 16, “A relação entre civis e militares constitui um dos aspectos da política de<br />

segurança nacional” e da segurança militar (v. ref. Nota 17).<br />

23 Neste caso, para não tornar mais complexas as análises, não será abordado o eixo econômico, apesar de suas<br />

influências sobre o contexto, particularmente na questão do nacional desenvolvimentismo que se imiscuía na<br />

questão ideológica. Serão privilegiados os eixos político e social.<br />

24 Idem, p. 16.<br />

107


grupos sobre as relações entre civis e militares interessa considerar a assertiva de Huntington<br />

segundo a qual “Como partes de um sistema total, nenhum desses elementos pode sofrer<br />

alteração sem produzir alterações maiores nos outros elementos”. 25 Isso significa, que, mesmo<br />

com o distanciamento dos grupos radicais do critério (formal) decorrente de status e posição<br />

hierárquica ou organizacional, ele não estava imune às ações dos radicais que, por meio das<br />

alterações que impunham nos âmbitos da autoridade informal e das ideologias, influenciavam<br />

– por via indireta – o critério da autoridade formal.<br />

Nessa pesquisa de causas e efeitos, vale ter em mente que: no período considerado<br />

(1954-1964), o interregno nas atividades dos radicais de direita, correspondente ao governo<br />

do Presidente Jânio Quadros, não agrega valor, por isso, não será objeto das análises, que se<br />

fixarão na primeira e segunda fases de atuação daqueles ativistas; os critérios adotados se<br />

referem ao primeiro ponto de equilíbrio, das influências militares vis-a-vis aos civis, os quais,<br />

em função das peculiaridades brasileiras, de fusão entre interesses e participações de civis e<br />

militares nos eventos que são objetos deste estudo, serão verificados quanto aos efeitos das<br />

atitudes e atividades dos radicais de direita sobre ambos os lados da balança; e que, grosso<br />

modo, pode-se dividir os participantes do processo, apoiando-se parcialmente em Stepan,<br />

entre militares e civis 26 governistas (populistas – civis – e os autodenominados nacionalistas<br />

– militares e comunistas) e pró-regime 27 (amplo espectro que incluía parte dos conservadores<br />

e que, conforme Stepan, decidia os impasses políticos), conservadores e radicais de direita (os<br />

anti-regime 28 ) e a grande massa de neutros 29 .<br />

Para Huntington, na (primeira) referência de equilíbrio (autoridade – formal,<br />

influência – autoridade informal – e ideologias) existiriam dois níveis: no primeiro, do<br />

poder 30 , do corpo de oficiais frente aos grupos civis dentro da sociedade, na forma de<br />

autoridade formal 31 e informal 32 (influência). Este poder é aferido em termos de grau (nível<br />

25 HUNTINGTON, 1996, p. 16. Neste trabalho os elementos de Huntington foram transformados em critérios.<br />

26 Incluindo: Senadores, deputados, governadores, líderes políticos, editores de jornais e cidadãos.<br />

27 Alfred STEPAN, em Os Militares na Política, Rio de Janeiro: Artenova, 1971, p. 53, explicita: os “civis próregime<br />

que, embora apoiando as leis básicas do regime, freqüentemente discordam do governo e desejam<br />

controlar o executivo através de outros métodos que não o legislativo e os meios eleitorais”, ou seja, golpe.<br />

28 “Os civis anti-regime, que se opõem não só ao governo, mas também ao próprio regime e pretendem alterar as<br />

leis básicas e a estrutura da autoridade”. Idem.<br />

29 Embora Alfred STEPAN enfatize a importância decisiva dos civis pró-regime, Golbery do Couto e Silva<br />

chama a atenção para a importância dos neutros, conforme foi visto na Nota 9, acima.<br />

30 “Poder é a capacidade de controlar o comportamento de outras pessoas. Uma relação de poder tem, no<br />

mínimo, duas dimensões: o grau ou volume de poder, isto é, a extensão à qual um particular tipo de<br />

comportamento de uma pessoa é controlado por outra e, em segundo lugar, o alcance ou a faixa de poder, isto é,<br />

os tipos de comportamento que são influenciados por outro indivíduo ou por um grupo. As relações entre duas<br />

pessoas ou grupos, normalmente, envolvem o exercício de poder em ambas as direções, embora quase sempre<br />

em faixas superpostas sejam um tanto diferentes”. HUNTINGTON, 1996, p. 105.<br />

31 “A autoridade formal envolve o controle de uma pessoa sobre o comportamento de outra na base de suas<br />

respectivas posições numa estrutura social definida. A autoridade não é inerente ao indivíduo, mas é um atributo<br />

108


elativo e unidade relativa) 33 e alcance 34 ; no segundo, o ideológico, contrapõe a ética<br />

profissional militar às ideologias (éticas) políticas predominantes na sociedade.<br />

No âmbito da autoridade informal (influência 35 ), que é uma das que interessa mais<br />

particularmente a esta pesquisa, existem quatro índices, propostos por Huntington, por meio<br />

dos quais é possível fazer esta avaliação:<br />

109<br />

“(1) As associações de grupo do corpo de oficiais e de seus líderes. Um dos testes de<br />

influência de um grupo é a extensão e a natureza de suas associações com outros<br />

grupos ou indivíduos poderosos 36 .<br />

(2) Recursos econômicos e humanos sujeitos à autoridade do corpo de oficiais e seus<br />

chefes. 37<br />

(3) Interpenetração hierárquica do corpo de oficiais e outros grupos. A influência<br />

militar aumenta quando membros do corpo de oficiais assumem posições de<br />

autoridade em estruturas não-militares de poder. A influência militar decresce na<br />

medida em que indivíduos não-militares ingressam em posições dentro do corpo de<br />

oficiais formalmente definido.<br />

(4) Prestígio e popularidade do corpo de oficiais e seus chefes. A reputação do corpo<br />

de oficiais e seus chefes junto à opinião pública, bem como as atitudes de vastos<br />

setores ou grupos categorizados da sociedade para com os militares, constituem,<br />

obviamente, elementos capitais em determinar influência militar”. 38<br />

Nesse âmbito, na primeira (antes de Jânio) e segunda (depois) fases de atuação dos<br />

radicais de direita, as associações entre eles ocorriam por afinidades ideológicas e intra forças<br />

singulares, sendo o caso mais marcante o da Força Aérea, e pela opção do “modus operandi”<br />

e ramificavam-se pelos segmentos políticos conservador e radical, militar, da imprensa e da<br />

opinião pública, em estado de verdadeira fusão, os quais respaldavam, conforme foi visto nas<br />

de status e posição. Conseqüentemente, é poder ordenado, estruturado e legitimado. É um padrão ininterrupto de<br />

relações que permanece relativamente constante através de sucessivas mudanças nos indivíduos envolvidos por<br />

essas relações. Seu exercício tem a sanção de constituições, estatutos, decretos, regimentos internos ou costumes<br />

de longa data aceitos”. HUNTINGTON, 1996, p. 105.<br />

32 “Relações informais também existem onde uma única pessoa ou grupo de pessoas controla o comportamento<br />

de outras pessoas, não porque ocupa posições particulares numa estrutura formal, mas porque controla outras<br />

sanções ou recompensas”. Idem.<br />

33 “Extensão à qual um particular tipo de comportamento de uma pessoa é controlado por outra”... Quanto mais<br />

alto for o nível de autoridade de um grupo, maior será a unidade de sua estrutura”. Ibidem.<br />

34 Os “tipos de comportamento que são influenciados por outro indivíduo ou por um grupo”... “quanto mais<br />

amplo for o alcance de sua autoridade mais poderoso ele será”. Ib.<br />

35 HUNTINGTON, 1996, p. 105, “Tal influência pode derivar da personalidade, da riqueza, dos conhecimentos,<br />

do prestígio, da amizade, do parentesco ou de uma grande variedade de outras fontes. Sua característica peculiar,<br />

entretanto, está em sempre pertencer a indivíduos ou grupos específicos e não ao papel ou as posições que esses<br />

indivíduos ou grupos possam ocupar” e, nas outras fontes, as afinidades políticas, culturais ou ideológicas.<br />

36 Samuel Huntington proporciona alguns exemplos, para o corpo de oficiais: associações pré-militares, que<br />

antecedem o ingresso no oficialato, como aquelas de classe social ou de áreas geográficas; associações no<br />

serviço ativo, como vínculos especiais originados de participação em comissões parlamentares ou do<br />

relacionamento com as indústrias; e associações pós-militares, decorrentes do exercício de atividade por oficiais<br />

na reserva. Idem, p. 107.<br />

37 Huntingon sugere que “Quanto maior for a proporção do produto nacional dedicado a fins militares e quanto<br />

mais expressivo for o número de indivíduos que prestam serviços às Forças Armadas, quer como civis quer<br />

como militares, maior será a influência do corpo de oficiais e seus chefes”. Idem, p. 107.<br />

38 Ibidem, p. 107-108.


Seções 2, 3 e 4, as ações conservadoras e radicais.<br />

Devido à disseminação dos movimentos para o lado civil da balança, estes adquiriam<br />

um momentum com efeito sinérgico maior do que aquele imaginado por Huntington para<br />

apenas um dos lados da balança e, nesse efeito, reforçavam o prestígio e a popularidade dos<br />

segmentos radicais, ao mesmo tempo que erodiam o poder dos militares assentes na<br />

hierarquia institucional, portanto diminuindo o grau e o alcance dos seus poderes. Por outro<br />

lado, tais ações reforçavam o alcance de indivíduos como Carlos Lacerda, Eduardo Gomes,<br />

Adhemar de Barros, entre outros, particularmente nas suas capacidades de barganha, pela<br />

pressuposição de vinculação com as ações dos grupos radicais e, por isso, aumentando a<br />

percepção sobre os reais efeitos das ações, as quais poderiam, perfeitamente, conduzir a crises<br />

de proporções não previsíveis, particularmente em um país instável e que tangenciava o<br />

abismo diuturnamente.<br />

Assim, tornaram-se compreensíveis as frequentes anistias, medidas tradicionais na<br />

política brasileira, propaladas como ações políticas magistrais dos Presidentes da República<br />

que as promulgaram, as quais ganhavam veleidades de peças destacadas da esperteza política<br />

nacional, ao perdoar os insurretos, pois os revoltosos anistiados tinham a oportunidade de<br />

voltar aos seus misteres como se nada tivesse acontecido. Vale registrar, que na História<br />

brasileira, as anistias tinham o caráter de compor os antagonismos, expressados nas diversas<br />

formas de resistência, que, até sob os piores disfarces, sempre, eram divulgadas como<br />

democráticas. Para isso, normalmente, contavam com amplo espectro de apoio,<br />

correspondente à direita ou à esquerda, amparado nos partidos políticos, membros do<br />

judiciário, advogados, imprensa, militares e opinião pública, reunidos em claque para<br />

sancionar o perdão aos maiores desatinos.<br />

Apesar do caráter de perdão, com forte conteúdo de pacificação, tão caro à cultura<br />

nacional, tais atos, tinham, também, um lado pouco explorado, o caráter de rendição, no caso,<br />

aos reclamos dos civis e militares rebelados em mais de uma ocasião. Não há desequilíbrio<br />

maior para um governo do que se render às possibilidades múltiplas de erosão no seu poder,<br />

por ataques oriundos das direções civis e militares e, dessa forma, de ruptura de equilíbrio das<br />

relações entre civis e militares.<br />

Huntington, em seu índice seguinte, dos recursos econômicos e humanos sujeitos à<br />

autoridade do corpo de oficiais e seus chefes, mais uma vez estava vendo apenas um dos<br />

lados, o qual, por si só, é significativo em explicitar que a disponibilidade de recursos pode<br />

ser fator desestabilizador para as relações entre civis e militares. O que ele não podia imaginar<br />

era que, no Brasil, grupos civis poderosos, incluídos governadores de Estado,<br />

110


disponibilizavam amplos recursos materiais e humanos a oficiais em permanente situação de<br />

conspiração e de rebelião. Dessa maneira, foi possível realizar deslocamentos aéreos em<br />

aviação comercial, sem custo, e adquirir armamentos, inclusive pesados, e munições para<br />

apoiar a resistência conservadora, com os radicais de direita à frente. Neste aspecto, também,<br />

os radicais de direita contribuíram para desestabilizar o equilíbrio de tais relações, na medida<br />

em que foram capazes de articular um dispositivo militar, apoiado material e financeiramente<br />

por grupos civis poderosos a ponto de torná-los capazes, em conjunção com os conservadores,<br />

de enfrentar o dispositivo governamental.<br />

Desconsiderando o terceiro índice, de interpenetração hierárquica do corpo de oficiais<br />

e outros grupos, inaplicável ao caso dos segmentos radicais, por atuarem fora da estrutura<br />

formal, chega-se ao quarto índice que trata do prestígio e popularidade do corpo de oficiais e<br />

seus chefes. Em um quadro político, econômico e social profundamente fragmentado, a busca<br />

de prestígio e popularidade direcionava-se para o lado do espectro político favorável. No caso<br />

dos radicais de direita, as ações estavam voltadas, visivelmente, para os segmentos radicais e<br />

conservadores da própria sociedade, por quem eram respaldados. Mas não se limitavam a<br />

esses segmentos. A luta surda que se travava era pelos corações e mentes dos chamados<br />

neutros, quem, verdadeiramente, iria decidir a contenda. Assim, o desencadeamento das ações<br />

dos radicais, tanto na primeira fase como na segunda, caracterizadas como incruentas,<br />

audaciosas, corajosas e amparadas em ideais de preservação da nacionalidade, contribuía para<br />

que adquirissem prestígio e popularidade entre seus pares, os conservadores e a opinião<br />

pública favorável, além de servir para a conquista dos corações e mentes dos neutros, em<br />

função das motivações para a realização dessas ações, muitas coincidentes com o<br />

posicionamento da opinião pública em geral, da divulgação e da repercussão que elas<br />

adquiriam, tudo em prejuízo dos adversários, da liderança formal e do equilíbrio das relações<br />

entre civis e militares.<br />

Do exposto, tendo sido considerado o segundo critério (autoridade informal), da<br />

primeira referência de equilíbrio para as relações entre civis e militares (autoridade – formal;<br />

influência – autoridade informal; e ideologias) como instrumento de análise na participação<br />

da atuação da direita radical no (des)equilíbrio dessas relações, verifica-se que, com suas<br />

ações, aquele segmento contribuiu significativamente para acirrar essa idiossincrasia.<br />

Em seguida, ver-se-á o terceiro critério (ideologias), da primeira referência. Para<br />

Huntington, a verificação do grau de equilíbrio das relações entre civis e militares, por este<br />

critério, estaria submetida a comparação da ética profissional prevalecente do meio militar 39<br />

39 Cf. HUNTINGTON, 1996, p. 96: “É em suma, realista e conservadora”.<br />

111


com as ideologias políticas 40 vigentes no âmbito civil (as éticas civis), cujo teste seria “a<br />

extensão a que a ideologia, vista como um sistema de idéias, compatibiliza-se com a ética<br />

militar ou lhe é hostil”.<br />

Em A Ordem Política das Sociedades em Mudança, Huntington acrescenta, aos<br />

modelos apresentados em O Soldado e o Estado (liberal, fascista, marxista e conservador), o<br />

que ele próprio entende como modelo pretoriano e que veio a servir de inspiração para Stepan<br />

na formulação do modelo moderador, em que ele descarta, para o caso brasileiro, tanto a ética<br />

profissional militar quanto as éticas civis (modelos) de Huntington, conforme foi apresentado<br />

na Seção 2.<br />

De acordo com a descrição de Stepan “os militares também são politizados e todos os<br />

grupos tentam cooptá-los para aumentar sua força política” 41 , no que eram correspondidos<br />

pela “diversidade e a abertura da instituição militar brasileira” 42 além de que, em<br />

“conseqüência das cisões internas das Forças Armadas e das tentativas que fizeram os grupos<br />

civis para atraí-los à política” 43 eles não eram unânimes em suas convicções políticas e<br />

ideológicas, refletindo a ampla diversidade da opinião pública. 44 Essas manipulações eram<br />

efetivadas pelos três grupos principais que incluíam militares e civis, inclusive do clero,<br />

governistas, pró-regime e anti-regime.<br />

Os ativistas da direita atuavam no grupo de militares e civis anti-regime, cuja ética já<br />

se teve ocasião de examinar por ocasião da análise das suas inspirações e ações na Seção 4,<br />

mas que, em resumo, não contemporizavam com o populismo 45 e os autodenominados<br />

nacionalistas, atuando como vanguarda do conservadorismo nos ataques contra aquela<br />

ideologia predominante, nas duas fases em que foram desencadeadas as ações desse<br />

segmento, particularmente contra os governantes constituídos e as autoridades com quem<br />

40<br />

Cf. HUNTINGTON, 1996, p. 108: liberalismo, fascismo, marxismo e o conservadorismo.<br />

41<br />

STEPAN, 1971, p. 49.<br />

42<br />

Idem.<br />

43<br />

Ibidem, p. 53.<br />

44<br />

Ib.<br />

45<br />

Um episódio interessante dessa animosidade pode ser encontrada em ARGOLO et alli, Dos quartéis à<br />

espionagem: caminhos e desvios do poder militar, p. 150-3, no depoimento do Coronel Luiz Helvécio da<br />

Silveira Leite, referindo-se aos primeiros momentos após a vitória do Movimento Militar de 31 de Março,<br />

quando narra sua vontade de matar uns dois ministros de João Goulart e, ao saber, que o então Ministro da<br />

Justiça Abelardo Jurema estava sendo interrogada no comando da Escola de Comando e Estado-Maior do<br />

Exército (ECEME), dirigiu-se à sala de interrogatório e “Eu o provoquei: Chama de gorila. Tu não dissestes que<br />

nós estávamos entregando o Vale do Paraíba? Seu canalha, seu crápula! Acabou-se. Aí, dei-lhe um chambão,<br />

dei-lhe uma pernada. Eu estava louco para pegá-lo ali, esganá-lo [...]. Ele criou um Comissariado do Povo ali<br />

atrás do Palácio do Catete durante o governo João Goulart, que era para cuidar dos assuntos econômicos.<br />

Comissariado do Povo! Veja a similitude com o regime comunista que vinha sendo posto em prática no País. Aí<br />

eu ameacei: Seu canalha, você será fuzilado e pendurado nesta árvore bem aí em frente! Está vendo? Não tenha<br />

dúvida. Vai ser fuzilado, seu canalha, pelos crimes que cometeu”. Após isso solicitou ao comandante da<br />

ECEME, General Bizarria Mamede, que entregasse o interrogado para ser fuzilado, conforme o prometido. O<br />

comandante anuiu, mas, adotando um despistamento não entregou o prisioneiro.<br />

112


tinham diferenças, como Juscelino Kubitschek, João Goulart, Leonel Brizola, Henrique Lott e<br />

outros. Portanto, a partir desse critério, a direita radical, também, contribuiu para o<br />

desequilíbrio das relações entre civis e militares.<br />

Finalmente, pode-se adentrar no estudo sobre a contribuição da direita radical para o<br />

(des)equilíbrio das relações entre civis e militares utilizando-se da terceira 46 referência que<br />

compara a interrelação do imperativo funcional 47 com os imperativos sociais 48 .<br />

O imperativo funcional era evidente: a soberania nacional estava ameaçada pelas<br />

interferências das superpotências em luta por espaço, dos outros; e pela permanente ameaça<br />

de guerra civil, fragmentação que teria consequências catastróficas para o País. Os radicais de<br />

direita eram politizados, fusionados com os segmentos radicais e conservadores da sociedade<br />

e, desse modo, amplificavam o desequilíbrio existente nas relações entre civis e militares.<br />

Nem assim, o imperativo funcional serviu para unir as Forças Armadas. Ao contrário, o que<br />

se via era o conluio com os estrangeiros.<br />

O império era o dos valores provenientes das forças sociais, das ideologias e/ou das<br />

instituições dominantes e, conforme alertava Huntington em A Ordem Política nas<br />

Sociedades em Mudança, “Instituições militares que só refletem valores sociais podem ser<br />

incapazes de desempenhar com eficiência sua função específica” 49 .<br />

Do exposto, tendo sido considerado como ferramenta de análise da participação da<br />

direita radical dois (autoridade, influência e ideologias; imperativos funcionais versus sociais)<br />

dos três pontos de equilíbrio, de acordo com as referências explicitadas por Huntington,<br />

tomando-se o primeiro ponto de equilíbrio, em dois critérios, como causas diretas (influência<br />

e ideologias) e indireta (autoridade formal), e o terceiro ponto de equilíbrio, em seus dois<br />

critérios (imperativo funcional e social), verifica-se que, com suas ações, o segmento radical<br />

de direita contribuiu significativamente para acirrar essa idiossincrasia existente naquelas<br />

relações e, desse modo, pode-se passar a próxima questão a ser estudada, que trata das<br />

consequências desta atuação para a segurança e a defesa.<br />

5.2 INFLUÊNCIA SOBRE A SEGURANÇA E A DEFESA<br />

Para Samuel Huntington, existia uma única referência para a análise dos efeitos do<br />

(des)equilíbrio das relações entre civis e militares sobre a segurança militar: o do controle<br />

46 A segunda referência, do controle civil objetivo (profissionalismo), ficou prejudicada como instrumento de<br />

análise por absoluta incongruência com o modelo brasileiro de relações entre civis e militares.<br />

47 Originados das ameaças à segurança da sociedade. Cf. HUNTINGTON, 1996, p. 20.<br />

48 Das forças sociais, das ideologias e das instituições dominantes dentro dessa mesma sociedade. Idem.<br />

49 HUNTINGTON, 1996, p. 20.<br />

113


civil objetivo, aquele “que eleva ao máximo a segurança militar” 50 . Em O Soldado e o Estado<br />

ele se refere que:<br />

114<br />

“Política de segurança militar é o programa de atividades destinado a minimizar ou<br />

neutralizar esforços tendentes a enfraquecer ou destruir um país através de forças<br />

armadas que operam de fora de suas fronteiras institucionais e territoriais. A política<br />

de segurança interna trata de ameaça de subversão – o empenho para enfraquecer ou<br />

destruir o país através de forças que operam dentro de suas fronteiras institucionais e<br />

territoriais. A política de segurança situacional, por sua vez, concerne à ameaça de<br />

erosão resultante de mudanças a longo prazo nas condições sociais, econômicas,<br />

demográficas e políticas tendentes a reduzir o poder relativo do Estado”. 51<br />

Com relação à política de segurança militar, Huntington acentua que “o objetivo dessa<br />

política é desenvolver um sistema de relação entre civis e militares que eleve ao máximo a<br />

segurança militar com sacrifício mínimo de outros valores sociais. A consecução desse<br />

objetivo envolve um complexo equilíbrio de poder e atitudes entre grupos militares e civis”. 52<br />

Samuel Huntington acreditava, ainda, que, para as três vertentes que compõem a<br />

política de segurança nacional, o “objetivo é fortalecer a segurança das instituições sociais,<br />

econômicas e políticas contra ameaças que surjam de outros países independentes”. 53 É<br />

possível inferir que a política de segurança nacional abranja, também, as ameaças internas,<br />

originadas do “empenho para enfraquecer ou destruir o país através de forças que operam<br />

dentro de suas fronteiras institucionais e territoriais” de que o autor se refere na política de<br />

segurança interna. Essas forças podem ser de nacionais ou estrangeiros.<br />

Neste trabalho, o sentido de segurança é de uma sensação, abstrata e subjetiva, que se<br />

refere a necessidades, aspirações ou direitos de garantia, proteção ou tranqüilidade para<br />

pessoas, bens, empresas, instituições, grupos ou sociedades, inclusive nacionais, face às<br />

ameaças, ações ou obstáculos advindos de potenciais oponentes. Por sua vez, a defesa é uma<br />

ação ou um conjunto de ações (medidas ou atitudes) que visam à neutralização, redução ou<br />

anulação das ameaças, ações ou obstáculos advindos de potenciais oponentes, cuja finalidade<br />

é proporcionar segurança às pessoas, bens, empresas, instituições, grupos ou sociedades,<br />

inclusive nacionais. Em O Soldado e o Estado, Huntington, aparentemente, não estava<br />

especialmente preocupado com a especificação desses conceitos. Assim, de modo a<br />

uniformizar, o viés deste trabalho, procurar-se-á dar as conotações acima descritas para<br />

segurança e defesa.<br />

Ao longo dessa pesquisa, sempre que necessário, chamou-se a atenção para os dois<br />

50 HUNTINGTON, 1996, p. 16.<br />

51 Idem, p. 19.<br />

52 Ibidem, p. 20.<br />

53 Ib., p. 19.


contextos que afetavam a segurança e a defesa do Brasil: no externo, tinha-se o<br />

enquadramento hemisférico e, no interno, a fragilidade estrutural do País, aprofundada por<br />

uma conjuntura de descompassos entre as componentes política, econômica e social tendentes<br />

a desencadear conflitos.<br />

Observando-se o lado externo, verifica-se que a situação de constrangimento existente<br />

tinha suas origens mais profundas na Doutrina Monroe, formulada em 2 de dezembro de<br />

1823, pelo presidente James Monroe (1817-1825).<br />

Segundo Moniz Bandeira 54 :<br />

115<br />

“Esta doutrina, sintetizada no lema “a América para os americanos”, passara a<br />

funcionar, a partir do final do século XIX, como cobertura ideológica para o<br />

objetivo estratégico dos Estados Unidos, que consistia em manter sua hegemonia<br />

sobre todo o Hemisfério Ocidental, conquistar e assegurar as fontes de matériaprima<br />

e os mercados da América do Sul para as suas manufaturas, alijando do<br />

subcontinente a competição da Grã-Bretanha e de outras potências industriais da<br />

Europa. Daí a proposta para formar com os Estados latino-americanos uma<br />

comunidade comercial, uma espécie de união aduaneira, apresentada durante a 1 a<br />

Conferência Pan-Americana, instalada em Washington, em novembro de 1889. A<br />

ideia, entretanto, não fora aceita, devido à oposição da Argentina e do Chile, e o<br />

resultado da 1 a Conferência Pan-Americana consistiu somente na instalação do<br />

Bureau Internacional das Repúblicas Americanas. Mas, em 1896, Charles Emory<br />

Smith, líder do Partido Republicano na Filadélfia e editor de jornal, declarou que<br />

our spirit, if not our flag will rules the hemisphere 55 ”.<br />

Os Estados Unidos da América (EUA), nunca perderam oportunidade para ampliar sua<br />

influência sobre a América do Sul e o Brasil em particular. Halford J. Mackinder, em The<br />

Geographical Pivot of History, 56 corroborava com o entendimento sobre a importância<br />

decisiva da América do Sul sobre o sistema internacional de poder e o fortalecimento dos<br />

Estados Unidos. Tal conclusão se tornava mais evidente nos raros desafios ao poder<br />

incontestável dos EUA sobre o hemisfério, como ocorrera, em menor grau, com a ameaça<br />

presumida de expansão para esta região do poder alemão, por ocasião da Segunda Guerra<br />

Mundial 57 , e, novamente, com a ameaça da expansão soviética.<br />

De acordo com o sistema padrão de procedimento daquele país, a influência não-<br />

militar (política – por acordos, tratados, entre outros meios; econômica – relativa à<br />

prosperidade; e cultural) abre caminho para a militar (de segurança) e/ou vice-versa, nas<br />

54<br />

Luiz Alberto Moniz BANDEIRA, “A Importância Geopolítica da América do Sul na Estratégia dos Estados<br />

Unidos”, in Revista da Escola Superior de Guerra, v. 24, n. 50, jul./dez., Rio de Janeiro: ESG, 2008, p 11.<br />

55<br />

SCHIRMER, Daniel B. Republic or empire American: resistance to the Philippine war. Boston: Schenkman,<br />

p. 20. Citado em BANDEIRA, 2008, p. 11.<br />

56<br />

MACKINDER, Sir Halford John. The Geographical Pivot of History, in Geographical Journal. London:<br />

Royal Geographical Society London, April 1904, vol. XXIII, p. 436.<br />

57<br />

Stetson CONN e Byron FAIRCHILD, em A Estrutura de Defesa do Hemisfério Ocidental, Rio de Janeiro:<br />

Biblioteca do Exército, 2000, apresentam a configuração dessa ameaça e as medidas tomadas pelos EUA para<br />

contrapor-se a ela. Na mesma obra os autores ressaltam a importância estratégica do saliente nordestino e do<br />

Brasil.


egiões do seu interesse estratégico, prevalecendo, nos períodos de paz, uma preponderância<br />

da atividade não-militar. Como o mundo, periodicamente, passa por crises, conflitos ou<br />

guerras a atividade militar têm a oportunidade de atuar em prol da não-militar. Para isso, é<br />

muito facilitada pela fragilidade política, econômica, militar, cultural e científica da maioria<br />

dos países. Ressalta-se que, após as guerras de conquista, ainda no Século XIX, os EUA não<br />

tinham mais ambições territoriais, particularmente ao sul do Rio Grande, no México, o que,<br />

entre outras coisas, trar-lhes-ia mais dor de cabeça do que frutos efetivos. Estes, seriam<br />

obtidos por meio de dominação econômica e da garantia de fornecimento de matérias primas.<br />

No período deste estudo, conforme foi visto na Seção 3, os interesses dos EUA no<br />

Brasil eram muitos e vários governos sofriam pressões daquele país 58 . Por ocasião da queda<br />

de João Goulart as empresas de capital multinacional que aqui estavam, majoritariamente dos<br />

EUA, controlavam parte importante da infraestrutura que sustentava o país; a geração elétrica,<br />

o fornecimento de água, de gás, de combustíveis, a indústria de alimentos, de roupas e toda a<br />

base da produção nacional 59 .<br />

João Goulart não teve tempo de se pronunciar, mas a IV Esquadra, por via das<br />

dúvidas, encontrava-se ao largo na costa brasileira. Foi como ficou conhecida a já citada<br />

Operação Brother Sam 60 , desencadeada pelo governo dos Estados Unidos para dar suporte ao<br />

Movimento Militar de 31 de Março de 1964, particularmente à movimentação da tropa que se<br />

deslocava de Minas Gerais para o Rio de Janeiro na Operação Popeye e para o caso de<br />

surgirem imprevistos ou reações inesperadas por parte do dispositivo militar de João Goulart.<br />

Esta ação militar dos EUA estava apoiada na frota nucleada na Esquadra do Caribe, cujo<br />

Navio-Capitânia era um Porta-Aviões (Forrestal) da Marinha dos Estados Unidos,<br />

acompanhado por outro de menor porte, além de navios de escolta e de apoio e tropas de<br />

fuzileiros navais requeridas para uma invasão rápida ao Brasil pelas forças armadas<br />

estadunidenses.<br />

Sobre os eventos, assim se refere documento da Biblioteca do Congresso dos EUA:<br />

116<br />

“O papel dos Estados Unidos nestes eventos era complexo e algumas vezes<br />

contraditório. Uma campanha de imprensa anti-Goulart foi administrada ao longo de<br />

1963, e, em 1964, a administração Johnson deu-lhe apoio moral. O embaixador<br />

Lincoln Gordon admitiu mais tarde que a embaixada tinha dado dinheiro a<br />

58<br />

Na carta testamento de Getúlio Vargas e na carta renúncia de Jânio Quadros existem referências explícitas a<br />

esta atuação.<br />

59<br />

Disponível em: . Acesso em: 15/03/<br />

2011.<br />

60<br />

A Operação Brother Sam chegou ao conhecimento público brasileiro com a liberação de documentos, até<br />

então secretos, pelo governo dos EUA. Maiores detalhes podem ser encontrados em Phyllis PARKER, O Papel<br />

dos Estados Unidos da América no Golpe de Estado de 31 de Março, São Paulo: Editora Civilização Brasileira,<br />

1977; e Marcos Sá CORRÊA, 1964, visto e Comentado pela Casa Branca,Porto Alegre: L&PM, 1977.


117<br />

candidatos anti-Goulart nas eleições municipais de 1962 e encorajado os<br />

conspiradores; que muitos agentes que não eram dos Estados Unidos, militares e de<br />

inteligência, estavam operando no Brasil; e que havia quatro navios tanques e o<br />

porta-aviões Forrestal da Marinha dos Estados Unidos, em uma Operação sob o<br />

nome código de Brother Sam, ao largo da costa, para o caso de necessidade durante<br />

o golpe 1964. Washington reconheceu imediatamente o novo governo em 1964 e<br />

uniu-se ao coro que propalava que o golpe de estado das "forças democráticas" havia<br />

segurado a mão do comunismo internacional. Em retrospecto, parece que a única<br />

mão estrangeira envolvida era Washington, embora os Estados Unidos não fossem o<br />

ator principal nestes eventos”. 61<br />

Em resumo, a interferência externa, notadamente dos EUA, era uma componente<br />

importante nas dificuldades enfrentadas pelo governo brasileiro para conduzir com um<br />

mínimo de autonomia a sua própria política. Tal situação, que já reduzia muito a margem de<br />

manobra dos governos democráticos no âmbito externo, agora se voltava para a frente interna,<br />

onde, também, causava problemas.<br />

Pelo lado interno, conforme assinalado no início desta Seção, existia um desequilíbrio<br />

nas relações entre civis e militares que independia de quaisquer ações da direita radical, pois<br />

originava-se na própria forma de controle civil-militar; isto é, o controle civil subjetivo,<br />

especificamente representado pelo modelo moderador, mas que se manifestava afetando os<br />

grupos civis e militares, em termos de: autoridade (formal e informal), em grau e alcance; no<br />

choque de ideologias; e nos imperativos funcional (das ameaças externas) e social, este<br />

superdimensionado em relação ao funcional, uma das razões do desequilíbrio.<br />

Essa situação era apenas exacerbada mediante a atuação dos radicais de direita, pois<br />

eles tinham participação autônoma, porquanto agiam em redes de resistência, desenvolvendo<br />

atividades que enfraqueciam tanto o poder central como o próprio poder militar estabelecido.<br />

Nessa atividade, a rede alcançava setores da imprensa, da opinião pública, dos políticos –<br />

inclusive os governadores estaduais e, ao menos no caso do senhor Adhemar de Barros,<br />

conforme descrito na Seção 4, aliava-se a agentes estrangeiros.<br />

Nesse quadro de ruptura do equilíbrio das relações civis e militares, o Brasil não<br />

obedecia mais a uma direção apontada por consenso. O País seguia em muitas direções, às<br />

vezes, contrárias umas as outras. O povo e as Forças Armadas tinham feito suas opções,<br />

ideológicas e partidárias, e o rumo era ditado pelos grupos de afinidades.<br />

Nesse contexto, as seguranças militar, interna e das instituições estavam<br />

comprometidas e o governo era incapaz de reagir à altura. Com o País perto do<br />

fracionamento, a segurança nacional estava à beira do colapso. Considerando-se apenas o lado<br />

61 Documento da Biblioteca do Congresso dos EUA, na Seção Country Studies. Disponível em:<br />

http://lcweb2.loc.gov/cgi-bin/query/r?frd/cstdy:@ field (DOCID+br0025). Acesso em: 15/03/2011. Tradução<br />

livre do autor.


que foi objeto deste estudo, isto é: o dos conservadores e radicais de direita; em seu proveito<br />

existiam numerosas ligações com os EUA, conhecidas e suspeitas. A justificativa é que,<br />

afinal, aquele país do Hemisfério Norte não deixaria o Brasil cair sob a foice e o martelo<br />

como ocorrera com Cuba.<br />

Pelo outro lado, dos comunistas e radicais de esquerda, também, havia os conluios<br />

com seus patrocinadores, notadamente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e da<br />

República Popular da China, conforme descritas em copiosa literatura, mas que não integram<br />

o objeto da presente investigação 62 .<br />

As ameaças que rondavam o País eram muitas. Integradas às vulnerabilidades<br />

inerentes à época, chega-se a uma resultante de enorme perigo para a própria nação. Tudo isso<br />

para não falar no fantasma da guerra civil e da hipótese de uma luta fratricida entre as Forças<br />

Armadas. Por conseguinte, as ações de defesa que poderiam ser tomadas estavam<br />

comprometidas na origem.<br />

Nesse contexto, a ala da direita radical teve papel importante na fragilização da<br />

segurança e da defesa do País. Entretanto, nesse mister não tiveram um papel maior do que o<br />

desempenhado pelo conservadorismo como um todo, ou pela esquerda e os comunistas.<br />

Todos, aparentemente, estavam empenhados em fazer prevalecer suas idéias, por meio das<br />

ações que julgassem mais apropriadas. Parece que se esqueciam, nos seus egoísmos<br />

ideológicos ou políticos que o verdadeiro prejudicado era o Brasil.<br />

Ao se perscrutar aquele período histórico, observa-se que se existia uma palavra que<br />

estava na mente de todas as forças sociais, essa palavra era revolução: comunistas, socialistas<br />

(como Oliveiros S. Ferreira), sindicalistas, conservadores, radicais, militares, entre outros<br />

propugnavam por ela. Talvez por isso, o Movimento Militar de 31 de Março 1964 tenha se<br />

autointitulado Revolução.<br />

62 Entre outras obras podem ser citadas, entre outras: Glauco CARNEIRO, em História das Revoluções<br />

Brasileiras, Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965; e Jacob GORENDER, Combate nas Trevas, São Paulo: Ática,<br />

1999.<br />

118


6 C O M E N T Á RI OS E C O N C L USÕ ES<br />

Ao longo desta pesquisa dediquei-me a perscrutar o espaço da política em um período<br />

determinado (1954-1964), sob um ângulo bastante específico, notadamente quanto à<br />

participação da direita radical, em suas influências sobre um elemento basilar na organização<br />

política dos Estados Nacionais e brasileiro, as relações entre civis e militares; e, para torná-la<br />

ainda mais consentânea com os propósitos dos Estudos Estratégicos, estendi a questão para a<br />

comunicação fundamental que existe entre esse importante elemento da estrutura estatal com<br />

a essência da sua própria sobrevivência: a segurança e defesa.<br />

As motivações para essa dissertação advieram dos questionamentos sobre esses grupos<br />

cujas ações reverberaram intensamente e que, se por um lado, apresentavam alguns registros<br />

historiográficos, de outro, refletem considerável ausência de investigações acadêmicas. Em se<br />

tratando de uma fase distante mais de cinquenta anos do tempo em que vivemos, foi<br />

necessário contextualizá-la, proporcionando um encadeamento lógico para os acontecimentos<br />

descritos.<br />

Da mesma forma, foi essencial a utilização de alguns elementos teóricos para permitir<br />

o entendimento dessa ambientação e servir como instrumentos de análise, utilizados em etapa<br />

mais adiantada do trabalho.<br />

O contexto, um dos mais trágicos da historiografia brasileira, apresentava duas facetas<br />

importantes: das relações internacionais, entravadas pelas pressões impostas pela Guerra<br />

Fria, em um ambiente dominado pelos pressupostos da real politik; e da política interna, em<br />

um redemoinho de contradições que evoluíram a partir da Proclamação da República,<br />

ganharam volume e velocidade desde o início do processo de modernização do País, com a<br />

Revolução de 1930, e desaguaram em fúria, após o suicídio de Getúlio Vargas.<br />

No que tange à política internacional, o Brasil estava rigidamente enquadrado na<br />

Estrutura de Defesa do Hemisfério Ocidental, sob a liderança inconteste dos Estados Unidos


da América (EUA). Este país, cujas veleidades de dominação do hemisfério, não<br />

necessariamente territoriais, datavam da Doutrina Monroe, por esta época exercitavam o seu<br />

máximo poder 1 . O nosso País, em contraste, de importante dispunha tão-somente do seu<br />

território e um mercado incipiente. As corporações multinacionais, majoritariamente dos<br />

EUA, eram responsáveis pela quase totalidade da infraestrutura que sustentava o País; da<br />

geração elétrica, ao fornecimento de água, gás, combustíveis; da indústria de alimentos e de<br />

roupas à quase toda a base da produção nacional.<br />

Os EUA não tinham rodeios em interferir direta e indiretamente na política interna<br />

brasileira, mister no qual eram apoiados por ampla gama de nacionais, disseminados nas<br />

instituições políticas, econômicas, militares, da imprensa e da opinião pública. Mais de um<br />

Presidente da República, nas suas respectivas cartas de renúncia, acusavam essas<br />

interferências. João Goulart, o mais atingido, sequer teve tempo para isso. O Brasil, sem<br />

dúvida, operava cercado por constrangimentos de toda a ordem.<br />

Em que pesem as restrições originadas no ambiente externo, nada se comparava aos<br />

efeitos ocasionados pelo esfacelamento político nacional. Tudo começava e terminava na<br />

enorme fragmentação a que ficou reduzido o País. As motivações eram muitas. A maior<br />

começara na Revolução de 1930 com o início da modernização e que, nessa etapa histórica<br />

(1954-1964), contorcia-se no processo de metamorfose de uma nação que tinha tudo para ser<br />

grande, mas que andava de joelhos, açodada por conflitos que derivavam das energias<br />

acumuladas tanto nas esferas ideológicas como dos interesses opostos.<br />

O Brasil, por tudo isso, fora incluído no arco de crises que abrangia os países<br />

assolados pela violência política, seja na América Latina, África ou Ásia. As causas,<br />

insuspeitas para a época, Huntington ressalta, ao dizer que a desorganização e a violência<br />

eram subprodutos da rápida mudança social e da mobilização de novos grupos para a política,<br />

em descompasso com o lento desenvolvimento das próprias instituições políticas. “A<br />

instabilidade política nos países em modernização é, em grande parte, uma função do hiato<br />

entre aspirações e expectativas, produzido pelo aumento das aspirações que ocorre<br />

principalmente nas primeiras fases da modernização” 2 , acrescentando que a “instabilidade<br />

política na Ásia, África e América Latina decorre precisamente do insucesso em preencher<br />

1 Estimativas atribuem aos EUA mais da metade do Produto Interno Bruto do mundo, imediatamente após o<br />

término da Segunda Guerra Mundial. Além disso, dominavam os organismos mundiais e tinham estabelecido<br />

alianças políticas, militares e econômicas com amplo arco de nações no entorno da União das Repúblicas<br />

Socialistas Soviéticas, de forma e exercer a contenção, além daquelas do hemisfério ocidental. De acordo com<br />

Angus MADDISON, em Contours of the World Economy, 1–2003 AD: Essays in Macro-Economic History,<br />

New York: Oxford University Press, 2007, p. 379-81, table A.4, por volta de 1950, após a recuperação inicial da<br />

Europa e do Japão, os EUA, ainda, possuíam cerca de trinta por cento do PIB mundial.<br />

2 HUNTINGTON, A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, p. 69.<br />

120


essa condição: a igualdade de participação política está crescendo muito mais rapidamente do<br />

que a arte da associação”. 3<br />

O País integrava o conjunto das nações carentes de uma infinidade de elementos<br />

básicos para conceder um mínimo de qualidade de vida e dignidade aos seus cidadãos, entre<br />

outros, alimentação condigna, alfabetização, educação, produtividade, riqueza, renda e saúde.<br />

Some-se a isso, a ausência de comunidade política 4 , governos eficientes e eficazes, autoridade<br />

e legitimidade, onde a fragmentação atuava contra as instituições. . Os governos trôpegos não<br />

governavam 5 e, exatamente por isso, eram tão imorais quanto os “juízes corruptos, os<br />

soldados covardes e os professores ignorantes”. 6<br />

A noção de organização estatal, desde a celebração e prontificação da primeira<br />

Constituição Republicana no Brasil, sempre muito influenciada pelo modelo estadunidense,<br />

com declaração de direitos, divisão de poderes, formas de controle e verificação, federalismo,<br />

eleições regulares, partidos concorrentes, continha, na acepção de Huntington, dispositivos<br />

excelentes para limitar o governo. A solução para a obtenção da almejada estabilidade política<br />

era governada pelo raciocínio, econômico, segundo a qual ela ocorreria seguindo-se a ordem<br />

natural da assistência e do desenvolvimento.<br />

Conforme assinalado por Huntington, em a Ordem Política nas Sociedades em<br />

Mudança, “países de economia subdesenvolvida podem ter sistemas políticos altamente<br />

desenvolvidos e países que atingiram um alto nível de bem-estar econômico podem ter ainda<br />

uma política desorganizada e caótica” 7 . Assim, de acordo com ele, “o desenvolvimento<br />

econômico e a estabilidade política são dois objetivos independentes e o progresso em direção<br />

a um deles não tem necessariamente ligação com o progresso em direção ao outro” 8 . Além<br />

disso, acrescenta: “Do mesmo modo, algumas formas de estabilidade política podem<br />

incentivar o crescimento econômico; outras formas podem desestimulá-lo”. 9<br />

Por sua vez, o modelo oposto, de inspiração marxista, de grande influência naqueles<br />

países inseridos no arco de crises, apresentava enorme vantagem. Samuel Huntington enfatiza<br />

que, sem se preocupar com os aspectos econômicos, tal proposta tinha uma mercadoria de<br />

muito valor para as nações em desordem; qual seja: a oferta de governo. Era uma receita<br />

3 HUNTINGTON, A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, p. 17.<br />

4 Cf. HUNTINGTON, idem, p. 13, significando aquele consenso entre os indivíduos, os cidadãos e os seus<br />

dirigentes, que concede legitimidade ao seu sistema político; a visão comum das tradições, dos princípios em que<br />

se baseia e do interesse público da sociedade, enfim, a sensação de pertencimento a uma comunidade.<br />

5 Ibidem, p. 13.<br />

6 Ib., p. 40.<br />

7 Ib., p. 18. Caso da Índia, país dos mais pobres na década de 1950, com baixo crescimento econômico, em<br />

contraste com a Argentina e a Venezuela, com rendas per capita que eram dez vezes maior que a da Índia e altos<br />

índices de crescimento econômico, mas sem estabilidade política.<br />

8 Ib.<br />

9 Ib.<br />

121


política. Para a escassez de autoridade, ofereciam uma efetiva, além de base de legitimidade e<br />

organização partidária que provia mecanismos institucionais de mobilização, de apoio e de<br />

execução de políticas.<br />

Por isso, ele afirma que nenhum governo comunista, ao menos naquela época, foi<br />

derrubado por intermédio de golpes militares 10 , demonstração cabal de que atendiam, em<br />

melhores condições, ao desafio que os países em modernização enfrentavam; qual seja: de<br />

serem capazes de constituir governos (tarefa bem mais difícil), em vez de adotarem o<br />

procedimento que as suas sociedades sabiam fazer: derrubar governos (que era fácil). Mesmo<br />

sem concederem liberdade, proporcionavam condições para o exercício da autoridade com a<br />

criação de governos que podiam, de fato, governar. Em suma, os comunistas ofereciam aos<br />

países em modernização um método testado e aprovado de preencher o vácuo político. Em<br />

meio aos conflitos sociais e à violência política que afligiam tais países, eles forneciam<br />

alguma certeza de ordem em meio ao caos e a desordem.<br />

No Brasil, desde a Intentona de 1935, o comunismo clivara o imaginário nacional com<br />

manifestações e antagonismos. Pelo lado do conservadorismo e do radicalismo de direita,<br />

prevalecia a repulsa àquela ideologia, sentimento que propiciou numerosas ações repressivas<br />

contra seus seguidores, inclusive por intermédio de governos populistas. No exame das<br />

atitudes dos desafetos dos comunistas, verifica-se que, independentemente dos eventuais<br />

interesses que porventura existissem, o aspecto emocional exerceu enorme influência no<br />

período, ficando representado nas alegorias da ameaça ou perigo originado dos vermelhos,<br />

epíteto sob o qual inúmeras aberrações foram cometidas.<br />

Os comunistas, por sua vez, além das vantagens elencadas por Samuel Huntington,<br />

demonstravam invejável organização política e ampla disseminação nos segmentos políticos,<br />

sindicais, militares e sociais. As idiossincrasias existentes na sociedade brasileira, resultantes<br />

das contrações dolorosas da modernização supra assinaladas, como: o aumento constante da<br />

desigualdade, ausência de emprego, renda, poupança, investimento e consumo; da<br />

impossibilidade de superação do atraso, da pobreza, do analfabetismo, das péssimas<br />

condições de saúde da população, entre outras; apenas lhes favoreciam, o que era reforçado<br />

pela incorporação, cada vez maior, das massas ignorantes ao processo eleitoral.<br />

A tal ponto era vantajosa essa equação para os comunistas que Nelson Werneck Sodré,<br />

10 Cf. Seção 2, Nota 53. Registre-se, en passant, a experiência de esquerda de Jacobo Árbenz na Guatemala que<br />

– entre outras medidas – tentou implementar uma reforma agrária, entrando em conflito com interesses<br />

estadunidenses, sobretudo da United Fruit Company. Seu governo foi alvo de um bem sucedido golpe de estado<br />

planejado e organizado pela Central Intelligence Agency (CIA) que, em seguida, instalou uma ditadura militar no<br />

país. O governo de Árbenz não chega a caracterizar uma exceção à assertiva da efetividade dos governos<br />

comunistas, ou mesmo de esquerda, em face dos constrangimentos externos envolvidos na sua derrubada.<br />

122


ele próprio comunista nunca assumido, permitiu-se dispensar as intervenções militares e<br />

invocar a neutralidade dos mesmos, uma vez que “o processo político, o processo da<br />

Revolução Brasileira já atingiu o nível e a etapa que nos permite verificar claramente a<br />

impossibilidade de realizá-lo por uma quartelada, como a impossibilidade de impedi-lo por<br />

uma quartelada”. 11 Para ele, as “Forças Armadas ajudarão a cumprir o processo da Revolução<br />

Brasileira na medida mesmo que se conservarem fiéis à sua missão específica, em que<br />

funcionarem como tais, e não fora das suas obrigações normais”. 12<br />

Naquele momento, para muitos observadores oculares da História, o País cairia,<br />

naturalmente, nos braços do comunismo.<br />

Era o que previa, entre outros, um insuspeito socialista (com viés democrático),<br />

Oliveiros S. Ferreira, para quem “na atual conjuntura brasileira, [...] a hegemonia do processo<br />

revolucionário pertencerá necessariamente ao Partido Comunista se a ele não se contrapuser<br />

uma organização que tenha uma concepção do processo e se disponha a ousar”. 13<br />

No ambiente político, os mecanismos de mediação que poderiam existir, notadamente<br />

de engenharia constitucional, amparavam-se mais na corda que iria enforcá-los – isto é: nas<br />

intervenções militares – do que naqueles aceitos pelo consenso, portadores de legitimidade,<br />

como na disputa eleitoral, na representação política e no voto das maiorias; estes, objetos de<br />

conluios e manipulações que os desqualificavam como, por exemplo, na contradição<br />

representada pelas eleições cujo Presidente da República integrava um partido com idéias<br />

diametralmente opostas ao do Vice- Presidente da República e, por consequência, contribuíam<br />

para a geração de crises periódicas.<br />

Os Partidos Políticos, que poderiam e deveriam funcionar como instrumentos de<br />

pacificação, transformaram-se em vetores de instabilidade e até mesmo de violência, ao<br />

adicionar a manipulação dos militares aos seus estratagemas, confiantes de que as periódicas<br />

intervenções lhes trariam o poder de volta. Era um jogo perigoso, no qual o cotidiano dos<br />

brasileiros tinha pouco valor e era interferido pelas ambições sazonais e pessoais de uma<br />

fração insensível da elite.<br />

As forças sociais, cooptadas pelo Estado desde as reformas trabalhistas implementadas<br />

por Getúlio Vargas, ainda na ditadura do Estado Novo, tinham perdido força e criatividade e<br />

se transformado quase em zumbis, manipulados pelos governantes populistas e pelos pelegos.<br />

Dessa forma, traíam seus seguidores e visualizavam apenas os objetivos restritos da própria<br />

11<br />

Nelson Werneck SODRÉ, em A História Militar do Brasil, p. 408.<br />

12<br />

Idem, p. 410.<br />

13<br />

Oliveiros Silva FERREIRA, As Forças Armadas e o Desafio da Revolução, Rio de Janeiro: GRD, 1964.<br />

(Edição digital, sem numeração de páginas. Disponível em: <br />

Acesso em: 10/02/ 2011).<br />

123


classe.<br />

Em meio a essa situação, disseminava-se a corrupção em suas múltiplas formas, sendo<br />

a mais letal aquela que institucionalizava as intervenções militares, pois, disfarçada de<br />

ferramenta de reconstituição do tecido político, a cada vez que ocorria, contribuía para<br />

ampliar seu esgarçamento. Subsidiariamente, ampliava a anarquia militar vigente, esta, por<br />

sua vez, que possuía raízes longínquas, fortalecidas a cada nova interferência do segmento<br />

militar na política. Nesse metier que começara com a participação apenas dos escalões<br />

hierárquicos mais elevados, foi, como era de se esperar, descendo dolosa e traiçoeiramente até<br />

erodir a própria base de sustentação da hierarquia e da disciplina, que, por essa hora, foram<br />

abaladas, até mesmo, pelo arbítrio de mais de um Presidente da República.<br />

No âmbito das Forças Armadas, o pessoal estava dividido em diversas tendências. A<br />

maioria silenciosa era composta de neutros; ocupando o centro do espectro militar, almejava,<br />

tão-somente, o afastamento da política e o cumprimento das atividades profissionais; todavia,<br />

impotente, via-se, com certa regularidade, engolfada pelas intervenções militares recorrentes<br />

no ambiente da política. Eram os representantes mais legítimos da classe média, aquela que<br />

não tinha uma tendência pré-definida e representava todo um amplo espectro de inclinações<br />

políticas.<br />

À esquerda, parcela significativa desse pessoal das três forças singulares, vestido sob<br />

diversas roupagens, identificava-se com o comunismo (autodenominados forças populares e<br />

democráticas), com outras representações de esquerda (a exemplo dos nacionalistas), mais ou<br />

menos radicais que os comunistas, ou, ainda, com o populismo. Vale ressaltar que,<br />

inicialmente circunscrita à oficialidade, a participação dos militares nesse segmento – ao final<br />

do período em estudo – incorporou parcela significativa dos suboficiais e sargentos, das três<br />

Forças Armadas, além de marinheiros e soldados do Corpo de Fuzileiros Navais, que, devido<br />

à sua capacidade de mobilização, constituíram-se elementos autônomos de pressão. Devido à<br />

predominância dessa parcela militar na política nacional e a tendência contínua de inclinação<br />

do País à esquerda, esse estrato, associado aos elementos civis afins, constituía, na maior parte<br />

do período, a tendência governista.<br />

No âmbito político dos civis pró-governo, o diagrama social que incluía parte dos<br />

conservadores e que, como observou Alfred Stepan, decidia os impasses políticos ao inclinar-<br />

se para um dos lados da balança do poder, encontravam-se poucos militares. Eles podiam ser<br />

encontrados, em sua maioria, mais à direita, entre os civis e militares antigoverno, mas<br />

sempre disponíveis para se alinharem ao segmento conservador que deles se serviam como<br />

massa de manobra por ocasião das intervenções periódicas. Além dessa parcela de<br />

124


conservadores, dentre os ativistas antigoverno, situavam-se os radicais de direita, sobre os<br />

quais se falará adiante.<br />

Nos subsistemas mais restritos das forças singulares (e, portanto, institucionais),<br />

assoma a importância do Exército Brasileiro, como se fora o centro de gravidade do modelo<br />

moderador. Sua influência e prestígio junto à sociedade tinham como bases de sustentação,<br />

entre outras características: sua atuação histórica, majoritariamente em consonância com as<br />

aspirações nacionais e populares, conforme assinalado por Nelson Werneck Sodré em sua<br />

História Militar do Brasil; a admissão de cidadãos sem restrições de raça, cor, religião,<br />

notadamente após a Proclamação da República, aos quais, por via do recrutamento anual,<br />

transmitiam noções básicas de educação, cidadania, amor à Pátria, organização, disciplina e,<br />

até mesmo, de higiene; a presença disseminada estrategicamente no território nacional; a<br />

permanência histórica nos locais escolhidos, laços e suporte às comunidades locais, inclusive<br />

políticos; e o respeito e admiração da população de todo o País, com o qual se identificavam.<br />

Além disso, o Exército tinha a força, argumento de última razão, reiteradamente<br />

acatado, que foi utilizado em inúmeras ocasiões, conforme apresentado ao longo desse<br />

trabalho, com o qual a população estava acostumada, mormente porque não interrompera o<br />

instrumento utilizado pelos Imperadores brasileiros para solucionar os impasses políticos,<br />

representado pelo Poder Moderador, substituindo-o na verdade em muitos instantes da<br />

História.<br />

A Marinha do Brasil, de início com marcantes tendências pró-integralismo, por suas<br />

características predominantemente técnicas, foi gradualmente afastando-se do processo<br />

político e assumindo um posicionamento mais legalista, mesmo que à custa de subterfúgios,<br />

usados nos momentos de crise, tais como: o desarmamento de navios da Esquadra, a retirada<br />

de munições e as imposições de longas manobras no mar, tudo para se afastar do epicentro<br />

das crises. Mesmo assim, uma parcela importante, a dos Fuzileiros Navais, particularmente<br />

sob a liderança do Almirante Cândido Aragão, de meados de 1963 até a queda de João<br />

Goulart, inclinou-se para o populismo, e uma menor, sob a liderança do Almirante Heck,<br />

parcela do conservadorismo, dedicou-se à conspiração, juntamente com tantas outras.<br />

A Força Aérea, sob a liderança inconteste do Brigadeiro Eduardo Gomes, filiou-se<br />

majoritariamente ao conservadorismo, em conjuminação com União Democrática Nacional<br />

(UDN), permaneceu em permanente estado de conspiração e foi de onde surgiram os<br />

segmentos radicais de direita, objeto deste estudo, aos quais foram se somar parcelas civis de<br />

simpatizantes.<br />

125<br />

No âmbito das relações entre civis e militares, o Brasil vivia sob o império do controle


civil subjetivo, de participação dos militares na política, representado pelo modelo moderador,<br />

o qual, do mesmo modo como os demais modelos incluídos nessa classificação 14 era hostil<br />

àquela ética militar considerada ideal para Huntington, a do controle civil objetivo ou<br />

profissional, e por isso, considerada por aquele autor, como antimilitar.<br />

Seu antimilitarismo ficava representado na aquisição do poder político pelos militares,<br />

funcionando, conforme assinalou Stepan, como verdadeiros partidos políticos cujo poder se<br />

via ampliado, mesmo que efemeramente, a cada intervenção, isso com o sacrifício do ideal do<br />

profissionalismo e com a adesão aos valores e atitudes predominantes dentro das facções<br />

políticas no poder. Nessas microsociedades antimilitares, onde o controle civil é,<br />

aparentemente, maximizado, o que ocorre de fato é o seu abastardamento com as<br />

consequências previsíveis sobre os seus valores tradicionais.<br />

Rememorando Samuel Huntington, as<br />

126<br />

“[...] concessões que os militares fazem a fim de adquirir poder numa sociedade que<br />

não lhes é simpática são apenas um exemplo do fenômeno geral dos efeitos<br />

aperfeiçoadores e enfraquecedores de poder. [...] o poder terá sempre que ser<br />

comprado por um preço. O preço que os militares têm que pagar depende do<br />

tamanho da brecha entre a ética militar e as ideologias predominantes na sociedade.<br />

[...] Os generais e os almirantes podem triunfar, mas não a ética profissional militar.<br />

O efeito domador do poder político faz deles bons liberais, bons fascistas e bons<br />

comunistas, porém maus profissionais. As satisfações de desempenho profissional e<br />

a adesão ao código profissional são substituídas pelas satisfações de poder, posição,<br />

riqueza, popularidade e aprovação de grupos não-militares”. 15<br />

Aqui, poder-se-ia acrescentar aos bons liberais, fascistas e comunistas, os bons<br />

moderadores. Utilizando o suporte proporcionado pela teoria de Huntington, notadamente em<br />

seus critérios e índices de avaliação do equilíbrio das relações entre civis e militares, verifica-<br />

se que elas estavam em completo desequilíbrio em desfavor dos civis e dos militares; enfim,<br />

em prejuízo da sociedade. Os militares, até mesmo pelos mecanismos constitucionais<br />

existentes, dispunham de demasiada autoridade formal e informal e, inclusive, no confronto<br />

das ideologias (ética militar versus éticas civis) a aglutinação por afinidades entre civis e<br />

militares eliminava a necessária estanqueidade entre eles e operava em prejuízo do equilíbrio<br />

ideal.<br />

Em atendimento a um elemento essencial da investigação para a pesquisa, da<br />

comunicação existente entre o equilíbrio das relações entre civis e militares e a segurança e a<br />

defesa, nacional, militar e institucional, foi possível verificar os efeitos do desequilíbrio<br />

daquelas relações sobre estes elementos constituintes para a sobrevivência pátria. O simples<br />

14 Liberal, marxista e fascista.<br />

15 HUNTINGTON, 1996, p. 113-114.


afastamento dos padrões de controle objetivo (profissional) seria suficiente para demonstrar<br />

os enormes perigos a que a Nação foi submetida. Entretanto, ao aprofundar-se o estudo,<br />

observou-se que seus efeitos eram ainda mais ponderáveis, como se verá a seguir.<br />

Verifica-se que os riscos originados do desequilíbrio das relações entre civis e<br />

militares existentes no Brasil conduziam a perigos para a segurança e a defesa nacionais que<br />

se estendiam além daqueles que poderiam advir da simples falta de profissionalismo. O maior<br />

de todos era a fragmentação na esfera castrense, conducente à cooptação dos mesmos por<br />

políticos, partidos políticos, organizações variadas e, até mesmo, por governos de outros<br />

países. Mas não se encerrava aí. O papel político instrumental dos militares, exercido nas<br />

intervenções e nas pressões políticas e que era determinado pelos civis, contribuía para o<br />

enfraquecimento das forças singulares, pois aumentava a sua própria fragmentação, e<br />

ampliava os antagonismos internos.<br />

Além disso, estimulava o círculo vicioso dos desequilíbrios nas relações civis e<br />

militares, gerador de vulnerabilidade para a segurança e a defesa, cujo final representou a<br />

agonia do próprio regime democrático e do modelo republicano que pressupunha a primazia<br />

do Poder Civil sobre o dos militares (em vigor desde a Proclamação da República), para cuja<br />

ocorrência, em muito contribuiu, a convivência da estrutura política sobre as bases frágeis e<br />

artificiais fornecidas pelo modelo moderador.<br />

Por conta desse contexto multifacetado, essa pesquisa foi direcionada, de forma mais<br />

específica, a examinar a influência dos segmentos radicais da direita – composto tanto por<br />

civis, como por componentes do segmento castrense – sobre as já desequilibradas relações<br />

entre civis e militares, no período entre a queda do segundo governo do Presidente Getúlio<br />

Vargas e o desencadeamento do Movimento de 31 de Março de 1964. Além disso, buscou<br />

verificar os possíveis desdobramentos dessa atuação para a segurança e a defesa nacionais.<br />

Fez-se isso, por acreditar-se que diversas questões relacionadas a essa parcela de ativistas<br />

desempenharam um papel importante no período da pesquisa, o qual, por sua vez foi pouco<br />

estudado.<br />

Dos levantamentos iniciais, a partir de dados empíricos, reunião, análise e<br />

processamento do material disponível, foi possível configurar a hipótese 16 segundo a qual<br />

parcela radical de direita (em que pese estar incluída no contexto geral do conservadorismo)<br />

exerceu atuação autônoma, chegando a constituir uma espécie de vanguarda, no sentido de<br />

16 “No período entre 1954 e 1964, os segmentos radicais da direita, civil e militar, atuaram como vanguarda para<br />

contrarrestar: a neutralidade ou aparente inclinação do Exército Brasileiro (centro de gravidade do modelo<br />

moderador) à esquerda, a pretensa comunização do País e o “sistema”; contribuindo, dessa forma, para<br />

desequilibrar as relações entre civis e militares, e, por consequência, afetar a segurança e a defesa nacionais”.<br />

127


opor resistência à força, organização e domínio dos comunistas e demais grupos radicais de<br />

esquerda sobre o cenário nacional, diminuindo suas importância e influência, e, também<br />

contra os males decorrentes do sistema político vigente, particularmente quando o fiel do<br />

equilíbrio estatal: o Exército Brasileiro, apresentasse indícios de afastamento do exercício do<br />

seu papel de manutenção do funcionamento da democracia, o que ocorria quando se inclinava<br />

à esquerda ou à neutralidade, uma vez que a primeira, reforçava a tendência dominante de<br />

inclinação do País à esquerda, enquanto a segunda não impedia tal destino.<br />

Nesses momentos de instabilidade atuavam os radicais de direita e, com sua atividade,<br />

aumentavam o desequilíbrio na relação entre os civis e militares e vulneravam, mais ainda, a<br />

segurança e a defesa nacionais.<br />

Para comprovar a hipótese procurou-se investigar em fontes empíricas primárias,<br />

secundárias e extraídas a partir de episódios históricos: as inspirações da direita radical; os<br />

indícios que denotassem neutralidade ou inclinação do Exército Brasileiro à esquerda, de<br />

aprofundamento da temida comunização ou de deterioração do “sistema”; a estruturação<br />

daquele segmento para atuar como mecanismo de compensação; seus objetivos e possíveis<br />

influências para as relações entre civis e militares, a segurança e a defesa nacionais.<br />

No contexto geral da política, sabe-se que a instrumentalidade tática do radicalismo,<br />

em momentos de crise ou de conflito, não é desprezada pelos estrategistas políticos, seja da<br />

direita ou da esquerda. E muito menos por alguém dotado do talento de um Golbery do Couto<br />

e Silva. Por isso, o IPES de São Paulo e, muito provavelmente o do Rio de Janeiro,<br />

dispunham de uma subseção de sabotagem no Departamento de Informações. Entretanto e,<br />

até mesmo, por não ter sido esta a finalidade deste trabalho, não foi examinada a conexão<br />

entre os conspiradores da ala radical da direita com aqueles que integravam o complexo IPES/<br />

IBAD. Apesar disso, ao dedicar essa investigação a tais grupos com atuação autônoma, foi<br />

possível extrair informações que permitiram o estabelecimento de um certo nexo nas suas<br />

atividades.<br />

Inicialmente foi possível verificar numerosas fontes de inspiração que desvelaram os<br />

núcleos racionais e emocionais desses grupos radicais, já que – no âmbito da atividade<br />

psicomotora – vontade não lhes faltava. Elas foram divididas em três: uma originada dos<br />

influxos externos, essencialmente decorrente da Guerra Fria com todas as suas influências e<br />

constrangimentos, ressaltando-se, de um lado o reforço do respaldo dos EUA ao<br />

conservadorismo em geral e, de outro, os efeitos resultante da vitória dos revolucionários<br />

cubanos, em 1959, o que tornava real a ameaça vermelha para este hemisfério; outra,<br />

orientada pelo estímulo de atuação compensatória a qualquer indício de tendência sistêmica à<br />

128


esquerda, particularmente sob a égide comunista, e, ainda, originária do inconformismo com o<br />

sistema, nomeadamente a corrupção; e, finalmente, uma percepção sobre as componentes<br />

histórica, política, sociológica e militar que alimentavam a tendência anterior.<br />

Todas elas foram enfatizadas ao longo da pesquisa, restando reprisar, no âmbito<br />

emocional da inspiração radical da direita, a influência do anticomunismo na conformação do<br />

pensamento desses grupos cujas origens se reportavam, particularmente, à Intentona<br />

Comunista e que eram reforçados na forma de representações (mitológicas ou ideológicas);<br />

pelas ideias e lideranças, inclusive de caráter messiânico, salvacionistas e heróicas,<br />

respectivamente, de um Carlos Lacerda ou Eduardo Gomes; e por instituições e organizações,<br />

com base física ou não, que serviam como celeiros para o florescimento do radicalismo, a<br />

exemplo do Clube da Lanterna, a Tradição, Família e Propriedade, a Confederação dos<br />

Centros Culturais da Juventude, o Comando de Caça aos Comunistas, a Liga das Nações<br />

Cativas, entre outras.<br />

Ocorria, também, pelo apoio institucional de Presidentes da República, como Jânio<br />

Quadros, de chefes militares concordantes com a mesma ideologia, de partidos e<br />

representantes políticos; e não institucional, como a imprensa e a opinião pública<br />

conservadora; nas Escolas Militares, por uma espécie de osmose; e, até mesmo, por reação,<br />

como acontecia com os estímulos advindos da intensa atuação, nas esferas política e militar,<br />

dos chamados esquerdistas em geral e dos comunistas em particular, e com as influências<br />

pontuais das lideranças contrárias aos movimentos radicais, das quais assomam de<br />

importância as lideranças militares nacionalistas, consideradas esquerdistas, e as civis<br />

populistas.<br />

No quesito racionalidade, para aqueles setores radicais que, partindo dessa premissa,<br />

estavam junto dos conservadores em geral, tratava-se de defender um modo de vida, com<br />

ampla liberdade política, religiosa, de opinião, de alternância de poder das correntes de<br />

pensamento divergentes, entre outras, enfim, o modelo democrático liberal, contra a ameaça<br />

de uma república sindicalista – que, traçando-se um paralelo, poderia representar os<br />

mencheviques da História Russa, de um Aleksander Kerenski 17 , e que, aqui, talvez, estaria<br />

configurada na figura de um João Goulart – ante-sala de uma “democracia” comunista, a essa<br />

17 Revolucionário russo que governou a Rússia por três meses, logo após a deposição do Czar, no período de<br />

transição anterior a ascensão ao poder dos bolcheviques de Lenin. Eleito deputado (1912) para a Duma, o<br />

parlamento russo, pelo Partido Socialista, foi um dos líderes da revolução que aboliu a monarquia (1917) e<br />

tornou-se Ministro da Justiça do governo provisório e vice-presidente do soviete, a assembléia de trabalhadores e<br />

soldados em São Petersburgo. Em julho assumiu o cargo de primeiro-ministro, entretanto, sem o apoio dos<br />

militares conservadores e impotente ante a pressão dos bolcheviques, seu governo caiu em novembro, quando os<br />

manifestantes tomaram a capital russa. Morreu em 1970 em Nova Iorque, EUA. Disponível em:. Acesso em: 24/03/2011.<br />

129


altura já desvelada de possíveis conteúdos de abstração que restassem porventura idealizados,<br />

em razão das acusações formuladas por Nikita Kruschev sobre os horrores perpetrados<br />

durante a Era Stalin na União Soviética.<br />

Nesse contexto, a contínua deterioração do sistema, por intermédio da disseminação<br />

da corrupção política, econômica e, por consequência, moral, serviria ao propósito de todos,<br />

tanto da esquerda como da direita porque, afinal, qualquer que fosse a solução para o status<br />

quo existente, não ficaria pior do que estava. Além disso, respaldaria eventuais desatinos que<br />

viessem a ser cometidos, pois ninguém condenaria atitudes em “benefício” do País.<br />

No centro da tormenta postava-se o Exército Brasileiro, secundado pelas demais forças<br />

singulares; fiel da balança das razões e emoções que assolavam o Brasil, notadamente a partir<br />

da Proclamação da República. Deveria ser impávido. Em todos os discursos, os oradores de<br />

plantão apregoavam-no como sendo assim, qualidade da qual não tinha nada. Como cerne do<br />

modelo moderador, atuava como uma espécie de antioxidante contra os periódicos defeitos do<br />

sistema político, panes de funcionamento de engrenagens enferrujadas. Para isso, estava<br />

metido na política até a medula. Sua inclinação para qualquer dos lados, carregava consigo o<br />

centro de gravidade da República. Sua neutralidade favorecia a inclinação natural do País para<br />

a esquerda.<br />

Em meio à anarquia militar que, afinal, atingiria, até mesmo, a base da pirâmide<br />

castrense, corroendo-a, ergueram-se os radicais de direita, dotados de atributos raros para o<br />

período; tais como: vontade, honestidade, idealismo, desprendimento e amor à Pátria como a<br />

conheciam. Seus adversários eram formidáveis. Encontravam-se presentes em todo o sistema.<br />

Ao contrário do epíteto com que afinal ficaram conhecidos, de “minorias radicais e<br />

românticas”, eram orientados por instinto, racionalidade, emoção e vontade.<br />

Em uma primeira fase, em que o conservadorismo dava socos no ar, foram capazes de<br />

planejar e executar ações de resistência e, simultaneamente, de perpetrar atos ofensivos, seja<br />

com o intuito de obstar ações originadas da esquerda radical, seja para alcançar objetivos<br />

políticos. Nessa fase, suas atividades tiveram o caráter subsidiário de alertar a nação<br />

entorpecida para a existência de objetivos iguais e contrários, originados dos seus desafetos.<br />

Numa segunda fase, ainda que mantendo atuação autônoma, somaram-se aos esforços do<br />

conservadorismo para aquele que iria ser o enfrentamento da batalha final, onde tiveram<br />

atuação destacada.<br />

Seus movimentos, acompanhavam aqueles sinais emitidos pelo fiel da balança, o<br />

Exército Brasileiro, em sintonia com os quais, sem perder de vista seus objetivos, atuavam de<br />

forma a mantê-lo em alerta contra seus adversários, particularmente, na conquista dos<br />

130


corações e mentes da maioria de neutros.<br />

Tanta motivação e energia, entretanto, ampliaram os estímulos que se somavam para<br />

desequilibrar, ainda mais, as relações entre civis e militares e, por consequência, para<br />

fragilizar a segurança e a defesa nacionais. Na época, dada a conjuntura internacional,<br />

ninguém pensava nisso. O conluio com estrangeiros não era visto como pecado; ao contrário,<br />

por uma dessas armadilhas da História, até mesmo poderia auxiliar na almejada redenção.<br />

Nesse ponto, vale relembrar à alegoria dos dois mundos de Huntington, de “serenidade<br />

severa” na Academia Militar de West Point e de “incrível variedade e discordância” em<br />

Highland Falls, que consideramos um feitiço a separar os universos de civis e militares, os<br />

quais deveriam ser, naturalmente, tendentes ao isolamento; e ao desejado equilíbrio das<br />

relações propostos por aquele autor; ambas condições a tornar o desafio de encontrar formas<br />

de comunicação viáveis entre estas esferas muito maior do que anteriormente visualizado.<br />

Acrescenta-se que o modelo de equilíbrio ideal proposto por Samuel Huntington, isto<br />

é: do controle objetivo ou profissional, admite a necessidade da estanqueidade entre esses<br />

dois mundos e o desafio se reduz a ordenar a comunicação entre eles para que um não venha a<br />

afetar a harmonia do funcionamento do outro.<br />

Entretanto, se fosse esse o modelo a vigir durante o período estudado, o Brasil teria<br />

tido outro destino. Não considerando a possibilidade de veto e intervenção estadunidense, se<br />

os militares brasileiros fossem os profissionais propalados por Huntington, então as previsões<br />

de Werneck Sodré, Oliveiros S. Ferreira e outros teriam se materializado e o Brasil deslizaria,<br />

por volta de 1964, em esplêndida inércia, para uma experiência totalitária. Daí, caso<br />

tivéssemos dirigentes competentes, poderíamos estar nas condições de uma ex-União<br />

Soviética, Cuba, ou seríamos uma nova China.<br />

Paradoxalmente, o modelo ideal de relações entre civis e militares proposto por<br />

Samuel Huntington poderia funcionar bem para os países “abençoados”, conforme as suas<br />

próprias palavras, por prosperidade contínua e estabilidade democrática. Naqueles países em<br />

fase de modernização, que ainda lutavam por condições de igualdade econômica e de<br />

oportunidade para seus cidadãos, além de não gozarem de democracias plenas, esse modelo<br />

não podia funcionar.<br />

Em uma hipótese extrema, quando parcela significativa da população luta pela<br />

manutenção do seu modo de vida ou mesmo para alterá-lo, o modelo profissional seria um<br />

estorvo. Nesses casos, é lícito supor que, em qualquer época, a fusão de interesses compostos<br />

por aspectos afetivos e racionais iria, naturalmente, reunir os civis e militares em torno de<br />

suas bandeiras, como ocorreu durante o período desta pesquisa.<br />

131


7 R E F E R Ê N C I AS<br />

7.1 OBRAS CITADAS<br />

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140


8.0 APÊ NDI C ES


8.1 SESSÃ O D O C L UB E M I L I T A R D E 24 D E JUN H O D E 1922 1<br />

(Presidida pelo Marechal Hermes da Fonseca)<br />

Participantes:<br />

Generais Setembrino de Carvalho, <strong>Jose</strong> de Lima, Hastinfilo de Moura, Andrade Neves,<br />

Potiguara e Aché; Almirante Souza e Silva; Coronéis Gomes de Castro e Santa Cruz; Majores<br />

Boanerges e Euclides Figueiredo; Capitães Duarte do Carmo e Teopompo de Vasconcelos; e<br />

Tenentes: Asdrúbal Gwaier de Azevedo, Siqueira Campos, Siqueira de Brito e Pacheco.<br />

Diálogos:<br />

Ten. GWAIER – Em defesa do Exército, desse Exército enxovalhado pelo Presidente da<br />

República, desse Exército que V. Excia., General Setembrino, de modo algum representa…<br />

(Trocam-se apartes).<br />

MARECHAL PRESIDENTE – Atenção. Quem está com a palavra é o senhor tenente Gwaier.<br />

Ten. GWAIER – O sr. Major Boanerges já havia declarado, antes de abrir a sessão, que viria<br />

me apartear com violência.<br />

MAJ. BOANERGES – Não é verdade.<br />

Ten. GWAIER – Quem me disse foi o Ten. Siqueira Campos.<br />

Ten. SIQUEIRA CAMPOS – É verdade. Não querer sustentar é outra coisa.<br />

Maj. BOANERGES – Eu não disse assim.<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. disse, mas não tem importância, seus apartes não me interrompem.<br />

Cap. DUARTE DO CARMO – O Sr. Major Boanerges é um oficial digno, mais digno que V.<br />

Excia.<br />

Ten. GWAIER – Mais digno que V. Excia.<br />

Cap. DUARTE DO CARMO – V. Excia. é incompetente, mal-criado e não sabe português.<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. tem razão; eu fui aluno do senhor seu pai.<br />

Cap. DUARTE DO CARMO – Protesto, meu pai era um homem competente e sabia<br />

comandar.<br />

Ten. GWAIER – Tinha tanta competência que se permitiu transferir sine die um eclipse total<br />

do Sol. Isto está escrito nos boletins do Exército; eu apelo para o sr. Tenente Siqueira de Brito<br />

1 Cf. relatado por Nelson Werneck SODRÉ, em A História Militar do Brasil, Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1979, p. 202 a 208. O motivo da sessão dizia respeito a uma suposta Carta que o candidato da<br />

situação à Presidente da República, Arthur Bernardes, teria escrito com comentários ofensivos ao Exército<br />

Brasileiro e ao Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, a qual ficou comprovada ser falsa.


que, na ocasião, servia no 1 o Batalhão de Engenharia.<br />

Cap. DUARTE DO CARMO – O Tenente Brito é um oficial digno e não pode afirmar isto.<br />

Ten. S. BRITO – Sou amigo do Cap. Duarte do Carmo e peço a S. Excia. que me perdoe,<br />

porém a afirmação do Ten. Gwaier é verdadeira.<br />

Cap. DUARTE DO CARMO – Muito obrigado a V. Excia.<br />

Ten. S. BRITO – Não tem o que agradecer.<br />

.......................................................................................................................................................<br />

Ten. GWAIER – Está direito, V. Excia. submeterá o requerimento à votação, Sr. Presidente.<br />

Os jornais noticiam que o Sr. Presidente da República, para enxovalhar o Exército, vai<br />

mandar amanhã seus agentes fecharem o Clube Militar, baseado numa lei que fecha as<br />

sociedades de anarquistas, de caftens e de exploradores de lenocínio. Maior injúria não se<br />

pode fazer. Suprema afronta jogada às faces do Exército Nacional.<br />

Maj. E. FIGUEIREDO – O Sr. Presidente da República tem toda a razão.<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. concorda que o Presidente da República feche o Clube Militar<br />

baseado naquela Lei?<br />

Maj. E. FIGUEIREDO – Concordo.<br />

Ten. GWAIER – Então V. Excia. é caften? É explorador do lenocínio? É anarquista? Queira<br />

me desculpar porque, francamente, eu não sabia.<br />

Maj. E. FIGUEIREDO – Eu respondo a V. Excia. Como homem. Respondo sua audácia.<br />

Ten. GWAIER – À vontade. Escolha o lugar e marque hora. Sob minha honra de militar o<br />

juro, lá estarei.<br />

Marechal Presidente – O Sr. Ten. GWAIER vai modificar essa linguagem. V. Excia. está<br />

convidando seus superiores para brigar.<br />

.......................................................................................................................................................<br />

Ten. GWAIER – Sr. Presidente, se eu soubesse que os defensores do governo epitacista<br />

aparteariam o Ten. Brito com tanta rudeza de linguagem e grosseria, não teria tocado na<br />

prisão daquele oficial, para não assanhar os gaviões e os abutres que rasgam a dignidade<br />

alheia.<br />

Ten. PACHECO – Gavião é V. Excia.<br />

Ten. GWAIER – Eu sou o gavião e V. Excia. é a rolinha.<br />

Gen. POTIGUARA – Está se dirigindo a mim?<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. aparteou o Ten. Brito com grosseria?<br />

Gen. POTIGUARA – Não. Mas estou solidário com os apartes dados a V. Excia.<br />

143


Ten. GWAIER – Então permita que lhe diga: V. Excia. também é um corvo faminto que<br />

procura raspar a honra alheia.<br />

Gen. POTIGUARA – Protesto! Isto revolta, srs. oficiais!<br />

Ten. GWAIER – O que revolta é V. Excia. emprestar seus galões e a força que comanda a um<br />

bandido como o Sr. Epitácio Pessoa, deixando ele livremente cavalgar o Exército, fechando o<br />

Clube Militar baseado numa lei infame, injuriosa e opressora.<br />

Gen. POTIGUARA – V. Excia. se atreve a chamar o Sr. Presidente da República de bandido?<br />

Gen. HASTINFILO – Eu lhe repilo, Tenente.<br />

Ten. GWAIER – Ele não é somente bandido, é ladrão também. Está provado.<br />

Gen. POTIGUARA – V. Excia. se arrependerá disso.<br />

Ten. GWAIER – Registre-se a ameaça.<br />

Gen. POTIGUARA – V. Excia. não está sendo ameaçado. Eu lhe aparteei calmo e rindo.<br />

Ten. GWAIER – Há homens, Sr. Presidente, cujo riso parece uma operação de descontos a<br />

juros usurários. Assim é o riso do General Potiguara.<br />

Cap. TEOPOMPO DE VASCONCELOS – V. Excia. é indigno de vestir a farda do Exército.<br />

Não agrida os seus superiores.<br />

Ten. GWAIER – Eu falei como o General Potiguara e não com sua ordenança.<br />

Cap. T. DE VASCONCELOS – Ordenança é V. Excia.<br />

Ten. GWAIER – É. V. Excia., que como capitão se prestou aos papéis mais infames, como<br />

sejam os de perseguidor e algoz dos seus colegas.<br />

Cap. T. DE VASCONCELOS – V. Excia. está se alterando e o sangue lhe chegando às faces.<br />

Ten. GWAIER – Sim, porque onde não tem sangue é na fisionomia dos cadáveres. Onde não<br />

tem sangue é na fisionomia de V. Excia., que é um cadáver moral. (Trocam-se violentos<br />

apartes).<br />

MARECHAL PRESIDENTE – Se os oficiais continuam nessa linguagem, eu sou obrigado a<br />

suspender a sessão. Todos nós somos do Exército e o que se está passando aqui é uma<br />

vergonha que depõe contra nossa cultura e educação. Continua com a palavra o Sr. Ten.<br />

Gwaier de Azevedo.<br />

Ten. GWAIER – Os meus agressores ponham a carapuça. A observação do Sr. Presidente<br />

atinge àqueles que me obrigam a responder com violência apartes violentos e indelicados.<br />

.......................................................................................................................................................<br />

Ten. GWAIER – Até quando sofreremos tão grandes ignomínias? Unamo-nos e teremos os<br />

aplausos da Nação inteira, toda ela mais ou menos ferida pela perfídia, pela inépcia…<br />

144


(Protestos — Muito bem!) pela prepotência de um presidente cretino, infame e déspota.<br />

Gen. POTIGUARA – Cretino é V. Excia.<br />

Ten. GWAIER – Cretino é V. Excia. Não estamos no Contestado, onde V. Excia. mandava<br />

fuzilar a torto e a direito. Isto é um costume seu... e muito antigo.<br />

Coronel SANTA CRUZ – Eu estou revoltado com a linguagem desse oficial.<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. está revoltado porque não pode me pegar no 1o Regimento de<br />

Cavalaria, para me raspar a cabeça, como faz com os soldados.<br />

Cel. SANTA CRUZ – Isto é uma infâmia.<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. pode me informar por que todo mundo o conhece por Rapa-Coco?<br />

.......................................................................................................................................................<br />

Gen. H. MOURA – V. Excia. Está preso!<br />

Ten. GWAIER – Perdeu boa ocasião de ficar calado. Se eu, dizendo tudo isso, não soubesse<br />

que seria preso, seria idiota.<br />

Ten. GWAIER – É verdade.<br />

Gen. JOSÉ DE LIMA – V. Excia. olhe para minha cara e veja quem sou, atrevido!<br />

Ten. GWAIER – Eu não conheço V. Excia. direito, mas, pela cara, parece um coveiro de<br />

cemitério em tempo de epidemia.<br />

Gen. JOSÉ DE LIMA – Protesto! Protesto!<br />

OUTROS OFICIAIS – Muito bem! Muito bem!<br />

.......................................................................................................................................................<br />

Gen. SETEMBRINO – Fosse eu presidente do Clube, esse oficial não continuaria a falar.<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. podia ser, mas não com meu voto. Poderia ser presidente do Clube<br />

Militar um oficial general que, na campanha do Contestado, de parceria com os peculatários,<br />

roubou a nação em 2.600 contos, assinando recibos fantásticos de víveres e deixando os<br />

soldados morrer de fome?<br />

Gen. SETEMBRINO – V. Excia. provará isso?<br />

Ten. GWAIER – Pois não! Os documentos existem.<br />

Almirante SOUZA E SILVA – Se dessem uma comissão a V. Excia. não há dúvida que se<br />

calaria imediatamente.<br />

Ten. GWAIER – Não julgue o meu critério pelo de V. Excia... V. Excia. é um concessionário<br />

que dorme regaladamente nas gavetas dos fornecedores de carvão para a Esquadra e teve o<br />

despudor de engolir 1.600 contos, a pretexto de abastecer de combustível o depósito da Ponta<br />

do Galeão, onde o Almirante V. de Matos, militar digno e respeito por todos os títulos, indo lá<br />

145


nada encontrou, nem mesmo sombra de combustível.<br />

Alm. SOUZA E SILVA – Isto é uma balela.<br />

Ten. GWAIER – O Sr. Almirante V. de Matos declarou ou não tudo isso que eu acabei de<br />

afirmar? Faça o favor de responder, pois eu apelo para sua dignidade de militar e para o seu<br />

passado.<br />

Alm. V. de Matos – O que V. Excia. disse é uma verdade e ele não me desmentirá.<br />

Ten. GWAIER – Veja Sr. Presidente, eu não estou caluniando.<br />

Gen. POTIGUARA – Caluniador V. Excia. o é.<br />

Ten. GWAIER – Foi também V. Excia. quem mandou encher de palha 15 vagões que deviam<br />

levar roupas para nossos soldados no Contestado; e, em vez de 30 volumes de granadas,<br />

remeteu 30 volumes de pedras. Foi finalmente V. Excia. que, como o General Setembrino,<br />

fluidificou 20.000 pares de botas de montaria do Exército, que nunca foram vistos em ponto<br />

algum do planeta, a não ser nas algibeiras de V. Excia. vastas como o oceano (Protesto e<br />

Muito Bem!) (O presidente chama a atenção dos oficiais).<br />

Gen. LIMA – Ladrão pode ser V. Excia.<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. manifestou-se sem ser chamado. Também terá que ouvir sua fé de<br />

ofício. Ei-la: V. Excia. construiu uma estrada de ferro na Fábrica de Pólvora com o célebre<br />

túnel pelo qual as locomotivas só puderam passar depois de arrancadas as suas chaminés,<br />

porque não foi prevista altura suficiente, sendo que a via férrea era tão bem feita que os trens<br />

gastaram 74 horas para percorrer 120 quilômetros. Desminta-me se é capaz?<br />

Gen. ACHÉ – Torna-se necessária uma reação de nossa parte porque esse oficial está nos<br />

enxovalhando!<br />

Ten. GWAIER – V. Excia. também tem rabo comprido.<br />

Gen. ACHÉ – V. Excia. que aponte uma irregularidade minha.<br />

Ten. GWAIER – Vou satisfazer V. Excia. com todo o prazer. V. Excia., na França, requisitou<br />

dinheiro do Tesouro para pagar dívidas contraídas na França e na Alemanha, conseqüência de<br />

jogo e libertinagem, aliás libertinagem senil, em que V. Excia. se contentava com os elogios<br />

das proxenetas à artificial eternidade do vigor brasileiro. Isto está no relatório do embaixador<br />

do Brasil, enviado ao Ministério do Exterior.<br />

Gen. ACHÉ – O embaixador é um infame.<br />

Ten. GWAIER – Não sou culpado, entenda-se com ele.<br />

Gen. ACHÉ – V. Excia. é um oficial degenerado... Provocador destas cenas vergonhosas.<br />

Ten. GWAIER – Dignas, entretanto, de vossa presença.<br />

146


Gen. ANDRADE NEVES – O Sr. General Aché está muito acima das injúrias desse oficial<br />

energúmeno.<br />

Ten. GWAIER – Antes ser energúmeno do que ser um devasso como V. Excia., que já<br />

desviou fundos de subscrições públicas em proveito de suas numerosas concubinas.<br />

(Protestos. Muito bem!)<br />

.......................................................................................................................................................<br />

Ten. GWAIER – Sr. Presidente, estamos às portas da Revolução 2 .<br />

2 Em 2 de julho de 1922, em meio ao descontentamento dos oficiais mais jovens do Exército, o Forte de<br />

Copacabana se revoltou – sob o comando do Capitão Euclides Hermes da Fonseca, filho do Marechal Hermes da<br />

Fonseca – e foi atacado pelas tropas governistas. Após três dias de combates, dos 301 revolucionários que<br />

iniciaram a revolta restavam 29 combatentes. Acuados, seu comandante, o Capitão Euclides, em 05/07/1922,<br />

saiu para negociar e foi preso. Os 28 remanescentes decidiram então "resistir até a morte". A Bandeira do Forte<br />

foi arriada e rasgada em 28 pedaços, partindo-se, em seguida, em marcha pela Avenida Atlântica rumo ao Leme.<br />

Durante os tiroteios, dez deles dispersaram pelo meio do caminho e os tais 18 passaram a integrar um pelotão<br />

suicida. Após a morte de um cabo, ainda no asfalto com uma bala nas costas, os demais saltaram para a praia,<br />

onde aconteceram os últimos choques. A despeito dos que tombaram mortos na areia, os remanescentes<br />

continuaram seguindo em frente. Os únicos sobreviventes foram Siqueira Campos e Eduardo Gomes, embora<br />

tivessem ficado bastante feridos. Disponível em: . Acesso em 18/03/2011.<br />

147


8.2 M E M O RI A L D OS C O R O N É IS 1<br />

230.5<br />

Memorial dos coronéis (15 fev. 1954)<br />

A S. Exa. o Sr. General Ministro da Guerra.<br />

Aos Exmos Srs. Generais Chefe do EME, Chefes do DTP e do DGA, Comandantes de<br />

Zonas Militares.<br />

Oficiais superiores que se julgam credenciados por todo o seu passado militar sentem-<br />

se no iniludível dever moral, por lealdade aos Chefes e consciência de suas próprias<br />

responsabilidades perante os subordinados, de submeter à consideração do Alto Comando a<br />

presente exposição dos graves problemas com que se defronta o Exército, nesta hora de sérias<br />

apreensões.<br />

O descontentamento e as inquietações que lavram entre os quadros permanentes e<br />

semipermanentes, sobretudo nos postos menos elevados, estão a criar perigoso ambiente de<br />

intranqüilidade, agravado pelo enfraquecimento da confiança nos Chefes, que já se esboça e<br />

amplia. Os desestímulos e o conseqüente arrefecimento do entusiasmo pelos deveres<br />

profissionais ameaçam de estagnação duradoura a máquina militar entorpecida em sua<br />

eficiência pela deterioração das condições materiais e morais indispensáveis a seu pleno<br />

funcionamento. Prenuncia-se indisfarçável crise de autoridade, capaz de solapar a coesão da<br />

classe militar, deixando-a inerme às manobras divisionistas dos eternos portadores da<br />

desordem e usufrutuários da intranqüilidade pública. E, com o comunismo solerte sempre à<br />

esquerda, serão os próprios quadros institucionais da Nação ameaçados, talvez, de subversão<br />

violenta.<br />

Urge, pois, se promova decidida campanha de recuperação e saneamento no seio das<br />

classes armadas. E é para apoiar tal campanha - cujos fins imediatos visarão, por certo, a<br />

revigorar o respeito ao princípio de autoridade e aos sadios postulados da disciplina - que<br />

reafirmamos aos altos Chefes responsáveis o nosso firme propósito de secundá-los por todos<br />

os meios a nosso alcance, na restauração dos elevados padrões de eficiência, de moralidade,<br />

de ardor profissional e dedicação patriótica que, em todos os tempos, asseguraram ao Exército<br />

respeito e prestígio na comunidade nacional.<br />

Estamos certos de que, para garantir de início o clima espiritual indispensável à<br />

1 Disponível em: http://www.brasilcultura.com.br/historia/o-manifesto-dos-coroneis/. Acesso em: 27/03/2011.


ealização de um amplo e fecundo programa, bastará, como medidas efetivas e imediatas, seja<br />

dado público testemunho cabal e positivo, da firme decisão de solucionar os sérios problemas<br />

- causas profundas e reais da crise que já se delineia e seria erro ou imprevidência não querer<br />

enxergar.<br />

É bem verdade que, dentre esses problemas todos - do ponto de vista da segurança<br />

nacional -, um dos mais sérios é o do aparelhamento real do Exército para o cumprimento, a<br />

qualquer instante, das indeclináveis missões que lhe cabem. Generaliza-se - triste é confessá-<br />

lo - o sentimento de que temos mesmo involuído quanto à preparação dos quadros e da tropa,<br />

assistência aos conscritos, manutenção e renovação do equipamento militar. E tal sentimento,<br />

aliado à consciência do quanto já pesam as instituições armadas no orçamento minguado de<br />

uma Nação ainda pobre, tem servido para motivar o mais sério desalento, ainda mais<br />

ressentido ante o surpreendente dos vultosos fundos atribuídos largamente a outras Forças<br />

Armadas, fora de qualquer planejamento equilibrado e de conjunto.<br />

A inadequação e precariedade das instalações em todo o território nacional, quartéis<br />

insuficientes, velhos ou de empréstimo, ausência de depósito até mesmo com risco de<br />

segurança de vidas, deficiência e desaparelhamento dos hospitais, o pouco que ainda temos -<br />

se excetuadas luxuosas construções do Serviço de Intendência - condenando à ruína pela<br />

exigüidade dos recursos atribuídos à sua conservação; fardamento das praças<br />

comprovadamente inadequado, equipamento bélico em grande parte obsoleto, material<br />

motomecanizado a deteriorar-se por falta de meios indispensáveis à sua manutenção racional,<br />

inexistência de material de comunicação até mesmo nas unidades especializadas; a tropa mal<br />

assistida e pior enquadrada, devido à crônica escassez de quadros subalternos e de monitores,<br />

e com sua instrução prejudicada por dificuldades de toda a ordem, inclusive a já quase<br />

irremediável carência de terrenos apropriados aos exercícios de campanha: agravando, dia a<br />

dia, o problema do recrutamento de graduados e especialistas; relegado a plano secundário o<br />

aperfeiçoamento profissional dos quadros; estimulado o êxodo de oficiais para fora das<br />

unidades de tropa e sobrecarregadas a cadeia de comando e a administração por uma pletora<br />

de órgãos de atribuições mal delimitadas, tais os sintomas e índices mais alarmantes do grau<br />

de despreparo a que atualmente chegamos. É bem verdade que para tanto concorreu uma<br />

lamentável conjuntura de circunstâncias fazendo com que, ao acelerar-se, embora<br />

desordenadamente, o ritmo de desenvolvimento do País, acarretando profundas<br />

transformações na ordem social e econômica ao impacto da dinâmica convivência mundial,<br />

menos pudesse o Exército, à míngua de recursos e consciente das dificuldades financeiras que<br />

vêm atormentando a Nação, aparelhar-se à altura de suas novas mais amplas e mais<br />

149


complexas responsabilidades. E nos deixamos ficar retardatários em meio ao processo do<br />

País.<br />

Vasto e demorado só poderá ser, porém, um programa de empreendimentos que vise a<br />

recuperação do tempo perdido alçando o Exército ao nível de eficiência e preparação que dele<br />

estão a exigir os altos imperativos da segurança nacional. Ora, para tanto, o que mais importa<br />

no momento é restabelecer a coesão do conjunto, reforçar os laços de disciplina e de<br />

confiança mútua, dar remédio justo aos anseios bem motivados, às preocupações bem<br />

fundamentadas, ao descontentamento bem justificado, robustecendo a classe contra tendências<br />

desagregadoras de qualquer natureza. E tanto mais urge fazê-lo quanto a ameaça sempre<br />

presente da infiltração de perniciosa ideologia antidemocrática ou de espírito de partidarismo<br />

político, semeador de intranqüilidade e conflitos, cada vez avulta na hora presente, estimulada<br />

ao calor das paixões e das ambições sempre exacerbadas em períodos pré-eleitorais.<br />

Sem dúvida, o que mais está a alastrar o desânimo e o descontentamento entre os<br />

jovens oficiais não é a falta de perspectivas mais amplas de carreira que leis e mais leis de<br />

numerosas reestruturações nunca poderão assegurar, senão apoiadas em rigoroso e justo<br />

processo de rejuvenescimento dos quadros que tanto tarda entre nós: mas sobretudo, a<br />

chocante e injustificável disparidade de acesso entre as diversas Armas e Serviços que dia a<br />

dia se agrava, com as mais danosas repercussões para a coesão moral do corpo de oficiais,<br />

sem que providências efetivas sejam tomadas para eliminá-la ou reduzi-la a limites toleráveis.<br />

Daí a descrença pronunciadora de graves tensões que vai assaltando o espírito da oficialidade<br />

jovem, não mais convicta de encontrar em seus chefes, mesmo naqueles que mais perto<br />

podem sentir-lhe o problema, os defensores serenos mais intransigentes de suas justas<br />

aspirações.<br />

E, por outro lado, é a inflação desmesurada dos altos postos que está a traduzir-se em<br />

perigoso desprestígio da autoridade - o excesso dos quadros superiores numa estrutura que,<br />

por modesta, não lhes pode oferecer, a todos, funções compatíveis com a sua hierarquia,<br />

acarretando perda de eficiência do conjunto, propiciando o ócio remunerado e oferecendo,<br />

assim, lamentável exemplo aos olhos de todos os subordinados. Ressente-se com isso a<br />

solidez de toda a estrutura militar, afetada simultaneamente no princípio da autoridade e nos<br />

laços de confiança que fundamentam a disciplina consciente, como se não bastasse ainda o<br />

espetáculo pouco salutar das carreiras vertiginosamente feitas na reserva a coberto de leis em<br />

extremo generosas que multiplicam e barateiam os postos máximos da hierarquia, com<br />

desprezo até das mais elementares restrições vigentes para o acesso na atividade.<br />

150<br />

Infelizmente não são apenas essas as causas principais da intranqüilidade e


descontentamento que se vão difundindo por todo o Exército.<br />

A emigração de militares para cargos civis sempre mais bem remunerados, onde,<br />

dissociados dos interesses profissionais e dos problemas de sua classe, nem sempre se podem<br />

conservar imunes às intrigas de política partidária e ficar inteiramente a salvo da onda de<br />

corrupção administrativa, que acende escândalos nas manchetes dos jornais - de tudo isso<br />

advindo incalculáveis prejuízos ao prestígio das Forças Armadas - cada vez mais inquieta os<br />

que preferem se dedicar inteiramente aos afazeres profissionais, principalmente porque<br />

aquelas funções consideradas com grande liberdade como detentores e correr às promoções e<br />

comissões diversas como se permanecessem no serviço das armas, aproveitando-se ademais<br />

muitos deles de tão singular situação para auferirem vantagens, ora de ordem militar, ora de<br />

caráter político.<br />

O clima de negociatas, desfalques e malversação de verbas que infelizmente vem nos<br />

últimos tempos envolvendo o País e até mesmo o Exército, está, por outro lado, a exigir se<br />

oponham sólidas barreiras que lhe detenham o transbordamento dentro das classes armadas<br />

cujo padrão de honestidade e decoro administrativo, acima das mais leves suspeitas ou<br />

críticas, só se poderá manter se além de rigorosas normas de administração e controle, vigorar<br />

alerta um espírito coletivo de decidida contenção e repulsa contra qualquer desmandos ou<br />

falências morais, sobretudo na gestão dos dinheiros públicos.<br />

A falta de aparelhamento eficiente dos órgãos de assistência social, reconhecidamente<br />

incapazes de atender as necessidades dos militares e suas famílias, provendo com presteza<br />

reais facilidades e nas condições vantajosas que deles seria justo esperar, vem acrescendo as<br />

dificuldades de vida com que lutam, principalmente, os oficiais subalternos subtenentes e<br />

sargentos, distraídos de suas tarefas e perturbados no cumprimento de seus deveres<br />

profissionais pelas múltiplas preocupações que decorrem da obrigação moral de assistir a seus<br />

familiares na satisfação das mais elementares necessidades de subsistência. E, não fora tão<br />

grave e premente esse problema, se não assistíssemos à compreensão cada dia maior do<br />

padrão de vencimentos militares ante a espiral inflacionária dos preços, e se, ademais, não<br />

perdurasse, flagrante e acabrunhadora, eterna disparidade em relação ao pessoal das outras<br />

Forças Armadas que têm asseguradas, onde quer que seja, condições de vida muitíssimo<br />

superiores.<br />

Sabido é que em todas as guarnições, embora em escala variável, lutam os militares de<br />

terra com dificuldades cada vez maiores para a manutenção de um padrão de vida compatível<br />

com sua posição social. Ante as reconhecidas aberturas do erário, importaria isso nada mais<br />

do que num sacrifício maior a que, de espírito alevantado, se sujeitariam todos, não<br />

151


estivessem agora outros problemas de muito maior profundidade, tais como os apontados<br />

anteriormente a disseminar perniciosa onda de ceticismo utilitarista e a corroer a crença nos<br />

altos valores morais que são, de fato, o sustentáculo das instituições armadas.<br />

Perigosas só poderão ser hoje, nos meios militares, as repercussões que já se<br />

pressentem e anunciam de leis ou decisões governamentais que, beneficiando certas classes<br />

ou grupos, acarretarão pronunciado aumento do custo já insuportável de todas as utilidades. A<br />

fixação de altos padrões de vencimentos para os funcionários diplomados em cursos<br />

superiores - vencimentos que se duplicarão ao cabo de alguns qüinqüênios - caso não<br />

promova injustificável disparidade entre militares e civis, só poderá, através de emendas<br />

apressadas introduzidas nas Casas do Congresso, sem maior exame de todas as suas<br />

conseqüências, redundar em outra série de males e desníveis dentro da própria classe militar.<br />

E a elevação do salário mínimo que, nos grandes centros do País, quase atingirá o dos<br />

vencimentos máximos de um graduado, resultará, por certo, se não corrigida de alguma forma<br />

em aberrante subversão de todos os valores profissionais, destacando qualquer possibilidade<br />

de recrutamento para o Exército de seus quadros inferiores.<br />

Ante a gravidade da situação que se está a criar para breve, impõe-se alerta corajoso,<br />

pois não se poderá prever que grau de dissociação serão capazes de gerar, no organismo<br />

militar, as causas múltiplas de tensões que, dia a dia, se acumulam.<br />

E é preocupados e justamente alarmados ante perspectivas tão sombrias, que nos<br />

animamos a trazer aos altos Chefes responsáveis, leal e francamente, esta exposição, a nosso<br />

ver, fidedigna do ambiente em que, na hora presente, se debate o Exército, cujos quadros só<br />

devem aspirar vê-lo reintegrado na antiga tradição da austeridade, de eficiência, coesão e<br />

consciência profissional que dele sempre fizeram o baluarte e o guardião da nacionalidade<br />

brasileira.<br />

152<br />

Rio de Janeiro, fevereiro de 1954.<br />

Este documento, pelo que a imprensa noticiou na época, foi assinado pelos seguintes oficiais<br />

do Exército:<br />

Coronéis: Antônio Henrique de Almeida Morais; Dario Coelho; Orlando Ramagem; Syseno<br />

Sarmento; Alfredo Souto Malan; Antônio Mendonça Molina; Jurandir Bizarria Mamede;<br />

Amaury Kruel; Landry Sales Gonçalves; Almério de Castro Neves; Olímpio de Sá Tavares;<br />

Adhemar de Queiroz; Silvino Castro da Nóbrega; Paulo Eneas Ferreira da Silva; Luiz


Carneiro de Castro e Silva; Antônio Negreiros de Andrade Pinto; Félix Toja Martinez;<br />

Annibal de Andrade; Aristóteles Munhoz Moreira; Ramiro Gorreta Júnior; Milton Pio Borges<br />

da Cunha; Antônio Moreira Coimbra; Anthero de Matos Filho; João Franco Pontes; João<br />

Punaro Bley; Adalberto Pereira dos Santos; João Armindo Correia da Costa; Aristóbulo<br />

Codevilla Rocha; Elísio Carlos Dale Coutinho; Paulo Leite de Rezende; Mirabeau Pontes;<br />

Luís Tavares da Cunha Mello; Edson Pires Condeixa; Pedro Eugênio Pires; Mário Ferreira<br />

Barbosa Pinto; Humberto Morais Barbosa de Amorim; Joaquim José Gomes da Silva Júnior;<br />

José Luiz Bettamio Guimarães; Antônio Carlos da Silva Muricy; Alberto Ribeiro Paz;<br />

Alfredo Américo da Silva.<br />

Tenentes-Coronéis: José Alexínio Bittencourt; Paulo Braga de Souza; Virgínio da<br />

Gama Lobo; Luís Gomes do Nascimento; Ayrton Salgueiro de Freitas; Antônio Jorge Correia;<br />

Walter de Meneses Pais; Newton Castelo Branco Tavares; Décio Gorrensen de Oliveira; Raul<br />

Pires de Castro; Araken de Oliveira; Moacyr Nery Costa; Antônio Luiz de Barros Nunes;<br />

Golbery do Couto e Silva; Nilton Fontoura de Oliveira Reis; Ramiro Tavares Gonçalves;<br />

Aécio Rebouças; Sílvio Coelho da Frota; Antônio Marques de Amorim; Clóvis Bandeira<br />

Brasil; Adauto Esmeraldo; Antônio da Costa Lins; Otávio de Oliveira Braga; Hélio Barbosa<br />

Brandão; Agostinho Teixeira Cortes; Fritz de Azevedo Manso; Ednardo d'Ávila Melo; Euler<br />

Bentes Monteiro; Mozart de Andrade Sousa; Oldemar Ferreira da Silva; Napoleão Nobre;<br />

Maelmo de Faria Mascarenhas e Lemos; Alcyr Palmeiro; Demósthenes Américo da Silva;<br />

Lauro Moitinho dos Reis; Ovídio Saraiva de Carvalho Neiva; Henrique Fernando Vieira;<br />

Geraldo de Menezes Cortes; Lucídio de Arruda.<br />

153


8.3 M A NI F EST O D OS G E N E R A IS 1<br />

Considerando que o inquérito policial-militar em andamento na base aérea do Galeão,<br />

já apurou indiscutivelmente, que foi a guarda pessoal do presidente da República, sob a chefia<br />

de Gregório Fortunato, homem de sua absoluta confiança, que planejou e preparou, dentro do<br />

palácio presidencial, ou fez executar, o atentado em que foi assassinado o major-aviador<br />

Rubens Fiorentino Vaz;<br />

Considerando que depois de haver o Presidente da República assegurado à Nação que<br />

o crime seria apurado e os culpados entregues à justiça, elementos de sua imediata confiança,<br />

ainda dentro do palácio presidencial, alertaram os criminosos e lhes forneceram os meios<br />

necessários à fuga, inclusive vultosa quantia em dinheiro;<br />

culpados;<br />

Considerando que é, assim, duvidoso que se possa chegar à punição de todos os<br />

Considerando que as diligências do inquérito trouxeram à luz farta documentação em<br />

que se demonstra a corrupção criminosa nos círculos mais chegados ao presidente da<br />

República;<br />

Considerando que tais fatos comprometem a autoridade moral indispensável ao<br />

presidente da República para o exercício de seu mandato;<br />

Considerando, enfim, que a perduração da atual crise político-militar está trazendo ao<br />

País irreparáveis prejuízos em sua situação econômica e poderá culminar em graves comoções<br />

internas, em face da intranqüilidade geral, repulsa e indignação de que se acham possuídas<br />

todas as classes sociais do País, os abaixo-assinados, oficiais-generais do Exército,<br />

conscientes de seus deveres e responsabilidades perante a Nação, honrando compromissos<br />

públicos e livremente assumidos, e solidarizando-se com o pensamento dos camaradas da<br />

Aeronáutica e da Marinha, declaram julgar, em consciência, como melhor caminho para<br />

tranqüilizar o povo e manter unidas as Forças Armadas, a renúncia do atual presidente da<br />

República, processando-se sua substituição de acordo com os preceitos constitucionais.<br />

Assinam:<br />

Rio, 22 de agosto de 1954<br />

General Álvaro Fiúza de Castro; general Canrobert Pereira da Costa; general Nicanor<br />

1 Disponível em: . Acesso em: 25/03/2011.


Guimarães de Souza; general Juarez Távora; general Alcides Etchegoyen; general -<br />

Brigadeiro Emílio Ribas Junior; general Edgard do Amaral; general Altair de Queiroz;<br />

general J. Machado; general Peri Constantant Bevilacqua; general Humberto Castelo Branco;<br />

general Paulo Krueger da Cunha; General Ignácio José Veríssimo; general Barros Falcão;<br />

general João Bastista Tangel; general Nilo Horácio de Oliveira Sucupira; general Antonio<br />

Coelho dos Reis; general Delso Fonseca e general Henrique Lott.<br />

155


8.4 DISC URSO D O C O R O N E L JUR A NDIR D E BI Z A RRI A M A M E D E 1<br />

General Canrobert Pereira da Costa.<br />

Aqui estamos, camaradas e amigos do Clube Militar, à beira do teu túmulo recém-<br />

aberto, em romaria de saudade e de afeto para a derradeira e comovida homenagem a quem<br />

tanto devem nossa associação e nossa classe. Na residência do clube que, em seu quadro<br />

social, congrega toda a família militar, ninguém tanto se esforçou para cimentar mais e mais a<br />

união das três Forças Armadas, nem tão bem soube preocupar-se com os problemas mais<br />

prementes da classe cujos anseios e inquietações sempre quis fazê-los de todos seus e de cujo<br />

pundonor e de cuja honra sempre se fez devotado palaciano.<br />

A gratidão, um vivo reconhecimento e a admiração mais sincera nos trariam a todos<br />

aqui, para esta despedia sem retomo que tanto e tão profundamente nos sensibiliza o coração.<br />

Mas também vimos aqui – e principalmente – para responder ante os teus despojos, à<br />

mensagem corajosa de verdade e de civismo que, em dias de agosto último, abandonando o<br />

teu leito de enfermo, dirigiste a todos nós e a toda a Nação, num último alerta contra a<br />

insensatez e o desvarios das paixões desenfreadas que ameaçam de ruína os próprios destinos<br />

do País.<br />

Ressoam ainda em nossos ouvidos, com todo vigor de tua emoção concentrada e de<br />

uma convicção inabalável, aquelas palavras imperativas de fé: "estejais certos, camaradas, de<br />

que nós, vossos chefes, não vos decepcionaremos".<br />

Aqui estamos, pois, para dizer-te, com emoção não menor, que tu não nos<br />

decepcionaste um só instante.<br />

Sabemos que nunca renegaste, nem renegarias jamais, os altos propósitos patrióticos<br />

como os que mais o fossem, absolutamente desinteressados e apartidários como não poderiam<br />

deixar de ser, pelos quais as Forças Armadas, tendo à frente os seus chefes em expressivo<br />

movimento de solidariedade e união, se viram forçados a um pronunciamento, extralegal, sem<br />

dúvida, mas plenamente justificado pela moral e pela razão ante o imperativo das<br />

circunstâncias, a fim de vencer, como se impunha, a crise trágica de agosto de 1954.<br />

Vimos-te sempre fiel àquele generoso apelo em prol da união nacional, mediante o<br />

qual, em momento decisivo, os altos chefes militares se viram impelidos, pelos ditames de<br />

suas consciências de cidadãos e de soldados, a advertir a todos dos perigos da desunião em<br />

1 Pronunciado por ocasião do sepultamento do general Canrobert Pereira da Costa, na tarde de 1 o de novembro<br />

de 1955. Cf. ARGOLO et al., em A Direita Explosiva no Brasil, Rio de Janeiro: Mauad, 1996, p. 56-58.


hora tão grave e contra a insânia suicida das intransigências partidárias ou personalistas que<br />

jamais sabem ceder de bom grado aos interesses superiores da Pátria. E, sobretudo, sentimos,<br />

a todos os instantes, como pulsava animosa em teu velho coração de soldado a convicção<br />

determinada de que seria necessário – e seria seguramente possível, em identidade de vistas<br />

com os chefes altamente credenciados que se encontram à testa do Exército, da Marinha e da<br />

Aeronáutica – preservar sempre acima de tudo, a despeito de quaisquer forças que se<br />

conjugassem para destruí-la, a união sagrada de nossas Forças Armadas, profundamente<br />

compenetradas de seu papel histórico de fator de equilíbrio e de contenção ante o tumultuar<br />

dos interesses partidários.<br />

Nunca duvidamos do teu amor e respeito, tantas vezes comprovados, às instituições<br />

políticas que implantamos em nossa terra, mas que desejavas ver cada vez mais fortalecidas,<br />

através da verdade e da modalidade democráticas, contra a corrupção e a fraude, contra a<br />

arrogância e a prepotência, contra a hipocrisia dos oportunistas contumazes e a insídia dos<br />

extremismos totalitários, aliados todos, como tu o disseste, a se arrogarem o direito de oprimir<br />

a Nação e macular, à vista de todos, os verdadeiros e insofismáveis, postulados da ordem<br />

democrática que fingem defender e aclamar, para, afinal, poderem anulá-los pela artimanha<br />

ou pela força.<br />

Pouco importa, afinal, se hajam exibido hipocritamente escandalizados, ante a justeza<br />

de todas palavras, os maiores interessados na perpetuação dessa "mentira democrática" que<br />

tão bem conhecem e exploram e da "pseudolegalidade imoral e corrompida", em que buscam<br />

justificativa fácil para os seus apetites de poder e de mando.<br />

Não será por acaso indiscutível mentira democrática um regime presidencial que, dada<br />

a enorme soma de poder que concentra em mãos do Executivo, possa vir a consagrar, para a<br />

investidura do mais alto mandatário da Nação, uma vitória da minoria?<br />

Não será também, por acaso, pseudolegalidade patente, aquela que ousa legitimar-se<br />

para defesa intransigente de um mecanismo adrede preparado para assegurar, em toda a sua<br />

plenitude, o voto do analfabeto, proibido por lei?<br />

Compenetrado das pesadas responsabilidades que cabem aos altos chefes militares,<br />

sobretudo em país como o nosso, em marcar, a duras penas, para a concretização de seu ideal<br />

democrático e onde por isso mesmo a violência por parte daqueles chefes será indispensável,<br />

muitas vezes para prevenir dias amargos para o povo e evitar a desordem pública e para a<br />

derrocada nacional – soubeste manter sempre, com serenidade e decisão, a posição do mais<br />

justo equilíbrio entre um partidarismo –inadmissível para teus foros de soldado – e a<br />

155


passividade e a omissão – de qualquer forma incompatível com teu elevado conceito do que<br />

seja a verdadeira liderança militar.<br />

Em verdade, soubeste ser realmente um chefe – um chefe, tal como o definiste em<br />

breve oração que veio a ser, afinal, tua derradeira mensagem de incentivo e de fé à juventude<br />

militar brasileira.<br />

Ser chefe é, sobretudo, ter amor às responsabilidades que da tua própria investidura do<br />

comando promanam. É afirmar-se sempre como vontade esclarecida e consciente e é, acima<br />

de tudo, em meio à confusão e à perplexidade, saber divisar claro e retilíneo o caminho da<br />

honra e do dever.<br />

Quis Deus, em sua sabedoria que não podemos compreender, mas contra a qual não<br />

pode prevalecer jamais a revolta das criaturas, fulminar- te agora no apogeu de tua insigne<br />

carreira e quando de ti mais esperavam a Nação pela qual tudo estavas pronto a dar, e os<br />

camaradas de farda a quem não faltaste jamais com a tua lealdade de chefe compreensivo e<br />

amigo.<br />

Ficam conosco, porém, as tuas palavras e, mais ainda do que essas palavras, o espelho<br />

imaculado do teu exemplo, como guia da nossa geração e guia também das gerações futuras.<br />

E esse exemplo há de multiplicar-se e frutificará.<br />

156


7.5 L E I D O EST A D O D E SÍ T I O 1<br />

LEI n o 2.654, DE 25 DE NOVEMBRO DE 1955<br />

Declara o estado de sítio em todo o<br />

Território Nacional<br />

O VICE-PRESIDENTE DO SENADO FEDERAL no exercício do cargo de<br />

PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu<br />

sanciono a seguinte Lei:<br />

Art. 1º Fica decretado o estado de sítio em todo o Território Nacional, pelo prazo de<br />

30 (trinta) dias.<br />

Art. 2º Continuam em vigor as garantias asseguradas pela Constituição Federal, com<br />

exceção das previstas nos §§ 5º, 6º, 11, 15, 20, 21, 22, 23 e 24 do art. 141, e no art. 142, que<br />

ficam suspensas durante o estado de sítio, sendo que as dos §§ 20, 21 e 22 do art. 141<br />

subsistem em relação aos indicados de crimes comuns.<br />

Parágrafo único. A suspensão do habeas-corpus restringe-se aos atos praticados por<br />

autoridades federais, e a do mandado de segurança aos emanados do Presidente da República,<br />

dos Ministros de Estado, do Congresso Nacional e do Executor do estado de sítio.<br />

Art. 3º Nenhuma providência, tomada em virtude desta Lei, poderá visar ao<br />

patrimônio nem à livre administração das emprêsas jornalísticas e rádio-difusoras.<br />

Art. 4º O Executor do estado de sítio, designado por decreto do Presidente da<br />

República, tomará as providências adequadas para prevenir e reprimir qualquer tentativa de<br />

comoção intestina, requisitando a colaboração das autoridades civis e militares por intermédio<br />

dos Ministros de que elas dependam.<br />

Parágrafo único. O Presidente da República e o Executor do estado de sítio não<br />

poderão recusar informações ao Supremo Tribunal Federal sôbre os fatos relacionados com as<br />

pessoas referidas no art. 209 da Constituição Federal, nem sôbre as medidas tomadas e as<br />

razões justificativas das providências de exceção.<br />

Art. 5º O Executor do estado de sítio poderá tomar, contra pessoas, apenas as medidas<br />

1 Disponível em: . Acesso em: 15/03/2011.


previstas nos números I e II do art. 209 da Constituição Federal, sem prejuízo das reservadas à<br />

competência do Presidente da República, pelo parágrafo único do mesmo artigo.<br />

em contrário.<br />

Art. 6º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições<br />

Rio de Janeiro, 25 de novembro de 1955; 134º da Independência e 67º da República.<br />

NEREU RAMOS<br />

Francisco Menezes Pimentel<br />

160<br />

Antonio Alves Câmara Junior<br />

Henrique Lott<br />

José Carlos de Macedo Soares<br />

Mário da Câmara<br />

Lucas Lopes<br />

Eduardo Catalão<br />

Abgar Renault<br />

Nelson Omegna<br />

Vasco Alves Seco<br />

Maurício de Medeiros


8.6 C A R T A BR A NDI<br />

Transcrição integral de Manchete de O Globo de 17 de setembro de 1955, da Carta<br />

Brandi e chamada editorial:<br />

Manchete:<br />

“PARA A IMPLANTAÇÃO DA ‘REPÚBLICA SINDICALISTA’ ”<br />

Abaixo vinha transcrita a Carta Brandi:<br />

“CAMARA DE DIPUTADOS<br />

[ilegível] Corrientes<br />

[ilegível] 5 de agosto de 1955<br />

Exmo. Señor Ministro de Trabalho, Industria e Comércio<br />

Estados Unidos do Brasil<br />

Dr. João B. M. Goulart<br />

S/D.<br />

De su mayor consideración:<br />

Acuso recibo de su mensaje transmitido<br />

por intermedio del Sr. Iris Valls y no dejamos de lamentar los inconvenientes surgidos.<br />

Imediatamente as transladé a Buenos Aires donde espuse las contingencias planteadas<br />

por V. Excia. Agregué a mi informe los términos de nuestra última entrevista em São<br />

Borja y el Dr. Borlenghi se manifestó vivamente interessado, consultando<br />

demoradamente el asunto com el Exmo. Sr. Presidente Perón. Finalmente me<br />

comunicó que había quedado establecido que, em lo sucesivo, y para evitar nuevas<br />

dificuldades, todas las comunicaciones y entendimientos, serán realizadas por medio<br />

de la Embajada Argentina em Río, la cual tendrá como agente de contacto el abogado<br />

F. A. de esa ciudad. Nuevas instrucciones me serian dadas por intermedio del Sr.<br />

Clementino Forte, actual Vice-Gobernador de La Provincia de Corrientes, y que ha<br />

sido designado para dirigir todas las actividades de coordinación sindical entre Brasil y<br />

Argentina. (El Sr. Forte es antiguo dirigente de la C.G.T. em todo el Norte Argentino.)


162<br />

Después de mi regresso a Corrientes fué<br />

lhamado por el Vice-Gobernador, quien me manifestó que el Ministro Borlenghi,<br />

personalmente, le había hecho entrega de los protocolos y recomendaciones sobre<br />

“brigadas de choque obreras” para que hiciéramos llegar confidencialmente a manos<br />

de V. Excia. El Vice-Gobernador Forte me autorizó a encomendar el asunto al<br />

portador de la presente, Sr. Ignácio Pinedo, quien se transladará a Río em aparente<br />

viaje comercial y que transmitirá a S. Excia. una serie de instrucciones vervales que os<br />

pareció imprudente dejar consignadas por escrito. El Sr. I. Pinedo es de toda<br />

confianza, y tanto él como su socio, que es fotógrafo oficial exclusivo del Exmo. Sr.<br />

Presidente Perón, están al tanto de los más importantes detalles que se refieren a las<br />

negociaciones vinculadas a S. Excia. El Ministro Berlenghi encareció la necesidad de<br />

que S. Excia. se comunique com él, una vez estudiados los planes portados por el Sr.<br />

Pinedo, pués estima que será útil para S. Excia. aprovechar la experiencia ya obtenida<br />

em la lucha sindical argentina.<br />

Referente a la mercadoría adquirida por S.<br />

Excia. en la Fábrica Militar de Córdoba, puedo anticiparle que ya se han tomado<br />

providencias para que le sea remitida via Uruguaiana, en calidad de mercadorías<br />

alimenticias, y todas las remesas serán consignadas a nombre del Intendente de<br />

Uruguaiana, Sr. Iris Valls. El Sr. I. Pinedo está autorizado para oír su propuesta para<br />

um plan de pagos de las modalidades para saldar dichos créditos.<br />

Deseándole todo êxito y repitiéndome a<br />

sus muy gratas ordenes, le saludo com mi más distinguida consideración.<br />

DIPUTADO ANTONIO BRANDI”<br />

Abaixo da Carta vinha escrita a chamada editorial:<br />

“ ‘Fac simile’ do estarrecedor documento que comprova o crime de lesa-pátria de<br />

Jango e seu conluio com Perón contra o regime e a ordem no Brasil<br />

D O C U M E N T O EST A RR E C E D O R (H OJE E M PO D E R D AS M A IS A L T AS<br />

A U T O RID A D ES M I L I T A R ES), R E V E L A ND O O C RI M E D E L ESA-PÁ T RI A D O<br />

A L I A D O D O SR. JUSC E L IN O K UBI TSC H E K – A G E N T ES PE R O NIST AS E<br />

E M ISSÁ RI OS D O E X-M INIST R O D O T R A B A L H O NU M A SINIST R A E


E X E C R A ND A C O NSPIR A Ç Ã O C O N T R A O BR ASI L – N Ã O T R A I A M O BR ASI L<br />

APE N AS SE A L I A ND O A M OSC O U. M AS, T A M B É M, C O N L UI A ND O-SE C O M O<br />

PE R O NISM O”<br />

163


8.7 Capas n os 39, 40, 44 e 45 do “Maquis”<br />

Revista Maquis n o 39 –Dez. 1957 Revista Maquis n o 40 – Jan. 1958<br />

Revista – Maquis nº 44 – Mar. 1958 Revista Maquis nº 45 – Mar. 1958


8.8 Capas n os 46, 47, 78 e 102 do “Maquis”<br />

Revista Maquis nº 46 – Abr. 1958 Revista Maquis nº 47 – Abr. 1958<br />

Revista Maquis nº 78 – Março 1958 Revista Maquis n o 102 – 1959


8.9 M A NI F EST O D OS R E B E L D ES 1<br />

confusões.<br />

O País foi lançado num estado de desordem sem exemplo e na mais lamentável das<br />

A Nação acha-se mergulhada num estado de desordem sem exemplo e na mais<br />

lamentável das confusões.<br />

Acha-se mergulhada num estado de coisas tão intolerável, que a República está<br />

ameaçada de destruição.<br />

Não há autoridade, nem responsáveis; todos mandam e desmandam. Não há mais<br />

poderes na República funcionando constitucionalmente. Os poderes só se harmonizam para<br />

viver uma existência formalística, pois estão abastardados e submetidos aos dois únicos<br />

poderes reais, em verdade atuantes; o da força e o da corrupção.<br />

Dessa deprimente realidade ressalta um Executivo enfraquecido e engolfado com o<br />

Legislativo, na desordem das leis demagógicas e da dilapidação dos bens e dos dinheiros<br />

públicos.<br />

O empreguismo e os favores pessoais de toda espécie, numa onda de corrupção sem<br />

limites, incontrolada e incontrolável.<br />

O Poder Judiciário, omisso, coagido e corrompido, não representa mais nenhuma<br />

garantia aos cidadãos, falhando assim também aos seus deveres constitucionais.<br />

Os partidos políticos, degenerados em facções, fazendo prevalecer os interesses de<br />

pessoas ou de grupos, sobre o interesse nacional.<br />

A soberania do povo, assegurada pela Constituição, burlada por uma legislação<br />

eleitoral antidemocrática, que entrega ao exclusivismo e às ambições inconfessáveis desses<br />

mesmos corrompidos partidos políticos a escolha de nomes a serem sufragados nas eleições.<br />

Está, pois, o regime em franca dissolução e ameaçada a sorte da República.<br />

As leis, cotidiana e ostensivamente violadas pelos atuais detentores do governo, na<br />

maior demonstração de desprezo para com a Nação, evidenciam que, em realidade, não há<br />

mais poderes constitucionais funcionando legitimamente.<br />

A depressão econômico-financeira, num crescente agigantado, arrasta a Nação à<br />

desordem e ao caos social.<br />

1 Cf. ARGOLO et al., em A Direita Explosiva no Brasil, Rio de Janeiro: Mauad, 1996, pp. 81-84, foi redigido<br />

pelo advogado Luís Mendes de Moraes Neto, lido em Aragarças para os tripulantes e passageiros do<br />

Constellation seqüestrado pelos rebeldes e distribuído no Rio de Janeiro para parlamentares da oposição, ao<br />

governo e imprensa.


A elevação vertiginosa do custo de vida, resultante dos desmandos, da improbidade e<br />

da incapacidade do grupo dominante, levou à miséria e ao desespero o povo brasileiro, que<br />

perdeu, assim, a confiança nos componentes desse grupo dominante e só está contido na sua<br />

exasperação pela permanente ameaça coatora sobre ele exercida.<br />

Os meios de transporte, para o acesso ao trabalho, além de escassos e de preço<br />

elevado, não oferecem condições de conforto nem de segurança.<br />

Greves e manifestações hostis se sucedem, numa demonstração cabal da incapacidade<br />

dos detentores do governo para solucionar os problemas econômicos, financeiros, sociais e<br />

políticos do País.<br />

A agricultura e a pecuária, atividades básicas à conquista do bem- estar do povo e da<br />

prosperidade do País, estão inteiramente ao desamparo e sem a esperança da necessária<br />

reestruturação que dê ao agricultor e ao criador o acesso à terra e aos meios para explorá-la.<br />

Uma certa indústria, estruturada em bases artificiais e inadequadas à realidade<br />

brasileira, traz como conseqüência o enriquecimento de uns poucos à custa do crescente<br />

empobrecimento do resto da Nação.<br />

A moeda, dia-a-dia mais aviltada; o descrédito mais completo.<br />

Em face desse estado de desagregação e deterioração, os adeptos do comunismo,<br />

infiltrados nos mais variados setores, dentro e fora da administração pública, procuram tirar o<br />

máximo benefício da situação de miséria e de fome das populações para implantar o seu<br />

regime de escravização do ser humano.<br />

No mesmo passo, o grupo político-econômico-financeiro dominante, responsável pelo<br />

atual estado de coisas, de um lado estimula essa corrente extremista e de outro lado procura<br />

para si vantagens das conturbações, a fim de criar um clima propício à consecução e ao<br />

desencadeamento de um novo plano para sua perpetuação, inconformado que está com a<br />

perspectiva do apeamento das posições e a impossibilidade patente de prestar boas contas à<br />

Nação fora dos cargos de mando.<br />

Nesse sentido, informações e indícios cada dia mais veementes, de fontes militares e<br />

civis e as manobras ensaiadas, anunciam a preparação, a proximidade e a inevitabilidade de<br />

um desenlace violador da letra da Constituição em vigor.<br />

Chefes de executivos locais, parlamentares de todas as correntes, homens públicos em<br />

geral e jornalistas de todos os matizes prenunciam perturbações da ordem neste período pré-<br />

eleitoral.<br />

167<br />

Os que estão no poder dispõem de recursos e meios, quer propagandísticos, quer


conturbadores, quer militares, não só para desencadear o golpe em preparação, como para<br />

tomar impossível qualquer resistência ou reação depois do golpe consumado.<br />

Com a autoridade de argumentos irrespondíveis e a sua própria, o senador dr. Octávio<br />

Mangabeira, há bem pouco, traçou as perspectivas do nosso destino, indicando o caminho a<br />

ser tomado pelos mais moços, para salvação da Pátria e da República.<br />

O dr. Jânio Quadros, candidato da maioria da opinião nacional ao posto supremo da<br />

República, porque representava a esperança do início da recuperação moral e material do<br />

Brasil, acaba de demonstrar que a única via para o reerguimento nacional e a libertação do<br />

País do grupo que atualmente o domina e arruína, é a revolução.<br />

Diante desse quadro desolador, o que se sente é que o povo brasileiro é joguete da<br />

prepotência e dos desmandos de toda ordem, por parte dos atuais governantes; com seus<br />

direitos e garantias postergados; exausto dos sacrifícios para sobrevivência; inerme e<br />

indefeso, por falta de poderes legítimos na República, reclama uma solução e volta seus olhos<br />

para as Forças Armadas.<br />

Nesses transes, tem o povo o direito de aspirar soluções revolucionárias e as Forças<br />

Armadas o dever de atender ao chamamento.<br />

As Forças Armadas do Brasil jamais falharam à Pátria nos momentos históricos em<br />

que os maus governos proscreveram o Direito, a Justiça e a Liberdade.<br />

Não haveria de, neste instante grave para a nacionalidade, faltar ao seu juramento de<br />

fidelidade para com a Pátria.<br />

A destinação constitucional das Forças Armadas impõe o pronunciamento a favor da<br />

Pátria, quando os governos se desmandam.<br />

Atendendo a essa situação de desespero de toda a Nação brasileira, é que nós,<br />

componentes das Forças Armadas do Brasil, cuidando ser de nosso dever de fidelidade à<br />

Pátria e à República, nos declaramos em estado de insurreição.<br />

Assim fazendo, apelamos para os nossos companheiros de armas, de terra, do mar e do<br />

ar, a fim de que se unam em torno dos nossos ideais, nesta gloriosa jornada revolucionária, a<br />

fim de depor os responsáveis por esse estado de coisas; homens débeis, incapazes e corruptos,<br />

que norteiam seus atos pelo só interesse de seu egoísmo, em detrimento dos superiores<br />

interesses da Pátria.<br />

Pátria.<br />

Nosso gesto não tem nenhum caráter político partidário. Anseia apenas pelo bem da<br />

168<br />

Estamos convictos de que nossa atitude corresponde a um desejo ardente do povo


asileiro, e que o País será, assim, arrancado das garras daqueles que dele se têm servido e<br />

levado à miséria e à fome.<br />

Estamos certos de que, dentro em breve, a nós hão de se unir muitos outros para<br />

expulsar de Norte a Sul do País os vendilhões da Pátria e sufocadores do povo.<br />

Homens e mulheres de todo o País; militares e civis; trabalhadores dos campos, das<br />

fábricas, das cidades, do mar e do ar; estudantes; a parte sã do povo brasileiro sacrificado e<br />

sofredor: meditai. Porque de dentro de cada uma alma há de sair a resposta de que mais vale<br />

fazer um sacrifício para conquistar a honra, a liberdade, o direito, a justiça, o bem-estar e a<br />

grandeza da Pátria, do que viver escravizado, humilhado e mendigando aquilo que representa<br />

prerrogativas do homem, enquanto os componentes da camarilha ora no poder usufruem uma<br />

vida de gozo, à custa do trabalho, do suor e das provações da maioria do povo brasileiro.<br />

Venha essa imensidão de sofredores engrossar as nossas hostes, para varrer de vez<br />

com os traficantes da nossa Pátria e assegurar a soberania da vontade popular.<br />

Nessa hora de decisão, outro não pode ser o caminho daqueles que almejam o bem-<br />

estar do seu povo e a grandeza.<br />

169


8.10 G O LPE C O M UN O-PE T E BIST A 1<br />

“TRAIÇÕES FIZERAM ABORTAR O PUTSCH COMUNO-PETEBISTA DO DIA 12<br />

Fala-se muito em "movimento nacionalista", em "revolução comuno-petebista", num<br />

golpe armado que deveria estourar no dia 31 de dezembro passado. E ligam-se esses<br />

movimentos ao de Aragarças. Não há nenhuma ligação entre uma coisa e outra. Vamos contar<br />

a história, com os detalhes que até agora têm sido subtraídos ao público:<br />

1 - Elementos petebistas, inconformados com a situação eleitoral, e convencidos de<br />

que eleição não era uma boa coisa para eles, resolveram organizar um movimento para<br />

derrubar o governo.<br />

2 - Articularam-se com líderes comunistas, também notoriamente inconformados com<br />

o regime democrático, e começaram a conspirar.<br />

3 - Obtiveram tantas adesões de militares que, em determinados momentos, foram<br />

dominados pela euforia e passaram a achar que o movimento já estava vitorioso. E passaram a<br />

falar abertamente nele, e a se reunir sem guardar precauções.<br />

4 - Traçaram um plano completo do movimento (de autoria do coronel Sá e<br />

Benevides) e passaram a distribuir os cargos pelos integrantes do movimento.<br />

5 - Contavam eles que, deflagrado o movimento, e percebendo as autoridades militares<br />

que forças poderosas estavam ao lado dos revolucionários, adeririam ao movimento para não<br />

lançar o País numa guerra civil.<br />

6 - A composição humana do movimento era a coisa mais esquisita: havia comunistas,<br />

integralistas, petebistas e aventureiros em quantidade.<br />

7 - Os militares engajados nesse movimento passaram a agir abertamente, convidando<br />

outros colegas para participar dessa conspiração, guardar a menor cautela. Foi assim que<br />

houve a primeira denúncia contra essa revolução, partida do major Drummond (Rubens<br />

Drummond), foi cantado sem a menor cerimônia para participar do movimento pelo tão<br />

Santos Júnior. Isso no Pará.<br />

8 - Os oficiais da Aeronáutica, reconhecidamente contrários ao governo (Velloso,<br />

Borges, Paulo Victor, Burnier e outros) começaram a ver o movimento com desconfiança.<br />

1 Cf. detalhado por Hélio Fernandes, em artigo publicado na época, na coluna Em primeira mão, com<br />

informações obtidas pela espionagem militar e que seria deflagrado no dia 12 de dezembro. Transcrito<br />

integralmente em ARGOLO et al., 1996, p. 151, Nota 3.


Sendo contra o governo, mas acima de tudo e sobretudo homens de bem, decentes e patriotas,<br />

passaram a ficar de olho nessa conspiração, por considerá-la, pela mistura humana que se<br />

fizera, conspiração de aventureiros ou mazorqueiros.<br />

9 - O que chamou a atenção dos oficiais da Aeronáutica para o caráter perigoso dessa<br />

conspiração foi a presença, nela, dos coronéis Delahyte e Narciso Maravalho, dois notórios<br />

aventureiros capazes de quer coisa para favorecer a si mesmos.<br />

10 - Em fins de novembro, o coronel Narciso Maravalho (já delegado do IAPI no<br />

Pará), assumiu o comando do movimento em todo o Norte e Nordeste e fez constantes visitas<br />

ao Rio.<br />

11 - Elementos do PTB compareceram a muitas reuniões e garantiram que os<br />

governadores Leonel Brizola e Roberto Silveira estavam a par de tudo e perfeitamente<br />

entrosados no esquema revolucionário. Ficou combinado, então, que o governador Leonel<br />

Brizola com a sua autoridade de governador do Rio Grande do Sul, deveria fazer um<br />

pronunciamento preparando a Opinião Pública.<br />

12 - O governador Leonel Brizola concordou, veio ao Rio e deu uma entrevista<br />

coletiva propondo (e defendendo) a revolução, a reforma radical da Constituição e outras<br />

medidas "de defesa do povo brasileiro". Como os leitores devem estar lembrados, essa<br />

entrevista teve enorme repercussão, pois era um governador de Estado que propunha,<br />

abertamente, uma revolução.<br />

13 - Em fins de outubro e meados de novembro, a coisa ia tão bem que alguns<br />

conspiradores passaram a achar que o movimento devia explodir logo, pois já estava<br />

completamente maduro. Outros acharam que a data ideal era 31 de dezembro, quando o<br />

governo seria colhido totalmente de surpresa.<br />

14 - Mas o que os conspiradores não sabiam é que, a essa altura, já estavam<br />

inteiramente VENDIDOS, TRAÍDOS pelo coronel Narciso Maravalho.<br />

15 - Passando a vir constantemente ao Rio, o coronel passou também a se encontrar<br />

freqüentemente com o ministro Armando Falcão e com o coronel Inácio Jacques, chefe de<br />

Polícia.<br />

16 - De volta ao Pará, dizia que estava tudo normal, e que logo que o movimento<br />

explodisse, o ministro da Justiça e o chefe de polícia do Distrito Federal adeririam a ele com<br />

entusiasmo.<br />

17 - Mas essa era outra mistificação do coronel Narciso Maravalho. Pois o que ele<br />

passou a fazer, daí em diante, foi enviar relatórios diários (entregues por ele mesmo ou por<br />

171


portador seguro) ao ministro da Justiça. Nesses relatórios, todos os passos dos conspiradores<br />

eram delatados, e o ministro da Justiça passou a saber de tudo o que se fazia.<br />

18 - Enquanto isso, o movimento progredia, e reuniões eram realizadas até mesmo<br />

aqui no Rio de Janeiro, em plena Copacabana.<br />

19 - No dia 30 de novembro, esses conspiradores souberam que se preparava na<br />

Aeronáutica um novo movimento, tipo Jacareacanga, ficaram assustados e fizeram duas ou<br />

três reuniões de emergência para decidir o que fazer.<br />

20 - Ficou decidido, então, que caso existisse realmente esse novo Jacareacanga, não<br />

se tomaria conhecimento dele, e procurar-se-ia fazer com que a sua repercussão fosse a menor<br />

possível, para não prejudicar a revolução que já estava preparada para estourar a 31 de<br />

dezembro.<br />

21 - No dia 4 de dezembro houve Aragarças, e os participantes da conspiração<br />

comuno-petebista se encolheram, pensando que assim passariam despercebidos. Ainda<br />

ignoravam a traição do coronel Narciso Maravalho, e uma outra traição, que ocorreu três dias<br />

depois do Movimento de Aragarças.<br />

22 - Esse traidor, um dos mais entusiasmados conspiradores, foi o sr. Epitácio Caó<br />

Vinagre. Pois, três dias depois de Aragarças, o sr. Epitácio Caó procurava o ministro<br />

Armando Falcão e lhe entregava vários documentos sobre a revolução chamada de comuno-<br />

petebista, e lhe dava ciência de todos os detalhes da conspiração.<br />

23 - Ficava assim o sr. ministro da Justiça, por via de duas traições, no conhecimento<br />

total do movimento.<br />

24 - De posse dos documentos que lhe foram entregues pelo sr. Epitácio Caó, e que se<br />

referiam a uma conspiração ainda por explodir, resolveu o ministro da Justiça encenar a farsa<br />

que todos conhecem. Foi à Câmara (convocado por si mesmo com urgência) e mostrou os<br />

documentos da revolução comuno-petebista como sendo do Movimento de Aragarças.<br />

25 - No mesmo dia em que o sr. Armando Falcão falou na Câmara, houve uma reunião<br />

à noite, na casa do coronel Delahyte, e todos concordaram que os documentos mostrados pelo<br />

ministro Armando Falcão não se referiam a Aragarças, a não ser o Manifesto, que havia sido<br />

redigido pelo civil Luís Mendes de Moraes Neto, em 1956.<br />

26 - Os conspiradores se interrogaram para saber quem havia entregue os documentos<br />

ao ministro Armando Falcão, e, de detalhe em detalhe, chegou-se à suspeita (logo depois<br />

transformada em certeza) de que os traidores eram Narciso Maravalho e Epitácio Caó. Mas<br />

foi decidido agir como se não soubessem de nada, para que os dois traidores não percebessem<br />

172


que haviam sido descobertos.<br />

27 - No dia 12 de dezembro houve mais uma reunião (ainda em Copacabana, na<br />

residência do jornalista Lúcio Gusmão Lobo, elemento sincero, convencido da necessidade da<br />

revolução, e possivelmente o seu filósofo), em que ficou decidido, depois de intensos debates,<br />

que a data de 31 de dezembro não era mais a ideal para o movimento.<br />

28 - Ficou combinado, nessa reunião, a dispersão (pelo menos aparente) do<br />

movimento, para ver se conseguiam iludir o ministro Armando Falcão. Os participantes dessa<br />

reunião procuraram também descobrir (sem sucesso) qual a intenção do sr. Armando Falcão,<br />

atribuindo ao movimento de Aragarças documentos e intenções que ele sabia pertencerem à<br />

conspiração comuno-petebista.<br />

29 - O governador Leonel Brizola mandou dizer por um porta-voz categorizado que<br />

não confiassem no sr. Armando Falcão, pois ele era capaz de qualquer coisa, e não seria<br />

nenhuma surpresa se estivesse estimulando a conspiração comuno-petebista para, servindo-se<br />

dela, desfechar um contragolpe e implantar um regime de exceção no País.<br />

30 - Pouco depois, em declarações públicas, o sr. Leonel Brizola reafirmava a sua fé<br />

no regime democrático e a sua confiança nas instituições. Esse ponto até agora permanece em<br />

mistério. Dizem uns que o governador Brizola fez essa declaração pressionado pelo general<br />

Osvino, que concordara em participar do movimento, mas recuara ao saber da traição de Caó<br />

e de Maravalho. E outra versão diz que foi o próprio Brizola, assustado com informações<br />

particulares sobre a disposição do governo de se aproveitar do movimento para continuar no<br />

poder, que resolveu publicamente se colocar como defensor do regime democrático, e, pois,<br />

fabricar para si mesmo, antecipadamente, um álibi indestrutível.<br />

31- Em dezembro não houve mais nenhuma reunião. E em janeiro só houve a<br />

rearticulação da conspiração, quando este repórter e o Diário de Notícias (poderoso e<br />

insuspeito órgão da oposição) desfecharam um movimento pela posse do marechal Denys no<br />

Ministério da Guerra.<br />

32 - Quando os comunistas e alguns trabalhistas compreenderam que o marechal<br />

Denys iria mesmo para o Ministério da Guerra, e que lá desarticularia a conspiração, se<br />

atiraram contra a sua nomeação.<br />

33 - Foram feitas então várias reuniões, em lugares diversos, mas já sem a convocação<br />

de Caó e de Maravalho, postos deliberadamente à margem.<br />

34 - Quando os conspiradores compreenderam que o marechal Denys iria mesmo para<br />

o Ministério, resolveram desfechar o golpe de qualquer maneira.<br />

173


35 - No dia que ficou decidida a posse do marechal Denys no Ministério da Guerra,<br />

houve à noite uma agitada reunião na casa do coronel Sá e Benevides. Nessa reunião ficou<br />

decidido desfechar de qualquer maneira o golpe antes da posse do marechal Denys.<br />

36 - As reuniões se sucederam. E depois de debates prolongados, ficou marcado o<br />

golpe para a sexta-feira dia 12, 72 horas antes da posse do marechal. Os conspiradores<br />

continuavam convencidos de que dispunham de grandes forças e que poderiam, em poucas<br />

horas, dominar a situação.<br />

Vinte e quatro horas antes da explosão do movimento, houve a prisão do coronel Sá e<br />

Benevides, e a desarticulação de tudo. Agora vai ser constituída a Comissão de Inquérito que<br />

apurará esses fatos. Vamos ver o que surge mais.<br />

174


8.11 INST RU Ç Õ ES A OS G RUPOS D E O N Z E 1<br />

Missão dos G rupos de Onze - O documento que veremos em seguida foi apreendido,<br />

pelo Exército numa célula comunista de Niterói (Rua Marquês de Caxias, 24) e trata da<br />

missão dos Grupos de Onze, instituídos por Leonel Brizola para a revolução marxista a ser<br />

desencadeada. Recomendando as devidas cautelas assim começa o relatório ultra-secreto: "Só<br />

os fortes e intemeratos podem intentar a salvação do Brasil das garras do capitalismo<br />

internacional e de seus aliados internos. Quem for fraco ainda terá tempo de recuar ante a<br />

responsabilidade que terá de assumir com o conhecimento pleno destas instruções. Após<br />

tomar conhecimento, só a morte libertará o responsável pelo compromisso de honra assumido<br />

com o Comando Supremo de Libertação Nacional, e é necessário que isso fique bem<br />

esclarecido a todos os companheiros dos Grupos de Onze. Procure sempre certificar-se de que<br />

o companheiro manterá sigilo sobre estas IS (Instruções Secretas). Através de conversa<br />

reservada com ele. Provoque-o antes, por outros companheiros, para testá-lo na salvaguarda<br />

de assuntos sigilosos. O compromisso de resguardo deverá ser um tanto solene, para<br />

impressionar o companheiro, devendo, antes, verificar-se as idéias desses soldados do Grupo<br />

de Onze, a fim de que sejam selecionados, ao máximo, os autênticos e verdadeiros<br />

revolucionários, os destemerosos da própria morte, os que colocam a pátria e nossos ideais<br />

acima de tudo e de todos – inclusive de sua própria família. Evitar-se, nos G. 11, parentes<br />

consangüíneos ou amigos íntimos, é extremamente necessário. O ideal será constituir, cada<br />

Grupo de Onze, com elementos de categoria profissional, prontos e aptos a obedecer, nos<br />

vários escalões revolucionários, a todas as diversas tarefas que possam vir a ser-lhes<br />

recomendadas. O êxito do Comando dos Onze Companheiros dependerá, sempre, de<br />

observância fiel a estas Instruções Secretas e as outras que, proximamente, deverão ser<br />

divulgadas, em idênticas condições, pelo Comando Supremo de Libertação Nacional.<br />

Em seguida, segundo Glauco Carneiro, as Instruções recomendam: "Sigilo, segredo,<br />

observação, conhecimento, informação e relatório, nossa principal tarefa, antes do dia<br />

libertador."<br />

"Leiam e divulguem, com as devidas e naturais reservas, estas instruções. Nossa<br />

1 Cf. Glauco CARNEIRO, em História das Revoluções Brasileiras, Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1965, pp. 506-<br />

511, os grupos foram criados por Leonel Brizola para servir “como instrumento principal à vanguarda avançada<br />

do Movimento Revolucionário que libertará o País da opressão capitalista internacional e de seus aliados<br />

internos, com a finalidade de instituir no Brasil um governo do povo, pelo povo e para o povo". Após o<br />

Movimento de 31 Março de 1964, foram constatados 1.298 desses grupos no Brasil. Transcrito integralmente em<br />

ARGOLO et al., 1996, p. 62-70, Nota 17.


vitória final depende de sua fiel observância.<br />

1. Objetivos – 1.1 – Os Grupos de Onze Companheiros têm, por finalidade precípua,<br />

servir como instrumento principal e vanguarda avançada do Movimento Revolucionário que<br />

libertará o país da opressão capitalista internacional e de seus aliados internos, com a<br />

finalidade de instituir no Brasil um governo do povo, pelo povo e para o povo. 1.2 – Os G. 11<br />

serão como foi a Guarda Vermelha da Revolução Socialista de 1917 na União Soviética – da<br />

qual seguirá o vitorioso exemplo –, os agentes e aríetes da libertação do nosso povo do capital<br />

espoliativo norte-americano. 1.3 – Em conseqüência, não nos poderemos deter à procura de<br />

justificativas acadêmicas para atos que possam vir a ser considerados pela reação e pelos<br />

companheiros sentimentalistas, agressivos demais ou, até mesmo, injustificados. 1.4 –<br />

Devemos, e é nossa obrigação principal, fazer ver aos Grupos de Onze Companheiros que<br />

estamos em permanente luta contra os inimigos internos e externos do povo brasileiro e que,<br />

qualquer que seja a situação que lhes apresente ou as ordens a serem executadas, os fins<br />

justificam os meios e que tudo será ainda pouco para libertação nacional. 1.5 – É<br />

extremamente necessário, absolutamente indispensável mesmo, que os comandos saibam<br />

escolher, com grande cuidado, os companheiros, estudando-lhes o caráter, a educação, os<br />

sentimentos, os problemas íntimos, o padrão de vida, a necessidade individual de cada um, a<br />

fim de dar a cada qual o tipo de tarefa que combine com a personalidade, posses e educação<br />

do militante".<br />

2. Observações – 2.1 – Os companheiros deverão, e isto lhes deve ser dito, conseguir,<br />

o mais rapidamente possível, os instrumentos próprios para a Guerra de Libertação Nacional<br />

que será travada, e toda e qualquer arma servirá ao fim proposto. 2.2 – Os Grupos de Onze<br />

Companheiros, como vanguardeiros da libertação nacional, terão que se preparar<br />

devidamente, sem atentar para a situação política do momento, sem medir conseqüências ou<br />

esperar ocasião propícia, devendo considerar-se, de já, em revolução permanente e ostensiva<br />

contra a situação vexatória a que é submetido o Brasil pelos grupos imperialistas<br />

internacionais através de seus aliados nacionais. 2.3 – O estudo da arte militar e dos<br />

ensinamentos advindos das Revoluções Populares já havidas em outros países, assim como os<br />

exemplos patrióticos das Frentes de Libertação Nacional de outros povos devem ser<br />

incentivados ao máximo em todas as nossas várias unidades, razão pela qual precisamos nos<br />

armar sempre e cada vez melhor para destruir o inimigo comum que se levantou, apoiado nas<br />

forças mais retrógradas e antipopulares, contra nossos ideais de libertação nacional e contra as<br />

indispensáveis reformas de base. 2.4 – A condição de militante dos gloriosos G. 11 traz<br />

176


consigo enormes responsabilidades, e, por isso, embora para a formação inicial de nossas<br />

Unidades não seja condição sine qua o conhecimento da técnica propriamente militar, torna-<br />

se absolutamente necessário o da técnica de guerrilhas e a leitura, entre outras importantes<br />

publicações, do folheto cubano a respeito daquele mister, é essencial, sabendo-se que poderão<br />

todas aquelas indicações ser melhoradas por improvisações na hora da ação libertadora.<br />

3. Ação Preliminar – 3.1 – Os companheiros dos Grupos de Onze deverão procurar<br />

conseguir, como já ficou esclarecido, todas as instruções revolucionárias possíveis referentes<br />

às técnicas guerrilhescas; eis que a falta de preparação e a ignorância, em momentos que<br />

poderiam ter sido decisivos para a libertação nacional, deixaram de ser aproveitadas em<br />

decorrência daquelas insuficiências, devemos nos lembrar que, hoje, temos tudo a nosso<br />

favor, inclusive o beneplácito do governo e a complacência de poderosos setores civis e<br />

militares, acovardados e temerosos de perder seus atuais e ignominiosos privilégios. 3.2 – Os<br />

companheiros dos Grupos de Onze procurarão conseguir, de já, os armamentos necessários<br />

para o Momento Supremo, e lembrarmos que tudo servirá como arma, desde as rudimentares<br />

e pouco eficientes manulichas (mannlichers) e espingardas de carga dos camponeses, até<br />

revólveres, pistolas e metralhadoras, sendo de não se esquecer dos preciosos coquetéis<br />

molotov e outros tipos de bombas incendiárias, até mesmo estopa e panos embebidos em óleo<br />

ou gasolina. 3.3 – A escassez inicial de almas, poderosas e verdadeiramente militares será<br />

suprida pelos aliados militares que possuímos em todas as Forças Armadas, notadamente nos<br />

grandes centros como Guanabara, Pernambuco e, especialmente, nos Estados do Rio de<br />

Janeiro (PM) e no Rio Grande do Sul (Brigada Militar, grifo dos autores), além do Corpo de<br />

Fuzileiros, que nos fornecerá de imediato, para a ação libertadora na Guanabara, o material<br />

potencialmente necessário. 3.4 – Nesse mesmo dia, os camponeses, queimando plantações,<br />

engenhos, celeiros, depósitos de cereais e armazéns gerais, convergindo para as sedes de seus<br />

respectivos povoados, fazendas, vilas e distritos onde reunir-se-ão aos G. 11 ali em atuação,<br />

desenvolvendo-se, então, uma operação geral designada em outro local destas Instruções<br />

Secretas. 3.5 – Nas cidades, os companheiros, instruídos e já em ação, incitarão a opinião<br />

pública com gritos e frases patrióticas, procurando levantar, as bandeiradas mais sentidas,<br />

reivindicações populares, devendo, para a vitória desta tática, atrair o maior número de<br />

mulheres e crianças para, à frente da massa popular, acobertar a ação dos G. 11 da reação<br />

policial-militar. 3.6 – A agitação será nossa aliada primordial, e deveremos iniciá-la nos<br />

pontos finais dos veículos coletivos, à hora de maior movimento, nas ruas e avenidas de<br />

aglomeração de pedestres, próximo às casas de armas e munições e nos bairros<br />

177


eminentemente populares e operários. 3.7 – Desses pontos e à sombra da massa humana,<br />

deverão convergir os G. 11 especializados em destruição e assalto, já comandando os<br />

companheiros e com outros se juntando pelas ruas e avenidas, para o centro da cidade, vila<br />

ou distrito, de acordo com a importância da localidade, depredando os estabelecimentos<br />

comerciais e industriais, saqueando e incendiando, com os Molotov e outros materiais<br />

inflamáveis, os edifícios públicos e os de empresa particulares. 3.8 – Deflagrada igualmente a<br />

greve geral em todo o território nacional, as indústrias, edifícios públicos e comerciais<br />

incendiados, agitações estalando em todos os pontos com as autoridades policiais e militares<br />

totalmente desorientadas, estaremos, nesse momento, a um passo da tomada efetiva do Poder-<br />

Nação, graças à ação decisiva dos nossos G. 11 e da força dos nossos ideais. 3.9 – Ataques<br />

simultâneos serão desfechados contra as centrais telefônicas, radioemissoras e, onde houver,<br />

de TV, casas de armas, pequenos quartéis militares das PM e de outras Forças Armadas<br />

isoladas em locais interioranos etc.<br />

4. Tática Geral da Guerrilha Nacional – 4.1 – O conglomerado de observações<br />

reservadas sobre a ação revolucionária resume-se, em análise sintética, em que o ponto<br />

principal das operações iniciais será nos bairros, realizando-se, simultaneamente, desordens<br />

em outros quarteirões, executando, depois, um ataque geral e concentrado dirigido aos<br />

quarteirões centrais. Para conhecer-se bem os objetivos antes de atacá-los, é necessário que<br />

sejam organizados "cadernos especiais" contendo todas as descrições dos futuros objetivos a<br />

serem atingidos. Destruição de armazéns, pontes, passagens, vias férreas, ataque e<br />

desarmamento de pequenos grupos de soldados, procurando-se organizar a revolta das tropas,<br />

difundindo-se notícias falsas, tendenciosas e inteiramente favoráveis aos nossos G. 11 e aos<br />

nossos planos. Interceptação de comunicações telefônicas para isolamento das cidades e de<br />

seus meios de comunicação. Fechamento de barreiras, ruas principais e praças mais<br />

movimentadas. Lembrar sempre que a surpresa é o fator principal de sucesso inicial da<br />

libertação nacional e trabalhar, naquele momento com o máximo de nossos esforços, o meio<br />

de atingir aquela libertação. 4.2 – A greve geral será o sinal inicial de que a massa operária<br />

está disposta à luta em qualquer terreno e, no momento exato, será deflagrada através de<br />

senha especial. 4.3 – Os Grupos de Onze Companheiros terão que suportar o peso de toda a<br />

operação inicial. O Partido Comunista do Brasil será nosso principal aliado, ao lado de<br />

organizações poderosas, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Pacto de<br />

Unidade e Ação (PUA), o Comando Intersindical (CIS) e todos os sindicatos nacionais. 4.4 –<br />

É necessário que todos os companheiros dos G. 11 se imbuam do sentimento místico e<br />

178


essencial de serem a alavanca militar do progresso e da libertação nacional brasileira, e isso<br />

deve ser repisado a todo instante pelos comandos regionais, a fim de que não se sintam eles<br />

tentados a fugir ao primeiro embate com os reacionários e outros inimigos do povo brasileiro,<br />

inclusive alguns destacamentos militares, que, certamente, procurarão nos destruir.<br />

5. Tarefas e seus Executores – 5.1 – As tarefas deverão ser designadas na forma do<br />

disposto nestas Instruções Secretas de acordo com as características individuais de cada<br />

companheiro dos Grupos de Onze e conforme o que se tornar necessário improvisar no curso<br />

da Ação Libertadora.<br />

O documento justifica:<br />

6. O porquê da revolução nacional libertadora – 6.1 – Devemos agora fazer um<br />

entreato nestas Instruções Secretas, absolutamente indispensável, para explicarmos as razões<br />

da nossa luta em defesa da libertação nacional. 6.2 – É que o Brasil sofre a exploração de<br />

capital monopolista estrangeiro através do comércio exterior; dos empréstimos financeiros e<br />

das inversões diretas de capital, inclusive em ramos fundamentais da indústria, sendo que os<br />

monopólios norte-americanos já alcançaram o predomínio absoluto sobre seus competidores<br />

de outros países imperialistas e passaram a atrair para os seus empreendimentos capitais<br />

brasileiros. Essa exploração de Wall Street impõe pesados sacrifícios à nação, pois os<br />

monopólios ianques apoderam-se da parcela mais considerável do valor criado pelos<br />

trabalhadores nacionais, provocando grave deformação na economia nacional, entravando o<br />

seu progresso e agravando, sobremodo, a situação de pobreza de nosso povo, notadamente<br />

nas camadas mais humildes, embora essa opressão norte-americana e de seus aliados<br />

internos se faça sentir sobre todas as camadas de nossa população. A estrutura agrária se<br />

baseia, predominantemente, na grande propriedade da terra, sendo o país de maior<br />

concentração latifundiária do mundo moderno, o que serve de base às formas pré-capitalistas<br />

de exploração, através do enriquecimento pelo valor da terra e pelo elevado grau de<br />

exploração dos trabalhadores do campo. É sabido que a classe mais reacionária da sociedade<br />

brasileira, a dos latifundiários, encarna as relações de produção mais atrasadas e constitui um<br />

obstáculo às forças verdadeiramente produtivas, que teriam campo livre para agir, se elas<br />

fossem entregues as terras havidas ilegalmente. Afora isso, existem as reformas de base<br />

preconizadas pelo atual governo, que não podem deixar de ser apoiadas pelo povo e pelos<br />

patriotas de todos os partidos políticos. Mas os latifundiários, os anti-reformistas de toda a<br />

espécie, os aliados dos norte-americanos e os congressistas acumpliciados aos interesses<br />

antinacionais, enfim, todos os que constituem a vasta Camorra contrária ao alevantamento da<br />

179


Pátria e aos interesses proletários estão lutando para impedir possa o atual governo levar<br />

avante seus planos de salvação nacional. 6.3 – É necessário, portanto, que lodos lutem em<br />

defesa do atual governo, embora nele estejam representadas parcelas ponderáveis de inimigos<br />

do povo e do próprio presidente da República, que está atualmente sem forças políticas no<br />

Congresso para realizar as necessárias reformas preconizadas pelo Chefe da Nação. A reação<br />

do povo em favor do governo fará com que ele se sinta com poder suficiente para enfrentar a<br />

reação e o latifúndio, assim como os inimigos do Brasil enquistados em vários e importantes<br />

comandos do poder civil e militar do país. 6.4 – A burguesia nacional, por sua vez, estará<br />

disposta a nos auxiliar através de alguns dos seus mais representativos líderes, se tiverem<br />

certeza de que os respeitaremos na luta e na vitória. Por isso, já estamos com ela como aliada,<br />

daí contarmos com fundos para nossa guerra contra o capital espoliativo estrangeiro e de seus<br />

aliados internos. A burguesia ligada aos interesses nacionais possui duplo caráter.<br />

Pertencendo a um país explorado, encerra um potencial revolucionário capaz de opor-se à<br />

dominação imperialista, desde que existam garantias reais de sua sobrevivência futura. Nós a<br />

apoiaremos após a vitória, respeitados os limites de nossa própria segurança e o interesse dos<br />

nossos companheiros e aliados. Por isto, ela nos fornece, através de veladas pressões de<br />

alguns companheiros, fundos para a Campanha de Redemocratização do Brasil através da<br />

Guerra de Libertação Nacional. 6.5 – Estes são os principais motivos, e não poderíamos nos<br />

furtar a explicá-los e aos nossos companheiros dos G. 11, do nosso Movimento<br />

Revolucionário de Libertação Nacional.<br />

7. O aliado comunista – 7.1 – Devemos, no item de referência, ter sempre presente<br />

que o comunista é nosso principal aliado, mas, embora alardeie o Partido Comunista ter força<br />

para fazer a Revolução Libertadora, o PCB nada mais é que um movimento dividido em<br />

várias frentes internas em luta aberta entre si pelo poder absoluto e pela vitória de uma das<br />

facções em que se fragmentou. 7.2 – Esse o grande erro que tem como principal fator a<br />

atuação negativista do camarada Luiz Carlos Prestes, que vem dia a dia enfraquecendo a<br />

unidade partidária no outrora coeso e único Partido Comunista do Brasil. 7.3 – As alas<br />

cindidas daquele movimento não nos auxiliarão unísssonas mas, pelo contrário, uma delas se<br />

alevanta não contra nossos ideais, mas à forma como estamos pelejando por eles. São fracos e<br />

aburguesados esses camaradas chefiados pelos que vêem, em Moscou, o único PC que poderá<br />

guiar o proletariado mundial à libertação internacional. Fogem à luta como fogem à realidade<br />

e não perderão nada se a situação nacional perdurar por muitos anos ainda. 7.4 – Mas não é<br />

nessa malta aburguesada que nos apoiaremos nessa luta sem tréguas contra o capitalismo<br />

180


internacional e contra a escravização nacional ao imperialismo norte-americano. Existe uma<br />

ala mais poderosa que, dia a dia, está se elevando no conceito do proletariado marxista,<br />

seguidora dos ideais de Mao Tsé Tung, de Stálin, e que são, em última análise, os de Marx e<br />

Engels. É nessa malta hoje muito mais poderosa que a de Moscou que iremos buscar a fonte<br />

de potencialidade material e militar para a luta de libertação nacional. E ela, felizmente, está<br />

totalmente coesa, ao nosso lado, pois têm a mesma férrea decisão que a nossa, os seus<br />

militantes. 7.5 – Por tática, diante de algum companheiro que não encare o comunismo com<br />

sentimentos agradáveis, devemos afirmar que os comunistas, compreendendo os nossos ideais<br />

e com eles se entrosando, nos darão, no momento de luta aberta, o seu fraternal apoio, a sua<br />

decidida colaboração. 7.6 – Os Comandos Regionais ficam, de já, autorizados a entrar em<br />

contato imediato, resguardadas as naturais cautelas para evitar a reação e a imprensa a soldo<br />

do imperialismo ianque, com os camaradas dos Comitês Comunistas, a fim de que, unidos,<br />

possam melhor traçar os planos para a libertação nacional. Mapas esquematizados com os<br />

pontos e objetivos a serem atingidos e destruídos no dia da libertação deverão ser uma das<br />

tarefas, afora outros misteres que, certamente, os experimentados camaradas do PC indicarão<br />

para aquele momento decisivo.<br />

8 - Guarda e julgamento dos prisioneiros – 8.1 – Devemos instruir os Grupos de<br />

Onze Companheiros para missões especiais de prisão, guarda e julgamento sumário dos<br />

prisioneiros de guerra. 8.2 – Para essa tarefa de suma importância deverão ser escolhidos<br />

companheiros de condições humildes mas, entretanto, de férreas e arraigadas condições de<br />

ódio aos poderosos e aos ricos, a fim de que não discutam ordens severas que poderão ser<br />

conhecidas no momento da luta pela libertação. 8.3 – Esses Grupos de Onze Companheiros<br />

terão, como finalidade primordial, deter, em todo o seu raio de ação – municípios, vilas,<br />

distritos e povoados – todas as autoridades públicas, tais como juiz de direito, prefeito,<br />

delegado de Polícia, vereadores, presidente da Câmara, políticos influentes e outras<br />

personalidades que, por acaso, estejam dentro de sua esfera de atribuição e limites de ação,<br />

recolhendo-as a locais apropriados, preferencialmente no meio da mata, sob guarda armada e<br />

permanente. 8.4 – Está claro que as autoridades que com o Movimento de Libertação<br />

Nacional cooperarem, deverão ser prestigiadas e a elas dado todo o apoio. 8.5 – No caso da<br />

derrota do nosso Movimento, o que é improvável mas não impossível, dadas certas<br />

características da situação nacional, e temos que ser verdadeiros em todos os nosss contatos<br />

com os Comandos Regionais e esta é uma informação para uso somente de alguns<br />

companheiros de absoluta e máxima confiança, os reféns deverão ser sumária e<br />

181


imediatamente fuzilados. a fim de que não denunciem seus aprisionadores e não lutem,<br />

posteriormente, para sua condenação e destruição. 8.6 – Estas instruções sobre os autênticos<br />

Comandos Revolucionários que representarão os integrantes dos Grupos de Onze<br />

Companheiros encarregados da tarefa de suma importância e gravidade que é a de deter,<br />

guardar e eliminar os anti-revolucionários, os antipovo, aos quais poderão se juntar os<br />

latifundiários e grandes proprietários, deverão ser guardadas somente de memória, destruídas,<br />

por separação de todo complexo destas Instruções Secretas a fim de evitar-se o seu<br />

conhecimento por quem delas não deva saber.<br />

9. Pseudônimos dos integrantes do G 11 – 9.1 – Os companheiros dos Grupos de<br />

Onze deverão ter, cada qual, um pseudônimo, somente conhecido por seu próprio Grupo. Não<br />

devem ter papéis comprometedores, nem quaisquer documentos que possam vir a personificá-<br />

los como integrantes dos Grupos de Onze, até o momento em que possam vir à luz os nossos<br />

heróicos Soldados da Libertação Nacional.<br />

10. Consideração Final – 10.1 – É extremamente necessário que todos saibam a<br />

responsabilidade que, do momento em que tomarem conhecimento total destas Instruções<br />

Secretas, passará a pesar sobre seus ombros. 10.2 – Por outro lado, desnecessária se torna<br />

qualquer preocupação para após o momento da vitória final. Todos os planos já estão<br />

traçados, e o Brasil alcançará, dentro em pouco, seus gloriosos destinos, ao lado de todas as<br />

nações livres do mundo 10.3 – Que todos e cada um saibam cumprir com o seu dever,<br />

atendendo ao chamamento que a Pátria lhes faz para a luta pela libertação nacional, sem<br />

medir esforços, conseqüências ou percalços, é o que espera o seu Comandante Supremo.<br />

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