Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys
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simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida tão gran<strong>de</strong> que nunca soube ler nem escrever – e a humilda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<br />
origem naturalmente encantou sempre a gente humil<strong>de</strong> que, no fundo da Inspirada, da<br />
companheira do rei <strong>de</strong> França, encontrava uma irmã em ignorância e pobreza, coberta com um<br />
mau saiote escarlate, uma paupercula bergereta. Depois a sua acção no mundo é <strong>de</strong> guerreira<br />
que assalta as muralhas, ergue um pendão, <strong>de</strong>sbarata hostes – e esta é a glória mais amada e<br />
popular entre a raça gaulesa, raça <strong>de</strong> guerra e <strong>de</strong> ruído, cujo génio não foi ao princípio senão<br />
movimento e conquista, e que, como diz Estrabão, é «doida pela espada e sempre sôfrega <strong>de</strong><br />
brigas». Depois a sua missão foi expulsar o verda<strong>de</strong>iro inimigo da França, o inglês invasor; e<br />
nenhuma outra po<strong>de</strong>ria exercer mais prestígio entre um povo que con serva como uma das<br />
formas do patriotismo a antipatia tradicional pelo Anglo-Saxónio. Enfim, tão profundamente<br />
francesa é Joana d’Arc que permanece absolutamente francesa, mesmo naqueles estados <strong>de</strong><br />
alma que são mais alheios ao génio da França – os <strong>de</strong> alucinação e <strong>de</strong> inspiração mística.<br />
Imagine-se uma espanhola, do tipo <strong>de</strong> Santa Teresa, que recebesse como Joana tão repetidas<br />
e visíveis visitas do arcanjo S. Miguel, armado da sua couraça <strong>de</strong> diamante e transmitindo-lhe<br />
o grave recado <strong>de</strong> Deus, a incumbência heróica <strong>de</strong> <strong>de</strong>sbaratar os inimigos da Espanha!<br />
O que não faria a espanhola – que transportes, que intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> paixão trasbordando em<br />
gritos e hinos, que arrojos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência divina! A donzela lorena, essa, cercada <strong>de</strong> vozes, <strong>de</strong><br />
clarida<strong>de</strong>s celestes, tratada como uma irmã por gran<strong>de</strong>s santas, levada pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus<br />
como num rijo vento, conserva-se muito simples, muito pru<strong>de</strong>nte, cheia <strong>de</strong> bom senso,<br />
penetrando e <strong>de</strong>cidindo as coisas da guerra e do Estado com o propósito sagaz e bem-avisado<br />
<strong>de</strong> um conselheiro que encaneceu nos negócios.<br />
E isto que dá à pobre pastora, paupercula bergereta, uma tão encantadora originalida<strong>de</strong>.<br />
Visões, como as <strong>de</strong>la, quem as não teve na Ida<strong>de</strong> Média? A França, mesmo no tempo <strong>de</strong><br />
Joana, estava cheia <strong>de</strong> inspirados que conversavam com Cristo, suavam sangue, arrastavam<br />
multidões pelo enlevo das suas prédicas ou a evidência dos seus milagres. Mulheres tomando<br />
uma lança, combatendo nos assédios, <strong>de</strong>rrotando astutos capitães, também não eram raras,<br />
mesmo nesse prosaico século XV; e, contemporanea mente com Joana, as matronas da<br />
Boémia batalhavam nas guerras dos Hussitas como «muito ferozes diabos», segundo diz o<br />
velho Monstrelet. Inspiradas e amazonas não faltavam – o que nenhuma tinha, como Joana,<br />
era o sério e fino juízo no meio da alucinação mística e doçura e bonda<strong>de</strong> terna em meio dos<br />
recontros e da brutalida<strong>de</strong> das armas. Esta é a sua privilegiada originalida<strong>de</strong>. E foi ela que<br />
atraiu essa esplêndida popularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> padroeira nacional. Esta glória <strong>de</strong> Joana, todavia, nem<br />
sempre permaneceu intacta e luzente. E bem se po<strong>de</strong> afirmar que, logo em seguida à sua<br />
reabilitação por Calisto III, e como se a França tivesse saldado a sua dívida para com a<br />
pastora, que por ela vivera e sofrera, Joana d’Arc começou a ser esquecida. A sua memória<br />
<strong>de</strong>via ser mesmo importuna à coroa e às classes nobres. Ter recebido um trono, e um trono<br />
hereditário, das mãos <strong>de</strong> uma guardadora <strong>de</strong> ovelhas, nunca po<strong>de</strong> ser uma recordação<br />
agradável para uma velha casa real. O clero, esse não tinha senão interesse em que se<br />
estabelecesse um pesado silêncio sobre aquela santa, que ele queimara por um <strong>de</strong>sses<br />
enganos tão frequentes nos cleros constituídos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o pavoroso engano do Gólgota. E o<br />
povo então, em França, ainda não existia como povo francês – era apenas um agregado <strong>de</strong><br />
povos diferentes, sem comunhão <strong>de</strong> sentimentos, don<strong>de</strong> nascesse um culto patriótico por<br />
quem tão apaixonadamente trabalhara na unida<strong>de</strong> da pátria. Creio em verda<strong>de</strong> que, quando o<br />
último daqueles capitães ingleses, para cuja expulsão ela se armara à voz <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>ixou o<br />
solo <strong>de</strong> França, já Joana era apenas lembrada com amor por algum obscuro servo da sua<br />
al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Domremy, ou por algum grato burguês <strong>de</strong>ssa Orleães que ela salvara.<br />
Os poetas do século XVI todavia ainda cantam a virgem lorena; mas, através do naturalismo<br />
pagão da Renascença, ela aparece com feições lamentavelmente <strong>de</strong>formadas. Já não é a<br />
doce, a cândida virgem cristã, iluminada por Deus para tirar da sua dor o pobre reino da<br />
França – mas uma valente amazona, amando o sangue, a guerra, e correndo a ela pelo mero<br />
e brutal <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir, <strong>de</strong> retalhar! Assim a representa um poeta do tempo, armada, como<br />
uma Diana, <strong>de</strong> arco e <strong>de</strong> flechas, e toda consagrada ao homicida Marte...<br />
Para o ilustre Malherbe, Joana é um hércules feminino, um grosso hércules façanhudo, cuja<br />
violenta morte vem como natural conclusão <strong>de</strong> violentas aventuras, e que: