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clamores, estes prantos <strong>de</strong> uma multidão invadindo uma igreja, a suplicar que se restitua a<br />
graça a uma alma con<strong>de</strong>nada, eram frequentes na Meia Ida<strong>de</strong> e ainda no século XV. Os<br />
<strong>de</strong>legados do papa não se comoveram. Ao que parece mesmo, chamaram a mãe <strong>de</strong> Joana à<br />
sacristia para lhe recomendar que se calmasse, não suscitasse embaraços, nem se alargasse<br />
em queixumes talvez levianos, pois que os juízes que tinham con<strong>de</strong>nado Joana como herege<br />
eram homens revestidos <strong>de</strong> altas dignida<strong>de</strong>s eclesiásticas, e a quem se não <strong>de</strong>via imputar<br />
facilmente dolo ou injustiça Assim falou na sacristia o arcebispo <strong>de</strong> Reims. A fogueira nesse<br />
momento ainda lhe parecia justa, por ser eclesiástica.<br />
No entanto, em obediência ao rescrito pontifical, começou a lenta e laboriosa revisão do<br />
processo <strong>de</strong> Ruão. E em Ruão mesmo, um ano <strong>de</strong>pois, foi proclamada a <strong>de</strong>cisão dos revisores<br />
em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Bem podia enfim secar as suas lágrimas a<br />
mãe <strong>de</strong> Joana. A sentença lavava a boa donzela «<strong>de</strong> toda a culpa <strong>de</strong> impostora, bruxaria,<br />
magia, cisma, sacrilégio, idolatria, apostasia, blasfémia, e outras práticas abomináveis, por que<br />
fora con<strong>de</strong>nada, segundo os artigos do processo, os quais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agora ficavam cassados,<br />
anulados, aniquilados, lacerados, pois que eles revisores diziam, pronunciavam, <strong>de</strong>cretavam,<br />
<strong>de</strong>clamavam que tais artigos e processos estavam contaminados <strong>de</strong> dolo, calúnia, contradição,<br />
iniquida<strong>de</strong>, erro, etc., etc., e etc.!...»<br />
Enfim, com toda esta temerosa fraseologia, entornada aos bal<strong>de</strong>s, a Igreja apagava<br />
juridicamente a fogueira que trinta anos antes acen<strong>de</strong>ra. O corpo puro da donzela lá ficava em<br />
torresmos entre os tições da fogueira (exceptuando o coração, que, apesar dos teimosos<br />
esforços do carrasco, nunca quis ar<strong>de</strong>r, e que foi necessário afogar no Sena). Mas a alma, e<br />
isso era a parte importante no século XV, essa ressurgia do lume absolvida e limpa. Depois,<br />
tendo concluído este acto que ela consi<strong>de</strong>rava mais <strong>de</strong> misericórdia do que <strong>de</strong> justiça, a Igreja<br />
não se tomou a ocupar <strong>de</strong> Joana. Os seus afazeres eram consi<strong>de</strong>ráveis – e havia outros<br />
justos, e sábios, e filósofos, e profetas, que estavam necessitando atenção e fogueira. E não<br />
creio que, durante os séculos seguintes, a Igreja <strong>de</strong>sse à donzela um pensamento. E natural<br />
mesmo que no século XVIII os galantes abbés, <strong>de</strong> batina <strong>de</strong> cetim e pós <strong>de</strong> íris na coroa,<br />
muitas vezes lessem em serões mundanos os trechos picantes <strong>de</strong> La Pucelle, <strong>de</strong> Voltaire, com<br />
alegria e com gosto.<br />
Quando, porém, há vinte anos, se <strong>de</strong>u a ressurreição patriótica <strong>de</strong> Joana, e começou o seu<br />
culto civil, a Igreja imediatamente se lançou no movimento com santo calor. Enquanto os<br />
seculares pediam simplesmente, para a boa lorena, estátuas e festas – o clero francês,<br />
subindo logo aos limites extremos da glorificação, reclamou que ela fosse canonizada. Àquela<br />
a quem o génio nacional estava prestando homenagens, que só eram e só podiam ser da<br />
Terra, a Igreja, mais rica em Deus, oferecia logo a homenagem suprema – o céu!<br />
Neste entusiasmo havia muita sincerida<strong>de</strong>. Todos os motivos que levavam a multidão leiga a<br />
amar e a exaltar Joana actuavam também no espírito do clero – que é gran<strong>de</strong>mente inteligente<br />
a patriótico. Mas a este entusiasmo também se misturava muito interesse.<br />
Não era bom, nem útil, que nessa história <strong>de</strong> Joana, agora sempre lembrada e constantemente<br />
mostrada como a maravilhosa realização <strong>de</strong> todas as virtu<strong>de</strong>s francesas, a Igreja só<br />
aparecesse como perseguidora, ao lado do carrasco, com o facho da fogueira na mão<br />
evangélica. Por outro lado, convinha que a libertadora do reino <strong>de</strong> França fosse uma enviada<br />
<strong>de</strong> Deus, como tal reconhecida e venerada pela Igreja, e que, portanto, no espírito do povo a<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>sforra nacional se misturasse intimamente à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> intervenção divina. E,<br />
finalmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Joana d’Arc, outra vez, como no tempo <strong>de</strong> Carlos VII, tinha o dom <strong>de</strong><br />
arrastar as multidões, era vantajoso para a Igreja que uma tão gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertadora <strong>de</strong> fé, <strong>de</strong><br />
emoção, <strong>de</strong> poesia e <strong>de</strong> patriotismo estivesse colocada sobre um altar, no interior <strong>de</strong> um<br />
templo – porque todo o templo e os altares vizinhos não teriam senão a lucrar com hóspeda<br />
tão popular e atraente.<br />
Influíssem estes, influíssem outros motivos, o facto consi<strong>de</strong>rável é que o clero francês<br />
começou a promover em Roma a canonização <strong>de</strong> Joana d’Arc com um vigor, uma abundância,<br />
um ruído, que inquietaram a França radical e livre-pensadora. Os bispos gritavam todos os<br />
dias, num entusiasmo impaciente e textualmente: «Santíssimo Padre, apressai-vos a pôr sobre<br />
a fronte <strong>de</strong> Joana a auréola divina!» E o radicalismo <strong>de</strong>scontente murmurava: «Para quê?...»<br />
Em Roma tudo se faz com uma pru<strong>de</strong>nte lentidão: e além disso o Sacro Colégio, a<br />
Congregação dos Ritos, o papa, todos tendiam a consi<strong>de</strong>rar a boa donzela mais como uma