Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys
Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys
Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
há pouco a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que em <strong>Paris</strong> se morre <strong>de</strong> fome e <strong>de</strong> frio atormentara o coração<br />
parisiense. A miséria era mesmo consi<strong>de</strong>rada como uma exageração oratória dos tribunos<br />
revolucionários. No meio <strong>de</strong> uma civilização tão produtiva, como po<strong>de</strong>ria faltar trabalho, e<br />
portanto pão, ao homem laborioso e <strong>de</strong>cidido? Os <strong>de</strong>sgraçados, se existiam tal como os<br />
pintava pateticamente a literatura humanitarista, só à sua indolência e instintos <strong>de</strong> vício <strong>de</strong>viam<br />
certamente a sua <strong>de</strong>sgraça.<br />
Assim pensavam os ricos – o que não impedia que exercessem uma certa carida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
ela era motivo <strong>de</strong> bazares elegantes ou <strong>de</strong> cotillons patrocinados por duquesas.<br />
De resto lá estava o Estado que se encarregava dos pobres – ou para os socorrer, por meio da<br />
assistência pública, enquanto eles se mantinham submissos, para os reprimir por meio da<br />
polícia, quando uma exagerada noção dos seus direitos à vida e à igualda<strong>de</strong> os tornava<br />
turbulentos.<br />
Este modo <strong>de</strong> sentir, em que havia mais levianda<strong>de</strong> do que dureza, tem sido, nestes últimos<br />
anos, inteiramente modificado, louvado seja Deus e louvado seja <strong>Paris</strong>. Muitas causas<br />
<strong>de</strong>terminaram esta evolução, que é uma consi<strong>de</strong>rável revolução moral. Mas a principal é que o<br />
pobre saiu do seu obscuro e silencioso opróbrio, apareceu como classe, revelou a sua força e<br />
falou. Apesar <strong>de</strong> todas as revoluções, o pobre, em França, permanecera sempre, <strong>de</strong> facto,<br />
calado. Ainda em 1848, durante um período aliás repassado <strong>de</strong> humanitarismo sentimental, se<br />
gritava na Assembleia Nacional e com aplauso <strong>de</strong> todas as classes: «Silêncio ao pobre!» O<br />
pobre era um mudo, que passava isoladamente na sombra e <strong>de</strong> olhos baixos. De vez em<br />
quando, furioso, roubava uma espingarda e assaltava a socieda<strong>de</strong>. O exército acudia,<br />
sufocava a escandalosa revolta. A socieda<strong>de</strong> respirava, e continuava o jantar interrompido,<br />
<strong>de</strong>clarando com indignação que o pobre era uma fera. E o pobre, como uma fera, recolhia<br />
silenciosamente ao seu covil.<br />
O seu primeiro triunfo foi quando, em vez <strong>de</strong> se revoltar, se começou a explicar,<br />
tranquilamente, como um ser sensato e cheio <strong>de</strong> justiça. Esta voz nova, triste e profunda,<br />
impressionou, foi escutada.<br />
O rico só <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então verda<strong>de</strong>iramente conheceu o pobre – começou a saber o que é ser<br />
pobre. As duas classes viviam totalmente separadas, uma no seu escuro inferno, outra no seu<br />
vistoso paraíso – e os paletós, bem acolchoados, só tinham uma noção muito vaga <strong>de</strong> que<br />
havia farrapos, por os avistar <strong>de</strong> longe, na rua e na penumbra. Em Londres, há <strong>de</strong>z ou doze<br />
anos, foi uma tremenda surpresa quando, por or<strong>de</strong>m do parlamento, se fez um <strong>de</strong>morado<br />
inquérito aos slums, os bairros indizivelmente miseráveis, on<strong>de</strong> vive, ou antes, on<strong>de</strong><br />
lentamente morre a mais <strong>de</strong>sgraçada, faminta e lúgubre populaça <strong>de</strong> toda a Europa. O quê!<br />
Havia pois famílias que andam quase nuas, e dormem durante os mais duros invernos na terra<br />
húmida, e comem apenas as hortaliças podres que são apanhadas à noitinha no lixo e nos<br />
enxurros, à roda dos mercados. A gente que tem uma conta larga no alfaiate, e é muito difícil<br />
na escolha do seu champanhe, não podia acreditar que na rica Londres do século XIX<br />
houvesse tais vergonhas públicas. E o sentimento geral, mesmo entre os mais duros, foi que<br />
misérias tão dolorosas se não <strong>de</strong>viam permitir numa terra cristã.<br />
O mesmo espanto se tem dado em <strong>Paris</strong>, e com a mesma revolta da consciência perante a<br />
revelação real e minuciosa das misérias do proletariado, que é uma das dores do socialismo, e<br />
a mais fecunda, a mais prática, porque opera sobre o sentimento. É <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então que gran<strong>de</strong>s<br />
forças sociais como são a Igreja, a literatura, a arte começaram a preocupar-se com o pobre, a<br />
compreen<strong>de</strong>r amoravelmente a justiça e o amor que se lhe <strong>de</strong>ve, e a espalhar nas almas, cada<br />
uma pelo meio que lhe é próprio, a salutar lição, não só da bonda<strong>de</strong> activa e militante, mas do<br />
renunciamento, <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro renunciamento social, em que os ricos se <strong>de</strong>spojem para<br />
que chegue a todos um pouco do pão da terra. E digo a Igreja também, porque também ela<br />
andava esquecida dos pobres, apesar <strong>de</strong> ser a sua mãe natural. Todos tínhamos, com efeito,<br />
esquecido o pobre, nesta gran<strong>de</strong> ilusão e <strong>de</strong>slumbramento do progresso material que nos<br />
absorveu e obcecou setenta anos. Enganados pela ciência, embrulhados nas subtilezas<br />
balofas da economia política, maravilhados como crianças pelas habilida<strong>de</strong>s da mecânica,<br />
durante setenta anos construímos freneticamente vapores, caminhos <strong>de</strong> ferro, máquinas, fábricas,<br />
telégrafos, uma imensa ferramentagem, imaginando que por ela realizaríamos a<br />
felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva dos homens e mal antevendo que aos nossos pés, e por motivo mesmo