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Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys

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<strong>de</strong>ssa nova civilização utilitária, se estava criando uma massa imensa <strong>de</strong> miséria humana, e<br />

que, com cada pedaço <strong>de</strong> ferro que fundíamos e capitalizávamos, íamos criar mais um pobre!<br />

No fim <strong>de</strong>stes setenta anos <strong>de</strong> martelar e <strong>de</strong> forjar, havia com efeito alguns sujeitos muito<br />

gordos e muito ricos – mas havia uma multidão <strong>de</strong> famintos, mais faminta e maior que<br />

nenhuma que o mundo vira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o velho patriciado romano.<br />

Foi esta multidão, setenta anos muda e trabalhando, que por fim, sem cessar <strong>de</strong> trabalhar,<br />

falou; contou o seu opróbrio, pediu justiça. E como a alma humana não é pior nem melhor que<br />

no tempo <strong>de</strong> Jesus, contemporâneo <strong>de</strong> Tibério, a dolorosa voz entrou nela, e trá-la <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

então entristecida e inclinada ao amor.<br />

Não, já não há hoje, sobretudo nas civilizações muito intelectuais, aquele duro e soberbo<br />

egoísmo que tornava os felizes tão alheios aos <strong>de</strong>sgraçados e às causas da sua <strong>de</strong>sgraça!<br />

lodo o homem digno <strong>de</strong>sse nome se sente hoje solidário com os homens todos e não separa<br />

inteiramente o seu bem-estar do bem-estar universal. Já o <strong>de</strong>sconforto do nosso vizinho nos<br />

impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozar, com um gozo pleno e sem mistura, o nosso próprio conforto. E quando<br />

sejam ainda raros os que empregam toda a sua energia em melhorar a sorte dos que não têm<br />

sorte, são inumeráveis já aqueles que dão ao seu semelhante <strong>de</strong>svalido um pensamento<br />

constante <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e simpatia. É ainda uma fraternida<strong>de</strong> platónica, passada nas regiões do<br />

coração: mas que progresso enorme, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o tempo em que essa i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong> não<br />

saía das regras frias da razão filosófica! Que um homem hoje se não possa sentar diante da<br />

sua mesa farta sem pensar, com fugitiva melancolia, nos que têm fome, e que não estenda à<br />

noite os pés para o lume do seu fogão, ouvindo fora silvar o nor<strong>de</strong>ste gelado, sem ter um<br />

momento <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> pelos que estão sofrendo frio – são fortes evidências estas <strong>de</strong> uma alta<br />

revolução moral. E são estados <strong>de</strong> alma muito novos.<br />

Sempre existiu a pieda<strong>de</strong> pelos que sofrem – mas era a pieda<strong>de</strong> pelo indivíduo isolado, e que<br />

os nossos olhos testemunhavam e palpavam o sofrimento. Sempre o pobre que batia à porta,<br />

mostrando a sua magreza, os seus farrapos, a sua chaga mal lavada, excitou as compaixões<br />

momentâneas, levou no saco a sua esmola. Esta gran<strong>de</strong> emoção, porém, que se sente hoje<br />

pelo colectivo <strong>de</strong> vastas classes proletárias, este <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> lhes garantir um alívio durável, este<br />

esforço humanitário que trabalha e conspira para nivelar as fortes <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s económicas –<br />

são produtos morais <strong>de</strong>ste tempo, e a sua obra mais difícil e mais honrosa.<br />

Ora esta preocupação nova das almas influi necessariamente nos costumes. O homem,<br />

quando sensibilizado, põe logo nos seus menores modos <strong>de</strong> ver uma certa reserva e gravida<strong>de</strong><br />

pensativa. E toda a nossa Europa oci<strong>de</strong>ntal anda profundamente sensibilizada. Um tépido bafo<br />

<strong>de</strong> espiritualismo e <strong>de</strong> amor humano, vindo <strong>de</strong> horizontes ainda <strong>de</strong>sconhecidos, amacia e<br />

aquece os corações. Neste estado <strong>de</strong> sentimentalida<strong>de</strong> afectiva, a inteligência, que se torna<br />

sempre mais recta quando o sentimento a inspira, facilmente reconhece a injustiça afrontosa<br />

das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais. E assim existem já hoje ricos que consi<strong>de</strong>ram quase injusto o<br />

excesso da sua riqueza. Ainda <strong>de</strong>certo não atingiram (nem atingirão talvez jamais) aquela<br />

perfeita elevação evangélica que levava os santos a partilhar com os famintos, com os<br />

regelados, a meta<strong>de</strong> do seu pão e da sua capa. Mas on<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ntemente já chegaram é a um<br />

certo escrúpulo moral <strong>de</strong> tornar muito patente o escândalo da sua fortuna e <strong>de</strong> ofuscar a<br />

indigência com a publicação da sua abundância. Des<strong>de</strong> que tanta gente morre positivamente<br />

<strong>de</strong> fome, e que toda uma legião <strong>de</strong> profetas clama contra uma socieda<strong>de</strong> em que tal morte é<br />

possível, há naturalmente da parte dos ricos uma gran<strong>de</strong> timi<strong>de</strong>z em abrir as suas janelas e<br />

revelar a fortuna ostentosa da sua mesa. A nova corrente <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias criou esta coisa estranha –<br />

a riqueza envergonhada. O milionário, por pudor, escon<strong>de</strong> os seus milhões. Assim como nos<br />

primeiros tempos da gran<strong>de</strong> revolução, e ainda mesmo <strong>de</strong>pois em 1830, muitos fidalgos<br />

ocultavam os seus títulos, se proclamavam plebeus, se gabavam <strong>de</strong> ter por suas mãos cavado<br />

a terra ou manejado o martelo, os ricaços <strong>de</strong> agora afectam uma estreita mediocrida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

fortuna, e disfarçam pudicamente o seu ouro. Ninguém ousa fazer tilintar a sua bolsa cheia. E<br />

como as festas, os bailes, os jantares são a mais natural manifestação da riqueza, numa<br />

cida<strong>de</strong> tão activamente social como a <strong>de</strong> <strong>Paris</strong>, todo esse movimento sumptuoso se acalma, se<br />

escon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>saparece lentamente, insensivelmente. Há como um receio <strong>de</strong>licado <strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r o<br />

pobre. Todos sentem que o dinheiro dissipado no luxo <strong>de</strong>veria antes ser empregado na<br />

carida<strong>de</strong> – e não se celebram festas <strong>de</strong> riqueza, por isso mesmo que elas parecem roubos<br />

feitas à pobreza. Realmente com que coragem se po<strong>de</strong> dar um rico jantar, cujo luxo e flores e<br />

requintes serão contados na mesma página do jornal em que virá a história angustiosa <strong>de</strong>

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