Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys
Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys
Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
gravemente formulada, dos lábios do presi<strong>de</strong>nte Monroe, até se tornar esse aforismo oco e<br />
mal-avisado que hoje todo o ianque (e à imitação <strong>de</strong>le todo o homem da América) lança com<br />
tanta inconsi<strong>de</strong>ração e arrogância.<br />
A América para os Americanos! Nesta fórmula, que é doutrinalmente incompreensível, e<br />
praticamente cheia <strong>de</strong> perigos, se converteu a pru<strong>de</strong>nte doutrina do presi<strong>de</strong>nte Monroe, no<br />
curto espaço <strong>de</strong> oitenta anos e através <strong>de</strong> uma civilização cujo objecto mais constante tem sido<br />
a fusão e a confraternização dos homens!<br />
Começa por ser singularmente errada esta expressão doutrina, aplicada à <strong>de</strong>claração muito<br />
simples e muito prática que o presi<strong>de</strong>nte Monroe fez na sua mensagem ao Congresso <strong>de</strong><br />
Washington, em Dezembro do já muito remoto ano <strong>de</strong> 1823. Monroe era um homem medíocre<br />
e limitado, totalmente incapaz <strong>de</strong> conceber e <strong>de</strong>senvolver uma doutrina política – e só pensava<br />
ou falava sob o bafo e inspiração do seu secretário <strong>de</strong> Estado, Quincy Adams. Foi este fino e<br />
forte estadista, hoje esquecido no pó <strong>de</strong>sinteressante dos arquivos americanos, que i<strong>de</strong>ou e<br />
redigiu essas frases famosas da mensagem <strong>de</strong> 1823; mas foi o feliz Monroe que penetrou na<br />
posterida<strong>de</strong>, trazendo bem alta nas mãos, como Moisés ao <strong>de</strong>scer do Sinai, a tábua com a sua<br />
doutrina. Assim ficou este homem insípido e nulo com a singular glória <strong>de</strong> ter traçado o forte<br />
programa político que conduziria a América aos seus altos <strong>de</strong>stinos, e <strong>de</strong> ser o Sólon ianque.<br />
Muito bem me recordo <strong>de</strong> ver, nos Estados Unidos, um busto <strong>de</strong>le, com a coroa <strong>de</strong> louro e<br />
hera, a coroa profética que compete aos gran<strong>de</strong>s legisladores <strong>de</strong> povos. E esta coroa era tanto<br />
mais divertida quanto suce<strong>de</strong> à sua doutrina o que suce<strong>de</strong> a outras obras consagradas – que<br />
toda a gente a cita, e ninguém jamais a leu.<br />
E todavia essa doutrina (para lhe conservar a aparatosa alcunha), quando se lê, parece<br />
excelente – e foi realmente excelente <strong>de</strong>ntro do momento histórico que a originou. Era então o<br />
<strong>de</strong>voto e bourbónico ano <strong>de</strong> 1823, e a Europa estava nos gran<strong>de</strong>s dias <strong>de</strong> Metternich e da<br />
Santa Aliança. Tão radicalmente mudou a face política, moral e social do mundo, que o<br />
conhecimento íntimo <strong>de</strong>sta famosa Aliança, que a si própria se chamava e se consi<strong>de</strong>rava<br />
santa, pertence quase exclusivamente à erudição histórica. Não a caluniamos <strong>de</strong>certo dizendo<br />
que ela foi uma aliança dos reis contra os povos. Nascida no Congresso <strong>de</strong> Verona, <strong>de</strong>pois da<br />
queda <strong>de</strong> Napoleão e sob o medo pânico que inspirava ainda a Revolução (<strong>de</strong> que Bonaparte<br />
fora uma encenação agressiva sob a forma cesariana), a Santa Aliança partiu <strong>de</strong> um princípio<br />
inteiramente novo, <strong>de</strong>sconhecido no século XVIII, e mesmo no século XVII durante o gran<strong>de</strong><br />
prestígio das monarquias. Segundo esse princípio, os reis formavam uma família superior e<br />
única, com interesses dinásticos e majestáticos muito diferentes dos interesses dos povos: e<br />
portanto <strong>de</strong>viam coligar-se e manter entre si uma harmonia imutável, para po<strong>de</strong>rem livre e<br />
seguramente sufocar todo o espírito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> revolução em qualquer povo que ele se<br />
produzisse, e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem assim colectivamente os seus direitos sacros <strong>de</strong> dinastia e<br />
majesta<strong>de</strong>. Esta aliança, <strong>de</strong> que Matternich, primeiro-ministro da Áustria, era a alma motriz,<br />
funcionou com brilho até 1830: e foi em obediência ao santo princípio don<strong>de</strong> se originara que<br />
os reis, santamente aliados, mandaram um exército austríaco sustentar o rei <strong>de</strong> Nápoles<br />
<strong>de</strong>stronado pela revolução constitucional do general Pepe e <strong>de</strong>pois um exército francês libertar<br />
o rei <strong>de</strong> Espanha, que se achava coagido pela revolução <strong>de</strong> Riego, forçado aos sacrifícios mais<br />
pungentes, até a expulsar os jesuítas, até a abolir a Inquisição! Tendo <strong>de</strong>ste modo esmagado<br />
gloriosamente os primeiros rebentos liberais no Piemonte e em Nápoles e restituído à Espanha<br />
os pitorescos benefícios <strong>de</strong> Fernando VII, da Inquisição e da forca, a Santa Aliança <strong>de</strong>clarou, à<br />
maneira <strong>de</strong> uma intimação final aos povos, que ela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então e para sempre consi<strong>de</strong>rava<br />
«como nula e <strong>de</strong>sautorizada pela lei pública da Europa qualquer pretendida reforma efectuada<br />
por meio da revolta e da força popular; e que se arrogava o imprescritível e sagrado direito <strong>de</strong><br />
tomar uma atitu<strong>de</strong> hostil contra qualquer nação que, em qualquer parte do mundo, ou sob<br />
qualquer forma, <strong>de</strong>rrubasse o seu legítimo governo e <strong>de</strong>sse assim um pernicioso exemplo <strong>de</strong><br />
rebelião e infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> social aos súbditos dos reis aliados...» Ora, havia então uma parte do<br />
mundo que estava dando esse escandaloso exemplo, e on<strong>de</strong> cada ano um povo se erguia<br />
batendo ignominiosamente e expulsando com irrisão o seu venerável e legítimo governo. Era a<br />
América. Por toda a sua costa, do Atlântico ou do Pacífico, não se viam senão vice-reis<br />
espanhóis, fugindo com os baús <strong>de</strong> couro carregados <strong>de</strong> uniformes e <strong>de</strong> dobrões, para bordo<br />
<strong>de</strong> velhas naus que viravam cabisbaixamente as proas para a Espanha. Uma a uma todas as<br />
colónias, aproveitando as guerras <strong>de</strong> doutrina política que assolavam a mãe-pátria, se iam<br />
emancipando <strong>de</strong>la e dando começo a essa bela pân<strong>de</strong>ga anárquica em que se têm <strong>de</strong>liciado