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Cartas Familiares e Bilhetes de Paris - Logo Metasys

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Para se ver este espécime venerável dos velhos senhores do solo é necessário empreen<strong>de</strong>r<br />

uma viagem, passar para além <strong>de</strong> Omaha, para além do território do Nebrasca, para além do<br />

país dos búfalos; e aí será possível, em torno a alguma estação do caminho <strong>de</strong> ferro do<br />

Pacífico, avistar um americano, cor <strong>de</strong> cobre, <strong>de</strong> longas gue<strong>de</strong>lhas corredias, mirrado e<br />

embrutecido, que pe<strong>de</strong> esmola e se coça por entre os farrapos da camisa e das pantalonas<br />

recebidas, pelo Natal, na gran<strong>de</strong> distribuição, como esmola do alto pai, do gran<strong>de</strong> chefe<br />

branco que está em Washington.<br />

Ora, sendo estes realmente os únicos puros americanos, a gran<strong>de</strong> máxima política tem <strong>de</strong> ser<br />

interpretada <strong>de</strong>ste outro modo, mais coerente e mais franco: «A América pertence<br />

exclusivamente aos europeus que nasceram na América. E este o seu verídico sentido. E <strong>de</strong>le<br />

provém a doutrina ruidosa do nativismo.<br />

Não há todavia nenhuma originalida<strong>de</strong> nesta doutrina do nativismo. Nem ela nasceu na<br />

América. Mais <strong>de</strong> dois mil anos certamente são passados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a China a concebeu e a<br />

praticou. O nativismo é, com efeito, um produto chinês, adoptado durante algum tempo pelo<br />

Japão, <strong>de</strong>pois por ele abandonado como caduco e caturra, e agora posto, com gran<strong>de</strong> alarido,<br />

em circulação pelos povos americanos.<br />

Foi durante a dinastia dos Tsin e reinando o imperador Huang-Ti que apareceu na China e se<br />

apo<strong>de</strong>rou dos espíritos este princípio novo do nativismo. Esse imperador Huang-Ti era um<br />

bandido, <strong>de</strong> ilimitado orgulho, ignorante e falso, que alterou toda a constituição política da<br />

China, <strong>de</strong>lapidou as finanças, inventou uma religião grotesca em que confusamente entravam<br />

a humanida<strong>de</strong> e três espíritos que habitam numa ilha, cometeu o sacrilégio <strong>de</strong> reformar o<br />

calendário, perseguiu os poetas e os eruditos e queimou todos os livros sagrados da China. (O<br />

que prova que as i<strong>de</strong>ias extravagantes nascem sobretudo nos tempos <strong>de</strong> anarquia e <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cadência moral.)<br />

Somente os Chineses puseram na aplicação <strong>de</strong>ste princípio, imposto por um tirano fantasista,<br />

aquela coerência forte e rigor que sempre os caracteriza na prática das suas instituições.<br />

Des<strong>de</strong> que o escandaloso Huang-Ti e os seus mandarins (entre os quais dominava um certo<br />

Liseu, meio letrado e meio feiticeiro) conceberam a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o uso da China <strong>de</strong>via ser<br />

vedado a todos os que não fossem nativos – fecharam a China, fecharam materialmente toda<br />

a China do lado da terra com a Gran<strong>de</strong> Muralha, e do lado do mar, nas embocaduras dos rios,<br />

com fortes correntes <strong>de</strong> bronze e hediondos dragões <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira pintada. Depois, assim<br />

enclausurados na sua China como uma imensa e silenciosa cida<strong>de</strong>la, o mundo nunca mais<br />

soube <strong>de</strong>les e quase per<strong>de</strong>u a noção da sua existência entre as gentes. De resto, durante os<br />

seguintes séculos, se, apesar <strong>de</strong> todas essas correntes e muralhas, algum estranho penetrava<br />

na China por motivos espirituais ou temporais, logo uma populaça nativista corria sobre ele<br />

com bambus e cutelos, e do intruso abominável só restava em breve uma massa roída e<br />

retalhada em cima <strong>de</strong> um charco <strong>de</strong> sangue. Os Japoneses, mais doces e <strong>de</strong> natureza céptica,<br />

nunca se abandonaram a estas ferocida<strong>de</strong>s nativistas, e quando muito corriam o estrangeiro à<br />

pedrada, pelas ruas, até ao batel <strong>de</strong> que ele <strong>de</strong>sembarcara. E na América, ainda mais doce e<br />

mais polida, o nativismo todo se limita a uns gritos nos jornais – e o intruso é meramente<br />

corrido a adjectivos. Assim, as i<strong>de</strong>ias fortes, na sua costumada marcha <strong>de</strong> oriente para<br />

oci<strong>de</strong>nte, se enervam e se amolecem.<br />

Consi<strong>de</strong>rando, porém, com serieda<strong>de</strong>, e sem <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> sorrir, esse curioso fenómeno do<br />

nativismo chinês, muito facilmente se lhe encontra justificação e até gran<strong>de</strong>za. Os Chineses<br />

não são somente os primitivos senhores da China, mas são os primitivos e únicos criadores da<br />

sua civilização, que é só <strong>de</strong>les, bem original e bem própria, sem mistura <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ia ou forma<br />

alheia. Foram eles, só eles, que tiraram da sua razão, do seu sentimento e da sua fantasia<br />

tudo o que temporalmente e espiritualmente constitui a China, a sua organização política, a<br />

sua religião, a sua moral, o seu direito, a sua agricultura, a sua indústria, a sua literatura, a sua<br />

arte, os seus cerimoniais, as suas armas, os seus trajes... Toda a China é absolutamente e<br />

unicamente <strong>de</strong> invenção chinesa. Não há i<strong>de</strong>ia ou costume, nem mesmo uma pequena regra<br />

<strong>de</strong> etiqueta, nem mesmo uma ligeira forma <strong>de</strong> vaso, que fosse importada do mundo exterior,<br />

que para eles é bárbaro, e que fica para além da Gran<strong>de</strong> Muralha e do mar Amarelo. E tão<br />

intensamente homogénea é esta civilização que qualquer i<strong>de</strong>ia ou costume que chegue <strong>de</strong> fora<br />

e consiga cair nesse compacto fundo <strong>de</strong> costumes e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias não se fun<strong>de</strong>, não penetra na<br />

circulação da vida ambiente: fica enquistada, no lugar on<strong>de</strong> pousou, como um caroço estéril, e

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