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fé e ciência: duas linguagens para uma verdade - Centro Loyola de ...

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REVISTA MAGIS<br />

ISSN nº 1676-7748<br />

CADERNOS DE FÉ E CULTURA<br />

Número 18 – ano 1995<br />

FÉ E CIÊNCIA:<br />

DUAS LINGUAGENS<br />

PARA UMA VERDADE


UNIDADE E DIFERENÇA: LINGUAGEM E VERDADE NA CIÊNCIA E<br />

1. INTRODUÇÃO<br />

NA FÉ<br />

Pe. Henrique C. <strong>de</strong> Lima Vaz, S.J.<br />

O título previsto <strong>para</strong> essa palestra: "<strong>fé</strong> e <strong>ciência</strong>: <strong>duas</strong> <strong>linguagens</strong>, <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>",<br />

po<strong>de</strong> ser explicado corretamente mas po<strong>de</strong> levar a um entendimento inexato do proble-<br />

ma. Preferimos substituí-lo pelo título acima enunciado. <strong>de</strong> fato, mais exato seria dizer:<br />

<strong>fé</strong> e <strong>ciência</strong>, <strong>duas</strong> <strong>linguagens</strong>, <strong>duas</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>s, pois sendo os conceitos <strong>de</strong> linguagem e<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong> correlativos, <strong>duas</strong> <strong>linguagens</strong> acarretam <strong>duas</strong> formas <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>. Por outro lado,<br />

ao falarmos <strong>de</strong> <strong>uma</strong> pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas da <strong>verda<strong>de</strong></strong> não preten<strong>de</strong>mos dizer que o con-<br />

ceito <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> seja um conceito equívoco. Há <strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> conceptual entre as formas<br />

<strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>. Se não é a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um conceito unívoco, e não sendo a <strong>de</strong> um termo e-<br />

quívoco, só po<strong>de</strong> ser a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um conceito análogo. Po<strong>de</strong>mos, pois, adiantar que<br />

todas as nossas reflexões nessa palestra girarão em torno do problema da unida<strong>de</strong> ana-<br />

lógica do conceito <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e da linguagem que lhe correspon<strong>de</strong>, e em torno da possi-<br />

bilida<strong>de</strong> da diferenciação <strong>de</strong>sse conceito n<strong>uma</strong> pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas ou categorias <strong>de</strong><br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong> com suas respectivas <strong>linguagens</strong>, situando nessa perspectiva o problema da<br />

relação entre <strong>ciência</strong> e a <strong>fé</strong> em termos <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem.<br />

são.<br />

Nossa palestra constará <strong>de</strong> <strong>uma</strong> Introdução, <strong>de</strong> <strong>duas</strong> partes e <strong>de</strong> <strong>uma</strong> breve Conclu-<br />

Na Introdução exporemos brevemente o problema da unida<strong>de</strong> e pluralida<strong>de</strong> da<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong> e da sua linguagem.<br />

Na 1ª parte iremos examinar a questão dos componentes estruturais do conceito <strong>de</strong><br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong>, com <strong>uma</strong> breve referência à história <strong>de</strong>sse conceito na tradição filosófico-<br />

teológica oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Na 2ª parte nos ocupamos com a natureza e estrutura da <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem da<br />

<strong>ciência</strong> e com a natureza e estrutura da <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem da <strong>fé</strong>.


Finalmente, na Conclusão, tentaremos respon<strong>de</strong>r à questão da relação, em termos<br />

<strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem, entre a <strong>fé</strong> e a <strong>ciência</strong>.<br />

Devemos ainda observar que nossa exposição terá um caráter predominantemente<br />

filosófico, o que, provavelmente, irá causar alg<strong>uma</strong> dificulda<strong>de</strong> a quem está familiariza-<br />

do com esse tipo <strong>de</strong> discurso. Mas é inevitável esse recurso à filosofia, já que o proble-<br />

ma da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, mesmo nas teorias lógicas recentes, altamente formalizados, é, por exce-<br />

lência, um problema filosófico.<br />

Iniciaremos nossa exposição introdutória com <strong>uma</strong> breve análise dos diversos as-<br />

pectos sob os quais se apresenta o fato fundamental da correlação entre <strong>verda<strong>de</strong></strong> e lin-<br />

guagem, que é o nosso necessário ponto <strong>de</strong> partida. Trata-se <strong>de</strong> um fato fundamental e<br />

primeiro, porque não temos outro acesso à <strong>verda<strong>de</strong></strong> senão através da linguagem. Admi-<br />

timos que a <strong>verda<strong>de</strong></strong> possa ser experimentada inefavelmente nos estados mais elevados<br />

da experiência mística, por exemplo, ou da experiência estética. Mas ela não po<strong>de</strong> ser<br />

comunicada senão através <strong>de</strong> <strong>uma</strong> linguagem específica, p. ex. a linguagem dos místi-<br />

cos, na qual o po<strong>de</strong>r expressivo da linguagem é levado ao extremo das suas possibilida-<br />

<strong>de</strong>s significantes. Linguagem e <strong>verda<strong>de</strong></strong> são, pois, correlatos necessários. Essa correla-<br />

ção já está presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras tentativas <strong>de</strong> reflexão sobre a <strong>verda<strong>de</strong></strong>, nos Sofis-<br />

tas e em Platão.<br />

a) Um primeiro exame nos mostra a correlação linguagem-<strong>verda<strong>de</strong></strong> estabelecendo-<br />

se em tr6es planos:<br />

- plano lógico - A <strong>verda<strong>de</strong></strong> é aqui um predicado do discurso e ela tem sua se<strong>de</strong> no<br />

juízo que afirma ou nega, ou na proposição afirmativa ou negativa. O plano lógico é,<br />

pois, o lugar original <strong>de</strong> manifestação da <strong>verda<strong>de</strong></strong> ou ainda a linguagem, or<strong>de</strong>nada logi-<br />

camente, é o meio translúcido através do qual a <strong>verda<strong>de</strong></strong> transita entre o ser e o sujeito.<br />

A relação do problema da correlação <strong>verda<strong>de</strong></strong> - linguagem com o nascimento da Lógica<br />

e sua primeira codificação por Aristóteles é, <strong>de</strong> fato, o primeiro capítulo da história <strong>de</strong>s-<br />

se problema na filosofia oci<strong>de</strong>ntal.<br />

- plano antropológico - Trata-se aqui do problema da dicção da <strong>verda<strong>de</strong></strong> por um<br />

sujeito, o que é a outra forma original da sua manifestação, pois a <strong>verda<strong>de</strong></strong>, manifestação<br />

do ser no lugar do sujeito, é por esse, por sua vez, manifestada como <strong>verda<strong>de</strong></strong> do logos,


ou do discurso, na dicção com que o sujeito se inter-comunica com outros sujeitos, tor-<br />

nando-se a <strong>verda<strong>de</strong></strong> <strong>uma</strong> manifestação inter-subjetiva do ser no âmbito do consenso.<br />

Essa dicção da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, por sua vez, manifesta-se em várias formas (<strong>verda<strong>de</strong></strong> teórica,<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong> prática, <strong>verda<strong>de</strong></strong> religiosa, <strong>verda<strong>de</strong></strong> científica, etc...)<br />

- plano antológico - A <strong>verda<strong>de</strong></strong> é, ao mesmo tempo, atributo do ser e atributo do<br />

discurso. Ela é dita pelo sujeito, locutor do discurso, normalmente como expressão do<br />

ser. Mas como fazer coincidir a <strong>verda<strong>de</strong></strong> do ser e a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da linguagem? Ou ainda: há<br />

<strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> da linguagem in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da <strong>verda<strong>de</strong></strong> do ser? Aqui o plano ontoló-<br />

gico se prolonga na sua dimensão gnoseológica ouepistemológica. Eis um dos proble-<br />

mas mais discutidos no campo da questão que nos ocupa e sobre cuja solução, que aqui<br />

pressupomos, ou seja, a da correspondência entre a linguagem da <strong>verda<strong>de</strong></strong> e o ser, re-<br />

pousam, em s<strong>uma</strong>, as reflexões que iremos propor a propósito da relação entre <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

da <strong>ciência</strong> e <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong>.<br />

A interrogação fundamental que se nos apresenta é a seguinte: como conciliar a<br />

unida<strong>de</strong> da <strong>verda<strong>de</strong></strong> (sem a qual a realida<strong>de</strong> se nos apresentaria em estado caótico) e a<br />

pluralida<strong>de</strong> das <strong>linguagens</strong> ou das dicções do ser, imposta pela estrutura plural da nossa<br />

experiência da realida<strong>de</strong>?<br />

b) Unida<strong>de</strong> da <strong>verda<strong>de</strong></strong> e pluralida<strong>de</strong> das <strong>linguagens</strong><br />

Para cada um <strong>de</strong>sses termos do problema po<strong>de</strong>mos também distinguir três planos:<br />

- unida<strong>de</strong> da <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

- plano lógico - É o plano do uso correto dos critérios ou regras que tornam o dis-<br />

curso <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro do ponto <strong>de</strong> vista sobretudo da sua coerência (estrutura lógica) e da sua<br />

a<strong>de</strong>quação ao objeto do discurso (estrutura gnoseológica ou epistemológica). É também<br />

o plano no qual se situa a questão clássica da <strong>de</strong>finição da <strong>verda<strong>de</strong></strong> (genitivo objetivo)<br />

com o qual se ocupam as recentes teorias da <strong>verda<strong>de</strong></strong> (ver - plano antropológico - Nele<br />

se situa o problema da intenção da <strong>verda<strong>de</strong></strong> no sujeito e que assegura a sua unida<strong>de</strong> co-<br />

mo sujeito <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro. É objeto preferencial das fenomenologias da <strong>verda<strong>de</strong></strong> na filosofia<br />

recente. Sem essa intenção <strong>de</strong>saparecida, evi<strong>de</strong>ntemente, o problema da <strong>verda<strong>de</strong></strong> pois<br />

<strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser um problema <strong>para</strong>-nós. Tal foi, por exemplo, a pretensão da doutrina<br />

sofista do "tudo é <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro" (pant'alethê), examinada por Platão no diálogo Teeteto.


- plano ontológico - Qual a unida<strong>de</strong> do ser que se manifesta sob diversas formas<br />

no discurso e cuja <strong>verda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong>ve ser objeto da intenção última do sujeito? Essa a questão<br />

fundamental implicada no nosso tema <strong>de</strong> hoje sobre <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> e <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong>.<br />

A ela iremos respon<strong>de</strong>r com a doutrina da analogia da <strong>verda<strong>de</strong></strong>.<br />

- pluralida<strong>de</strong> das <strong>linguagens</strong> - A raiz <strong>de</strong>ssa pluralida<strong>de</strong> é, como dissemos, a es-<br />

trutura plural da nossa experiência, ou seja a diversida<strong>de</strong> dos caminhos do nosso acesso<br />

ao ser e, por conseguinte, a diversida<strong>de</strong> das formas com que o ser se manifesta a nós.<br />

Em razão da correlação fundamental linguagem-<strong>verda<strong>de</strong></strong>, a pluralida<strong>de</strong> das <strong>linguagens</strong><br />

acarreta <strong>uma</strong> pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, o que é evi<strong>de</strong>nte se com<strong>para</strong>rmos, p.<br />

ex., a <strong>verda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> um artigo do Símbolo dos Apóstolos e a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da solução <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

equação matemática. A pluralida<strong>de</strong> das <strong>linguagens</strong> apresenta-se também sob três aspec-<br />

tos ou em três planos, correspon<strong>de</strong>ndo aos planos da unida<strong>de</strong> da <strong>verda<strong>de</strong></strong> pois, em qual-<br />

quer hipótese, a essa pluralida<strong>de</strong> subjaz <strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> fundamental, <strong>de</strong> natureza analógi-<br />

ca.<br />

- plano lógica - Nele situamos a pluralida<strong>de</strong> das estruturas sintáticas e semânticas<br />

da linguagem, como também das suas estruturas pragmáticas. O fato <strong>de</strong>ssa pluralida<strong>de</strong><br />

explica a existência <strong>de</strong> diversas lógicas com seus respectivos usos, e assim po<strong>de</strong>mos<br />

falar, p. ex., <strong>de</strong> <strong>uma</strong> lógica da <strong>fé</strong> e <strong>de</strong> <strong>uma</strong> lógica da <strong>ciência</strong>, que não po<strong>de</strong>m ser confun-<br />

didas.<br />

- plano antropológico - Nele tem lugar a pluralida<strong>de</strong> dos usos da linguagem, sen-<br />

do que o uso está intimamente ligado ao sentido objetivo da linguagem <strong>para</strong> o sujeito.<br />

Trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> questão hoje muito discutida, <strong>de</strong>pois do aparecimento dos textos cor-<br />

respon<strong>de</strong>ntes à última fase do pensamento <strong>de</strong> L. Wittgentein.<br />

- plano ontológico - Nele coloca-se o difícil e <strong>de</strong>cisivo problema da manifestação<br />

do ser na pluralida<strong>de</strong> das <strong>linguagens</strong>, ou seja da refração do ser na pluralida<strong>de</strong> das for-<br />

mas da nossa experiência, sua expressão na pluralida<strong>de</strong> das <strong>linguagens</strong> e sua referência,<br />

nas doutrinas realistas, a <strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal objetiva (ou seja que atinge todas<br />

as formas <strong>de</strong> manifestação do ser e respectivas <strong>linguagens</strong>) ou, nas doutrinas i<strong>de</strong>alistas,<br />

a <strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal subjetiva, que unifica no próprio sujeito, as diversas for-<br />

mas <strong>de</strong> manifestação do ser. Reencontramos aqui, em versão realista ou i<strong>de</strong>alista, o pro-<br />

blema central da analogia da <strong>verda<strong>de</strong></strong>.]


- Fenomenologia da <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

- Digamos ainda <strong>uma</strong> palavra, ao fim <strong>de</strong>ssa Introdução, sobre a abordagem feno-<br />

menológica do problema da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, que ocupa <strong>uma</strong> parte notável da literatura filosófi-<br />

ca contemporânea (p. ex., K. Jaspers, E. Husserl, M. Hei<strong>de</strong>gger, G. Marcel, H. G. Ga-<br />

damer, P. Ricoeur e outros). A análise fenomenológica tem por objetivo, fundamental-<br />

mente, o evento h<strong>uma</strong>no da <strong>verda<strong>de</strong></strong>: sua manifestação na nossa vida, suas exigências,<br />

sua incidência no nosso ser e no nosso pensar e agir. Como exemplo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> brilhante<br />

análise fenomenológica do fenômeno <strong>verda<strong>de</strong></strong>, indicamos a obra <strong>de</strong> um dos mais notá-<br />

veis teólogos do nosso tempo, que era também filósofo, Hans Urs von Balthasar. Essa<br />

escolha tem ainda como justificação o fato <strong>de</strong> que a reflexão sobre a <strong>verda<strong>de</strong></strong> é inserida<br />

por Balthasar no contexto <strong>de</strong> <strong>uma</strong> monumental síntese teológica, apresentada n<strong>uma</strong> tri-<br />

logia que compreen<strong>de</strong> 1. A estética teológica (Herrluchkeit); 2. A dramática teológica<br />

(Theodramatik); e, 3. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> teológica (Theologik). Essa última parte da trilogia<br />

inicia-se justamente com <strong>uma</strong> fenomenologia do evento <strong>verda<strong>de</strong></strong>, à qual Balthasar <strong>de</strong>u o<br />

título "Verda<strong>de</strong> d mundo" (Wahrheit <strong>de</strong>r Welt, Einsie<strong>de</strong>ln, Johannes Verlag, 1985; tr. fr.<br />

La Théologique I: Vérrité du mon<strong>de</strong>, Namur, Culture et Vérité, 1994). Publicado origi-<br />

nalmente em 1945 com o simples título Wahrheit, (tr. fr. em 1947 com o título Phéno-<br />

mémologie <strong>de</strong> la vérité), foi, <strong>de</strong>vidamente revisto e aumentado, inserido como 1º volu-<br />

me da terceira parte da Trilogia teológica. Trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> obra predominantemente<br />

filosófica mas intrinsecamente or<strong>de</strong>nada ao discurso teológico, e extraordinariamente<br />

rica em análises e reflexões sobre o evento h<strong>uma</strong>no da <strong>verda<strong>de</strong></strong> e sua abertura à Verda<strong>de</strong><br />

primordial <strong>de</strong> Deus. Balthasar divi<strong>de</strong> sua obra em quatro partes, que vamos aqui apenas<br />

enumerar:<br />

1. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> como natureza - A estrutura relacional da <strong>verda<strong>de</strong></strong> en-<br />

tre o sujeito e o objeto.<br />

2. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> como liberda<strong>de</strong> - A <strong>verda<strong>de</strong></strong> como encontro entre obje-<br />

to e sujeito, na riqueza inesgotável <strong>de</strong> um e na liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acolhida <strong>de</strong> outro.<br />

3. A Verda<strong>de</strong> como mistério - A <strong>verda<strong>de</strong></strong> como evento <strong>de</strong> misteriosa<br />

profundida<strong>de</strong> entre o mundo das imagens e da linguagem e a situação do sujeito,<br />

originando <strong>uma</strong> dialética <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelamento e ocultação, e <strong>uma</strong> epifania do Ver-<br />

da<strong>de</strong>iro como Bom e Belo.


4. Verda<strong>de</strong> como participação - O evento h<strong>uma</strong>no da <strong>verda<strong>de</strong></strong> como<br />

abertura e participação em face da Verda<strong>de</strong> infinita e envolvente <strong>de</strong> Deus,m le-<br />

vando o indivíduo h<strong>uma</strong>no a <strong>de</strong>scobrir no ato da inteligência <strong>uma</strong> confissão (e<br />

<strong>uma</strong> oração).<br />

Essa Introdução nos mostra, embora <strong>de</strong> modo muito resumido, o amplo campo a-<br />

berto diante <strong>de</strong> nós, quando nos dispomos a refletir sobre esse aparentemente simples<br />

evento na nossa vida que é o <strong>de</strong>scobridor a <strong>verda<strong>de</strong></strong> (inteligência) e dizer a <strong>verda<strong>de</strong></strong> (li-<br />

berda<strong>de</strong>), mostrando-o como sendo constitutivamente um evento existencial, intelectual<br />

e moral.<br />

PRIMEIRA PARTE - Camponeses estruturais do conceito <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

Nessa 1ª parte vamos fazer <strong>uma</strong> breve exposição da estrutura do fenômeno verda-<br />

<strong>de</strong>, fixando-nos nas suas componentes fundamentais que são a <strong>verda<strong>de</strong></strong> do objeto ou do<br />

ser, e a <strong>verda<strong>de</strong></strong> do sujeito. Essa distinção é <strong>uma</strong> distinção inicial <strong>para</strong>-nós, pois veremos<br />

que em-si, <strong>verda<strong>de</strong></strong> do objeto e <strong>verda<strong>de</strong></strong> do sujeito <strong>de</strong>vem coincidir n<strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

absoluta no sujeito infinito que é Deus. Observe-se que, <strong>para</strong> falar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> do<br />

ser h<strong>uma</strong>no <strong>de</strong> pressupor que o ser seja essencialmente manifestação, e que o lugar ori-<br />

ginal <strong>de</strong>ssa manifestação seja a nossa palavra ou discurso, em s<strong>uma</strong>, a nossa linguagem<br />

(logos). Por isso falamos da <strong>verda<strong>de</strong></strong> do seu como <strong>verda<strong>de</strong></strong> anto-lógica. E a <strong>verda<strong>de</strong></strong> do<br />

sujeito será <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> lógica, ou seja, será o logos do sujeito como <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro, ou<br />

como lugar da manifestação da <strong>verda<strong>de</strong></strong> do ser. Fique aqui apenas assinalada a impor-<br />

tância filosófica do conceito <strong>de</strong> manifestação, já ressaltado por Platão ao escolher o ter-<br />

mo idéia <strong>para</strong> <strong>de</strong>signar o ser na sua <strong>verda<strong>de</strong></strong> primordial.<br />

1. Estrutura ontológica do conceito <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

Trata-se, pois, <strong>de</strong>sse aspecto do evento <strong>verda<strong>de</strong></strong> que é a manifestação do ser, e que<br />

<strong>de</strong>vemos ver sugerido pelo tempo grego <strong>de</strong> "<strong>verda<strong>de</strong></strong>" (alétheia: <strong>de</strong>svalamento, manifes-<br />

tação). Um simples exame semântico do termo "manifestação" nos mostra que se trata<br />

<strong>de</strong> um termo relativo: manifestação a... ou manifestação <strong>para</strong>... e que, originalmente, a<br />

manifestação é <strong>uma</strong> manifestação <strong>para</strong>-nós. Mas <strong>uma</strong> reflexão metafísica mais profun-<br />

da, que aqui não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>senvolver, nos mostra que a manifestação relativa pressu-<br />

põe que o ser seja, radicalmente, auto-manifestação, ou se manifeste absolutamente a si


mesmo. (Analogicamente, o conhecimento do outro - do objeto - implica em nós o co-<br />

nhecimento <strong>de</strong> nós mesmos). Ao ser que se auto-manifesta a tradição filosófica iniciada<br />

por Platão <strong>de</strong>u o nome a idéia, ao qual se acrescentou o <strong>de</strong> espírito (Geist, mind; ver H.<br />

C. Lima Vaz, Antropologia Filosófica I, 3ª ed., São Paulo, <strong>Loyola</strong>, 1994, pp. 208-225),<br />

finalmente i<strong>de</strong>ntificados a partir do Médio Platonismo (I séc., P. C.). A <strong>verda<strong>de</strong></strong> das coi-<br />

sas pressupõe, assim a <strong>verda<strong>de</strong></strong> do espírito. Ao <strong>de</strong>finir a essência do ser como manifes-<br />

tação po<strong>de</strong>mos, pois, distinguir:<br />

- auto-manifestação: espírito<br />

- hetero-manifestação: mundo<br />

Por sua vez a auto-manifestação po<strong>de</strong> ser ou absoluta, no Espírito infinito, ou rela-<br />

tiva no espírito finito como o nosso.<br />

A possibilida<strong>de</strong> do evento <strong>verda<strong>de</strong></strong> repousa, pois, sobre essa equação metafísica<br />

Ser = Manifestação, que é a mesma coisa que Ser = Verda<strong>de</strong>. Se agora <strong>de</strong>rmos um rápi-<br />

do olhar à história das concepções da <strong>verda<strong>de</strong></strong> na filosofia oci<strong>de</strong>ntal, do ponto <strong>de</strong> vista<br />

da sua estrutura ontológica, po<strong>de</strong>mos distinguir quatro gran<strong>de</strong>s versões:<br />

a) concepção eleático-platônica ou concepção transcen<strong>de</strong>ntal-objetiva - Aposenta-<br />

se seja como afirmação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta entre o ser (on) e a <strong>verda<strong>de</strong></strong> (alétheia): é<br />

a concepção eleática, criticada por Platão no diálogo Sofista; seja como afirmação da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> na diferença (i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dialética) entre o ser (on) e as formas (logoi) da sua<br />

manifestação. É a concepção platônica. Essas formas são os chamados "gêneros supre-<br />

mos" (mégistha gene), que Platão enumera sobretudo nos diálogos Banquete, Repúbli-<br />

ca, Sofista e Filebo e nas suas "doutrinas não-escritas". É <strong>de</strong>nominada concepção trans-<br />

cen<strong>de</strong>ntal porque esses gêneros supremos transcen<strong>de</strong>m toda realida<strong>de</strong> limitada. Dessa<br />

concepção resultou historicamente a doutrina das chamadas "noções transcen<strong>de</strong>ntais:<br />

que são entre si logicamente conversíveis (ser=uno=<strong>verda<strong>de</strong></strong>iro-bom=belo) e constituem<br />

o arcabouço conceptual fundamental da metafísica clássica.<br />

b) concepção aristotélica ou concepção categorial - Mantendo a equação funda-<br />

mental ser-<strong>verda<strong>de</strong></strong> Aristóteles, no entanto, introduz <strong>uma</strong> polissemia original na noção<br />

do ser (O ser se diz <strong>de</strong> muitas maneiras), <strong>de</strong> modo a pensar essa noção segundo <strong>uma</strong><br />

estrutura analógica ou estrutura plurium ad anum (pros em ou focal meaning segundo a


expressão <strong>de</strong> G. E. L. Owen), o que implica a divisão do ser em categorias (formas uni-<br />

versais últimas <strong>de</strong> predicação), que todas se referem a <strong>uma</strong> categoria fundante (a ousia<br />

ou substância) que é primeiramente e por si mesma ser. A <strong>verda<strong>de</strong></strong>, sendo atributo do<br />

ser, obe<strong>de</strong>ce igualmente a essa estrutura categorial e à sua or<strong>de</strong>nação à categoria <strong>de</strong><br />

substância. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> primeira é a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da substância.<br />

c) Concepção tomásica ou transcen<strong>de</strong>ntal-categorial. A concepção <strong>de</strong> Sto. Tomás<br />

<strong>de</strong> Aquino é <strong>uma</strong> síntese do platonismo e do aristotelismo, tornada possível pela revela-<br />

ção bíblico-cristã <strong>de</strong> Deus como Existente absoluto (Eu sou o que sou, Gn. 3, 14) <strong>de</strong><br />

sorte que a estrutura categorial do ser e da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, própria do ser finito, refere-se (atri-<br />

buição analógica) à estrutura transcen<strong>de</strong>ntal que é, por essência, a estrutura do Existente<br />

absoluto e infinito e, por participação, dos existentes relativos e finitos. Sto. Tomás nos<br />

<strong>de</strong>ixou, num texto clássico, <strong>uma</strong> síntese magistral, dialeticamente construída, da doutri-<br />

na dos transcen<strong>de</strong>ntais (De Veritate, q. I, a. 1). A importância da concepção tomásica<br />

po<strong>de</strong> ser, talvez, avaliada no artigo "Tomás <strong>de</strong> Aquino: pensar a Metafísica na aurora <strong>de</strong><br />

um novo século" Síntese, 73 (1996): 159-207.<br />

d) Concepção mo<strong>de</strong>rna ou transcen<strong>de</strong>ntal-subjetiva - Convém observar que subje-<br />

tivo aqui não se enten<strong>de</strong> num sentido psicológico mas, justamente, transcen<strong>de</strong>ntal (ter-<br />

mo introduzido nesse contexto por Kant), ou seja no qual a inteligibilida<strong>de</strong> primeira do<br />

ser tem seu fundamento e seu princípio no sujeito, que reivindica <strong>para</strong> si a prerrogativa<br />

<strong>de</strong> lugar originário da <strong>verda<strong>de</strong></strong>. As concepções mo<strong>de</strong>rnas da <strong>verda<strong>de</strong></strong> (i<strong>de</strong>alista, empiris-<br />

ta, pragmática, lógico-analítica) pressupõem, em s<strong>uma</strong>, essa imanentização do ser no<br />

sujeito, que é o traço distintivo da filosofia mo<strong>de</strong>rna e das i<strong>de</strong>ologias nascidas sob sua<br />

inspiração.<br />

A estrutura ontológica do conceito <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> refere-se, portanto, ao teor da ver-<br />

da<strong>de</strong> em si, enquanto exprime a manifestação do ser. Po<strong>de</strong>mos estabelecer as segui8ntes<br />

equivalências metafísicas:<br />

sui)<br />

- o ser é manifestativo <strong>de</strong> si mesmo ® <strong>verda<strong>de</strong></strong> (ens ut verum est manifestativum<br />

- o ser é difusivo <strong>de</strong> si mesmo ® bonda<strong>de</strong> (ens ut bonum est diffusivum sui).<br />

2. Estrutura lógica do conceito <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>


Aqui faremos referência a dois tópicos clássicos no estudo do conceito <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>,<br />

que são a <strong>verda<strong>de</strong></strong> como medida e a fundamentação lógica da <strong>verda<strong>de</strong></strong>. A primeira ques-<br />

tão é característica da concepção da <strong>verda<strong>de</strong></strong> na filosofia antiga, a segunda é típica da<br />

filosofia mo<strong>de</strong>rna.<br />

a) a <strong>verda<strong>de</strong></strong> como medida (metron)<br />

- Enquanto se manifesta ao sujeito e é acolhido no logos do sujeito, o ser torna-se<br />

a medida objetiva do logos e, como tal, é capaz <strong>de</strong> ser expresso pelo logos que passa,<br />

por sua vez, a <strong>de</strong>terminar o modo <strong>de</strong> manifestação do ser. O logos é pensamento e lin-<br />

guagem e, dos muitos modos <strong>de</strong> acolhimento do ser no logos, resulta a pluralida<strong>de</strong> das<br />

formas <strong>de</strong> expressão da <strong>verda<strong>de</strong></strong> no pensamento e na linguagem. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> como medi-<br />

da é, pois, a <strong>verda<strong>de</strong></strong> <strong>para</strong>-nós, que somos sujeitos finitos e temos como horizonte trans-<br />

cen<strong>de</strong>ntal do nosso pensamento e da nossa linguagem o horizonte do ser na sua <strong>verda<strong>de</strong></strong>.<br />

Nessa sua primeira manifestação, ou seja como medida relativa a um sujeito finito, a<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong> apresenta <strong>uma</strong> dupla face:<br />

- o lado da normativida<strong>de</strong> do objeto ou do ser, enquanto medida objetiva do nosso<br />

conhecer. Esse aspecto está implicado na <strong>de</strong>finição clássica do conhecimento: "conhecer<br />

é tornar-se o outro enquanto outro" (cognoscere est fieri aliud inquantum aliud).<br />

- o lado da reciprocida<strong>de</strong> do sujeito que, na sua finitu<strong>de</strong>, acolhe o ser sob formas e<br />

modos diversos, dando origem a níveis do conhecimento (sensível e intelectual) e a <strong>uma</strong><br />

pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas entre as quais Aristóteles <strong>de</strong>tectou três fundamentais: teórico,<br />

prático e poético. A elas correspon<strong>de</strong>m formas diversas <strong>de</strong> pensar e dizer o ser, ou seja,<br />

formas diversas <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e <strong>de</strong> linguagem. A auto-diferenciação do logos é um proces-<br />

so fundamental da nossa ativida<strong>de</strong> cognoscitiva. O aspecto da receptivida<strong>de</strong> é expresso<br />

no axioma clássico: "O conhecido está no cognoscente segundo o modo do cognoscen-<br />

te" (cognitum est in cognoscente secundum modum cognoscentis).<br />

Se o ser é <strong>uma</strong> medida relativa <strong>para</strong> nós como sujeitos finitos, colocou-se já nos<br />

inícios da história da filosofia o problema da medida absoluta pois, caso contrário, a<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong> ficaria irremediavelmente relativizada e suas formas passariam a constituir <strong>uma</strong><br />

pluralida<strong>de</strong> irredutível a qualquer unida<strong>de</strong>, a não ser nominal. O problema da medida<br />

absoluta aponta finalmente <strong>para</strong> a posição da <strong>verda<strong>de</strong></strong> como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> absoluta do ser e


do conhecer no sujeito infinito. Encontramos três soluções propostas <strong>para</strong> esse problema<br />

na história da filosofia, <strong>para</strong> as quais aqui apenas acenamos:<br />

1. - objetivismo platônicos das Idéias; a teoria platônica das Idéias<br />

respon<strong>de</strong> a esse problema com a posição do inteligível puro como medida abso-<br />

luta da <strong>verda<strong>de</strong></strong> (Idéia = Verda<strong>de</strong>) que é traduzida na forma mais alta do discurso<br />

h<strong>uma</strong>no: a filosofia ou dialética na terminologia platônica (ver sobretudo o diá-<br />

logo Teeteto).<br />

2. - exemplarismo neo-platônico e cristão - Resulta da síntese entre<br />

os dois conceitos já presentes em Platão e Aristóteles e na tradição platônico-<br />

aristotélica; a inteligência (nous) faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> contemplação das Idéias, e as I-<br />

déias mesmas. Intervem aqui <strong>de</strong>cisivamente o conceito <strong>de</strong> Espírito (Nous) que<br />

contem em si as Idéias como pensadas por ele e que são os arquétipos ou exem-<br />

plares últimos <strong>de</strong> todas as coisas. Essa doutrina já se encontra no chamado Pla-<br />

tonismo médio (I e II séc. PC) é <strong>de</strong>senvolvida no neo-platonismo (III-VI séc.) e<br />

é recebida pela teologia cristã,m adquirindo sua forma clássica em Santo Agos-<br />

tinho e na teologia medieval (ver Santo Tomás <strong>de</strong> Aquino, S<strong>uma</strong> Teológica, Iª.<br />

p., q. 15; Summa contra Gentiles, lib. I, cc. 49-54).<br />

3. - tranacen<strong>de</strong>ntalismo mo<strong>de</strong>rno, no qual a doutrina platônica das<br />

Idéias e o exemplarismo platônico-cristão são, sob várias formas, transpostos pa-<br />

ra o sujeito finito sob o modo transcen<strong>de</strong>ntal que, <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> maneira, o infiniti-<br />

za na sua imanência. As diversas formas <strong>de</strong> relativismo da <strong>verda<strong>de</strong></strong> como empi-<br />

rismo, o historicismo, o culturalismo, o positivismo, o pragmatismo e outras, en-<br />

contram <strong>uma</strong> raiz comum na convicção da ilegitimida<strong>de</strong> lógica da passagem da<br />

medida relativa à medida absoluta no conhecimento da <strong>verda<strong>de</strong></strong>.<br />

b) A fundamentação lógica da <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

Esse problema não se colocava na filosofia antiga, <strong>uma</strong> vez que a correlação<br />

ser=<strong>verda<strong>de</strong></strong> e a abertura da inteligência ao ser eram pressupostos universalmente admi-<br />

tidos, com a exceção notável do Ceticismo. Daqui <strong>de</strong>corre a <strong>de</strong>finição ou, mais exata-<br />

mente, a simples enunciação da <strong>verda<strong>de</strong></strong> como "o que é": verum est quod est, sendo "o<br />

que é" i<strong>de</strong>ntificado, pela tradição platônica, com as Idéias. À hierarquia do ser corres-<br />

pondia a hierarquia da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, coroada pela Verda<strong>de</strong> suprema (exemplo clássico a pro-<br />

va da existência <strong>de</strong> Deus pela presença da <strong>verda<strong>de</strong></strong> em nosso mente, segundo Sto. Agos-


tinho). O problema mo<strong>de</strong>rno da fundamentação lógica da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, conhecido como teo-<br />

ria da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, surge num espaço teórico pós-metafísico, e proce<strong>de</strong> da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

justificar logicamente a atribuição da <strong>verda<strong>de</strong></strong> a um pensamento finito e originalmente<br />

encerrado na sua imanência. A posição <strong>de</strong>sse problema contém um <strong>para</strong>doxo que é o <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>finir o "mesmo" pelo "mesmo" (i<strong>de</strong>m per i<strong>de</strong>m) ou o <strong>de</strong>finiendum pelo próprio <strong>de</strong>fini-<br />

endum (a <strong>verda<strong>de</strong></strong> pela <strong>verda<strong>de</strong></strong>), <strong>para</strong>doxo resolvido classicamente pela distinção entre<br />

linguagem-objeto (a <strong>verda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong>finienda) e a meta-linguagem (a <strong>verda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong>finiens). No<br />

seu livro Wahrheitstheorien in <strong>de</strong>r neuerem Philosophie, Darmstadt, Wissenschaftliche<br />

Buchgesellschaft, 1978) L. B. Puntel distingue as diversas teorias da <strong>verda<strong>de</strong></strong> correntes<br />

na literatura filosófica contemporânea (com exceção das teorias fenomenológicas, às<br />

quais já nos referimos). São elas:<br />

- teoria da correspondência, nas quais se incluem a <strong>de</strong>finição clássica, atribuída na<br />

I. M. a Isaac Israeli (Veritas est a<strong>de</strong>quatio intellectus et rei ou ad rem); a teoria materia-<br />

lista do reflexo, e a teoria lógico-empírica da imagem.<br />

- teoria semântica da <strong>verda<strong>de</strong></strong> ilustrada sobretudo pelo lógico polonês A. Tarski.<br />

- teoria lingüístico-analítica, <strong>de</strong>senvolvida pela filosofia analítica anglo-saxônica<br />

(Ramsey, A. J. Ayer, Strawson e outros).<br />

- teoria inter-subjetiva da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, originada no pragmatismo <strong>de</strong> Chj. S. Peirce e<br />

<strong>de</strong>senvolvida por J. Habermas, com <strong>uma</strong> versão dialógica pela chamada "escola <strong>de</strong> Er-<br />

langen" (P. Lorenzen).<br />

- teoria da <strong>verda<strong>de</strong></strong> como coerência - proposta, entre outros, pelo filósofo e lógico<br />

americano N. Rescher. O próprio L. Puntel aperfeiçoou essa teoria no seu recente livro<br />

Grundlagen einer Theorie <strong>de</strong>r Wahrheit, Berlim, W. <strong>de</strong> Gruyter, 1990.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista antropológico po<strong>de</strong>ríamos falar igualmente <strong>de</strong> <strong>uma</strong> experiência<br />

poética da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, sobre a qual ver Antropologia Filosófica, II (2ª ed.), São Paulo, Lo-<br />

yola, 1995, pp. 102-105.


SEGUNDA PARTE - Verda<strong>de</strong> e linguagem na <strong>ciência</strong> e na <strong>fé</strong><br />

Trata-se agora <strong>de</strong> estudar, levando-se em conta o que foi dito na 1ª parte, <strong>duas</strong><br />

formas fundamentais <strong>de</strong> acesso a <strong>verda<strong>de</strong></strong> e <strong>de</strong> respectiva linguagem, presentes na nossa<br />

cultura e nas nossas convicções, mas muitas vezes em <strong>de</strong>sconhecimento mútuo ou em<br />

conflito: a <strong>ciência</strong> e a <strong>fé</strong>. Passamos, pois, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> metafísica e lógica da <strong>verda<strong>de</strong></strong> (1ª par-<br />

te) <strong>para</strong> <strong>uma</strong> antropologia da <strong>verda<strong>de</strong></strong>, entendida porém, ao menos primariamente, não<br />

conto atributo ou forma da existência h<strong>uma</strong>na (ver supra, Fenomenologia da <strong>verda<strong>de</strong></strong>),<br />

mas como atributo ou forma do conhecimento h<strong>uma</strong>no e, portanto, na sua dimensão<br />

epistemológica. O que preten<strong>de</strong>mos portanto mostrar é como a <strong>verda<strong>de</strong></strong>, em razão, fi-<br />

nalmente da sua unida<strong>de</strong> analógica, como iremos ver, diferencia-se nessas <strong>duas</strong> formas<br />

fundamentais que são a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> e a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong>, com suas respectivas lin-<br />

guagens.<br />

1. Verda<strong>de</strong> e linguagem da <strong>ciência</strong><br />

a. O termo <strong>ciência</strong> (episthéme em grego) recebe inicialmente <strong>uma</strong> acepção muito<br />

ampla, incluindo todo saber <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro e capaz <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>monstrado como tal. Na termi-<br />

nologia clássica não há distinção entre <strong>ciência</strong> e filosofia que, entre os Gregos, é emi-<br />

nentemente <strong>uma</strong> teologia, nem posteriormente entre teologia cristã e <strong>ciência</strong>. O proble-<br />

ma mo<strong>de</strong>rno entre <strong>ciência</strong> e <strong>fé</strong> e a sua conceptualização teológica, começam a <strong>de</strong>linear-<br />

se a partir do século XIII com a chamada teoria averroista das "<strong>duas</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>s" recebia<br />

por alguns Mestres <strong>de</strong> Artes (filósofos) das Universida<strong>de</strong>s medievais, no chamado aver-<br />

roismo latino. Mas é só a partir do século XVII, com o advento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nova forma <strong>de</strong><br />

<strong>ciência</strong> da Natureza, por obra <strong>de</strong> Galileu e <strong>de</strong> seus continuadores, que se configura <strong>de</strong>fi-<br />

nitivamente o problema mo<strong>de</strong>rno da relação entre <strong>ciência</strong> e <strong>fé</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início consagra-<br />

do emblematicamente no chamado "caso Galileu". Nessa 2ª parte vamos tratar, portanto,<br />

da <strong>ciência</strong> no sentido mo<strong>de</strong>rno, pós-galileiano do termo, pois é a respeito <strong>de</strong>la que se<br />

coloca hoje o problema da <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem da <strong>ciência</strong> confrontadas com a <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

e linguagem da <strong>fé</strong>.<br />

b. A <strong>ciência</strong> mo<strong>de</strong>rna se divi<strong>de</strong> em dois gran<strong>de</strong>s ramos, com suas numerosas rami-<br />

ficações secundárias: <strong>ciência</strong>s empírico-formais e <strong>ciência</strong> hermenêuticas. Essa termino-<br />

logia foi proposta por Jean ladrère e caracteriza bem os dois tipos <strong>de</strong> <strong>ciência</strong> (ver J.<br />

Ladrière, L'articulation du sens: discours scientifique et parole <strong>de</strong> la foi, Paris, Cerf,


1984, v. 1, pp. 25-50). Num sentido amplo as <strong>ciência</strong>s empírico-formais são <strong>ciência</strong>s da<br />

natureza, as <strong>ciência</strong>s hermenêuticas são <strong>ciência</strong>s do homem, enquanto, pela cultura, so-<br />

brepõe-se à natureza. Não é <strong>uma</strong> distinção rígida porque, entre a natureza e o homem,<br />

mesmo como ser cultural, <strong>de</strong>scobre-se <strong>uma</strong> continuida<strong>de</strong> profunda. Mas é <strong>uma</strong> distinção<br />

que se justifica tanto epistemologicamente quanto didaticamente.<br />

Na nossa exposição vamos tratar apenas das <strong>ciência</strong>s empírico-formais. Essa esco-<br />

lha tem sua razão <strong>de</strong> ser antes <strong>de</strong> tudo no fato <strong>de</strong> que as <strong>ciência</strong>s empírico-formais foram<br />

as primeiras historicamente a se constituir como <strong>ciência</strong>s no sentido mo<strong>de</strong>rno. Em se-<br />

gundo lugar porque elas permanecem, <strong>de</strong> certa maneira, como o arquétipo do saber ci-<br />

entífico e exercem <strong>uma</strong> po<strong>de</strong>rosa atração sobre as <strong>ciência</strong>s hermenêuticas. Em terceiro<br />

lugar porque <strong>para</strong> tratar do tema "<strong>ciência</strong> h<strong>uma</strong>nas e <strong>fé</strong>" seria necessário, provavelmen-<br />

te, outra palestra. O aspecto que nos interessa nas <strong>ciência</strong>s empírico-formais não é, evi-<br />

<strong>de</strong>ntemente, o seu conteúdo mas a sua estrutura ou, em última análise, a forma <strong>de</strong> ver-<br />

da<strong>de</strong> que elas visam enunciar e a linguagem que empregam <strong>para</strong> essa enunciação.<br />

Como a própria <strong>de</strong>signação sugere, a estrutura básica das <strong>ciência</strong>s empírico-<br />

formais consta <strong>de</strong> dois componentes:<br />

- o campo empírico on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>tectam, por procedimentos a<strong>de</strong>quados <strong>de</strong> observa-<br />

ção e experimentação, os fatos científicos a serem integrados no corpo teórico da ciên-<br />

cia.<br />

- a linguagem formal na qual se exprimirão os fatos e que será <strong>uma</strong> linguagem ló-<br />

gico-matemática.<br />

Observamos que todo conhecimento h<strong>uma</strong>no é, <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> maneira, a expressão <strong>de</strong> um<br />

dado empírico n<strong>uma</strong> forma <strong>de</strong> pensamento e linguagem. O que justifica o qualificativo<br />

"empírico-formal" <strong>para</strong> a mo<strong>de</strong>rna <strong>ciência</strong> da natureza são o tipo <strong>de</strong> observação a que a<br />

natureza é submetida e as peculiarida<strong>de</strong>s da forma lógico-matemática da sua linguagem.<br />

Examinemos, pois, os componentes estruturais da <strong>ciência</strong> empírico-formal:<br />

- o campo empírico da <strong>ciência</strong> - Compreen<strong>de</strong> o domínio da natureza no sentido<br />

mo<strong>de</strong>rno do termo. Convém, com efeito, distinguir entre a noção <strong>de</strong> "natureza" empre-<br />

gado na linguagem ordinária, o conceito <strong>de</strong> "natureza" (physis) da filosofia antiga, que<br />

;é propriamente um conceito filosófico, e o conceito <strong>de</strong> "natureza" próprio da <strong>ciência</strong>


mo<strong>de</strong>rna, que é um conceito empírico, <strong>de</strong> natureza operatória. Ele é caracterizado pelos<br />

procedimentos gnoseológicos dos quais resulta o conjunto <strong>de</strong> fenômenos (conjunto a-<br />

berto) unidos por <strong>uma</strong> forma <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong> universal no espaço e no tempo, segundo a<br />

<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Kant (KRV, B, 165; ver B, 263 e 479). O campo empírico das <strong>ciência</strong>s<br />

empírico-formais é, pois, o campo da natureza assim <strong>de</strong>finida, sendo que os fenômenos<br />

nele presentes obe<strong>de</strong>cem às seguintes condições:<br />

- ser observável segundo um processo metódico <strong>de</strong> experimentação conduzido<br />

mediante instrumentos, segundo regras, submetido a controle, e cujo resultado é codifi-<br />

cado em linguagem própria.<br />

- ser matematizável - ou seja, a linguagem formal <strong>de</strong> expressão dos fenômenos é,<br />

finalmente, <strong>de</strong> natureza matemática, formulada através <strong>de</strong> medidas, <strong>de</strong> modo que a lin-<br />

guagem dos fenômenos na <strong>ciência</strong> empírico-formal inclui um nível <strong>de</strong>scritivo e um ní-<br />

vel propriamente formal <strong>de</strong> natureza lógico-matemática.<br />

- estrutura formal da <strong>ciência</strong> - a estrutura formal ou o arcabouço lógico da <strong>ciência</strong><br />

apresenta, pois, <strong>duas</strong> características fundamentais:<br />

- sendo <strong>uma</strong> lógica matemática é essencialmente operatória, nela verificando-se <strong>de</strong><br />

modo privilegiado o caráter operatório do campo formal em geral, enquanto campo<br />

simbólico (ver Ladrière, op. cit., pp. 51-71).<br />

- por outro lado, correspon<strong>de</strong>ndo ao aspecto <strong>de</strong>scritivo da experimentação, é i-<br />

gualmente <strong>uma</strong> lógica do discurso que, no caso, assume <strong>uma</strong> estrutura nomológico-<br />

<strong>de</strong>dutiva tendo como ingredientes, em nível <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong>, as teorias, as<br />

hipóteses, as leis e os conceitos.<br />

Entre a estrutura formal e o campo empírico estabelecem-se as regras <strong>de</strong> interpre-<br />

tação que permitem passar do formal ao empírico, e em cujo contexto epistemiológico<br />

se situa o problema do mo<strong>de</strong>lo intermediário entre o teórico e o empírico.<br />

O que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signar como objeto da <strong>ciência</strong> está, portanto, circunscrito por esse<br />

espaço epistemológico formado na articulação entre o formal e o empírico. A primazia<br />

dada a um ou a outro dá origem a filosofias da <strong>ciência</strong> diversas, <strong>de</strong> caráter i<strong>de</strong>alista ou<br />

empirista ou, em versão extrema, ao concencionalismo, <strong>de</strong>fendido no começo do século<br />

por dois gran<strong>de</strong>s físicos e historiadores da <strong>ciência</strong>, E. Mach e P. Duhen e pelo gran<strong>de</strong>


físico-matemático H. Poincaré. O objeto científico não seria, no caso, simplificando, é<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong>, senão a soma das convenções que permitem a experimentação e o cálculo.<br />

- A linguagem da <strong>ciência</strong> é, pois, <strong>uma</strong> linguagem artificial, que consta essencial-<br />

mente <strong>de</strong> <strong>uma</strong> parte <strong>de</strong>scritiva na qual os fatos científicos a serem explicados recebem<br />

os predicados observacionais resultantes da experimentação, e <strong>de</strong> <strong>uma</strong> parte teórica na<br />

qual se incluem o formalismo matemático, o sistema <strong>de</strong>dutivo e as regras <strong>de</strong> interpreta-<br />

ção que articulam a <strong>de</strong>scrição empírica ao sistema <strong>de</strong>dutivo. Desta sorte, o uso da lin-<br />

guagem científica (ou sua dimensão pragmática) é estritamente controlado e a significa-<br />

ção dos seus termos univocamente <strong>de</strong>terminada. Esse caráter <strong>de</strong> rigor da linguagem ci-<br />

entífica levou alguns cientistas e filósofos da <strong>ciência</strong> reunidos primeiramente no chama-<br />

do Wiener Kreis ou Círculo <strong>de</strong> Viena, posteriormente Escola <strong>de</strong> Chicago (com a transfe-<br />

rência <strong>para</strong> aquela Universida<strong>de</strong> dos seus principais representantes, que se aliaram ao<br />

chamado operacionalismo do físico americano Percy W. Bridgman) a consi<strong>de</strong>rá-la a<br />

única linguagem portadora <strong>de</strong> sentido (Sinn, meaning) objetivo nas suas proposições,<br />

sendo as outras <strong>linguagens</strong>, com a p. ex. a religiosa, expressões apenas <strong>de</strong> sentimentos<br />

subjetivos. No caso <strong>de</strong> se adotar essa posição haveria um abismo intransponível, em<br />

termos <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>, entre a linguagem da <strong>ciência</strong> e a linguagem da <strong>fé</strong>. Mas esse tipo <strong>de</strong><br />

reducionismo se mostrou, finalmente, injustificável. Des<strong>de</strong> já, no entanto, po<strong>de</strong>mos ver<br />

que a linguagem da <strong>ciência</strong> apresenta características que a tornam um mundo lingüístico<br />

específico ao qual correspon<strong>de</strong> <strong>uma</strong> forma também própria <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>.<br />

- A <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> - A <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> ou dos seus resultados teórico-<br />

experimentais resi<strong>de</strong> no seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> explicação do mundo real da nossa experiência e<br />

ao qual, na medida em que po<strong>de</strong> ser compreendido pela nossa <strong>ciência</strong>, abrangemos sob<br />

o nome e o conceito <strong>de</strong> natureza. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> é, pois, a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da explicação<br />

científica enquanto acesso à realida<strong>de</strong> da experiência que se apresenta a nós como inte-<br />

ligível. Essa inteligibilida<strong>de</strong> do real físico é um dado pressuposto pela <strong>ciência</strong> e que<br />

provocava a reflexão <strong>de</strong> A. Einstein, <strong>de</strong> que o admirável no mundo não é que exista mas<br />

que possa ser compreendido. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> científica apresenta, pois, as características da<br />

explicação científica e é estritamente correlata à estrutura da linguagem científica, que é<br />

a sua forma <strong>de</strong> expressão. Ora, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> explicação da <strong>ciência</strong> resi<strong>de</strong> essencialmente<br />

na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transpor <strong>para</strong> o mundo empírico a inteligibilida<strong>de</strong> dos sistemas for-<br />

mais ou <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar <strong>uma</strong> à outra, <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> maneira, a inteligibilida<strong>de</strong> do mundo e a


inteligibilida<strong>de</strong> lógico-matemática. O conceito <strong>de</strong> natureza, cientificamente consi<strong>de</strong>rado,<br />

resulta da a<strong>de</strong>quação <strong>de</strong>ssa <strong>duas</strong> or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> inteligibilida<strong>de</strong>. Essa a<strong>de</strong>quação torna-se<br />

possível, como vimos, através das regras <strong>de</strong> interpretação que permitem substituir fe-<br />

nômenos empíricos aos objetos abstratos das operações formais. O caso clássico, porque<br />

inaugura a <strong>ciência</strong> mo<strong>de</strong>rna, é o processo <strong>de</strong> formulação, por Galileu, da lei da queda<br />

dos corpos, expressa por um formalismo algébrico. Como o domínio formal é um domí-<br />

nio essencialmente operatório a explicação científica interpreta a natureza segundo um<br />

tipo <strong>de</strong> inteligibilida<strong>de</strong> operatória. Ora, a <strong>verda<strong>de</strong></strong> não é senão a enunciação da inteligi-<br />

bilida<strong>de</strong> do objeto. Portanto, a <strong>verda<strong>de</strong></strong> científica é também, essencialmente operatória,<br />

ou seja, ligada intrinsecamente às operações formais e empíricas que permitem exprimir<br />

o objeto atrav's <strong>de</strong> teorias, leis e conceitos empíricos-formais.<br />

Vê-se, pois, que a <strong>verda<strong>de</strong></strong> científica é <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> perfeitamente correlata à lin-<br />

guagem científica acima <strong>de</strong>scrita. É, por conseguinte, <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> h<strong>uma</strong>na, estrutural-<br />

mente a<strong>de</strong>quada ao modo <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r da nossa inteligência na sua tentativa <strong>de</strong> compre-<br />

en<strong>de</strong>r o mundo. Não teria sentido, evi<strong>de</strong>ntemente, dizer que Deus compreen<strong>de</strong> o mundo<br />

segundo o modo da <strong>ciência</strong> empírico-formal, das suas leis e teorias, ou dizer, como o<br />

filósofo i<strong>de</strong>alista Leon Brunschvicg, que o Deus <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro é o Deus das equações dife-<br />

renciais. Sendo Criador, ele compreen<strong>de</strong> o mundo no seu em-si numenal, como diria<br />

Kant, não relativamente ao próprio mundo mas absolutamente nos arquétipos do mundo<br />

na inteligência divina. A <strong>ciência</strong> h<strong>uma</strong>na é, <strong>para</strong> Deus, um modo <strong>de</strong> existir do homem<br />

no mundo, não <strong>uma</strong> compreensão do mundo. Isso não quer dizer que a <strong>verda<strong>de</strong></strong> científi-<br />

ca nada tenha a ver com o em-si ontológico do mundo. Sendo <strong>verda<strong>de</strong></strong>, ela tem um<br />

componente ontológico como toda <strong>verda<strong>de</strong></strong>, ou seja, ela é <strong>uma</strong> forma <strong>de</strong> manifestação<br />

do ser à inteligência. Não é <strong>uma</strong> simples convenção nem mesmo <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> apenas<br />

dos fenômenos, como queria Kant. Mas, avançar nessa dimensão ontológica da <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

científica nos levaria <strong>para</strong> longe do nosso tema presente. vamos apenas pressupô-la,<br />

<strong>para</strong> garantir o estatuto <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> ao conhecimento científico.<br />

Convém ainda incluir aqui <strong>uma</strong> referência ao problema da técnica na sua relação<br />

com o problema da <strong>verda<strong>de</strong></strong> na <strong>ciência</strong> empírico-formal. Justamente por seu caráter es-<br />

sencialmente operatório, a <strong>ciência</strong> empírico-formal mostrou-se como o mais po<strong>de</strong>roso<br />

instrumento <strong>de</strong> transformação da natureza e <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> objetos or<strong>de</strong>nados à utilida-<br />

<strong>de</strong> individual e social. Essa or<strong>de</strong>nação do saber ao fazer levou finalmente à conjugação


dos dois procedimentos na forma das <strong>ciência</strong>s da engenharia que dominam a nossa civi-<br />

lização tecnológica. Ora, a categoria <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> dificilmente po<strong>de</strong> ser aplicada à gratu-<br />

ida<strong>de</strong> do ato <strong>de</strong> <strong>fé</strong>, o que constitui <strong>uma</strong> fonte <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s <strong>para</strong> o exercício da vida <strong>de</strong><br />

<strong>fé</strong> num mundo dominado pela técnica. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> superar essa dificulda<strong>de</strong> leva, <strong>de</strong><br />

resto, a <strong>uma</strong> invasão do universo religioso cristão pelo conceito e critério do útil, con-<br />

forme a magistral análise <strong>de</strong> Alphonse Dupront num livro recentemente traduzido (A.<br />

Dupront, A Religião Católica: possibilida<strong>de</strong>s e perspectivas, São Paulo, <strong>Loyola</strong>, 1995,<br />

pp. 27-42).<br />

2. Verda<strong>de</strong> e linguagem da <strong>fé</strong><br />

a. A passagem do mundo da linguagem e da <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> <strong>para</strong> o mundo da<br />

linguagem e da <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> não se faz por nenhum processo lógico-conceptual ou por<br />

qualquer outra forma <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> que permita por simples adaptação <strong>de</strong> termos ou<br />

conceitos passar <strong>de</strong> um <strong>para</strong> outro. São dois mundos muito distantes no universo da nos-<br />

sa apreensão e compreensão do ser, e os sinais enviados <strong>de</strong> um <strong>para</strong> outro atestam ape-<br />

nas a sua existência sem que nos permitam, a partir <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les, atingir a natureza a<br />

estrutura do outro. Trata-se <strong>de</strong> um distanciamento objeto e <strong>para</strong> o qual teremos que bus-<br />

car a forma <strong>de</strong> unificação que nos permita falar <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro, pois ambos perten-<br />

cem, afinal, ao mesmo universo no qual se une a pluralida<strong>de</strong> das formas do nosso pen-<br />

samento e da nossa linguagem. Aqui não falamos do problema psicológico da coexis-<br />

tência, no mesmo indivíduo, do mundo da <strong>ciência</strong> e do mundo da <strong>fé</strong>, nem das estratégias<br />

psicológicas com que ele unifica, nas suas convicções e na sua vida, esses dois mundos.<br />

Nem do problema oposto, o das barreiras psicológicas que impe<strong>de</strong>m em muitos casos o<br />

acesso do cientista ao mundo da <strong>fé</strong>. Esses problemas tem interesse em si mesmos mas<br />

<strong>de</strong>vem ser tratados em perspectivas diferentes daquela em que aqui nos sistemas ao re-<br />

fletir sobre as relações objetivas entre o mundo da linguagem e <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> e o<br />

mundo da linguagem e <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> (Um conjunto extremamente sugestivo <strong>de</strong> teste-<br />

munho <strong>de</strong> cientistas sobre a sua relação pessoal com a <strong>fé</strong>, foi reunido recentemente por<br />

Jean Delumeau, no livro Lê Savant et la Foi: <strong>de</strong>s scientifiques s'expriment, Paris,<br />

Flammarion, 1989).<br />

Des<strong>de</strong> os inícios da formação da <strong>ciência</strong> mo<strong>de</strong>rna multiplicaram-se as tentativas <strong>de</strong><br />

constituição <strong>de</strong> um discurso apologético, ou <strong>de</strong> justificação das afirmativas da <strong>fé</strong> por<br />

meio <strong>de</strong> teorias e conclusões da <strong>ciência</strong>. Esse estilo <strong>de</strong> apologética atingiu seu clímax no


século passado no chamado "concordismo", sobretudo nas tentativas <strong>de</strong> confirmação<br />

das narrações bíblicas pela <strong>ciência</strong>. Mas o gênero subsiste ainda, embora <strong>de</strong> maneira<br />

mais cautelosa, particularmente no campo da física e da cosmologia, como testemunha o<br />

recente diálogo <strong>de</strong> Jean Guitton com dois físicos (J. Guitton, G. Bogdanov, I. Bogda-<br />

nov, Dieu et la science: vers le métaréalisme, Paris, Grasset, 1991). Ou mesmo, n<strong>uma</strong><br />

forma bem mais complexa e elaborada, na cosmovisão <strong>de</strong> Teilhard <strong>de</strong> Chardin. Também<br />

não tratamos aqui <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> relação entre <strong>fé</strong> e <strong>ciência</strong>.<br />

Outro problema que nos interessa mais diretamente é o problema da hermenêutica<br />

ou interpretação da linguagem original da <strong>fé</strong> como Palavra <strong>de</strong> Deus revelada, por meio<br />

<strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> outra forma <strong>de</strong> linguagem sobretudo da que permita a transposição da lin-<br />

guagem da revelação nas categorias e estruturas <strong>de</strong> um discurso articulado segundo a<br />

lógica <strong>de</strong> um saber <strong>de</strong>monstrativo ou <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>ciência</strong>. É esse o problema que está na<br />

origem da teologia, que é <strong>uma</strong> hermenêutica da linguagem da <strong>fé</strong> na forma <strong>de</strong> um certo<br />

tipo <strong>de</strong> saber da <strong>fé</strong> ou <strong>de</strong> <strong>uma</strong> lógica da <strong>fé</strong>. Ele já está presente nas teologias implícitas<br />

no texto bíblico, sobretudo no Novo Testamento. Mas torna-se explícito no momento<br />

em que um saber já constituído em <strong>ciência</strong> e plenamente <strong>de</strong>senvolvido como tal, ou seja,<br />

a filosofia grega, passa a exercer po<strong>de</strong>rosa atração sobre os apologistas e Padres da Igre-<br />

ja. Esse tipo <strong>de</strong> Saber não apenas se prestou a possibilitar <strong>uma</strong> hermenêutica bem suce-<br />

dida da linguagem da <strong>fé</strong> na teologia patrística e medieval, mas propiciou igualmente<br />

<strong>uma</strong> linguagem apta à expressão do conteúdo da <strong>fé</strong> nas <strong>de</strong>finições dogmáticas dos gran-<br />

<strong>de</strong>s Concílios dos séculos IV e V. Um problema análogo ao da utilização da filosofia<br />

grega <strong>para</strong> a hermenêutica da linguagem original da <strong>fé</strong> é proposto freqüentemente tanto<br />

a respeito da filosofia mo<strong>de</strong>rna quanto das <strong>ciência</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, tanto das empírico-<br />

formais quanto das hermenêuticas. O fato é que nenh<strong>uma</strong> <strong>de</strong>ssas novas <strong>linguagens</strong> cien-<br />

tíficas se mostrou capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar satisfatoriamente <strong>para</strong> com a linguagem da <strong>fé</strong> a<br />

função hermenêutica que a filosofia grega exerceu com indiscutível êxito. Todas as ten-<br />

tativas nesse sentido tem resultado n<strong>uma</strong> forma qualquer <strong>de</strong> reducionismo que atinge<br />

algum dos aspectos essenciais do conteúdo da <strong>fé</strong>, ou da fi<strong>de</strong>s quae creditur. Não seja<br />

possível abordar aqui essa questão, mas po<strong>de</strong>mos dizer que a dificulda<strong>de</strong> maior vem, no<br />

caso da filosofia, do fato <strong>de</strong> que a filosofia mo<strong>de</strong>rna, na sua intenção profunda, é essen-<br />

cialmente imanentista e antropológica, ao passo que a filosofia antiga é <strong>uma</strong> filosofia da<br />

transcendência e estruturalmente teológica (Ver H. C. Lima Vaz, Religião e mo<strong>de</strong>rnida-<br />

<strong>de</strong> filosófica, Síntese, 53 (1991): 147-165). Isso não quer dizer que muitos dos avanços


conceptuais da filosofia mo<strong>de</strong>rna, sobretudo da fenomenologia, não possa, ser utilizados<br />

na hermenêutica da linguagem da <strong>fé</strong>. Quanto ao uso hermenêutico das <strong>ciência</strong>s <strong>para</strong><br />

interpretação do conteúdo da <strong>fé</strong>, é dificultado pelo método e seu caráter operacional e<br />

pela intenção profunda da inteligibilida<strong>de</strong> científica voltada <strong>para</strong> a compreensão do<br />

mundo em termos da sua utilização técnica, o que vale igualmente das <strong>ciência</strong>s herme-<br />

nêuticas ou h<strong>uma</strong>nas, que são <strong>ciência</strong>s do comportamento e presci<strong>de</strong>m metodicamente<br />

da pergunta o que é o homem? Passemos, pois, a expor brevemente a estrutura da lin-<br />

guagem e da <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong>.<br />

b. A linguagem da <strong>fé</strong> - A primeira característica da linguagem da <strong>fé</strong> mostra-se no<br />

fato <strong>de</strong> que nela há <strong>uma</strong> primazia essencial da palavra sobre o discurso. Isso significa<br />

que a linguagem da <strong>fé</strong> não é, primeiramente, <strong>uma</strong> linguagem <strong>de</strong> persuasão e muito me-<br />

nos <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração mas é, antes <strong>de</strong> tudo, <strong>uma</strong> linguagem <strong>de</strong> revelação ou <strong>de</strong> anúncio<br />

ou confissão <strong>de</strong> <strong>fé</strong>. Essa, por sua vez, é <strong>uma</strong> linguagem <strong>de</strong> tipo performativo, ou seja, na<br />

qual o enunciado não é apenas o registro <strong>de</strong> um fato (p. ex., faz sol) mas implica um<br />

envolvimento do locutor e, portanto, <strong>uma</strong> ação (p. ex., eu prometo, eu creio). A resposta<br />

positiva ao anúncio da <strong>fé</strong> é a ação <strong>de</strong> crer, expressa em linguagem performativa, como<br />

no caso do Símbolo dos Apóstolos ou o Credo nas suas diversas versões (ver J.<br />

Ladrière, L'articulation du sens, I, op. cit., pp. 91-139). Na linguagem da <strong>fé</strong> <strong>de</strong>vemos<br />

distinguir, pois, o anúncio <strong>de</strong> um acontecimento salvífico (fi<strong>de</strong>s quae creditur) e a pro-<br />

fissão da eficácia <strong>de</strong>sse acontecimento na vida <strong>de</strong> quem recebe o anúncio (fi<strong>de</strong>s qua<br />

creditur). Por sua vez, o fundamento da <strong>verda<strong>de</strong></strong> do anúncio e da sua eficácia transfor-<br />

madora na vida <strong>de</strong> quem professa o que é anunciado, é o Deus que revela e opera a sal-<br />

vação (fi<strong>de</strong>s cui creditur). A palavra da <strong>fé</strong> como anúncio torna-se finalmente substancial<br />

na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da Palavra <strong>de</strong> Deus com o próprio Deus, Palavra que se fez carne e habi-<br />

tou no meio <strong>de</strong> nós.<br />

Se a linguagem da <strong>fé</strong> é, primeiramente, palavra que atinge o discurso h<strong>uma</strong>no co-<br />

mo algo que <strong>de</strong>sconcerta e escandaliza (1 Cor. 2, 1-16) é também discurso, pois a lin-<br />

guagem h<strong>uma</strong>na é essencialmente discursiva. Mas não é o discurso da sabedoria h<strong>uma</strong>-<br />

na mas da sabedoria do Deus que age e revela (ibid., 1, 18-30). Essa dimensão discursi-<br />

va da linguagem da <strong>fé</strong> aparece já no próprio texto da Escritura. Ela se prolonga na dida-<br />

ché, no ensinamento apostólico e se <strong>de</strong>senvolve posteriormente no magistério da Igreja<br />

ao longo dos tempos. Mas a discursivida<strong>de</strong> da linguagem da <strong>fé</strong> encontra seu campo pró-


prio na constituição das teologias, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a ida<strong>de</strong> patrística. A <strong>fé</strong>, como mostrou mag-<br />

nificamente Santo Agostinho, é habitada por um dinamismo interno, próprio do espírito<br />

h<strong>uma</strong>no mas também das virtualida<strong>de</strong>s inteligíveis do anúncio salvífico, que a leva a<br />

florescer e frutificar em inteligência. Mas essa é sempre fruto da <strong>fé</strong>. Agostinho não se<br />

cansa <strong>de</strong> comentar a palavra <strong>de</strong> Isaías (7, 9) na versão dos Setenta: nisi credi<strong>de</strong>ritis non<br />

intelligetis (se não crer<strong>de</strong>s, não enten<strong>de</strong>reis). Ele a comentas na célebre oposição: intel-<br />

lige ut credas verbum meum; cre<strong>de</strong> ut intelligas verbum Dei (enten<strong>de</strong> <strong>para</strong> po<strong>de</strong>res crer<br />

a minha palavra; crê, <strong>para</strong> po<strong>de</strong>res enten<strong>de</strong>r a palavra <strong>de</strong> Deus, Sermo 43, PL 38, 258).<br />

Na tradição oci<strong>de</strong>ntal esse dinamismo inteligível da <strong>fé</strong> encontrou sua expressão clássica<br />

na sentença <strong>de</strong> Santo Anselmo: fi<strong>de</strong>s quaerens intellectum (a <strong>fé</strong> em busca da inteligên-<br />

cia). Assim, a linguagem da <strong>fé</strong> não se cristaliza num grito ou n<strong>uma</strong> simples proclama-<br />

ção. Ela é unida<strong>de</strong> indissolúvel do anúncio e do discurso mas o anúncio é sempre pri-<br />

meiro. Seu fundamento - ou sua <strong>verda<strong>de</strong></strong> - não vem do discurso h<strong>uma</strong>no que <strong>de</strong>le proce-<br />

<strong>de</strong>, com nos axiomas ou hipóteses <strong>de</strong> um sistema hipotético-<strong>de</strong>dutivo. Ele vem da ver-<br />

da<strong>de</strong> absolutamente transcen<strong>de</strong>nte do Deus que se revela e cuja revelação é aceita na<br />

confissão da <strong>fé</strong>.<br />

Po<strong>de</strong>mos, assim, resumir a natureza da linguagem da <strong>fé</strong> como Palavra que anuncia<br />

e realiza acontecimentos salvíficos (Palavra, portanto, essencialmente histórica), que<br />

nos é transmitida através dos sinais do seu acontecer, é recebida por nós através da in-<br />

terpretação autêntica <strong>de</strong>sses sinais (fruto da graça da <strong>fé</strong>) e se exprime na linguagem da<br />

nossa confissão, linguagem performativa pois é um compromisso <strong>de</strong> vida. Assim, a lin-<br />

guagem da <strong>fé</strong> é, na expressão <strong>de</strong> Donald Evans, <strong>uma</strong> linguagem <strong>de</strong> auto-implicitação<br />

(self-involvement) daquele que a enuncia. Quais serão, pois, os critérios da sua verda-<br />

<strong>de</strong>?<br />

c. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> - Aqui não se trata, evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong> expor o conteúdo da <strong>fé</strong><br />

(fi<strong>de</strong>s quae) como conteúdo <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro nem <strong>de</strong> apresentar <strong>uma</strong> criteriologia completa<br />

dos títulos <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> que a <strong>fé</strong> apresenta. Nosso propósito é apenas o <strong>de</strong> mostrar breve-<br />

mente a estrutura do ato <strong>de</strong> <strong>fé</strong> enquanto enunciador <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e, portanto, na sua corre-<br />

lação com a linguagem. Supomos, pois, que há <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> que se exprime n<strong>uma</strong><br />

linguagem peculiar. Como tal ela reivindica a sua originalida<strong>de</strong> irredutível no amplo<br />

campo das formas <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> que são acessíveis à inteligência h<strong>uma</strong>na e, portanto, a ela<br />

se aplica igualmente o axioma <strong>de</strong> Espinoza: Versum in<strong>de</strong>x sui. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> se funda


a si mesma e se explica a si mesma. Essa originalida<strong>de</strong> da <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> se manifesta já<br />

na intencionalida<strong>de</strong> do ato que a ela a<strong>de</strong>re. Sua referência não é a um estado <strong>de</strong> coisas<br />

apreendido pela experiência, mas aos acontecimentos salvíficos anunciados na lingua-<br />

gem da revelação recebida na audição da Palavra (RN, 10, 8-18). Ora, a Palavra não traz<br />

em si a evidência das proposições que enuncia nem as faz acompanhar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>de</strong>mons-<br />

tração lógica. Como anúncio ela é um apelo e dirige-se tanto à inteligência quanto à<br />

liberda<strong>de</strong> que aqui, <strong>de</strong> modo análogo ao que suce<strong>de</strong> no juízo da cons<strong>ciência</strong> moral, a-<br />

gem n<strong>uma</strong> sinergia pela qual a liberda<strong>de</strong> se move à aceitação livre da Palavra e a inteli-<br />

gência é dotada <strong>de</strong> um movo olhar (lês yeux <strong>de</strong> la foi, na expressão <strong>de</strong> P. Rousselot),<br />

capaz <strong>de</strong> penetrar <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> maneira a <strong>verda<strong>de</strong></strong> do que é anunciado. Mas o campo <strong>de</strong><br />

intencionalida<strong>de</strong> do ato <strong>de</strong> <strong>fé</strong> é povoado <strong>de</strong> sinais salvíficos e é através da sua interpre-<br />

tação que a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> se manifesta. Para que essa interpretação seja possível é ne-<br />

cessária a transformação interior da inteligência e da liberda<strong>de</strong> na graça da <strong>fé</strong>: o Deus<br />

que se revela é o Deus que move aficazmente nossa inteligência e nossa liberda<strong>de</strong> ou,<br />

mais exatamente, a sua sinergia vital em or<strong>de</strong>m à aceitação da <strong>verda<strong>de</strong></strong> revelada. O ato<br />

<strong>de</strong> <strong>fé</strong> tem, assim, <strong>uma</strong> estrutura teândrica: nele, em analogia com a Encarnação da Pala-<br />

vra substancial <strong>de</strong> Deus, a palavra da <strong>fé</strong> se faz em nós, palavra h<strong>uma</strong>no-divina. Eis por-<br />

que há na <strong>fé</strong> <strong>uma</strong> tensão permanente entre a <strong>verda<strong>de</strong></strong> e a linguagem: as possibilida<strong>de</strong>s<br />

semânticas da nossa linguagem são necessariamente transgredidas ao tentarmos enunci-<br />

ar a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong>. Essa enunciação, nas diferentes <strong>linguagens</strong> da <strong>fé</strong> - catequética, ma-<br />

gisterial, teológica - nunca é a<strong>de</strong>quada ao seu objeto. Ela aponta na sua intencionalida-<br />

<strong>de</strong>, <strong>para</strong> <strong>uma</strong> profundida<strong>de</strong> irradiante <strong>de</strong> inteligibilida<strong>de</strong> mas incircunscritível pela nossa<br />

inteligência e pela nossa linguagem, e que a tradição <strong>de</strong>signou com o nome <strong>de</strong> mistério.<br />

Po<strong>de</strong>mos, pois, dizer que a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> é a <strong>verda<strong>de</strong></strong> do mistério e diante <strong>de</strong>la a inten-<br />

ção teórica <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r ce<strong>de</strong> a primazia à intenção existencial <strong>de</strong> viver. Mas a partir<br />

da vida da <strong>fé</strong>, a intenção <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r ressurge no dinamismo da fi<strong>de</strong>s quaerens in-<br />

tellectum. A Palavra se faz discurso nas diferentes formas da linguagem da <strong>fé</strong> que nas-<br />

cem e se alimentam da inteligibilida<strong>de</strong> do mistério n<strong>uma</strong> dialética <strong>de</strong> ocultação e revela-<br />

ção que está presente tanto na simples linguagem da catequese quanto na linguagem<br />

intelectualizada da <strong>de</strong>finição dogmática, no discurso teológico ou nas audácias alegóri-<br />

cas da linguagem mística.<br />

Seria ainda necessário explicar que o fato h<strong>uma</strong>no da linguagem da <strong>fé</strong> como aco-<br />

lhimento da sua <strong>verda<strong>de</strong></strong> pressupõe como condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>uma</strong> concepção da


existência h<strong>uma</strong>na como abertura tanto antológica quanto ética a um Absoluto que a<br />

interpela no exercício da sua linguagem e da sua liberda<strong>de</strong> e po<strong>de</strong> a ela revelar-se como<br />

Palavra <strong>de</strong> salvação. Mas a esse preâmbulo <strong>de</strong> <strong>uma</strong> antropologia teológica não é possí-<br />

vel aqui senão um breve aceno.<br />

Se nos reportarmos agora à análise da nossa primeira parte veremos que, na sua<br />

estrutura ontológica, a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> apresenta a característica única <strong>de</strong> <strong>uma</strong> manifesta-<br />

ção do ser como Absoluto pessoal, o que a torna em nós <strong>uma</strong> atitu<strong>de</strong> também eminen-<br />

temente pessoal <strong>de</strong> livre resposta a um anúncio e um apelo que nos atingem na raiz do<br />

nosso próprio ser. E na sua estrutura lógica a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> não é <strong>uma</strong> medida abstrata<br />

da nossa inteligência nem se funda em critérios <strong>de</strong> evidência ou <strong>de</strong>monstração. A lógica<br />

da <strong>fé</strong> é a lógica da nossa existência na sua or<strong>de</strong>nação constitutiva ao Absoluto pessoal<br />

que se manifesta como Amor, mas ao qual não nos abrimos senão no acolhimento <strong>de</strong><br />

um Dom absolutamente gratuito.<br />

CONCLUSÃO<br />

Nossas reflexões até aqui se <strong>de</strong>senvolvem em torno <strong>de</strong>sse fenômeno fundamental<br />

da nossa existência que é a correlação estrutural entre a <strong>verda<strong>de</strong></strong> e a linguagem e a sua<br />

diferenciação original em formas <strong>de</strong> linguagem e correspon<strong>de</strong>ntes formas <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>, e<br />

em torno da relação entre <strong>ciência</strong> e <strong>fé</strong> do ponto <strong>de</strong> vista da sua linguagem e da sua ver-<br />

da<strong>de</strong>. O problema da unida<strong>de</strong> subjacente à <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem da <strong>ciência</strong> e à <strong>verda<strong>de</strong></strong> e<br />

linguagem da <strong>fé</strong>, traçou o roteiro da nossa exposição. <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>screvermos a estrutu-<br />

ra das <strong>duas</strong> <strong>linguagens</strong> e das <strong>duas</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>s, estaríamos pre<strong>para</strong>dos <strong>para</strong> propor <strong>uma</strong><br />

solução satisfatória a um problema que figura entre os mais característicos da situação<br />

do cristão no mundo mo<strong>de</strong>rno? Eis a pergunta a que tentaremos brevemente respon<strong>de</strong>r<br />

na nossa conclusão.<br />

Vimos na primeira parte que toda expressão da <strong>verda<strong>de</strong></strong> ou toda linguagem verda-<br />

<strong>de</strong>ira se constitui em torno <strong>de</strong> um núcleo estrutural fundamental no qual se distinguem<br />

dois componentes, o ontológico e o lógico. A partir <strong>de</strong>sse núcleo assistimos ao fenôme-<br />

no a um tempo histórico e epistemológico <strong>de</strong> <strong>uma</strong> diferenciação <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> lingua-<br />

gem e <strong>verda<strong>de</strong></strong> que é proporcional ao próprio fenômeno da auto-diferenciação da razão<br />

(Sobre esse tema ver o artigo Ética e Razão mo<strong>de</strong>rna, Síntese, 68 (1995): 53-85; ver pp.<br />

58-63). Formam-se então o que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>nominar mundos <strong>de</strong> linguagem e <strong>verda<strong>de</strong></strong>,


constituindo como que um universo intencional no centro do qual se situa a nossa ativi-<br />

da<strong>de</strong> cognoscitiva e expressiva. Como mundos aparentemente distantes <strong>de</strong>sse universo<br />

estão o mundo da <strong>ciência</strong> e o mundo da <strong>fé</strong>. É claro que <strong>uma</strong> indiscutível unida<strong>de</strong> antro-<br />

pológica os une no saber e na prática do cientista cristão. Buscamos, no entanto, a sua<br />

unida<strong>de</strong> ontológica e lógica ou a sua compatibilida<strong>de</strong> na unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mesmo universo<br />

intencional. Diversas versões <strong>de</strong>ssa unida<strong>de</strong> tem sido propostas na literatura recente<br />

sobre o tema, que continua na or<strong>de</strong>m do dia <strong>para</strong> a reflexão cristã. Ainda há pouco <strong>uma</strong><br />

sugestiva aproximação dos dois mundos dói tentada por A. Ganoczy no seu livro Dieu,<br />

l'homme et la nature (Cogitatio Fi<strong>de</strong>i 186), Paris, Cerf, 1995. Trata-se <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong><br />

rica erudição e <strong>de</strong> notável originalida<strong>de</strong> no tratamento do problema que nos ocupa. A<br />

questão da <strong>ciência</strong> e da <strong>fé</strong> é apresentada e discutida a partir da expressão da religiosida-<br />

<strong>de</strong> profunda que animava os gran<strong>de</strong>s gênios da <strong>ciência</strong> mo<strong>de</strong>rna, como Newton. Einste-<br />

in, Heisenberg e outros, e que reaparece em alguns cientistas contemporâneos. Perma-<br />

nece, no entanto, em segundo plano na análise <strong>de</strong> Ganoczy, o caráter essencialmente<br />

operacional da <strong>ciência</strong> mo<strong>de</strong>rna, que <strong>de</strong>termina o seu dinamismo profundo e que se<br />

mostra como um dos traços fundamentais da <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> na sua diferença com a<br />

gratuida<strong>de</strong> revelada da <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong>. É esse caráter operacional, regido pela categoria<br />

do fazer, que torna precárias as analogias entre <strong>ciência</strong> e <strong>fé</strong> formuladas na hipótese <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> homologia entre os níveis epistemiológicos <strong>de</strong> ambas, como a que é proposta pelo<br />

físico H. Dänzer (A. Ganoczy, op. cit., pp. 26-27).<br />

De qualquer maneira a posição do problema <strong>de</strong> <strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> na diferença entre<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem da <strong>ciência</strong> e <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem da <strong>fé</strong> tem como condição <strong>de</strong> pos-<br />

sibilida<strong>de</strong> a exclusão liminar <strong>de</strong> <strong>uma</strong> simples homonímia ou equivocida<strong>de</strong> entre os dois<br />

mundos, a modo, por exemplo, da teoria averroista das "<strong>duas</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>s". A solução pre-<br />

conizada por <strong>uma</strong> concepção univocista da <strong>verda<strong>de</strong></strong> aparece, por outro lado, como <strong>uma</strong><br />

simples supressão do problema, como no caso já clássico do neo-positivismo, em que a<br />

única <strong>verda<strong>de</strong></strong> objetiva é a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> com sua linguagem própria, sendo as ou-<br />

tras pretensões <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e seus respectivos discursos rejeitadas na esfera subjetiva.<br />

Resta, pois, o recurso a <strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> analógica das formas <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e das suas lin-<br />

guagens. Não é fácil, no entanto, <strong>de</strong>finir essa unida<strong>de</strong> n<strong>uma</strong> cultura pluralista como a<br />

nossa, on<strong>de</strong> o processo histórico da auto-diferenciação da Razão <strong>de</strong>u origem a <strong>uma</strong> am-<br />

pla multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e linguagem. A estrutura <strong>de</strong> <strong>uma</strong> analogia <strong>de</strong><br />

atribuição, proposta com êxito por Tomás <strong>de</strong> Aquino no contexto da cultura cristã da


Ida<strong>de</strong> Média, não parece aplicável ao universo da nossa cultura. A unida<strong>de</strong> analógica<br />

das <strong>ciência</strong>s, na visão tomásica, se or<strong>de</strong>na à sacra doctrina como a seu analogado princi-<br />

pal, segundo a doutrina aristotélica da subalternação das <strong>ciência</strong>s. Com efeito, a sacra<br />

doctrina ou teologia é subalternada imediatamente à própria <strong>ciência</strong> divina, o que asse-<br />

gura seu lugar no topo da hierarquia das <strong>ciência</strong>s (ver Summa Theol., q. 1, e M. D. Che-<br />

nu, La théologie como science au XIIIème sièle, 3 éd., Paris, Vrin, 1957). Essa visão<br />

hierárquica do saber ce<strong>de</strong>u lugar, na cultura mo<strong>de</strong>rna, a <strong>uma</strong> dispersão <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />

<strong>ciência</strong>, <strong>de</strong> tal sorte que o simples problema da sua classificação apresenta <strong>uma</strong> séria<br />

dificulda<strong>de</strong> na busca <strong>de</strong> um critério classificatório que seja universalmente aceito. Qual<br />

a <strong>ciência</strong> fundamental? A Filosofia, a Física, a Biologia ou alg<strong>uma</strong> das <strong>ciência</strong>s herme-<br />

nêuticas? A Filosofia po<strong>de</strong>ria apresentar os melhores títulos históricos e teóricos a essa<br />

primazia, mas eles seriam provavelmente contestados por outras <strong>ciência</strong>s como a Física,<br />

a Biologia e, sobretudo, a Antropologia. Quanto à Teologia, <strong>ciência</strong> da <strong>fé</strong> (Summa The-<br />

ol., I, q. 1, a.a. 2-6), não tem mais o seu lugar reconhecido na enciclopédia das <strong>ciência</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnas. Como pensar, pois, a unida<strong>de</strong>, no quadro <strong>de</strong> <strong>uma</strong> analogia objetiva, das for-<br />

mas <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> e respectiva linguagem, entre a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong> e a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong>?<br />

O caminho que aqui se nos apresenta é o <strong>de</strong> <strong>uma</strong> analogia <strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong>,<br />

na qual a vertente ontológica da <strong>verda<strong>de</strong></strong> - o ser - e a sua vertente lógica - a linguagem -<br />

tanto na <strong>ciência</strong> quanto na <strong>fé</strong> estejam entre si n<strong>uma</strong> relação que nos permita estabelecer<br />

entre ambos <strong>uma</strong> igualda<strong>de</strong> proporcional autorizando-nos a reconhecê-los na unida<strong>de</strong><br />

transcen<strong>de</strong>ntal do ser como <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro (verum = ens) e na unida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal da<br />

linguagem, correlativa ao ser, como sistema <strong>de</strong> símbolos (verum = ens = logos), passan-<br />

do <strong>de</strong> um a outro n<strong>uma</strong> igualda<strong>de</strong> (ou unida<strong>de</strong>) <strong>de</strong> proporção. O ser da physis está <strong>para</strong> a<br />

linguagem simbólica da <strong>ciência</strong> assim como o ser do mistério está <strong>para</strong> a linguagem<br />

simbólica da <strong>fé</strong>. Essa analogia supõe que a Palavra <strong>de</strong> Deus se revele a nós como pala-<br />

vra h<strong>uma</strong>na e seja enunciada por nós num discurso h<strong>uma</strong>no, o que a submete aos condi-<br />

cionamentos da nossa linguagem e da nossa lógica. É essa <strong>uma</strong> das conseqüências mais<br />

profundas da lei da Encarnação, que está no centro do mistério cristão e que Paulo e-<br />

nunciou <strong>de</strong> maneira tão enérgica no célebre texto da Carta aos Filipenses (Fil, 2, 6-9).<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente a aceitação <strong>de</strong>ssa analogia supõe que o evento da <strong>fé</strong> tenha tido lugar na<br />

inteligência e na liberda<strong>de</strong> daquele que acolhe a Palavra, pois a linguagem da <strong>fé</strong> não é a<br />

<strong>de</strong>notação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> evidência nem um discurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração, mas um anúncio e um<br />

apelo. Mas, <strong>uma</strong> vez suposto esse evento, o que crê não tem nenh<strong>uma</strong> razão <strong>de</strong> opor ou


mesmo <strong>de</strong> se<strong>para</strong>r em registros incomunicáveis <strong>de</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>, a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> e a <strong>verda<strong>de</strong></strong><br />

da <strong>ciência</strong>. Nenh<strong>uma</strong> contradição po<strong>de</strong> substituir entre as <strong>duas</strong> <strong>linguagens</strong>, sob pena <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> ruptura irremediável do horizonte do ser ao qual se or<strong>de</strong>na a inteligência, e do salto<br />

irracional da <strong>fé</strong> na escuridão do absurdo. Convém lembrar, no entanto, que a analogia <strong>de</strong><br />

proporcionalida<strong>de</strong> não exclui, ao contrário, implica <strong>uma</strong> relação secundum prius et pos-<br />

terius entre seus termos, ou seja, <strong>uma</strong> relação <strong>de</strong> anteriorida<strong>de</strong> ontológica <strong>de</strong> um termo<br />

com respeito ao outro, sob pena da predicação analógica permanecer num horizontalis-<br />

mo que retorna, <strong>de</strong> certo modo à univocida<strong>de</strong> (Ver A. <strong>de</strong> Muralt, Néoplatonisme et aris-<br />

tot;elisme dans la métaphysique médiévale, Paris, Vrin, 1995, p. 42, n. 1). É claro, nesse<br />

caso, que a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong>, <strong>para</strong> o cristão, reivindica <strong>uma</strong> anteriorida<strong>de</strong> ontológica com<br />

relação à <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>ciência</strong>, sendo a <strong>verda<strong>de</strong></strong> divina princípio e medida transcen<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong> toda <strong>verda<strong>de</strong></strong>.<br />

Convém lembrar, finalmente, que a <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong> implica, no próprio assentimen-<br />

to da inteligência e no consentimento da liberda<strong>de</strong>, sob a ação da graça, <strong>uma</strong> transfor-<br />

mação existencial do sujeito, a abertura <strong>de</strong> um novo horizonte <strong>de</strong> vida. A <strong>verda<strong>de</strong></strong> da <strong>fé</strong><br />

é, indissoluvelmente, <strong>verda<strong>de</strong></strong> da contemplação e <strong>verda<strong>de</strong></strong> da ação. É a mais alta forma<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong> prática, <strong>uma</strong> vez que a sua enunciação como <strong>verda<strong>de</strong></strong> da Palavra <strong>de</strong><br />

Deus é o bem maior da inteligência, que se comunica à liberda<strong>de</strong> como sua <strong>verda<strong>de</strong></strong> e o<br />

seu fim. Nessa perspectiva alg<strong>uma</strong> analogia po<strong>de</strong>ria também ser estabelecida entre a<br />

dimensão prática da <strong>fé</strong> e o caráter intrinsecamente operativo da <strong>verda<strong>de</strong></strong> científica que se<br />

traduz mo<strong>de</strong>rnamente no imenso processo histórico <strong>de</strong> transformação técnica do mundo.<br />

Mas a com<strong>para</strong>ção <strong>de</strong>ve ser extremamente cautelosa e não po<strong>de</strong> ter lugar no mesmo<br />

plano epistemológico, pois aqui os tênues traços da semelhança são envolvidos por <strong>uma</strong><br />

máxima dissemelhança: <strong>de</strong> um lado temos a transformação do sentido mais profundo da<br />

vida h<strong>uma</strong>na por <strong>uma</strong> operação <strong>de</strong> natureza teândrica na qual a ação da graça divina é<br />

soberana; <strong>de</strong> outro o projeto fáustico do home <strong>de</strong> transformar a natureza - e a si mesmo -<br />

segundo o seus <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> realização terrena do seu bem h<strong>uma</strong>no. Subsiste, no entan-<br />

to, a analogia, pois tudo o que proce<strong>de</strong> genuinamente do homem revela um traço da<br />

imagem e semelhança divinas, nele impressa na criação. Depois da Gaudium et Spes o<br />

olhar cristão sobre a imensa aventura técnica da h<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong>, sem se <strong>de</strong>ixar levar por<br />

um otimismo ingênuo, é um olhar que po<strong>de</strong>ríamos reconhecer como teolhardiano: a<br />

<strong>ciência</strong> e a técnica aparecem aos olhos da <strong>fé</strong> como o pressentimento e o anelo daquela<br />

liberda<strong>de</strong> e glória <strong>de</strong> que fala São Paulo (Rm, 8, 18-23), que os filhos <strong>de</strong> Deus partilha-


ão um dia com toda a criação. Nessa perspectiva escatológica <strong>ciência</strong> e <strong>fé</strong> po<strong>de</strong>m i-<br />

gualmente encontrar-se e é talvez aí que irá revelar-se a sua convergência mais profun-<br />

da, na unida<strong>de</strong> concreta do único <strong>de</strong>sígnio divino, traçando <strong>para</strong> o universo e sua evolu-<br />

ção, e <strong>para</strong> a h<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong> e sua história o caminho que leva à plenitu<strong>de</strong> final do Deus<br />

tudo em todos (1 Cor, 15,28).


FÉ E CIÊNCIA - DUAS LINGUAGENS PARA UMA VERDADE<br />

Prof. Geraldo Monteiro Sigaud<br />

Como po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r a Ciência como <strong>uma</strong> "linguagem <strong>para</strong> a Verda<strong>de</strong>"? O que<br />

é "<strong>verda<strong>de</strong></strong> científica"? O que é a "Verda<strong>de</strong>"?<br />

É claro que nenh<strong>uma</strong> <strong>de</strong>stas questões é nova ou original, mas, nem por isso, são<br />

elas fáceis <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r. De fato, à última <strong>de</strong>las, por exemplo, talvez somente Um tenha<br />

tido a resposta... Mesmo assim, quando perguntado diretamente, preferiu calar-se, guar-<br />

dando-a <strong>para</strong> Si. Entretanto, tentarei, aqui, indicar alg<strong>uma</strong>s respostas possíveis às <strong>duas</strong><br />

primeiras, ou, pelo menos, como a Ciência tem evoluído no sentido <strong>de</strong> buscar tais res-<br />

postas ao longo da sua história, e o que eu consi<strong>de</strong>ro serem as principais dúvidas e ten-<br />

dências atuais.<br />

O objetivo primordial da Ciência - na <strong>verda<strong>de</strong></strong>, talvez seu único objetivo - é a bus-<br />

ca <strong>de</strong> compreensão da Natureza. Esta compreensão - ou conhecimento da Natureza - é<br />

consi<strong>de</strong>rada satisfatória quando se <strong>de</strong>scobrem, em meio à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fenômenos<br />

observados, certas regularida<strong>de</strong>s, certos padrões <strong>de</strong> comportamento. Estas regularida<strong>de</strong>s<br />

são por nós chamadas <strong>de</strong> Leis da Natureza. O que é extraordinariamente nisto é que, em<br />

primeiro lugar, estas regularida<strong>de</strong>s existiam e, segundo, que nós tenhamos sido capazes<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir pelo menos alg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong>las, em meio à absolutamente fantástica complexi-<br />

da<strong>de</strong> do mundo em que vivemos. E eu não estou falando da complexida<strong>de</strong> por nós in-<br />

troduzida através do <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico que nos <strong>de</strong>u esta <strong>para</strong>fernália <strong>de</strong> ob-<br />

jetos que tornam nossa vida hoje mais confortável. Estou, sim, me referindo à Natureza<br />

sem a intervenção dos seres h<strong>uma</strong>nos. Todos os fenômenos naturais que observamos<br />

apresentam <strong>uma</strong> complexida<strong>de</strong> extraordinária, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>uma</strong> simples brisa até o mais forte<br />

dos temporais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o movimento das asas <strong>de</strong> <strong>uma</strong> borboleta até o movimento das es-<br />

trelas e galáxias. O fato <strong>de</strong> termos conseguido <strong>de</strong>scobrir padrões or<strong>de</strong>nados e, muitas<br />

vezes, universais <strong>de</strong> comportamento <strong>para</strong> grupos <strong>de</strong> fenômenos naturais aparentemente<br />

tão <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nados e <strong>de</strong>sconectados entre si é certamente motivo <strong>de</strong> satisfação, orgulho e<br />

- por que não? - <strong>fé</strong>.<br />

Gostaria, aqui, <strong>de</strong> enfatizar a observação como base fundamental <strong>de</strong> toda a Ciên-<br />

cia. Por observação entendo eu não só a observação <strong>de</strong> fenômenos naturais que ocorrem


sem a intervenção direta do Homem, mas, também, principalmente nos últimos séculos,<br />

aquela provocada por nós através da realização <strong>de</strong> experiências. É importante também<br />

que não nos esqueçamos do caráter sensitivo embutido na atitu<strong>de</strong> observacional. De<br />

fato, a ampliação das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> observação, que tem, ao longo dos séculos, po-<br />

ermitindo um número cada vez mais <strong>de</strong> novas <strong>de</strong>scobertas e, conseqüentemente,m ser-<br />

vido <strong>de</strong> base experimental <strong>para</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> novas teorias científicas, cada vez<br />

mais abrangentes, nada mais é do que <strong>uma</strong> extensão dos nossos sentidos naturais: teles-<br />

cópios, microscópios, <strong>de</strong>tectores <strong>de</strong> radiação, <strong>de</strong> partículas, etc. Em <strong>para</strong>lelo, é claro,<br />

com a disponibilida<strong>de</strong> cada vez maior <strong>de</strong> a<strong>para</strong>tos e equipamentos provocadores <strong>de</strong> fe-<br />

nômenos novos <strong>de</strong> forma tão sistemática e repetitiva quanto for necessário, tais como,<br />

aceleradores <strong>de</strong> partículas, simuladores, novos materiais, novos produtos químicos e<br />

biológicos, etc. A lista é infindável.<br />

Mas, nesta busca pelo conhecimento, não basta observar os fenômenos, sejam eles<br />

naturais ou provocados. É absolutamente necessário que o que foi observado, natural ou<br />

sistematicamente, seja sintetizado <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> forma em regras gerais, ou teorias. Este<br />

tem sido, em última análise, o papel <strong>de</strong> quem tem trabalhado em Ciência ao longo <strong>de</strong>s-<br />

tes 2500 anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Grécia Antiga. Entretanto, este trabalho <strong>de</strong> síntese do já-<br />

observado tem, em toda a História da Ciência, sofrido alguns cortes fundamentais, reali-<br />

zados por cientistas <strong>de</strong> gênio, que conseguiram, a partir <strong>de</strong> teorias existentes, muitas<br />

vezes sobre assuntos aparentemente <strong>de</strong>sconectados entre si, dar passos gigantescos em<br />

direção ao novo, revolucionando não só a Ciência como, também, as próprias idéias da<br />

H<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong>. Tratarei, agora, brevemente <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>stes cientistas, todos, à exceção<br />

do primeiro, ligados à Física. Esta aparente restrição - pela qual peço <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já <strong>de</strong>sculpas<br />

- reflete principalmente <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>formação profissional minha, apesar <strong>de</strong> con-<br />

si<strong>de</strong>rá-los - e suas idéias - como causadores <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong>ntre as mais profundas revo-<br />

luções do Espírito H<strong>uma</strong>no em sua procura incessante da Verda<strong>de</strong>.<br />

Antes disto, porém, gostaria <strong>de</strong> ressaltar que é preciso não esquecer que nenhum<br />

dos cortes fundamentais ocorridos na Ciência partiram do nada. A Ciência é construída<br />

sobre bases <strong>de</strong>senvolvidas anteriores, cada nova teoria, mesmo revolucionária, abran-<br />

gendo as anteriormente aceitas. Como afirma Thomas Kuhn: "teorias obsoletas não são<br />

acientíficas em princípio, simplesmente porque foram <strong>de</strong>scartadas" (Thomas Kuhn, A<br />

Estrutura das Revoluções Científicas, Coleção Debates. Ed. Perspectiva, 3ª edição,


1995). Este conceito <strong>de</strong> cumulativida<strong>de</strong> da Ciência é <strong>de</strong> fundamental importância; a<br />

rigor, são mais importantes <strong>para</strong> nossa perspectiva atual as contribuições permanentes<br />

<strong>de</strong> <strong>uma</strong> <strong>ciência</strong> <strong>de</strong>senvolvida anteriormente a nós, do que tratar restringi-las à sua época,<br />

mesmo respeitando-se sua integrida<strong>de</strong> histórica.<br />

Cost<strong>uma</strong>-se localizar o início da mo<strong>de</strong>rna busca da <strong>verda<strong>de</strong></strong> científica em Galileu e<br />

a introdução do método científico. Não há nenh<strong>uma</strong> dúvida que Galileu foi o gran<strong>de</strong> pai<br />

da Ciência como a conhecemos - e fazemos - hoje e, obviamente, voltaremos a ele mais<br />

adiante, Entretanto, eu gostaria <strong>de</strong> pular no tempo cerca <strong>de</strong> 2000 anos <strong>para</strong> trás <strong>de</strong> Gali-<br />

leu e discutir brevemente aquele que talvez tenha sido o primeiro corte na tentativa <strong>de</strong><br />

compreensão da Natureza. Sim, porque foi na Grécia Antiga, principalmente com Aris-<br />

tóteles, que o que nós conhecemos hoje como Ciência <strong>de</strong>u seus primeiros passos. A Fí-<br />

sica nasceu na Grécia há 2500 anos e foi lá que se estabeleceu que a observação da Na-<br />

tureza era o estágio inicial <strong>de</strong> qualquer tentativa <strong>para</strong> sua compreensão. Anaxágonas,<br />

filósofo grego que viveu no século V a.C. e que talvez tenha sido dos primeiros a intro-<br />

duzir a idéia <strong>de</strong> átomo como <strong>uma</strong> partícula básica da qual toda a matéria é constituída,<br />

dizia "Eu nasci <strong>para</strong> po<strong>de</strong>r contemplar as obras da Natureza". Nesta época, começou a<br />

se <strong>de</strong>senvolver o que chamamos <strong>de</strong> Filosofia Natural, isto é, <strong>uma</strong> busca <strong>de</strong> compreensão<br />

dos fenômenos naturais observados através da tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir leis naturais que<br />

fossem eternas, sem ter <strong>de</strong> recorrer a explicações míticas. Provavelmente o maior <strong>de</strong><br />

todos os filósofos naturais gregos foi Aristóteles. Na <strong>verda<strong>de</strong></strong>, ele foi o último dos gran-<br />

<strong>de</strong>s filósofos gregos e talvez o primeiro gran<strong>de</strong> cientista, principalmente porque, além<br />

<strong>de</strong> usar sua razão, ele se utilizou dos seus sentidos.<br />

O aspecto fundamental da Filosofia Natural aristotélica é o conceito <strong>de</strong> que o Uni-<br />

verso, o Cosmos, constitui um conjunto or<strong>de</strong>nado em que reina <strong>uma</strong> hierarquia <strong>de</strong>termi-<br />

nada e soberana, porém obviamente subjetiva. No Cosmos aristotélico, cada coisa, cada<br />

objeto, cada ser tem o seu lugar próprio, o seu estado próprio. Se algo não estiver no seu<br />

lugar natural, ten<strong>de</strong>rá a voltar a este lugar por <strong>uma</strong> "potencialida<strong>de</strong>" que lhe é própria.<br />

Esta "hierarquização" do Universo ligava a doutrina aristotélica irremediavelmente às<br />

causas finais. Partindo <strong>de</strong>sta premissa, Aristóteles construiu um monumento <strong>de</strong> Lógica<br />

alicerçado no senso comum, que iria dominar, por mais <strong>de</strong> 2000 anos, o pensamento do<br />

Mundo Oci<strong>de</strong>ntal. Este monumento ruiu porque não era levado em conta o papel fun-<br />

damental da experiência na elaboração <strong>de</strong> <strong>uma</strong> teoria científica. Além disso, a doutrina


aristotélica, por sua própria natureza, era incapaz <strong>de</strong> prever fenômenos ainda não obser-<br />

vados, sendo, portanto, estéril. Assim, Aristóteles possuía espírito científico, mas não<br />

método científico. Entretanto, não po<strong>de</strong>mos esquecer o legado que Aristóteles nos <strong>de</strong>i-<br />

xou em sua síntese da filosofia natural grega: a curiosida<strong>de</strong> <strong>para</strong> a observação e o estudo<br />

da Natureza, a convicção que esta Natureza é regida por leis universais, e a <strong>fé</strong> na capa-<br />

cida<strong>de</strong> h<strong>uma</strong>na em buscar enten<strong>de</strong>r estas leis.<br />

A obra <strong>de</strong> Aristóteles, praticamente esquecida no mundo oci<strong>de</strong>ntal durante boa<br />

parte da Ida<strong>de</strong> Média, permaneceu viva no mundo árabe e passou a ser difundida na<br />

Europa por volta do ano 1200, principalmente na Espanha e no norte da Itália. Esta di-<br />

fusão <strong>de</strong>spertou mais <strong>uma</strong> vez o interesse pelo estudo das <strong>ciência</strong>s naturais que, <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

certa forma, tinha permanecido estagnado durante todo este tempo. E, além disso, trou-<br />

xe novamente à tona a discussão sobre a relação entre a filosofia grega e a <strong>fé</strong> cristã, já<br />

surgida com a "cristianização" das idéias <strong>de</strong> Platão por Santo Agostinho no século IV.<br />

Tornou-se imperioso que a filosofia natural aristotélica fosse compatibilizada aos textos<br />

bíblicos, principalmente no que se refere à Criação e à Cosmologia como um todo, Este<br />

papel <strong>de</strong> "cristianização" <strong>de</strong> Aristóteles foi feito, como sabemos, por São Tomás <strong>de</strong> A-<br />

quino, que teve o imenso mérito - entre outros, é claro - <strong>de</strong> ter conseguido a gran<strong>de</strong> sín-<br />

tese entre a <strong>fé</strong> e o conhecimento. Para São Tomás <strong>de</strong> Aquino, não há um <strong>para</strong>doxo irre-<br />

conciliável entre a filosofia, ou a razão, por um lado, e a revelação, ou a <strong>fé</strong> cristã, por<br />

outro. Na <strong>verda<strong>de</strong></strong>, <strong>para</strong> ele havia as "<strong>verda<strong>de</strong></strong>s <strong>de</strong> <strong>fé</strong>" como, por exemplo, que Jesus é<br />

filho <strong>de</strong> Deus, e as "<strong>verda<strong>de</strong></strong>s naturais teológicas", que são as <strong>verda<strong>de</strong></strong>s a que po<strong>de</strong>mos<br />

chegar tanto pela <strong>fé</strong> cristã quanto pela nossa razão natural como, por exemplo, a da exis-<br />

tência <strong>de</strong> Deus. São Tomás <strong>de</strong> Aquino acreditava, portanto, que dois caminhos levavam<br />

a Deus: o da <strong>fé</strong> e revelação cristãs, e o da razão e dos sentidos, sendo o mais seguro,<br />

obviamente, o da <strong>fé</strong> e da revelação, já que, muitas vezes, a razão po<strong>de</strong> ser enganosa.<br />

Mas, no fundo, São Tomás <strong>de</strong> Aquino quis nos mostrar que só há <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>. Uma<br />

parte da <strong>verda<strong>de</strong></strong> po<strong>de</strong>mos reconhecer através da razão e da observação; a outra nos foi<br />

revelada por Deus através da Bíblia - estas <strong>duas</strong> partes se sobrepõe em muitas questões<br />

como, por exemplo, a da existência <strong>de</strong> Deus. De fato, na sua hierarquização do Cosmos,<br />

Aristóteles pressupunha a existência <strong>de</strong> um Deus, ou um Ser Supremo, ou <strong>uma</strong> "causa<br />

primordial", que era responsável pelo "funcionamento" <strong>de</strong> todo o Cosmos, apesar <strong>de</strong><br />

não <strong>de</strong>screver este Deus. Aí, segundo São Tomas <strong>de</strong> Aquino, <strong>de</strong>vemos seguir a Bíblia e<br />

os ensinamentos <strong>de</strong> Jesus. Assim, a nossa razão nos permite reconhecer que <strong>para</strong> tudo


há <strong>uma</strong> "causa primordial"; como Deus se revela a nós pela Bíblia - "teologia revelada"<br />

- e pela razão - "teologia natural" - há, segundo ele, dois caminhos <strong>para</strong> a Verda<strong>de</strong>, isto<br />

é <strong>para</strong> Deus.<br />

São Tomas <strong>de</strong> Aquino conseguiu, portanto, mostrar que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que conveniente-<br />

mente interpretadas, a Cosmologia e a Física aristotélica não conflitavam com os prin-<br />

cípios da doutrina cristã. Depois da publicação do seu gran<strong>de</strong> monumento teológico, a<br />

"Summa Theologica", a Igreja não só <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> pôr em dúvida a ortodoxia aristotélica<br />

como foi muito mais adiante aceitando sua Cosmologia como o mo<strong>de</strong>lo do Universo<br />

criado por Deus e encorajado os estudos e a propagação pelo ensino <strong>de</strong> toda a obra <strong>de</strong><br />

Aristóteles.<br />

Talvez seja importante, neste ponto, e antecipando um pouco o que vamos discutir<br />

em instantes, notarmos que, com a queda da filosofia aristotélica no que se refere às<br />

<strong>ciência</strong>s naturais a partir principalmente <strong>de</strong> Galileu e Newton nos séculos XVI-XVII,<br />

também os pensamentos <strong>de</strong> São Tomás <strong>de</strong> Aquino sobre a inexistência do <strong>para</strong>doxo <strong>fé</strong>-<br />

razão (isto é, dos "dois caminhos" <strong>para</strong> a Verda<strong>de</strong>) se tornaram quase que inaceitáveis<br />

<strong>para</strong> gran<strong>de</strong> parte da comunida<strong>de</strong> científica que se formou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. O resgate <strong>de</strong>stas<br />

idéias nos dias <strong>de</strong> hoje por parte <strong>de</strong>sta mesma comunida<strong>de</strong> é um dos pontos que iremos<br />

abordar mais adiante.<br />

O método científico, como conhecemos e aplicamos hoje, teve sua sistematização<br />

nos "Discursos sobre Duas Novas Ciências", escrito por Galileu, completado em 1636 e<br />

publicado 2 anos <strong>de</strong>pois. Nos "Discursos", Galileu <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado todas as conotações<br />

medievais e transforma o estudo dos fenômenos naturais n<strong>uma</strong> investigação científica,<br />

cujos passos resumidores a seguir. Em primeiro lugar, há a observação do fenômeno;<br />

esta observação suscita geralmente <strong>uma</strong> pergunta, a qual caracteriza a existência <strong>de</strong> um<br />

problema. Galileu teve a intuição, incrível <strong>para</strong> a época, <strong>de</strong> que tanto a pergunta quanto<br />

a solução do problema <strong>de</strong>vem ser elaboradas n<strong>uma</strong> linguagem especial: a linguagem<br />

matemática. É exatamente nisto que resi<strong>de</strong> a chamada "Revolução Científica do Século<br />

XVII". Ora, <strong>para</strong> que o fenômeno estudado possa ser tratado matematicamente, é neces-<br />

sário reduzi-lo a um conjunto <strong>de</strong> parâmetros suscetíveis <strong>de</strong> medição"isto é chamado <strong>de</strong><br />

"construção do mo<strong>de</strong>lo". Este mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer, por <strong>de</strong>cisão ou escolha do investi-<br />

gador, a certas leis ou teorias preenxistentes que, se não existirem, serão substituídas<br />

por certas hipóteses <strong>de</strong> trabalho. As leis ou hipóteses impostas ao mo<strong>de</strong>lo levam a certas


<strong>de</strong>duções analíticas que fornecem <strong>uma</strong> resposta provisória à pergunta inicial e permitem<br />

geralmente que se façam previsões verificáveis quanto às respostas a outras perguntas<br />

porventura suscitadas pelo mo<strong>de</strong>lo, no <strong>de</strong>correr da investigação. No entanto, por serem<br />

as leis e hipóteses <strong>de</strong> trabalho imposições h<strong>uma</strong>nas feitas pelo investigador, resta ainda<br />

saber se a Natureza "concorda" com a resposta encontrada. Só há um meio <strong>de</strong> sabê-lo:<br />

voltar à experiência, isto é, intervir na Natureza. Somente a experiência permitirá <strong>de</strong>ci-<br />

dir se o mo<strong>de</strong>lo construído estava correto - isto é, se todos os parâmetros relevantes <strong>para</strong><br />

a pergunta feita foram incluídos - e, por outro lado, se as leis ou hipóteses <strong>de</strong> trabalho<br />

impostas ao mo<strong>de</strong>lo estavam corretas. O gran<strong>de</strong> mérito <strong>de</strong> Galileu foi ter entendido que<br />

a chave do método científico estava precisamente na passagem do real inicial - a obser-<br />

vação - <strong>para</strong> o real final - a experiência. Ele foi o gran<strong>de</strong> artesão da libertação da Ciên-<br />

cia das essências aristotélicas, da magia medieval e das qualida<strong>de</strong>s ocultas, que por mais<br />

<strong>de</strong> 2000 anos haviam impedido o seu <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Não po<strong>de</strong>mos esquecer que Galileu esten<strong>de</strong>u em muito o ato <strong>de</strong> observar, ao voltar<br />

a recém-inventada luneta <strong>para</strong> o céu e fornecer as primeiras evidências observacionais<br />

da valida<strong>de</strong> do mo<strong>de</strong>lo heliocêntrico <strong>de</strong> Copérnico sobre o sistema geocêntrico <strong>de</strong> Aris-<br />

tóteles. Mais importante, no entanto, do que a construção <strong>de</strong> <strong>uma</strong> nova cosmologia -<br />

que, na <strong>verda<strong>de</strong></strong>, não foi completada por Galileu e sim por Newton quase 80 anos <strong>de</strong>pois<br />

- foi o fato <strong>de</strong> que observações <strong>de</strong> fenômenos novos fizeram-no refutar completamente<br />

<strong>uma</strong> "teoria" já existente, por ser esta absolutamente incoerente e incapaz <strong>de</strong> explicar<br />

estes fatos novos. Esta atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> "corte" caracteriza <strong>uma</strong> mudança profunda na maneira<br />

<strong>de</strong> se estudar a natureza, sendo, como já vimos, a base do método científico que usamos<br />

até hoje.<br />

Com Newton, a Revolução Científica do século XVII atinge seu apogeu. Em me-<br />

nos <strong>de</strong> 50 anos, o gênio <strong>de</strong> um homem consegue alcançar o que 2000 anos <strong>de</strong> esforços<br />

tinham pre<strong>para</strong>do: a formulação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> teoria científica. Newton nos fornece o exem-<br />

plo típico <strong>de</strong> um gênio que <strong>de</strong>sabrochou e produziu com extraordinária fertilida<strong>de</strong> apoi-<br />

ado nos "ombros dos gigantes" - conforme sua própria expressão - que o prece<strong>de</strong>ram,<br />

como Copérnico, Kepler e sobretudo Galileu, como legou o seu método científico. Mas<br />

o método científico, sem <strong>uma</strong> teoria <strong>para</strong> sustentá-lo e nutri-lo, era um esqueleto sem<br />

substância. Os mo<strong>de</strong>los construídos exigiam hipóteses <strong>de</strong> trabalho <strong>para</strong> serem capazes<br />

<strong>de</strong> fazer previsões verificáveis experimentalmente. Newton foi o primeiro a encontrar


Leis que não só traduzem a regularida<strong>de</strong> do comportamento da Natureza em classes<br />

isoladas <strong>de</strong> fenômenos mas que, <strong>de</strong>scendo a um nível mais profundo <strong>de</strong> compreensão,<br />

vão revelar esta regularida<strong>de</strong> em todos os fenômenos no caso, relacionados ao movi-<br />

mento -, quaisquer que sejam a sua causa ou a sua origem. Po<strong>de</strong>mos aqui, <strong>para</strong> ilustrar<br />

este ponto, usar as palavras do próprio Newton nas "Regras a seguir <strong>para</strong> o Estudo da<br />

Filosofia Natural", que constam do início do Livro III dos "Philosophiae Naturalis Prin-<br />

cipia Mathematica" ou simplesmente os "Principia", sua obra máxima:<br />

Regra 1: Não se <strong>de</strong>vem admitir outras causas dos fenômenos naturais que as cau-<br />

sas <strong>verda<strong>de</strong></strong>iras e suficientes <strong>para</strong> explicar os fenômenos.<br />

Regra 2: os efeitos <strong>de</strong> mesma natureza <strong>de</strong>vem ser sempre atribuídos à mesma cau-<br />

sa, no que for possível.<br />

Regra 3: As qualida<strong>de</strong>s dos corpos, que não sejam suscetíveis <strong>de</strong> acréscimo ou <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>créscimo, e que pertençam a todos os corpos sobre os quais for possível experimentar,<br />

<strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados como pertencentes a todos os corpos em geral.<br />

É importante lembrar que a se<strong>para</strong>ção entre <strong>fé</strong> e razão ainda não estava totalmente<br />

manifesta, pelo menos <strong>para</strong> Galileu e Newton, apesar dos problemas - diferentes - p[elos<br />

quais ambos passaram. Galileu, apesar <strong>de</strong> todas as divergências com a Igreja Católica da<br />

época - que todos nós conhecemos e que só foram <strong>de</strong>vidamente resolvidas há cerca <strong>de</strong> 4<br />

anos -. era - e permaneceu - profundamente católico até sua morte. E mesmo Newton,<br />

que por pouco não foi consi<strong>de</strong>rado herege antes <strong>de</strong> assumir sua cátedra no "College of<br />

the Holy and Undivi<strong>de</strong>d Trinity" - hoje conhecido simplesmente como "Trinity College"<br />

- em Cambridge (Newton era "arianista", isto é, não acreditava na Santíssima Trinda<strong>de</strong>),<br />

<strong>de</strong>clara, no "Escólio Geral" que encerra os "Principia".<br />

"Esse belíssimo sistema do Sol, dos planetas e dos cometas só po<strong>de</strong>ria provir do<br />

plano e da sabedoria <strong>de</strong> um Ser inteligente e po<strong>de</strong>roso (...) Esse Ser rege todas as coisas,<br />

não como a alma do Universo, mas como o Senhor <strong>de</strong> todas as coisas; e, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seu domínio, ele sói ser chamado <strong>de</strong> Senhor Deus, ou Senhor do Universo; (...) Ele não<br />

é apenas virtualmente, mas também substancialmente onipresente, pois a virtu<strong>de</strong> não<br />

po<strong>de</strong> subsistir sem a substância. Nele estão contidas e se movem todas as coisas (...). É


isso o que eu tinha a dizer <strong>de</strong> Deus, e suas obras constituem o objeto do estudo da Filo-<br />

sofia Natural (...).<br />

A Mecânica Clássica <strong>de</strong>senvolvida por Newton eliminou qualquer referência ao<br />

finalismo aristotélico, já que, dadas as leis <strong>de</strong> força que regem um dado sistema, os a-<br />

contecimentos resultantes são <strong>uma</strong> conseqüência automática <strong>de</strong> condições iniciais men-<br />

suráveis num dado instante. Assim, a Mecânica Clássica possibilitou um amplo esclare-<br />

cimento das questões <strong>de</strong> causa e efeito. Sabemos como o progresso tremendamente<br />

bem-sucedido da Mecânica, baseado nesta visão <strong>de</strong>terminista e causal, causou <strong>uma</strong> pro-<br />

funda impressão em toda a Ciência contemporânea, chegando-se a atitu<strong>de</strong>s extremas,<br />

como a expressa na famosa concepção <strong>de</strong> Laplace sobre <strong>uma</strong> máquina universal, na qual<br />

todas as interações <strong>de</strong> seus componentes seriam regidas pelas leis da Mecânica. Desta<br />

forma, <strong>uma</strong> inteligência que conhecesse as posições e velocida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stas partes, num<br />

dado instante, po<strong>de</strong>ria prever todos os acontecimentos subseqüentes do mundo, inclusi-<br />

ve o comportamento dos animais e dos homens. Esta concepção mecanicista da Nature-<br />

za tornou-se um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> explicação científica em todos os campos do conhecimento,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do modo <strong>de</strong> obtenção do conhecimento. Além disso, o <strong>de</strong>senvolvi-<br />

mento <strong>de</strong>sta concepção foi <strong>uma</strong> - senão a mais - importante das causas do <strong>verda<strong>de</strong></strong>iro<br />

cisma entre Religião e Ciência ocorrido a partir do Renascimento europeu. Por um lado,<br />

muitos fenômenos até então explicados pela intervenção da Província Divina foram<br />

i<strong>de</strong>ntificados como conseqüência <strong>de</strong> leis gerais e imutáveis da Natureza, Por outro lado,<br />

os métodos e pontos <strong>de</strong> vista da Física eram, muitas vezes, bastante distintos da ênfase<br />

nos valores e i<strong>de</strong>ais h<strong>uma</strong>nos, essenciais à Religião. Assim, prevaleceu <strong>uma</strong> atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

distinção entre o conhecimento objetivo e a crença subjetiva.<br />

Em seu campo <strong>de</strong> aplicação, a <strong>de</strong>scrição objetiva apresentada pela Mecânica Clás-<br />

sica aos fenômenos da vida cotidiana utiliza, entretanto, conceitos que transcen<strong>de</strong>m em<br />

muito suas i<strong>de</strong>alizações básicas. Assim, o uso a<strong>de</strong>quado das noções <strong>de</strong> espaço e tempo<br />

absolutos, tão arraigados no nosso senso-comum e tão fundamentais <strong>para</strong> a formulação<br />

da Mecânica Clássica, está intrinsecamente ligado à propagação instantânea da luz, que<br />

nos permite localizar - observar - os corpos em nosso redor, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua<br />

velocida<strong>de</strong>, e dispor os acontecimentos n<strong>uma</strong> seqüência temporal única. Mas a tentativa<br />

<strong>de</strong> elaborar <strong>uma</strong> explicação coerente <strong>para</strong> os fenômenos eletromagnéticos e óticos, a<br />

partir do enunciado das leis <strong>de</strong> Maxwell no final do século XIX, revelou que diferentes


observadores, movendo-se com gran<strong>de</strong>s velocida<strong>de</strong>s em relação uns aos outros, coor<strong>de</strong>-<br />

nam os acontecimentos <strong>de</strong> maneiras distintas. Estes observadores não só po<strong>de</strong>m ter vi-<br />

sões diferentes das posições e formas <strong>de</strong> corpos rígidos, como também eventos se<strong>para</strong>-<br />

dos no espaço, que talvez pareçam simultâneos a um observador, põem ser observados<br />

por outro como ocorrendo em instantes diferentes.<br />

O que inicialmente po<strong>de</strong>ria parecer <strong>uma</strong> fonte <strong>de</strong> confusão e complicação - a sa-<br />

ber, que a explicação dos fenômenos físicos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do ponto <strong>de</strong> vista do observador -<br />

revelou-se, na <strong>verda<strong>de</strong></strong>, um guia inestimável <strong>para</strong> <strong>de</strong>svendar leis físicas gerais, comuns a<br />

todos os observadores. Einstein conseguiu, preservando a noção do <strong>de</strong>terminismo, mas<br />

confiando apenas nas relações entre medidas não-ambíguas referentes a coincidências<br />

<strong>de</strong> eventos, reformular e generalizar todo o edifício da Física Clássica (essencialmente a<br />

Mecânica e o Eletromagnetismo Clássicos), além <strong>de</strong> conferir à nossa imagem do mundo<br />

<strong>uma</strong> unida<strong>de</strong> que superou a todo o previsto.<br />

Além <strong>de</strong>stes problemas relativos à Mecânica e ao Eletromagnetismo Clássicos,<br />

novos e insuspeitados aspectos do problema observacional foram revelados pelo estudo<br />

da constituição atômica da matéria. Já mencionamos que vem da Antigüida<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong><br />

um limite <strong>para</strong> a divisibilida<strong>de</strong> dos corpos, que surgiu da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se explicar a<br />

persistência <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s características apesar da diversida<strong>de</strong> dos fenômenos<br />

naturais. Entretanto, até recentemente, as idéias atomistas foram consi<strong>de</strong>radas mais co-<br />

mo hipóteses do que mo<strong>de</strong>los teóricos comprováveis, já que pareciam impossíveis <strong>de</strong><br />

serem confirmadas pela observação, tendo em vista a precarieda<strong>de</strong> dos nossos sentidos e<br />

dos instrumentos da época. No entanto, a teoria atômica foi ganhando corpo, não só<br />

com o gran<strong>de</strong> progresso da Física e da Química até o final do século XIX, como tam-<br />

bém, no começo <strong>de</strong>ste século, com o estudo <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s recém-<strong>de</strong>scobertas da ma-<br />

téria, como a radioativida<strong>de</strong> natural. O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> novos sistemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecção<br />

permitiu i<strong>de</strong>ntificar alg<strong>uma</strong>s características fundamentais da matéria, como o reconhe-<br />

cimento do elétron como componente comum a todas as substâncias e a <strong>de</strong>scoberta, por<br />

Rutherford, do núcleo atômico, que guarda as proprieda<strong>de</strong>s essenciais dos elementos.<br />

Embora muitas características fundamentais da matéria tenham sido explicadas<br />

por <strong>uma</strong> imagem simples do átomo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo ficou evi<strong>de</strong>nte que as idéias clássicas da<br />

Mecânica e do Eletromagnetismo eram insuficientes <strong>para</strong> explicar a estabilida<strong>de</strong> obser-<br />

vada das estruturas atômicas. Somente através do formalismo da Mecânica Quântica,


<strong>de</strong>senvolvido pelos esforços conjuntos <strong>de</strong> toda <strong>uma</strong> geração <strong>de</strong> físicos teóricos a partir<br />

da <strong>de</strong>scoberta do quantum universal da ação por Planck em 1901, é que se conseguiu<br />

<strong>uma</strong> <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong> <strong>uma</strong> imensa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dados experimentais referentes<br />

às proprieda<strong>de</strong>s físicas e químicas da matéria. Além disso, adaptando o formalismo às<br />

exigências relativísticas, foi possível expandir os limites da Mecânica Quântica à <strong>de</strong>s-<br />

crição das proprieda<strong>de</strong>s das partículas elementares e dos núcleos atômicos. O formalis-<br />

mo quântico não admite as interpretações pictóricas a que estamos acost<strong>uma</strong>dos no nos-<br />

so cotidiano; ele tem por objetivo direto o <strong>de</strong> estabelecer entre as observações obtidas<br />

em condições bem <strong>de</strong>finidas. Como, num dado arranjo experimental, diferentes proces-<br />

sos quânticos individuais po<strong>de</strong>m ocorrer competitivamente, essas relações são <strong>de</strong> caráter<br />

intrinsecamente probabilístico, e não <strong>de</strong>terminístico como em toda a Física Clássica. O<br />

Princípio da Incerteza <strong>de</strong> Heisenberg expressa esse caráter probabilístico através da a-<br />

firmação <strong>de</strong> que, contrariamente ao estabelecido pala Física Clássica, é impossível me-<br />

dir a posição e a velocida<strong>de</strong> (ou a energia e o tempo) <strong>de</strong> <strong>uma</strong> partícula com precisão<br />

arbitrariamente gran<strong>de</strong>. Neste contexto, fala-se às vezes em "perturbação dos fenômenos<br />

pela observação". O reconhecimento <strong>de</strong> que a interação entre os instrumentos <strong>de</strong> medida<br />

e os sistemas físicos investigados constitui <strong>uma</strong> parte integrante dos fenômenos quânti-<br />

cos não só revelou <strong>uma</strong> limitação da concepção mecânica da Natureza, como também<br />

nos forçou a prestar a <strong>de</strong>vida atenção às condições <strong>de</strong> observação. Na <strong>verda<strong>de</strong></strong>, a Mecâ-<br />

nica Quântica como que elevou a observação a um novo status, no sentido <strong>de</strong> que temos<br />

<strong>de</strong> admitir que não existe realida<strong>de</strong> sem observador.<br />

Com isso, atingimos, a meu ver, o último gran<strong>de</strong> corte na História das Ciências Fí-<br />

sicas, que, como os anteriores, <strong>de</strong>ixou marcas profundas na própria história do pensa-<br />

mento h<strong>uma</strong>no. (E não se esqueçam que sequer mencionei aqueles ocorridos em outros<br />

ramos da Ciência como a Biologia e a Química).<br />

Mas, cabe, ainda as perguntas:<br />

- Qual será o próximo gran<strong>de</strong> corte?<br />

- De on<strong>de</strong> virá este corte?<br />

- O que este corte po<strong>de</strong>rá nos trazer na nossa busca da <strong>verda<strong>de</strong></strong>?<br />

- Haverá, <strong>de</strong> fato, um novo gran<strong>de</strong> corte?


É claro que eu não tenho as respostas <strong>para</strong> estas perguntas (e outras que possa ha-<br />

ver, é claro), e que, <strong>de</strong> fato, são <strong>uma</strong> só. Mas, admitindo que ocorram <strong>de</strong>scobertas que<br />

levem à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> introdução <strong>de</strong> um movo gran<strong>de</strong> corte, po<strong>de</strong>mos brevemente es-<br />

pecular um pouco sobre ele e suas eventuais conseqüências. Até há muito pouco tempo,<br />

era crença geral na Física que o objetivo final a ser atingido era a assim-chamada Teoria<br />

da Gran<strong>de</strong> Unificação, que, como o próprio nome indica, englobaria as quatro intera-<br />

ções fundamentais da Natureza em <strong>uma</strong> só teoria. Muito esforço, tempo w dinheiro fo-<br />

ram investidos nesta busca, através, principalmente, da construção <strong>de</strong> gigantescos acele-<br />

radores <strong>de</strong> partículas e <strong>de</strong> enormes e sofisticados <strong>de</strong>tectores e sistemas <strong>de</strong> aquisição e<br />

análise <strong>de</strong> dados experimentais, <strong>para</strong> a realização <strong>de</strong> experiências reunindo milhares <strong>de</strong><br />

pesquisadores em diversas cooperações internacionais. Os progressos obtidos por meio<br />

<strong>de</strong>stes esforços inegáveis, não só no que se refere ao objetivo primário <strong>de</strong> se tentar en-<br />

ten<strong>de</strong>r melhor a estrutura mais fundamental da matéria, mas também no que eles repre-<br />

sentam como <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> pessoal altamente especia-<br />

lizado e capaz. Por exemplo, <strong>uma</strong> das conseqüências <strong>de</strong>stes esforços que está se tornan-<br />

do cada vez mais popular e corriqueira no nosso cotidiano é a re<strong>de</strong> internacional <strong>de</strong> in-<br />

formações - a INTERNET -, que foi <strong>de</strong>senvolvida inicialmente com o objetivo <strong>de</strong> tornar<br />

mais rápida e eficiente a troca <strong>de</strong> informações entre os cientistas envolvidos nestes pro-<br />

jetos. Apesar disto tudo, eu vejo que este caminho está se tornando cada vez mais estéril<br />

no sentido <strong>de</strong> fornecer os requisitos <strong>para</strong> um novo gran<strong>de</strong> corte.<br />

Por outro lado, os últimos anos têm visto <strong>uma</strong> <strong>verda<strong>de</strong></strong>ira explosão <strong>de</strong> interesse no<br />

estudo da origem do Universo, principalmente <strong>de</strong>pois da entrada em operação efetiva do<br />

telescópio espacial Hubble, que tem enviado informações sobre o Universo impressio-<br />

nantemente livres <strong>de</strong> interferência. É importante ressaltar que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>uma</strong> intensa<br />

investigação teórica sobre a Cosmologia a partir da Teoria da Relativida<strong>de</strong> Geral <strong>de</strong><br />

Eintein, houve um certo <strong>de</strong>clínio <strong>de</strong> interesse, não só pelas gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s formais<br />

da teoria, como também pelas restrições na observação do Universo impostas pela at-<br />

mosfera terrestre, mesmo após o <strong>de</strong>senvolvimento dos rádios-telescópios. Entretanto, a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter informações a partir <strong>de</strong> observações muito mais "limpas" e, além<br />

disso, a disponibilida<strong>de</strong> quase simultânea <strong>de</strong>stas informações <strong>para</strong> cientistas no mundo<br />

inteiro tornam este um campo muito rico <strong>de</strong> investigações. A<strong>de</strong>mais, por trás <strong>de</strong>sta ex-<br />

plosão <strong>de</strong> interesse está aquela que talvez seja a pergunta mais fundamental da H<strong>uma</strong>ni-<br />

da<strong>de</strong>: De on<strong>de</strong> veio o Universo? ou, em última análise De on<strong>de</strong> viemos? e que, na minha


opinião, é bem mais atraente e instigante do que perguntar De que é feita a matéria? Ou<br />

De que somos feitos?<br />

E isto nos remete <strong>de</strong> volta à questão da se<strong>para</strong>ção histórica entre Fé e Razão. Na<br />

<strong>verda<strong>de</strong></strong>, muitos dos físicos que estabeleceram as bases da Física Mo<strong>de</strong>rna admitiam e,<br />

mais, acreditavam na existência <strong>de</strong> Deus, como, por exemplo, Einstein, Pauli e Heisen-<br />

berg. Mais recentemente, alguns físicos como Willem Drees, físico e teólogo holandês,<br />

têm buscado estabelecer as bases da assim-chamada hipótese teológica. Esta hipótese<br />

argumenta que o século XX foi tão cheio <strong>de</strong> sucessos científicos, em que, como esboça-<br />

do aqui, a Física revelou gran<strong>de</strong> parte dos segredos da matéria e das leis naturais, que se<br />

po<strong>de</strong> discutir a questão Deus existe e está na origem das coisas? sem escorregar <strong>para</strong> o<br />

misticismo e as superstições. Por exemplo, a conseqüência do Princípio da Incerteza,<br />

básico <strong>de</strong> Mecânica Quântica, <strong>de</strong> que não há realida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do observador, leva<br />

naturalmente à pergunta Quem foi o observador do Universo antes da existência do<br />

Homem? A isso, respon<strong>de</strong> Drees: O gran<strong>de</strong> observador, medidor e, em última análise,<br />

criador do universo foi Deus (...) que prece<strong>de</strong>u o nascimento das leis naturais e certa-<br />

mente vai sobreviver a elas.<br />

Assim, gostaria <strong>de</strong> encerrar esta participação, em primeiro lugar, renovando meu<br />

pedido inicial <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas, por ter falado <strong>de</strong> temas tão gerais referindo-me quase que<br />

exclusivamente ao campo das Ciências Físicas. Em segundo lugar, eu espero ter <strong>de</strong>ixa-<br />

do claro que a inexistência <strong>de</strong> incompatibilida<strong>de</strong> entre Fé e Razão como caminhos <strong>para</strong><br />

a Verda<strong>de</strong> é um tema em discussão hoje em pelo menos <strong>uma</strong> boa parte da comunida<strong>de</strong><br />

científica.

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