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a igreja católica em diálogo - Centro Loyola de Fé e Cultura / PUC-Rio

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REVISTA MAGIS<br />

CADERNOS DE FÉ E CULTURA<br />

ISSN Nº 1676-7748<br />

Número 41 – Nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2002<br />

A IGREJA<br />

CATÓLICA<br />

EM DIÁLOGO


CONSELHO EDITORIAL<br />

André Marcelo Machado Soares<br />

Danilo Marcon<strong>de</strong>s Filho<br />

Eliana Yunes<br />

José Carlos Barcellos<br />

Luiz Basilio Cavalieri<br />

Maria Clara Lucchetti Bing<strong>em</strong>er<br />

Maria Lília Campello Rodrigues<br />

Pe. Paul Schweitzer, sj<br />

EQUIPE DE PRODUÇÃO<br />

ASSESSORIA EDITORIAL<br />

Gilda Maria Rocha <strong>de</strong> Carvalho<br />

PROJETO GRÁFICO<br />

Carla M. Cipolla<br />

Felipe R. Chalfun<br />

REVISÃO<br />

Bernardo Horta<br />

DIAGRAMAÇÃO<br />

José Antonio ...<br />

ASSESSORIA GRÁFICA<br />

Editora <strong>PUC</strong>-<strong>Rio</strong><br />

EXPEDIÇÃO E ASSINATURAS<br />

Francisca Sônia Fontes<br />

Telefone: 21 3874-8093<br />

<strong>Centro</strong> <strong>Loyola</strong> <strong>de</strong> <strong>Fé</strong> e <strong>Cultura</strong><br />

Estrada da Gávea, nº 1- Gávea<br />

22451-260 – <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro – RJ<br />

Telefone: 21 3874-8093<br />

Fax: 21 3874-8095<br />

Email: centroloyola@openlink.com.br<br />

www.puc-rio/info/loyola/in<strong>de</strong>x<br />

2


ÍNDICE<br />

Editorial<br />

A Igreja Católica frente à Shoah<br />

Pe. Jesús Hortal Sánchez, S.J.<br />

Sobre a Justiça<br />

Ir. Alda, N. Sra. <strong>de</strong> Sion<br />

Seis Sutras no Diálogo entre as Religiões<br />

James Heisig, svd<br />

A Igreja na Cida<strong>de</strong> Pós-Mo<strong>de</strong>rna<br />

Gilbraz Aragão<br />

3


Editorial<br />

O <strong>diálogo</strong> entre as religiões s<strong>em</strong>pre esteve presente no conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s do <strong>Centro</strong> Loyo-<br />

la. Datam da fundação do <strong>Centro</strong> os ciclos Diálogo Ju<strong>de</strong>u-Cristão e <strong>Fé</strong> <strong>em</strong> Diálogo, que se ocupa-<br />

vam das questões inerentes a essa experiência tão enriquecedora. Por isso, a alegria que cerca o<br />

lançamento <strong>de</strong>ste número da Revista Magis.<br />

Os textos apresentados pretend<strong>em</strong> levar o leitor a um passeio pelas características próprias <strong>de</strong><br />

uma atitu<strong>de</strong> dialogal: a <strong>de</strong>scoberta do que aproxima, o respeito gerado pelo conhecimento mútuo e a<br />

construção <strong>de</strong> iniciativas comuns.<br />

Pe. Jesús Hortal Sánchez, SJ, reitor da <strong>PUC</strong>-<strong>Rio</strong>, e Ir. Alda, da congregação Nossa Senhora <strong>de</strong><br />

Sion, assinam, respectivamente, o primeiro e o segundo texto <strong>de</strong>sta Revista, que falam <strong>de</strong> questões<br />

próprias do Diálogo Judaico-Cristão. São textos escritos por duas personalida<strong>de</strong>s ativas neste diá-<br />

logo específico, s<strong>em</strong>pre dispostas a colaborar nas iniciativas que faz<strong>em</strong> aproximar o Cristianismo<br />

daquela religião que foi o berço do próprio Jesus Cristo.<br />

O terceiro texto, cujo t<strong>em</strong>a é inédito <strong>em</strong> publicações do <strong>Centro</strong> <strong>Loyola</strong>, trata do <strong>diálogo</strong> entre<br />

o Cristianismo e o Budismo. Escrito pelo Pe. James Heisig, svd, que vive no Japão e trabalha no<br />

Instituto Nazan <strong>de</strong> Filosofia, pesquisando, especificamente, as questões que reg<strong>em</strong> esta aproxima-<br />

ção, por muitos impensada. Em 2001, Pe. James Heisig esteve no Brasil, tendo proferido algumas<br />

conferências na <strong>PUC</strong>-<strong>Rio</strong> e no <strong>Centro</strong> <strong>Loyola</strong> sobre o mesmo t<strong>em</strong>a. Naquela ocasião, foram apre-<br />

sentados os pontos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre as duas religiões, assim como as atitu<strong>de</strong>s fundamentais para<br />

o <strong>diálogo</strong> entre as mesmas e que, agora, são relatados <strong>em</strong> seu texto “Seis Sutras no Diálogo entre<br />

Religiões.”<br />

Por fim, o último texto, <strong>de</strong> Gilbraz Aragão, não trata propriamente do <strong>diálogo</strong> interreligioso.<br />

“A Igreja na Cida<strong>de</strong> Pós-Mo<strong>de</strong>rna” é um chamado a uma nova postura da Igreja Católica, presente<br />

nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. Consi<strong>de</strong>rando as características pós-mo<strong>de</strong>rnas da socieda<strong>de</strong> urbana, o autor<br />

percorre as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma nova ação pastoral que venha ao encontro dos anseios típicos <strong>de</strong>sse<br />

grupo social. O texto termina enfatizando o <strong>diálogo</strong> - entre as ciências, as religiões e os seres hu-<br />

manos – como ponto central para um encontro efetivo e transformador da realida<strong>de</strong>.<br />

Esperamos, pois, que esta Revista seja um incentivo ao incr<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> uma cultura dialogal,<br />

alicerçada na certeza da construção <strong>de</strong> uma nova realida<strong>de</strong>, mais fraterna e justa.<br />

Boa leitura!<br />

A Equipe<br />

4


A Igreja Católica frente à Shoah<br />

Reflexões por ocasião do Documento da Pontifícia Comissão para o<br />

Diálogo Religioso com o Judaísmo We R<strong>em</strong><strong>em</strong>ber<br />

Pe. Jesus Hortal, S.J.<br />

Reitor da <strong>PUC</strong>-<strong>Rio</strong><br />

Comec<strong>em</strong>os por uma afirmação, que po<strong>de</strong> parecer óbvia, mas que não <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser<br />

feita: Todos nós, cristãos ou ju<strong>de</strong>us, por exigência intrínseca do nosso ser humano e da nossa fé,<br />

não pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> olhar o racismo e suas nefastas conseqüências senão como algo intrinse-<br />

camente perverso. S<strong>em</strong> dúvida, o Holocausto, a espantosa tentativa <strong>de</strong> eliminação física <strong>de</strong> um<br />

povo, pelo simples fato <strong>de</strong> pertencer ao que era consi<strong>de</strong>rado uma “raça inferior”, é uma das maio-<br />

res aberrações da História cont<strong>em</strong>porânea. Infelizmente, não é a única. As inumeráveis vítimas dos<br />

regimes totalitários, especialmente da Al<strong>em</strong>anha hitlerista e da União Soviética stalinista, o massa-<br />

cre dos armênios pelos turcos, o genocídio contra o povo cambojano, durante o regime do Khmer<br />

Rouge, a eliminação <strong>de</strong> populações indígenas inteiras, não apenas nas Américas, mas também <strong>em</strong><br />

outros lugares, como a Austrália e a Tasmânia, a escravidão das populações africanas, a brutal se-<br />

gregação do apartheid, afortunadamente abolido, o injusto regime <strong>de</strong> castas que, <strong>em</strong>bora legalmen-<br />

te abolido, perdura na vida cotidiana da Índia, são alguns ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> que aquilo que chamamos<br />

civilização mo<strong>de</strong>rna não é a maravilha que muitos pensam ser. Inclusive recent<strong>em</strong>ente t<strong>em</strong>os assis-<br />

tido e ainda estamos assistindo à “limpeza étnica” <strong>de</strong> territórios on<strong>de</strong> tradicionalmente conviviam<br />

etnias, línguas e religiões diferentes.<br />

Nenhuma <strong>de</strong>ssas tragédias po<strong>de</strong> ser esquecida. Ao contrário, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar <strong>de</strong> todas e<br />

ficarmos s<strong>em</strong>pre vigilantes, a fim <strong>de</strong> cortar pela raiz qualquer tentativa <strong>de</strong> espalhar i<strong>de</strong>ologias ou<br />

concepções que possam conduzir a experiências tão amargas, como as citadas. Logicamente, cada<br />

um olha com maior atenção para os fatos que lhe diz<strong>em</strong> respeito mais diretamente. A Encíclica<br />

Tertio Millennio Adveniente, escrita como preparação para o Gran<strong>de</strong> Jubileu do ano 2000, convida-<br />

nos a um exame <strong>de</strong> consciência sincero sobre as falhas dos cristãos, como preparação inaugural do<br />

Terceiro Milênio. Nesse contexto, a Igreja Católica, que já con<strong>de</strong>nara <strong>em</strong> numerosas ocasiões o<br />

racismo (1) , voltou-se, <strong>de</strong> modo especial, para o anti-s<strong>em</strong>itismo. De 30 <strong>de</strong> outubro a primeiro <strong>de</strong><br />

(1) A 25 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1928, um Decreto do Santo Ofício con<strong>de</strong>nava o anti-s<strong>em</strong>itismo: AAS 20 (1928) 103-104. Em 1937,<br />

o Papa Pio XI publicou a Encíclica Mit Brennen<strong>de</strong>r Sorge, excepcionalmente escrita <strong>em</strong> al<strong>em</strong>ão, para que não houvesse<br />

a mínima dúvida sobre seus <strong>de</strong>stinatários, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarava: “Qu<strong>em</strong> toma a raça, o povo ou o Estado... ou qualquer outro<br />

valor fundamental da comunida<strong>de</strong> humana... separando-o da escala <strong>de</strong> valores... e os diviniza mediante um culto idolátrico,<br />

perverte e falsifica a ord<strong>em</strong> das coisas, criada e estabelecida por Deus.” A 13 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1938, a Sagrada Congregação<br />

(do Vaticano) para os S<strong>em</strong>inários e Universida<strong>de</strong>s, dirigiu, por ord<strong>em</strong> do mesmo Papa, uma carta aos os Reitores<br />

e Decanos <strong>de</strong> Faculda<strong>de</strong>s, impondo a todos os professores <strong>de</strong> Teologia a obrigação <strong>de</strong> refutar, segundo o método próprio<br />

<strong>de</strong> cada disciplina, as pseudoverda<strong>de</strong>s científicas com as quais o regime nazista tentava justificar sua i<strong>de</strong>ologia<br />

racista. Pio XI não chegou, porém, a concluir uma gran<strong>de</strong> Encíclica, iniciada já <strong>em</strong> 1937, sobre a unida<strong>de</strong> do gênero<br />

humano, que representaria a con<strong>de</strong>nação mais solene do racismo. Seu sucessor, Pio XII não chegou a completá-la, mas<br />

5


nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1997, teve lugar, no Vaticano, um s<strong>em</strong>inário sobre As raízes do anti-s<strong>em</strong>itismo no<br />

ambiente cristão, organizado pela Comissão Central do Jubileu. Do mesmo modo que reuniões<br />

s<strong>em</strong>elhantes, <strong>de</strong> caráter acadêmico, esta não produziu nenhum documento conclusivo. Seus traba-<br />

lhos, <strong>de</strong> caráter bastante heterogêneo e que foram publicados na revista Tertium Millennium, são<br />

interessantes, mas, a meu ver, um tanto heterogêneos e incompletos.<br />

No dia 16 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1998, a Pontifícia Comissão para o Diálogo Religioso com o Juda-<br />

ísmo, único organismo oficial da Igreja Católica para essa tarefa, <strong>em</strong> nível mundial, publicou o<br />

documento We R<strong>em</strong><strong>em</strong>ber - A Reflection on the Sohah (Nós Recordamos - Uma Reflexão sobre a<br />

Shoah). O título indica claramente que sua finalida<strong>de</strong> não é tanto a <strong>de</strong> buscar responsabilida<strong>de</strong>s,<br />

quanto a <strong>de</strong> preservar uma m<strong>em</strong>ória, que alguns pretend<strong>em</strong> negar. A esse respeito, parece-me que<br />

o primeiro serviço que a Comissão realizou, num t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se levantam vozes - <strong>de</strong>ntro e fora<br />

da Al<strong>em</strong>anha, inclusive no Brasil, para negar a realida<strong>de</strong> histórica do Holocausto (2) -, foi o <strong>de</strong> reco-<br />

nhecer, s<strong>em</strong> reticências ou meias-tintas, a realida<strong>de</strong> monstruosa daquele acontecimento.<br />

De 23 a 25 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1998, tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar da reunião do International<br />

Jewish-Catholic Liaison Committee, celebrada na Casa Santa Marta, no próprio Vaticano. O refe-<br />

rido documento estava nas mentes <strong>de</strong> todos. O Car<strong>de</strong>al Cassidy, <strong>em</strong> seu discurso <strong>de</strong> boas-vindas,<br />

fazendo-se eco das críticas avançadas contra o documento, perguntou com toda franqueza, aos<br />

participantes ju<strong>de</strong>us, se eles, olhando os passos dados pelos católicos, “estavam fazendo o mesmo<br />

esforço <strong>de</strong> compreensão <strong>em</strong> relação à Igreja Católica e à sua posição, <strong>em</strong> matérias tais como o a-<br />

borto ou a responsabilida<strong>de</strong> pela Shoah”. Com a mesma franqueza, o Dr. Gerhart Riegner, Vice-<br />

Presi<strong>de</strong>nte Honorário do Congresso Judaico Mundial, e Co-Presi<strong>de</strong>nte do nosso encontro, <strong>de</strong>cla-<br />

rou, referindo-se ao documento We R<strong>em</strong><strong>em</strong>ber, que estava profundamente impressionado com duas<br />

passagens: aquela <strong>em</strong> que a <strong>de</strong>claração vaticana é caracterizada como um ato <strong>de</strong> arrependimento<br />

(teshuvá) pelas falhas cometidas pelos filhos da Igreja, <strong>em</strong> qualquer época, e <strong>em</strong> que engaja os<br />

católicos numa ação para que nunca mais se repita nada s<strong>em</strong>elhante à Shoah; e aquela <strong>em</strong> que se<br />

reconhece a triste história do anti-judaísmo <strong>de</strong>senvolvido nos ambientes católicos, ao longo dos<br />

séculos. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, o Dr. Riegner se mostrava insatisfeito porque “o documento não dá<br />

respostas claras e porque evita, <strong>de</strong> modo especial, tomar posição sobre a relação entre os ensina-<br />

mentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo [<strong>em</strong> relação aos ju<strong>de</strong>us] e o clima político e cultural que tornou possível a<br />

Shoah”. Também se queixou, alegando que o documento vaticano não fala da culpabilida<strong>de</strong> da<br />

Igreja, e sim da “dos cristãos” ou “do mundo cristão”. Levantou, finalmente, algumas dúvidas so-<br />

aproveitou alguns parágrafos <strong>de</strong>la <strong>em</strong> sua primeira Encíclica Summi Pontificatus e na radiomensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> 1942, da qual<br />

falar<strong>em</strong>os mais adiante.<br />

(2) Por citar apenas dois nomes, pod<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar Le Pen, na França, e Castán, no Brasil. São, por outro lado, numerosas<br />

as páginas da Internet, especialmente provenientes dos Estados Unidos, mas também <strong>de</strong> outros países, com a propaganda<br />

neonazista mais <strong>de</strong>scarada, on<strong>de</strong> se nega a realida<strong>de</strong> do Holocausto.<br />

6


e a conveniência <strong>de</strong> estar<strong>em</strong> incluídos, no documento, uma certa apologia da atuação do Papa<br />

Pio XII e uma citação do Arcebispo <strong>de</strong> Breslau, Car<strong>de</strong>al Bertram, cuja atuação não está isenta <strong>de</strong><br />

ambigüida<strong>de</strong>s. (3)<br />

Não é a finalida<strong>de</strong> da nossa reunião estabelecer polêmicas com qu<strong>em</strong> quer que seja. Ao<br />

contrário, o que pretend<strong>em</strong>os é buscar a mais ampla base <strong>de</strong> compreensão mútua. Por isso, parece-<br />

me oportuno expor claramente as posições da Igreja Católica, na questão <strong>em</strong> foco. Não peço que<br />

nossos amigos ju<strong>de</strong>us as aceit<strong>em</strong>, mas apenas que as consi<strong>de</strong>r<strong>em</strong> seriamente, tal como nós tenta-<br />

mos compreen<strong>de</strong>r as posições <strong>de</strong>les.<br />

Como dizia, no início, o documento We R<strong>em</strong><strong>em</strong>ber <strong>de</strong>ve ser enquadrado num contexto b<strong>em</strong><br />

mais amplo, <strong>de</strong> revisão, ou melhor, <strong>de</strong> exame <strong>de</strong> consciência como preparação para o Terceiro Mi-<br />

lênio. Por isso, não é a última palavra sobre a matéria, mas apenas um passo na caminhada <strong>de</strong> peni-<br />

tência a que todos nós, católicos, somos convocados pelo Papa. Daí o chamado à conversão, à te-<br />

shuvá. É certo que outros passos seguirão. Além disso, para enten<strong>de</strong>r a linguag<strong>em</strong> teológica <strong>em</strong>-<br />

pregada no documento, é preciso ter <strong>em</strong> mente a concepção da Igreja que se encontra no Concílio<br />

Vaticano II, especialmente na Constituição dogmática Lumen Gentium. Ali, “Igreja” não significa<br />

a socieda<strong>de</strong> humana transitória, mas o mistério humano-divino da esposa do Verbo <strong>de</strong> Deus. Por-<br />

tanto, como b<strong>em</strong> expressa o número oito da citada Constituição, ela, acima das contingências his-<br />

tóricas, é “santa”, por ser unida à fonte da santida<strong>de</strong> que é o Cristo e possuir os meios <strong>de</strong> santifica-<br />

ção, especialmente os sacramentos. Mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, “acolhe <strong>em</strong> seu seio os pecadores”.<br />

Seguindo essa linha <strong>de</strong> pensamento, ao longo dos seus vinte anos <strong>de</strong> pontificado, João Paulo II t<strong>em</strong><br />

falado repetidamente das culpas e pecados dos “filhos da Igreja”. O reconhecimento do Papa se<br />

t<strong>em</strong> manifestado, uma e outra vez, não só <strong>em</strong> relação a seus pre<strong>de</strong>cessores, mas também a muitas<br />

outras pessoas (bispos, teólogos, sacerdotes) responsáveis pela atuação dos católicos. (4) Contudo, o<br />

Papa nunca <strong>em</strong>pregou a expressão “culpas da Igreja”. É uma questão <strong>de</strong> coerência com a lingua-<br />

g<strong>em</strong> teológica estabelecida.<br />

Uma outra distinção freqüente, nos documentos eclesiásticos, é entre anti-s<strong>em</strong>itismo e anti-<br />

judaísmo. O primeiro se baseia <strong>em</strong> pretensas razões biológicas, e somente se <strong>de</strong>senvolve como<br />

doutrina a partir do século XIX, seguindo as concepções <strong>de</strong> um francês, o Con<strong>de</strong> Gobineau - <strong>em</strong><br />

seu nefasto livro Essai sur l’Inégalité <strong>de</strong>s Races -, e um inglês, Chamberlain. O anti-s<strong>em</strong>itismo não<br />

é, n<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria nunca ser cristão, pois o ensinamento explícito da Igreja Católica, seguindo o texto<br />

(3) Tanto o discurso do Car<strong>de</strong>al Cassidy quanto o do Dr. Gerhart Riegner foram distribuídos durante a reunião do Liaison<br />

Committee. O do Car<strong>de</strong>al foi publicado posteriormente, <strong>em</strong> Service d’Information, revista do Pontifício Conselho<br />

para a Unida<strong>de</strong> dos Cristãos. Possuo pessoalmente cópia <strong>de</strong> ambos os discursos.<br />

(4) A este respeito, é significativa a obra <strong>de</strong> Luigi Accattoli, Mea Culpa - Quando il Papa Chie<strong>de</strong> Perdono (Mondadori,<br />

1997), que recolhe nada menos que noventa e quatro textos <strong>de</strong> discursos e documentos <strong>de</strong> João Paulo II, pedindo perdão<br />

pelos erros cometidos pelos católicos ao longo da História, incluindo aí a Inquisição, o Caso Galileu, as Cruzadas, as<br />

Guerras <strong>de</strong> Religião, a Escravidão e o tratamento dado aos indígenas.<br />

7


íblico, foi e é o da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os seres humanos, criados à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> Deus.<br />

Pelo contrário, o antijudaísmo preten<strong>de</strong> introduzir um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> discriminação com base na fé,<br />

consi<strong>de</strong>rando o povo ju<strong>de</strong>u – não a raça – como se tivesse sido rejeitado por Deus <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência<br />

da não-aceitação da mensag<strong>em</strong> do Cristo. Creio que a fronteira entre ambas concepções n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>-<br />

pre aparece muito clara, já que com freqüência se t<strong>em</strong> passado <strong>de</strong> uma à outra. A prova está <strong>em</strong><br />

que, na Península Ibérica, a questão da “pureza do sangue” (com fortes conotações racistas, anti-<br />

s<strong>em</strong>itas) foi levantada após a expulsão dos ju<strong>de</strong>us. Um ato que, nas suas motivações explícitas, era<br />

<strong>de</strong> antijudaísmo. As <strong>de</strong>nominações “cristão novo” ou “marrano”, por ex<strong>em</strong>plo, parec<strong>em</strong> ocultar<br />

certa dose <strong>de</strong> racismo, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma teoria biológica explícita, que não é<br />

própria daquela época. Mas não se po<strong>de</strong> esquecer que, enquanto o anti-s<strong>em</strong>itismo via, na elimina-<br />

ção física do ju<strong>de</strong>u, a meta almejada, o antijudaísmo pretendia a conversão e a integração <strong>de</strong>le na<br />

socieda<strong>de</strong> cristã, ou sua expulsão, como se fosse um corpo estranho.<br />

Pelo que diz respeito à relação entre os ensinamentos dos cristãos – não só dos católicos,<br />

mas, <strong>em</strong> maior ou menor medida, <strong>de</strong> todas as Igrejas cristãs – e o Holocausto, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os reconhecer<br />

que o antijudaísmo gerou um clima cultural <strong>em</strong> que as consciências ficaram como que adormeci-<br />

das perante às violências cometidas contra os ju<strong>de</strong>us. Parece-me, porém, absolutamente fora <strong>de</strong><br />

propósito chegar a ver nele a causa direta do Holocausto. Basta indicar, a esse respeito, que o na-<br />

zismo rejeitava explicitamente o Cristianismo, o qual, na concepção hitlerista, era visto como um<br />

subproduto do Judaísmo, pelo que também <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>saparecer. A exaltação dos velhos mitos pa-<br />

gãos germânicos, recolhidos, por ex<strong>em</strong>plo, nas óperas <strong>de</strong> Wagner, mostra claramente qual era a<br />

meta almejada: um neopaganismo puramente mítico, s<strong>em</strong> outra crença que a pretensa superiorida-<br />

<strong>de</strong> da raça ariana. Faltou, certamente, visão aos cristãos para compreen<strong>de</strong>r<strong>em</strong> essa relação manifes-<br />

ta entre a perseguição nazista e o caráter visceralmente anticristão do próprio nazismo, expressa-<br />

mente consignado no Mein Kampf, <strong>de</strong> Hitler. Houve uma minoria <strong>de</strong> clérigos e inclusive alguns<br />

Bispos, como o Car<strong>de</strong>al Innitzer, Arcebispo <strong>de</strong> Viena, que, num momento inicial, se <strong>de</strong>ixaram ar-<br />

rastar pelo patriotismo pangermânico, s<strong>em</strong> enxergar<strong>em</strong> a i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> base neopagã, absolutamente<br />

inaceitável. Do mesmo modo, também houve os que, como os Car<strong>de</strong>ais Von Gallen e Faulhaber, se<br />

opuseram abertamente ao avanço do nazismo, sendo con<strong>de</strong>nados pelo regime a um ostensivo os-<br />

tracismo. O probl<strong>em</strong>a que, a meu ver, se po<strong>de</strong> e se <strong>de</strong>ve apresentar é o <strong>de</strong> saber se os séculos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sprezo e <strong>de</strong> insultos ao povo ju<strong>de</strong>u, por parte dos cristãos, <strong>em</strong> geral - não só dos católicos, mas<br />

também dos outros cristãos, protestantes e ortodoxos -, não acabaram por gerar um clima <strong>em</strong> que<br />

as consciências ficaram adormecidas, possibilitando o surgimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias anti-s<strong>em</strong>itas, como<br />

a nazista.<br />

O ponto on<strong>de</strong> se concentrou a polêmica sobre esta questão, nos últimos t<strong>em</strong>pos, é o da atu-<br />

ação do Papa Pio XII, durante a Segunda Guerra Mundial. É curiosa a mudança <strong>de</strong> valoração das<br />

8


ações <strong>de</strong>sse Papa, verificada após sua morte. A nota 36 do Documento We R<strong>em</strong><strong>em</strong>ber aduz toda<br />

uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>res ju<strong>de</strong>us, feitas <strong>em</strong> 1945, agra<strong>de</strong>cendo os esforços do Papa para<br />

salvar numerosos ju<strong>de</strong>us da perseguição nazista. Especialmente significativa foi a mensag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

Golda Meir, <strong>em</strong> 1958, por ocasião da morte <strong>de</strong> Pio XII: “Compartimos a dor da humanida<strong>de</strong>.<br />

Quando o terrível martírio se abateu sobre o nosso povo, a voz do Papa se levantou <strong>em</strong> favor <strong>de</strong><br />

suas vítimas. A vida dos nossos t<strong>em</strong>pos ficou enriquecida com uma voz que, por cima do tumulto<br />

dos conflitos cotidianos, falava abertamente das gran<strong>de</strong>s verda<strong>de</strong>s. Choramos por um gran<strong>de</strong> servi-<br />

dor da paz.” Pod<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar também que o Gran<strong>de</strong> Rabino <strong>de</strong> Roma, Zolli, se converteu ao Ca-<br />

tolicismo, ao final da Segunda Guerra Mundial, e se fez batizar com o nome <strong>de</strong> Eugênio, <strong>em</strong> ho-<br />

menag<strong>em</strong> ao Papa, por sua atuação na preservação dos ju<strong>de</strong>us romanos durante a ocupação nazista.<br />

A partir dos anos sessenta, porém, a figura <strong>de</strong> Pio XII começou a ser atacada. Em relação à sua<br />

atuação durante a Segunda Guerra Mundial, foi <strong>de</strong>cisiva, a esse respeito, a obra <strong>de</strong> um antigo<br />

m<strong>em</strong>bro da Juventu<strong>de</strong> Hitlerista, Rolf Hochhut, Der Stellvertreter (O Vigário). Nessa peça <strong>de</strong> tea-<br />

tro, foi levantada a hipótese <strong>de</strong> que o Papa teria conhecido a magnitu<strong>de</strong> da tragédia, mas que, por<br />

consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> política ou <strong>de</strong> falsa prudência, teria permanecido calado, sendo que uma<br />

palavra sua po<strong>de</strong>ria ter evitado a tragédia. Como se percebe, aí há duas hipóteses: primeira, a <strong>de</strong><br />

que o Papa conhecia as dimensões do Holocausto, algo que o mundo somente veio a saber após o<br />

término da Segunda Guerra; segunda, a <strong>de</strong> que a con<strong>de</strong>nação aberta da parte da Santa Sé teria sal-<br />

vado mais vidas do que a ação silenciosa e perseverante <strong>de</strong> núncios e bispos, e até do próprio Vati-<br />

cano, acolhendo as vítimas da perseguição nazista. Hochhut, cujas intenções ocultas pod<strong>em</strong> ter<br />

sido as <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar a atenção dos gran<strong>de</strong>s culpáveis do Holocausto - os nazistas -, não apresentou<br />

nenhum documento que fundamentasse realmente tais hipóteses. Como, porém, a dúvida estava<br />

levantada, e se pedia a abertura dos arquivos vaticanos, a Santa Sé <strong>de</strong>cidiu publicar tudo quanto <strong>de</strong><br />

relevante se encontrava neles. Nada menos <strong>de</strong> doze volumes vieram à luz, com o título Atos e Do-<br />

cumentos da Santa Sé Relativos à Segunda Guerra Mundial. (5) Ao mesmo t<strong>em</strong>po, as potências<br />

aliadas publicaram <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> volumes com documentos tanto dos arquivos ingleses e norte-<br />

americanos, quanto dos al<strong>em</strong>ães. Não é possível, a partir <strong>de</strong> tal material, ignorar a intensa ativida<strong>de</strong><br />

diplomática da Santa Sé, durante aquele período tenebroso, e seus esforços para minorar as conse-<br />

qüências da Guerra. Além disso, não há vestígios, nos arquivos vaticanos, <strong>de</strong> uma suposta corres-<br />

pondência pessoal entre Pio XII e Hitler, que alguns jornalistas pretendiam que existisse. Contudo,<br />

aparec<strong>em</strong> reclamações, uma e outra vez, contra a não-abertura incondicional e total <strong>de</strong>sses arqui-<br />

vos. O Car<strong>de</strong>al Cassidy, no discurso citado ao começo <strong>de</strong>ste trabalho, comentou, a respeito: “So-<br />

mos uma Igreja, não um Estado ou Nação. Os nossos arquivos contêm documentos confi<strong>de</strong>nciais,<br />

(5) O Pe. Pierre Blet, jesuíta que participou da pesquisa, resumiu os doze volumes num único, com o título Pie XII et la<br />

Secon<strong>de</strong> Guerre Mondiale d’après les Archives du Vatican.<br />

9


informações que se refer<strong>em</strong> à vida interna da nossa Igreja, a respeito das quais existe um entendi-<br />

mento solene <strong>de</strong> que não serão feitas públicas, pelo menos durante a vida das pessoas envolvidas.”<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, o Car<strong>de</strong>al ofereceu a formação <strong>de</strong> uma comissão conjunta <strong>de</strong> especialistas, ju-<br />

<strong>de</strong>us e católicos, que, após se <strong>de</strong>bruçar<strong>em</strong> sobre o vasto material já publicado, po<strong>de</strong>riam apresentar<br />

d<strong>em</strong>andas <strong>de</strong> esclarecimentos ulteriores. Nesse caso, a Santa Sé estaria disposta a permitir uma<br />

pesquisa mais profunda dos arquivos vaticanos. Tal proposta, acolhida pelo nosso Comitê <strong>de</strong> Liga-<br />

ção, foi explicitamente assumida pela Santa Sé, através <strong>de</strong> nota publicada <strong>em</strong> L’Osservatore Ro-<br />

mano, no dia <strong>de</strong> clausura do encontro.<br />

A posição do Vaticano, <strong>em</strong> relação à atuação <strong>de</strong> Pio XII, se po<strong>de</strong> resumir do seguinte mo-<br />

do. Em primeiro lugar, a verda<strong>de</strong> sobre os campos <strong>de</strong> extermínio só foi conhecida paulatinamente.<br />

Não nos esqueçamos <strong>de</strong> que, <strong>em</strong>bora os campos <strong>de</strong> concentração existiss<strong>em</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> antes da Guerra,<br />

a <strong>de</strong>cisão sobre a Endlösung (a “solução final”) parece ter sido tomada pela cúpula nazista apenas<br />

<strong>em</strong> 1941. Como conseqüência da correspondência enviada pelos núncios na Al<strong>em</strong>anha e nos países<br />

ocupados, Pio XII <strong>de</strong>nunciou, na radiomensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Natal <strong>de</strong> 1942, que “centenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />

pessoas, s<strong>em</strong> qualquer culpa própria, talvez apenas <strong>em</strong> razão <strong>de</strong> sua nacionalida<strong>de</strong>, ou da sua estir-<br />

pe, são <strong>de</strong>stinadas à morte ou a uma extinção progressiva.” Em segundo lugar, a Santa Sé serviu,<br />

ao longo da Guerra, como uma ponte para aliviar os sofrimentos <strong>de</strong> prisioneiros e <strong>de</strong>portados, <strong>em</strong><br />

ambos os bandos. A Pontifícia Obra <strong>de</strong> Assistência canalizava a correspondência para prisioneiros<br />

<strong>de</strong> todos os tipos. Foram muitos milhões <strong>de</strong> cartas e <strong>de</strong> pacotes <strong>de</strong> ajuda que passaram pelo Vatica-<br />

no. Era preciso <strong>de</strong>ixar abertos esses canais <strong>de</strong> comunicação. A política constante da Santa Sé é e<br />

foi s<strong>em</strong>pre a <strong>de</strong> não tomar jamais a iniciativa do rompimento <strong>de</strong> relações diplomáticas. Pod<strong>em</strong><br />

consi<strong>de</strong>rar-se, a esse respeito, os casos da União Soviética, no momento do triunfo da revolução<br />

bolchevique, da China após a vitória do comunismo, <strong>de</strong> Cuba, quando o regime <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro<br />

expulsou mais <strong>de</strong> trezentos sacerdotes e mais <strong>de</strong> mil freiras.<br />

Ao t<strong>em</strong>po da Segunda Guerra Mundial, enquanto as potências oci<strong>de</strong>ntais solicitavam uma<br />

<strong>de</strong>núncia mais explícita do nazismo, a Al<strong>em</strong>anha pedia uma con<strong>de</strong>nação pública do bolchevismo, e<br />

quase que a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> uma Cruzada contra a União Soviética. A Santa Sé não fez n<strong>em</strong> uma<br />

coisa n<strong>em</strong> a outra, pois preferiu ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>diálogo</strong> com todos. Em relação aos ju<strong>de</strong>us,<br />

Pio XII, conforme aparece na correspondência com vários núncios dos países ocupados pelos ale-<br />

mães, ficou hesitante sobre o que seria mais eficaz: se “uma reserva e um silêncio pru<strong>de</strong>ntes ou<br />

uma palavra franca e uma ação vigorosa”. A própria Cruz Vermelha Internacional estava conven-<br />

cida <strong>de</strong> que “as protestas seriam inúteis e que inclusive teriam produzido um serviço ruim para as<br />

pessoas a qu<strong>em</strong> se pretendia ajudar”. L<strong>em</strong>bre-se, a esse respeito, para enten<strong>de</strong>r a dúvida, que a<br />

protesta dos bispos holan<strong>de</strong>ses pela <strong>de</strong>portação dos ju<strong>de</strong>us dos Países Baixos, <strong>em</strong> lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>tê-la,<br />

a ampliou, incluindo na nefasta ação também os que se tinham convertido ao Catolicismo, entre os<br />

10


quais se <strong>de</strong>staca a figura da gran<strong>de</strong> pensadora Edtih Stein. De fato, no dia seguinte à publicação <strong>de</strong><br />

uma carta coletiva dos bispos holan<strong>de</strong>ses, contra a <strong>de</strong>portação dos ju<strong>de</strong>us, as SS proce<strong>de</strong>ram à <strong>de</strong>-<br />

tenção <strong>de</strong> todos os católicos <strong>de</strong> estirpe judia resi<strong>de</strong>ntes na Holanda.<br />

Permitam-me, inci<strong>de</strong>ntalmente, uma palavra a respeito da canonização da citada Edith Ste-<br />

in, realizada por João Paulo II, no dia 11 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1998. Como falei, no início, não pod<strong>em</strong>os<br />

esquecer nenhuma das vítimas da perseguição. Nós, católicos, também <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os recordar. Edith<br />

Stein, <strong>em</strong>bora <strong>de</strong> família judia, mas atéia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua juventu<strong>de</strong>, não se converteu ao Catolicismo<br />

por obra <strong>de</strong> qualquer ação proselitista e missionária. Foi a leitura da autobiografia <strong>de</strong> Santa Teresa,<br />

que casualmente lhe caíra nas mãos, que a induziu a entrar no Catolicismo. Como já falamos, ela<br />

só foi <strong>de</strong>tida quando os nazistas quiseram se vingar dos bispos católicos da Holanda. Há test<strong>em</strong>u-<br />

nhas que afirmam que, no momento da <strong>de</strong>tenção, ela teria dito para sua irmã Rosa, também<br />

convertida ao Catolicismo: “Vamos com a nossa gente.” Nesse sentido, creio que ambas as<br />

comunida<strong>de</strong>s, judia e <strong>católica</strong>. Pod<strong>em</strong>os consi<strong>de</strong>rá-la como mártir própria. Morreu por ser ambas<br />

as coisas, judia e <strong>católica</strong>. Em lugar <strong>de</strong> um símbolo <strong>de</strong> discórdia, ela <strong>de</strong>veria ser símbolo <strong>de</strong> união:<br />

nunca renunciou ao seu ser ju<strong>de</strong>u, mas também viveu até o fim a sua fé, que brotara <strong>de</strong> uma<br />

convicção profunda. Pelo respeito que nos <strong>de</strong>dicamos, mutuamente, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os reconhecer a todas as<br />

pessoas o direito a uma conversão, feita na liberda<strong>de</strong> e na fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à própria consciência, tanto se<br />

mencionamos a conversão <strong>de</strong> um cristão ao Judaísmo, como a <strong>de</strong> um ju<strong>de</strong>u ao Cristianismo.<br />

Voltando a nosso principal argumento, a respeito da pretensa omissão <strong>de</strong> Pio XII, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os<br />

dizer que o cinismo e a tirania nazistas dificilmente se teriam contido diante das <strong>de</strong>clarações do<br />

Papa, apresentado na Al<strong>em</strong>anha pela propaganda <strong>de</strong> Goebbels como inimigo da nação germânica.<br />

L<strong>em</strong>bre-se, aliás, que, naquela época, a Santa Sé tinha uma ação internacional muito mais limitada<br />

do que atualmente. N<strong>em</strong> os Estados Unidos n<strong>em</strong> a União Soviética, por ex<strong>em</strong>plo, mantinham rela-<br />

ções diplomáticas com ela. A Inglaterra, <strong>em</strong>bora tivesse um <strong>em</strong>baixador no Vaticano, não admitia<br />

um núncio na Grã-Bretanha. Qual teria sido a resposta do regime nazista a uma intervenção direta<br />

do Papa? Conhec<strong>em</strong>os a reação brutal <strong>de</strong> Hitler perante ao Núncio Monsenhor Orsenigo, que lhe<br />

expressou as preocupações da Santa Sé sobre “a questão judia”. Em suas m<strong>em</strong>órias, Orsenigo es-<br />

creve: “Há poucos dias, consegui, finalmente, ir a Berchstesga<strong>de</strong>n, on<strong>de</strong> fui recebido por Hitler;<br />

apenas acenei à questão judia, o nosso colóquio per<strong>de</strong>u toda a serenida<strong>de</strong>. Hitler me virou as cos-<br />

tas, aproximou-se da janela e começou a batucar com os <strong>de</strong>dos sobre o vidro... enquanto eu conti-<br />

nuava a expressar as nossas queixas. De improviso, Hitler virou-se, aproximou-se duma mesa da<br />

qual tomou um copo que espatifou contra o chão, com um gesto <strong>de</strong> ira. Diante <strong>de</strong> tal comporta-<br />

mento diplomático, consi<strong>de</strong>rei terminada a minha missão.” (6)<br />

(6) Em Biffi, Monica M., Mons. Cesare Orsenigo, Nunzio Apostolico in Germania (1930-1946), Archivio Ambrosiano,<br />

1998.<br />

11


Como ponto <strong>de</strong> comparação, po<strong>de</strong> evocar-se a resposta <strong>de</strong> Stalin a Churchill, quando, na<br />

Conferência <strong>de</strong> Ialta, este último levantou a objeção <strong>de</strong> que o Papa po<strong>de</strong>ria protestar pela nova or-<br />

d<strong>em</strong> européia que lá se <strong>de</strong>senhava, e que resultou na sujeição <strong>de</strong> numerosas nações à tirania sovié-<br />

tica. “Quantas divisões t<strong>em</strong> o Papa?”, perguntou o czar vermelho. É claro que os ditadores enten-<br />

d<strong>em</strong> somente a linguag<strong>em</strong> da força.<br />

Na caminhada da Igreja Católica rumo ao Terceiro Milênio, e <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> reconcilia-<br />

ção e penitência, não pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> assinalar as <strong>de</strong>clarações recentes <strong>de</strong> vários episcopados,<br />

sobretudo europeus, relacionadas com a Shoah: os Bispos da Hungria (26 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1992), os<br />

Bispos al<strong>em</strong>ães (17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1995), os Bispos dos Estados Unidos (27 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1995), os<br />

Bispos holan<strong>de</strong>ses (outubro <strong>de</strong> 1995), os Bispos suíços (cinco <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1997) e os Bispos<br />

franceses (30 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1997). De modo especial impressionam, pela sincerida<strong>de</strong> e<br />

humilda<strong>de</strong>, as <strong>de</strong>clarações dos al<strong>em</strong>ães e franceses.<br />

Desejo concluir estas reflexões fazendo minhas as palavras do comunicado conjunto apro-<br />

vado no fim da reunião do International Jewish-Catholic Liaison Committee, já citada: “Ao discu-<br />

tir a preparação para o próximo Milênio/Jubileu do ano 2000, a ênfase foi colocada sobre a visão<br />

proposta pelo Papa João Paulo II, <strong>de</strong> que a virada do milênio cristão <strong>de</strong>veria fornecer à Igreja a<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma penitência interior (confissão/conversão interior; heshbon hanefe-<br />

sh/teshuvah), não apenas ao consi<strong>de</strong>rar a teologia cristã antijudia, mas também os maus tratos in-<br />

fligidos aos ju<strong>de</strong>us ao longo <strong>de</strong> todo o espectro histórico. Tal consi<strong>de</strong>ração cristã po<strong>de</strong>ria servir <strong>de</strong><br />

base para lançar os fundamentos <strong>de</strong> uma reconciliação ulterior entre ju<strong>de</strong>us e católicos, capaz <strong>de</strong><br />

mudar profundamente para melhor, durante o próximo milênio, a nossa história comum, tantas<br />

vezes marcada pelas contendas.”<br />

12


Sobre a Justiça<br />

Irmã Alda<br />

Congregação <strong>de</strong> N. Sra. <strong>de</strong> Sion<br />

Justiça. Perante a este t<strong>em</strong>a, não <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> me assustar, pela importância que t<strong>em</strong> na vida das<br />

pessoas, das comunida<strong>de</strong>s, dos países, dos grupos religiosos. Para escrever sobre ele, consultei<br />

alguns expoentes da ciência religiosa, propondo aqui uma reflexão. Entretanto, eu não <strong>de</strong>veria te-<br />

mer o assunto, pois Justiça t<strong>em</strong> muito a ver com Direito - sou bisneta do fundador da Escola <strong>de</strong><br />

Direito <strong>de</strong> Belo Horizonte e neta do primeiro Procurador Geral da República. Como se não bastas-<br />

se, filha <strong>de</strong> um advogado, Promotor <strong>de</strong> Justiça, tendo um irmão, sobrinho e primos que militam no<br />

foro da Justiça <strong>de</strong> Minas Gerais, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro e Rondônia. Mas, afinal, <strong>de</strong> que Justiça posso fa-<br />

lar, e <strong>de</strong> que tipo <strong>de</strong> Justiça vocês quer<strong>em</strong> ouvir?<br />

Para mim, falar <strong>de</strong> Justiça r<strong>em</strong>ete ao mundo da Bíblia, que é comum às religiões monoteís-<br />

tas, e me permite comentar questões que o Vaticano II nos convidam a praticar. Todavia, como<br />

religiosa, quero começar pela palavra do Profeta Miquéias, que aponta para a finalida<strong>de</strong> da Justi-<br />

ça - aproximar-nos da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus: “L<strong>em</strong>bra-te, ó hom<strong>em</strong>, do que o Senhor exige <strong>de</strong> ti: prati-<br />

car a justiça, amar misericórdia e andar humild<strong>em</strong>ente diante do teu Deus” (Mq 6,8).<br />

Vamos à análise da palavra Justiça: <strong>em</strong> hebraico, t<strong>em</strong>os o termo Tzedakah, que correspon-<br />

<strong>de</strong> a Justiça; e o termo Mishpat, que significa Direito. Termos que pertenc<strong>em</strong> à ética bíblica. Ela<br />

recomenda o reconhecimento do ser humano, sua proteção, sobretudo aqueles <strong>de</strong> maior vulnerabi-<br />

lida<strong>de</strong>: os pobres, os órfãos, as viúvas, os estrangeiros, tantas vezes mencionado pelos profetas. O<br />

conceito <strong>de</strong> Justiça, revela Deus como juiz severo e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, o ameniza por seu aspecto<br />

misericordioso (rahamim).<br />

O Senhor é um Deus que “faz justiça, mas para salvar”. Toda justiça v<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus. Aque-<br />

les que a exerc<strong>em</strong> frente à socieda<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> levar <strong>em</strong> conta tal realida<strong>de</strong>, comet<strong>em</strong> injustiças, pois a<br />

Justiça é a garantia do Direito. E todo ser humano t<strong>em</strong> direitos e <strong>de</strong>veres, cuja infração cabe às leis<br />

e seus representantes l<strong>em</strong>brar e sancionar, para corrigir.<br />

No Evangelho segundo São Marcos, l<strong>em</strong>os: “Buscai antes <strong>de</strong> tudo o Reino <strong>de</strong> Deus e sua<br />

Justiça, e tudo mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6,33). Todos os atos dos homens são julga-<br />

dos por um Deus justo, <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> “justiça e misericórdia se encontram”. Para que o entendamos<br />

melhor, também pod<strong>em</strong>os citar o Evangelho segundo São Mateus, especialmente a parábola que e<br />

refere ao Reino dos céus – supr<strong>em</strong>a recompensa da Justiça. Um hom<strong>em</strong> saiu <strong>de</strong> manhã, muito ce-<br />

do, e enviou operários à sua vinha. Assim o fez pela terceira hora, pela sexta e pela undécima hora.<br />

Ao entar<strong>de</strong>cer, <strong>de</strong>u a cada um <strong>de</strong>les uma moeda <strong>de</strong> prata, tanto aos da primeira como aos da ultima<br />

hora. Frente à reclamação feita pelos das primeiras horas, o dono l<strong>em</strong>bra a condição do contrato e<br />

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espon<strong>de</strong>: “Não me é lícito fazer o que eu quero do que é meu?... Ou então o teu olho é mau por-<br />

que eu sou bom?” Seria injusto o que ele fez? A parábola, no fundo, quer mostrar não somente a<br />

Justiça <strong>de</strong> Deus, livre para promover uma Justiça eqüitativa, e também livre para exercer a miseri-<br />

córdia: “Seria que o teu olho é mal porque eu sou bom?”<br />

A Justiça não consiste <strong>em</strong> dar somente o merecido, mas <strong>em</strong> dar segundo as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

cada um. Aqui tocamos no aspecto humano e social <strong>de</strong> que a Justiça, que v<strong>em</strong> da ética bíblica, nos<br />

convida a praticar. L<strong>em</strong>bro-me <strong>de</strong> que a Encíclica Rerum Novarum foi muito louvada porque re-<br />

comendava o “salário família”, e creio que a Humanida<strong>de</strong> caminhou muito no sentido da justiça<br />

distributiva, sendo esta ainda hoje objeto <strong>de</strong> muitos estudos e n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre posta <strong>em</strong> prática.<br />

Voltando a Bíblia, gostaria <strong>de</strong> comentar um trecho do Evangelho segundo São Lucas, que<br />

aponta um aspecto interessante: “O óbulo da viúva” (Lc 21, 1-4). Segundo as Sagradas Escrituras,<br />

ela <strong>de</strong>positou duas moedinhas no cofre <strong>de</strong> esmolas, on<strong>de</strong> os ricos colocavam, <strong>em</strong> geral, gran<strong>de</strong>s<br />

somas. E Jesus, que vira o gesto, disse: “Esta viúva pobre <strong>de</strong>positou mais que todos os outros, pois<br />

todos tiraram do seu supérfluo para <strong>de</strong>positar nas ofertas, enquanto ela tirou <strong>de</strong> sua pobreza para<br />

<strong>de</strong>positar tudo o que tinha para viver.” Sua atitu<strong>de</strong> é louvada, não pela quantida<strong>de</strong> do dom, mas<br />

pela atitu<strong>de</strong> generosa. O conceito da Justiça, aqui, vai tomando uma conotação moral elevada. A<br />

supr<strong>em</strong>a norma do ato humano é a Vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, a Lei <strong>de</strong> Deus, o Caminho do Senhor. Justo é<br />

qu<strong>em</strong> faz o que agrada a Deus.<br />

Com razão, o Salmo 119 faz o elogio da Lei, vendo-a <strong>de</strong> forma otimista, com olhos amoro-<br />

sos, e não como um severo juiz. O salmista pe<strong>de</strong> a Deus luzes e força, para cumpri-la: “Dá enten-<br />

dimento e observarei a tua Lei, e guardarei <strong>de</strong> todo coração” (v.34). Então, o cumprimento da Lei<br />

passa a ser uma alegria: “Delicio-me <strong>em</strong> teus <strong>de</strong>cretos, não esqueço tua palavra” (v.16). “De ti,<br />

senhor, espero a salvação, e a tua Lei constitui minhas <strong>de</strong>lícias” (v.174).<br />

Não é outro o pensamento <strong>de</strong> Isaias, que diz: “O justo é feliz, pois comerá o fruto <strong>de</strong> suas<br />

ações.” Em Ezequiel(3, 1-3), ele recebe a ord<strong>em</strong> <strong>de</strong> comer o rolo da Lei: “Eu o comi; na minha<br />

boca ele tinha a doçura do mel.” Este sentido <strong>de</strong> Justiça - comportamento humano frente à Lei <strong>de</strong><br />

Deus, e sua recompensa - está presente <strong>em</strong> toda Literatura Sapiencial, especialmente nos Salmos.<br />

“Feliz daquele que t<strong>em</strong> ajuda do Deus <strong>de</strong> Jacó. Ele faz Justiça aos oprimidos, dá pão a qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong><br />

fome. O Senhor abre os olhos dos cegos, levanta os que esmorec<strong>em</strong>. o Senhor protege os migrantes<br />

dá apoio ao órfão e a viúva, mas confun<strong>de</strong> os passos dos maus” (Sl. 146,5).<br />

O Salmo 15 diz: “Senhor, qu<strong>em</strong> habitará na tua montanha santa? O hom<strong>em</strong> da conduta ín-<br />

tegra, que pratica a justiça, não <strong>em</strong>prestou seu dinheiro com usura, nada aceitou para <strong>de</strong>itar a per-<br />

<strong>de</strong>r um inocente. Qu<strong>em</strong> age assim permanece inabalável.” No Salmo 26, encontramos: “Faz-me<br />

Justiça, Senhor, pois minha conduta é íntegra, e confiei no Senhor s<strong>em</strong> vacilar. Senhor, submete-<br />

me a prova. Minha conduta é íntegra, liberta-me, por pieda<strong>de</strong>!” Aqui perguntamos: seria este grito<br />

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ouvido por Deus? Como a Bíblia apresenta a sorte daqueles que s<strong>em</strong>pre foram fiéis? O que aconte-<br />

ce com os justos <strong>de</strong> hoje?<br />

Encontramos o relato bíblico <strong>de</strong> Tobias, hom<strong>em</strong> justo, bom e cardíaco, que fica cego. Ra-<br />

gel, ao encontrar-se com Tobias, seu irmão, exclama: “Que gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça ter ficado cego um<br />

hom<strong>em</strong> tão justo, que dava tantas esmolas!” No fim da narração, Tobias, curado, por sua vez ex-<br />

clama: “Bendito seja Deus! Bendito seja seu gran<strong>de</strong> nome!” E posteriormente, ele recomenda aos<br />

filhos: “Pratiqu<strong>em</strong> a Justiça e a esmola, l<strong>em</strong>br<strong>em</strong>-se <strong>de</strong> Deus e o bendigam <strong>em</strong> todas as ocasiões,<br />

na verda<strong>de</strong> e com todas as forças.”<br />

A esta altura, já entramos no gran<strong>de</strong> t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> Jó, o Justo, protegido por Deus e posto à pro-<br />

va. Então, o Justo po<strong>de</strong> sofrer? Po<strong>de</strong> ser perseguido?!... Como é possível conciliar proteção, re-<br />

compensa e prova? No Livro <strong>de</strong> Jó, nos <strong>de</strong>paramos com o questionador <strong>de</strong> todas as teorias otimis-<br />

tas vigentes nos Livros Sapienciais. Ver<strong>em</strong>os que o t<strong>em</strong>a principal do Livro é a Justiça, e não o<br />

sofrimento <strong>em</strong> si. Vamos analisá-lo, ainda que seja rapidamente: um gran<strong>de</strong> biblista argentino do<br />

nosso t<strong>em</strong>po, Severino Croatto, com qu<strong>em</strong> tive ocasião <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> reuniões <strong>de</strong> estudo, nos<br />

convida a ler o Livro <strong>de</strong> Jó como um filme, uma montag<strong>em</strong>.<br />

Ele afirma que este Livro está <strong>de</strong>ntro da corrente sapiencial do Oriente, especificamente no<br />

gênero literário <strong>de</strong>nominado Ludlui Nèmeqi. “Louvarei ao Senhor da Sabedoria”, com esta frase<br />

começam as obras que discut<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>a do sofrimento injusto. Uma crítica da teoria da retribuição,<br />

a partir da própria tradição criticada. Quanto à forma, trata-se <strong>de</strong> uma história, ao estilo das narra-<br />

tivas populares. O drama, porém, nos faz sentir como <strong>em</strong> uma representação teatral, on<strong>de</strong> há um<br />

cenário com personagens que atuam e espectadores que receb<strong>em</strong> a mensag<strong>em</strong>.<br />

Para começar, o “fiscal” (o “acusador”) lança uma aposta com Deus sobre a integrida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Jô. Expõe-se sua <strong>de</strong>sintegração, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os bens até seu próprio corpo. Depois, os amigos pergun-<br />

tando-lhe por que sofre. Ele afirma sua inocência e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, pe<strong>de</strong> justiça. Os amigos ape-<br />

lam para os recursos tradicionais: a divina providência, a ord<strong>em</strong> cósmica, a sabedoria e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

Deus, que fere para corrigir. Para eles, Jó é um malvado que sofre castigo, o acusam <strong>de</strong> pecados<br />

concretos. A <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Jó, entre os Capítulos 29 a 31, é <strong>em</strong>ocionante e poética:<br />

“As luas <strong>de</strong> outrora, qu<strong>em</strong> mais po<strong>de</strong>rá reviver, os dias <strong>em</strong> que Deus velava por mim? À<br />

minha fronte sua lâmpada brilhava e na noite eu andava à sua luz. Quando o Po<strong>de</strong>roso ainda estava<br />

comigo e os meus filhos ao redor <strong>de</strong> mim. Agora, a vida se me escorre por <strong>de</strong>ntro, os dias <strong>de</strong> afli-<br />

ção me oprim<strong>em</strong>. Minha harpa está afinada para o lamento e minha flauta, para a voz dos prantea-<br />

dores. Qu<strong>em</strong> me dará qu<strong>em</strong> me escute? Eu me subscrevo! Responda o Po<strong>de</strong>roso!” Mas Deus não<br />

respon<strong>de</strong>! “Eu grito a ti e não me respon<strong>de</strong>s: estou diante <strong>de</strong> ti e teu olhar me transpassa...”<br />

No quarto ato, Deus interroga Jó, no seio da t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>, dizendo: “Qu<strong>em</strong> está a <strong>de</strong>negrir a<br />

Providência com discursos s<strong>em</strong> sentido? Cinge, como um valente, os teus rins, vou te interrogar e<br />

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tu me instruirás.” Nos Capítulos <strong>de</strong> 38 a 42, lindos, o Livro <strong>de</strong>senvolve bonitos versos sobre a so-<br />

berania <strong>de</strong> Deus, sobre a terra, o mar, os sinais dos t<strong>em</strong>pos e até os animais,- e Jó se cala frente a<br />

esse Deus extraordinário. Por fim, o <strong>de</strong>senlace do drama: Deus restabelece a Jô, <strong>em</strong> sua saú<strong>de</strong>, <strong>em</strong><br />

seus bens e <strong>de</strong>clara a seus amigos: “Não falastes <strong>em</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim como o meu servo Jó!”<br />

Ao reler este Livro enten<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os um pouco melhor aquilo que, <strong>de</strong>ntro do t<strong>em</strong>a Justiça, sa-<br />

b<strong>em</strong>os sobre o justo sofredor. E enten<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os através do novo rosto <strong>de</strong> Deus que, realmente, ainda<br />

nos dias <strong>de</strong> hoje, o Senhor não abandona os seus filhos.<br />

As noções <strong>de</strong> Justiça que comentamos são as que l<strong>em</strong>os nos Evangelhos e nas Escrituras<br />

cristãs, <strong>em</strong> geral. São chamados justos os Patriarcas, os Piedosos, os Profetas e - segundo os Capí-<br />

tulos <strong>de</strong> cinco a sete, <strong>de</strong> São Mateus - aqueles que cumpr<strong>em</strong> a lei, especialmente a esmola, a oração<br />

e o jejum. No Sermão da Montanha, Jesus exalta os pobres, os mansos, os que choram, os puros,<br />

os misericordiosos, “os que t<strong>em</strong> fome e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> justiça.” Diz que <strong>de</strong>les será “o Reino dos céus”. No<br />

versículo 17, do quinto capítulo, Cristo <strong>de</strong>clara: “Não penseis que vim abolir a Lei ou os Profetas;<br />

não vim abolir, mas cumprir.”<br />

Praticar a Justiça coinci<strong>de</strong> com a prática do amor ao próximo (Capítulos 25-37-46): “Por-<br />

que eu tive fome e me <strong>de</strong>stes <strong>de</strong> comer, tive se<strong>de</strong> e me <strong>de</strong>ste <strong>de</strong> beber; estava nu e me vestiste; do-<br />

ente, e me visitaste; estava na prisão, e viestes a mim.” Então, os justos lhe respon<strong>de</strong>rão: “Senhor,<br />

quando é que nos suce<strong>de</strong>u ver-te com fome e alimentar-te, ver-te estrangeiro e acolher-te, nu e<br />

vestir-te? E o Rei lhes respon<strong>de</strong>rá: <strong>em</strong> verda<strong>de</strong> vos <strong>de</strong>claro. Todas as vezes que o fizestes a um<br />

<strong>de</strong>sses mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes.”<br />

Quero terminar nossa refelxão, l<strong>em</strong>brando que para nós, cristãos, Jesus Cristo foi realmente<br />

o Justo. Como Jó, o Justo sofredor, o servo “<strong>em</strong> qu<strong>em</strong> o Pai se compraz (Mt 3,17). O que soube,<br />

até o fim, “cumprir toda a Justiça” (Mt. 3,15).<br />

Fico muito feliz por estar com vocês e apresentar esse t<strong>em</strong>a, a Justiça.<br />

<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 04 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1999<br />

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Seis Sutras no Diálogo entre Religiões<br />

James W. Heisig<br />

Nanzan Institute for Religion and Culture<br />

O ensaio abaixo surgiu, primeiramente, como parte <strong>de</strong> uma coletânea especial <strong>em</strong> come-<br />

moração ao vigésimo-quinto aniversário da fundação do Nanzan Institute for Religion<br />

and Culture. Uma versão ligeiramente modificada <strong>de</strong>sta tradução foi, <strong>de</strong>pois, preparada<br />

para uma coletânea editada por Werner Jahnrod e Aasulf Lan<strong>de</strong> sob o título Apple Pie,<br />

Motherhood, and Interreligious Dialogue (Maryknoll: Orbis Books, 2001).<br />

Prova da importância do <strong>diálogo</strong> entre religiões não t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser dada aqui. Para os envolvidos<br />

no assunto, a prova está na experiência. Para os que precisam ser convencidos por argumentos ra-<br />

cionais, há toda uma literatura sobre o t<strong>em</strong>a, disponível <strong>em</strong> uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> idiomas. Para aque-<br />

les cuja experiência ou convicções os faz pensar <strong>de</strong> outro modo, nada do que eu diga aqui irá per-<br />

suadi-los a mudar suas opiniões. Minha preocupação é outra.<br />

Isso posto, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é óbvio para mim que <strong>de</strong>fensores e críticos do <strong>diálogo</strong> fal<strong>em</strong> sobre a<br />

mesma coisa. Não se trata <strong>de</strong> um lamento - é da própria natureza do <strong>diálogo</strong> que assim seja. Não há<br />

nenhum curral no qual se possa arrebanhar uma certa classe <strong>de</strong> idéias e ativida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> modo a mar-<br />

cá-las como pertencentes ao conceito <strong>de</strong> <strong>diálogo</strong>. N<strong>em</strong> tampouco há altura privilegiada da qual se<br />

possa observar as interações entre religião e generalizar <strong>de</strong>finições ou normas. Tudo que dissermos<br />

sobre <strong>diálogo</strong> - mesmo <strong>em</strong> suas formas mais racionais - t<strong>em</strong> <strong>de</strong> ser feito <strong>em</strong> pleno <strong>diálogo</strong>. Não é<br />

uma habilida<strong>de</strong> profissional exercida <strong>em</strong> conjunto e supervisionada por alguma autorida<strong>de</strong> superi-<br />

or. É uma aventura <strong>de</strong> idéias.<br />

A experiência logo ensina que o que acontece quando diferentes caminhos religiosos se<br />

encontram, através do colóquio <strong>de</strong> seus crentes, raramente atend<strong>em</strong> às expectativas e às previsões<br />

dos participantes. Os resultados são freqüent<strong>em</strong>ente mais fortuitos e fragmentados, do que<br />

sist<strong>em</strong>áticos. O maior impacto costuma ser mais sentido na atraente virada <strong>de</strong> uma idéia familiar,<br />

um fato negligenciado, um sentimento não esperado, do que <strong>em</strong> um consenso <strong>de</strong>liberado ou<br />

esclarecimento das diferenças. Isso não quer dizer que o fórum no qual pessoas <strong>de</strong> diferentes<br />

tradições religiosas entram para discutir assuntos <strong>de</strong> interesse comum seja pouco mais do que um<br />

bate-papo agradável entre vizinhos. Significa apenas que, no encontro das religiões, os melhores<br />

frutos, até mesmo do colóquio mais rigoroso e disciplinado, tend<strong>em</strong> a brotar nos espaços entre o<br />

choque e o clamor <strong>de</strong> idéias e ferramentas intelectuais, para <strong>de</strong>sabrochar e amadurecer <strong>em</strong> outra<br />

hora e lugar, muitas vezes s<strong>em</strong> nenhum sinal visível <strong>de</strong> suas origens.<br />

Tudo isso é válido e bom para <strong>diálogo</strong>s particulares, mas, quando se trata <strong>de</strong> falar sobre todo o<br />

17


<strong>em</strong>preendimento do <strong>diálogo</strong>, como tal, avaliando suas proprieda<strong>de</strong>s e improprieda<strong>de</strong>s, anseia-se<br />

por algum tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> termos. Se, <strong>de</strong> fato, está havendo alguma transformação <strong>de</strong> perspec-<br />

tiva e se, realmente, faz parte <strong>de</strong> uma mudança mais ampla na consciência religiosa, então t<strong>em</strong>os<br />

<strong>de</strong> fazer uma pausa <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos, para ver que não é ilusória ou enganosa. Deixar <strong>de</strong> fazer<br />

isso é abrir-se à influência <strong>de</strong> agenda misteriosa ou conformação ingênua às idéias da moda, ou à<br />

simples conquista <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> certezas por outro.<br />

Assim, t<strong>em</strong>os aqui duas questões interligadas. Primeiramente, precisamos <strong>de</strong> alguns parâme-<br />

tros para <strong>de</strong>limitar o que entend<strong>em</strong>os por <strong>diálogo</strong> inter-religioso. Em segundo lugar, t<strong>em</strong>os <strong>de</strong> con-<br />

si<strong>de</strong>rar o que torna um <strong>diálogo</strong> verda<strong>de</strong>iro <strong>em</strong> si, e o que o torna falso.<br />

Consi<strong>de</strong>rando o primeiro, creio que o leitor não julgará exagerado, <strong>de</strong> minha parte, citar a oca-<br />

sião do vigésimo quinto aniversário da fundação do Nanzan Institute for Religion and Culture, para<br />

caracterizar o <strong>diálogo</strong> inter-religioso, razão <strong>de</strong>sse ensaio. Alguém também po<strong>de</strong>ria dizer, talvez<br />

com mais humilda<strong>de</strong> e menos risco <strong>de</strong> presunção, que o papel que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhamos no <strong>diálogo</strong><br />

nada mais é do que um aspecto do fenômeno multifacetado e ainda crescente. Meu foco aqui, en-<br />

tretanto, exige uma <strong>de</strong>claração ousada da aceitação <strong>de</strong> que nossa experiência significa alguma coi-<br />

sa, na história do <strong>diálogo</strong>. Obviamente, estou por d<strong>em</strong>ais envolvido nesse fenômeno para reivindi-<br />

car qualquer coisa, que não a forma menos rígida <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> a esse respeito. Mas, na medida<br />

<strong>em</strong> que o Nanzan Institute foi criado como um centro para o <strong>diálogo</strong> inter-religioso e t<strong>em</strong>-se man-<br />

tido por um quarto <strong>de</strong> século com esse objetivo <strong>em</strong> mente - e na medida <strong>em</strong> que essa conduta coin-<br />

ci<strong>de</strong> com o que talvez seja, na história da Humanida<strong>de</strong>, o esforço mais longo e contínuo para fazer<br />

com que as religiões dialogu<strong>em</strong> umas com as outras -, então parece justo reivindicarmos nossa<br />

própria história como sendo representativa <strong>de</strong> uma parte indispensável do <strong>diálogo</strong>.<br />

Os <strong>de</strong>talhes do que estamos procurando estão <strong>de</strong>lineados <strong>em</strong> outra parte <strong>de</strong>ssa coletânea. Até<br />

mesmo o mais rápido olhar confirmará que nossa participação na aventura t<strong>em</strong> sido <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> inte-<br />

lectual. Não encontro razões para amenizar críticas <strong>de</strong> que religiões são muito mais do que sua<br />

doutrina ou autoconhecimento racional, e que um <strong>diálogo</strong> centrado <strong>em</strong> textos e idéias, comprome-<br />

tido com os princípios do discurso racional, é parcial. De fato, a gran<strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s inter-<br />

religiosas <strong>de</strong> que t<strong>em</strong>os participado no Japão, na Ásia e pelo mundo t<strong>em</strong> d<strong>em</strong>onstrado que a nossa<br />

ativida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> particular, é apenas um bordado <strong>em</strong> uma tapeçaria muito mais vasta. Consi<strong>de</strong>ro que<br />

o <strong>diálogo</strong> intelectual t<strong>em</strong> sido nossa parte na história, e prefiro falar a partir do que tenho visto e<br />

ouvido, mesmo que isso comprometa algumas das generalizações a seguir.<br />

O <strong>diálogo</strong> inter-religioso, no fórum intelectual, é <strong>diálogo</strong> no sentido mais literal do termo: pes-<br />

soas <strong>de</strong> uma crença religiosa conversando com pessoas <strong>de</strong> outras crenças. Embora o palco seja<br />

<strong>de</strong>finido por d<strong>em</strong>andas <strong>de</strong> argumento racional, é motivado por um <strong>de</strong>sejo puramente racional. Em<br />

outras palavras, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r melhor a dimensão religiosa do ser humano, <strong>em</strong> toda sua di-<br />

18


versida<strong>de</strong>. O foco da conversação é variável, assim como seu formato, mas a pura e simples inten-<br />

ção <strong>de</strong> ajudar, um ao outro, a pensar com mais clareza e mais informações sobre algo que pertence<br />

a todos nós, como parte <strong>de</strong> nossa natureza comum, continua a ser o i<strong>de</strong>al permanente e, <strong>de</strong> algum<br />

modo, evasivo. O que distingue o <strong>diálogo</strong> inter-religioso do estudo acadêmico da religião, ou da<br />

mera ampliação do horizonte <strong>de</strong> entendimento, é a convicção <strong>de</strong> que algo mais está <strong>em</strong> ação no<br />

próprio entendimento religioso, do que o exercício da razão sobre uma <strong>de</strong>terminada classe <strong>de</strong> fe-<br />

nômenos - aquilo que nos capta mais do que pod<strong>em</strong>os captar <strong>em</strong> nosso discurso, por ser in<strong>de</strong>scrití-<br />

vel. O centro do <strong>diálogo</strong> está envolto pelo que pod<strong>em</strong>os chamar ignotium per ignotius, mistério.<br />

Esse é o ponto <strong>de</strong> vista a partir do qual elaborei as observações que se segu<strong>em</strong>.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, confesso livr<strong>em</strong>ente que o tipo <strong>de</strong> <strong>diálogo</strong> inter-religioso que t<strong>em</strong>os no<br />

Nanzan po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um luxo, quando colocado diante do modo como a Humanida<strong>de</strong> an-<br />

da. Para todo o progresso que a civilização fez nas ferramentas que usa para trabalhar, comunicar e<br />

entreter-se, há indicação <strong>de</strong> que a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s culturais básicas se <strong>de</strong>teriorou, <strong>de</strong><br />

que parece haver uma correlação inversa entre a sofisticação <strong>de</strong> nossas ferramentas e a distribuição<br />

da riqueza que dá acesso a elas - e que a religião organizada parece ter feito paz com a contradição<br />

<strong>de</strong> seus princípios. Acorrer ao forum do livre <strong>diálogo</strong> <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> direta para<br />

com a ord<strong>em</strong> mundial é um privilégio. A única justificativa possível para aqueles que o faz<strong>em</strong> é o<br />

que acontece na história <strong>em</strong> torno do <strong>diálogo</strong>. Também comento tal aspecto, a seguir.<br />

* * *<br />

No que se refere à segunda questão <strong>de</strong> avaliar a veracida<strong>de</strong> do <strong>diálogo</strong> inter-religioso intelec-<br />

tual, gostaria <strong>de</strong> oferecer várias proposições como fios para compor a tapeçaria maior do encontro<br />

entre religiões. Apenas por eles mesmos, esses fios - ou usando o termo sânscrito, sutras - são fi-<br />

nos e se romp<strong>em</strong> facilmente com os movimentos do fuso. Precisam estar trançados, para ser<strong>em</strong><br />

trabalhados no tear. Com isso, não quero dizer que ofereço uma metodologia sist<strong>em</strong>ática, menos<br />

ainda um conjunto <strong>de</strong> regras para todo o <strong>diálogo</strong> intelectual entre religiões. Só quero expor algu-<br />

mas reflexões relativas ao questionamento do que torna um <strong>diálogo</strong> verda<strong>de</strong>iro, reflexões expressas<br />

do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> um participante cristão. Outros, da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudiosos que participam<br />

do Nanzan Institute, s<strong>em</strong> dúvida se expressariam diferent<strong>em</strong>ente e enfatizariam diferentes coisas.<br />

Pod<strong>em</strong> até mesmo criar caso com algumas <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>clarações. T<strong>em</strong>os sido um grupo heterogêneo<br />

d<strong>em</strong>ais, para preten<strong>de</strong>r chegar a uma orientação comum. Os erros e omissões que nos têm acompa-<br />

nhado, ao longo do caminho, pertenc<strong>em</strong> também à história, mas <strong>de</strong>vo <strong>de</strong>ixá-los <strong>de</strong> lado. Minha<br />

idéia é vagar entre as linhas da história do Instituto <strong>em</strong> busca do espírito do <strong>diálogo</strong>, o que t<strong>em</strong> sido<br />

nosso objeto <strong>de</strong> reflexão.<br />

19


Sutra I - O espírito do <strong>diálogo</strong> inter-religioso não precisa ter nascido <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada<br />

tradição, e sim renascer nela<br />

Quando o Cristianismo encontra outra religião, atualmente, o faz com nítida vantag<strong>em</strong> na lite-<br />

ratura sobre o <strong>diálogo</strong>. Não há nada <strong>em</strong> nenhuma outra religião do mundo que se compare à refle-<br />

xão teológica que se encontra espalhada no mundo cristão. Contudo, é necessário repudiar a alega-<br />

ção <strong>de</strong> que a inspiração básica para dialogar com as religiões do Japão - o Xintoísmo, o Budismo, a<br />

religião popular e os novos movimentos religiosos - tenha nascido sob o magistério ou a escritura<br />

<strong>de</strong> minha própria tradição.<br />

Nunca encontrei nenhuma evidência <strong>de</strong> que algum dos parceiros que tiv<strong>em</strong>os pu<strong>de</strong>sse ter feito<br />

tal reivindicação, <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> sua própria tradição. Os pioneiros do <strong>diálogo</strong> tiveram <strong>de</strong> se confron-<br />

tar o t<strong>em</strong>po inteiro com uma sucessão <strong>de</strong> passagens <strong>de</strong> escrituras e crenças tradicionais que os cen-<br />

suravam pelo que estavam fazendo. No caso do Nanzan Institute, o ar já estava limpo quando a pá<br />

cavou a terra, no preparo do terreno para as construções. Esta reversão <strong>de</strong> <strong>de</strong>stinos, que trouxe o<br />

<strong>diálogo</strong> para a vanguarda da reflexão teológica e <strong>em</strong>prestou o peso da tradição a este esforço, mui-<br />

tas vezes dá a impressão <strong>de</strong> que o <strong>diálogo</strong> é uma aventura distintamente cristã. Os fatos relativos à<br />

essa questão exig<strong>em</strong> mais humilda<strong>de</strong>.<br />

O Cristianismo não partiu, por iniciativa própria, para dialogar com as gran<strong>de</strong>s religiões do<br />

mundo. Umas poucas pessoas <strong>de</strong> visão perceberam uma mudança <strong>em</strong> andamento na consciência<br />

secular, relativa à promessa <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> religiosa. Reconheceram-na como algo <strong>de</strong> importância<br />

espiritual, envolveram-se nela contra a oposição e perseveraram até a hora <strong>de</strong> o próprio establish-<br />

ment religioso assumir o espírito do <strong>diálogo</strong>, <strong>em</strong> nome <strong>de</strong> sua própria herança perene. Quando o<br />

Concílio Vaticano II fez seus pronunciamentos <strong>de</strong> abertura para as religiões não-cristãs e para a<br />

liberda<strong>de</strong> religiosa - bastante dóceis, para os padrões atuais -, não estava iniciando uma mudança<br />

<strong>de</strong> coração, mas reconhecendo sua presença. Esse reconhecimento s<strong>em</strong> dúvida marcou o divisor <strong>de</strong><br />

águas da história do <strong>diálogo</strong>, apoiando aqueles que limparam o caminho para os cristãos reconhe-<br />

cer<strong>em</strong> a verda<strong>de</strong> <strong>em</strong> outros caminhos religiosos.<br />

Se o Cristianismo apressou-se, para evoluir <strong>em</strong> relação à diversida<strong>de</strong> religiosa, agora t<strong>em</strong> se<br />

lançado <strong>em</strong> números significativos. A maior prova <strong>de</strong> que o espírito do <strong>diálogo</strong> renasceu, no Cris-<br />

tianismo, não é ausência <strong>de</strong> perseguição. É a reinterpretação da tradição religiosa, possibilitando a<br />

abertura a outras crenças como conseqüência natural <strong>de</strong> nossa própria fé. Figuras negligenciadas<br />

do passado, cujas idéias sobre o <strong>diálogo</strong> foram marginalizadas, são agora apresentadas no centro<br />

das atenções, com orgulho. Não há razão para acusar teólogos <strong>de</strong> revisionismo histórico. Esse é o<br />

modo como as tradições religiosas s<strong>em</strong>pre ten<strong>de</strong>ram a funcionar. Muito mais importante que o fato<br />

<strong>de</strong> o <strong>diálogo</strong> não ter nascido diretamente <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada tradição - para o Cristianismo e<br />

qualquer outra religião - é o fato <strong>de</strong> ele estar renascendo <strong>em</strong> cada uma <strong>de</strong>las. Este renascimento<br />

20


agora serve <strong>de</strong> base para que antigas tradições se <strong>de</strong>diqu<strong>em</strong> a uma idéia <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância e<br />

longo alcance para a Humanida<strong>de</strong>, como um todo. O obstáculo foi superado. Como tal mentalida<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong> levar os diversos caminhos religiosos à busca <strong>de</strong>sse espírito, <strong>em</strong> suas próprias tradições, o<br />

valor do renascimento é intensificado.<br />

Sutra II - O <strong>diálogo</strong> é principalmente o <strong>em</strong>preendimento <strong>de</strong> uma minoria que está livre das<br />

obrigações da religião institucional<br />

Aplaudir o encorajamento que o establishment religioso dá ao <strong>diálogo</strong>, <strong>em</strong> geral, não é dizer<br />

que a presença <strong>de</strong> instituições religiosas é essencial ao <strong>diálogo</strong>, <strong>em</strong> todos os níveis. Esse é o caso<br />

do <strong>diálogo</strong> intelectual. Estar no fórum do <strong>diálogo</strong> é preconizar uma fé particular e, assim, estar<br />

como representante <strong>de</strong>ssa fé, quão ampla ou limitada seja sua gama <strong>de</strong> conhecimento. No entanto,<br />

não é estar como representante das d<strong>em</strong>andas institucionais <strong>de</strong>ssa fé. O trabalho do <strong>diálogo</strong> flores-<br />

ce melhor quando encontra-se livre das d<strong>em</strong>andas <strong>de</strong> instituições oficiais. A representação <strong>de</strong> pre-<br />

ocupações e políticas institucionais ten<strong>de</strong> a inibir a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento, que constitui-se a<br />

alma do <strong>diálogo</strong> intelectual. Não se <strong>de</strong>ixa a fé na porta <strong>de</strong> entrada, mas se <strong>de</strong>ixa ali a magnitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

religião, inclusive a dimensão das obrigações institucionais.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que as obrigações concretas da religião institucional são mantidas fora<br />

do <strong>diálogo</strong>, este aspecto institucional nunca po<strong>de</strong> estar longe da discussão da religião. Até mesmo<br />

<strong>em</strong> suas alturas doutrinais mais etéreas, o discurso religioso é <strong>em</strong>butido na história, tanto por suas<br />

estruturas políticas e econômicas visíveis quanto pela consciência <strong>de</strong> seus fiéis. Discurso e história<br />

são s<strong>em</strong>pre correlativos. Da mesma forma, a experiência religiosa particular, por todos os seus<br />

valores, não po<strong>de</strong> ser t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> uma discussão racional, a menos que seja abstraída do assunto expe-<br />

rimental. Também as preocupações <strong>em</strong> manter as estruturas religiosas precisam ser abstraídas do<br />

seu i<strong>de</strong>al, para que sejam discutidas. Do ponto <strong>de</strong> vista da religião institucional, o <strong>diálogo</strong> é s<strong>em</strong>-<br />

pre, <strong>em</strong> qualquer momento, um <strong>em</strong>preendimento minoritário, ina<strong>de</strong>quado às d<strong>em</strong>andas <strong>de</strong> uma<br />

tradição religiosa.<br />

Sutra III - O propósito do <strong>diálogo</strong> resi<strong>de</strong> <strong>em</strong> ser, s<strong>em</strong> propósito<br />

No mundo cristão, comissões e cursos <strong>de</strong> <strong>diálogo</strong> ajudaram o <strong>em</strong>preendimento a encontrar um<br />

espaço no establishment acadêmico e eclesiástico, <strong>em</strong> todo o mundo. O fenômeno é especialmente<br />

observado no Cristianismo, mas felizmente não apenas nele. Uma coisa significativa: tal <strong>de</strong>senvol-<br />

vimento não implica na conclusão <strong>de</strong> que o próprio <strong>diálogo</strong>, principalmente o <strong>diálogo</strong> intelectual,<br />

<strong>de</strong>va arcar com um programa fora do <strong>diálogo</strong>, seja diretamente relacionado ao sist<strong>em</strong>a religioso ou<br />

não. Muitas vezes, a tentação <strong>de</strong> fazer isso é gran<strong>de</strong>.<br />

Pensa-se, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> iniciativas para vincular o <strong>diálogo</strong> entre as religiões a alguma<br />

21


forma <strong>de</strong> ética global. O propósito <strong>de</strong> difundi-la no seio <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> diversas religiões constitui-<br />

se um passo importante para a paz mundial, sendo louvável por si só. Igualmente, a colaboração<br />

entre as religiões, contra os <strong>de</strong>srespeitos aos direitos humanos e a injustiça socioeconômica, é ad-<br />

mirável. Tal programa enten<strong>de</strong> o <strong>diálogo</strong> como uma forma <strong>de</strong> lobby ou força-tarefa – ele se difere<br />

do <strong>diálogo</strong> entre nações e corporações, <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> motivação, mas não <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> estrutura.<br />

De qualquer forma, isso não implica que todo o <strong>diálogo</strong> precisa se enquadrar <strong>em</strong> um programa, a<br />

fim <strong>de</strong> ser autêntico, por si. Pelo contrário, concordo com meu pre<strong>de</strong>cessor Jan Van Bragt: um dos<br />

objetivos que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> o <strong>diálogo</strong> intelectual é o fato <strong>de</strong> ele existir s<strong>em</strong> objetivo. 1<br />

A insistência pela forma <strong>de</strong> fórum do <strong>diálogo</strong> livre <strong>de</strong> objetivos secundários não contraria es-<br />

ses objetivos, <strong>de</strong> modo algum. Apenas afirma que a clareza <strong>de</strong> pensamento também é servida pelo<br />

ambiente que se distancia das insistentes preocupações do presente. Não há discussão <strong>de</strong> que tal<br />

afastamento é concretamente impotente, carente <strong>de</strong> uma orientação histórica. Dizer que tais fatos<br />

não constitu<strong>em</strong> suas preocupações imediatas, não é dizer que constitu<strong>em</strong> preocupações que não<br />

serão consi<strong>de</strong>rados no <strong>diálogo</strong> ou <strong>em</strong> algum outro fórum. Em outras palavras, a reivindicação do<br />

s<strong>em</strong> propósito só po<strong>de</strong> ser sustentada se consi<strong>de</strong>rarmos o fórum do <strong>diálogo</strong> como um asceticismo<br />

<strong>de</strong>liberado, mas provisório. O <strong>diálogo</strong> intelectual não é um estado permanente <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> religi-<br />

osa, ou mesmo <strong>de</strong> reflexão religiosa. O <strong>diálogo</strong> não t<strong>em</strong> por objetivo ser a plenitu<strong>de</strong> da crença reli-<br />

giosa, junto da prática religiosa. N<strong>em</strong> é, ao menos, um "ingrediente" permanente no simples auto-<br />

conhecimento religioso. O fórum do <strong>diálogo</strong>, por si, auxilia questões mais amplas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

histórica e moralida<strong>de</strong>, porque a ativida<strong>de</strong> do fórum não está subordinada a nada. Como um jogo<br />

que per<strong>de</strong> sua qualida<strong>de</strong> quando é submetido a algum propósito além do próprio jogo, o <strong>diálogo</strong><br />

floresce <strong>em</strong> sua falta <strong>de</strong> propósito.<br />

Por essa razão, é um erro consi<strong>de</strong>rar o envolvimento no <strong>diálogo</strong> como o trabalho <strong>de</strong> especialis-<br />

tas treinados. O <strong>diálogo</strong> t<strong>em</strong> mais êxito como resultado da experiência, do que da perícia. Tentati-<br />

vas <strong>de</strong> estabelecer "regras básicas" específicas para o discurso inteligente, entre crentes <strong>de</strong> diferen-<br />

tes fés, geram inevitavelmente um sacerdócio <strong>de</strong> peritos para monitorar os resultados dos encon-<br />

tros e avaliar seu sucesso ou fracasso. Para evitar isso, é preciso enten<strong>de</strong>r o <strong>diálogo</strong> como um b<strong>em</strong>,<br />

cujo propósito é não estar voltado a nenhum outro propósito.<br />

Sutra IV - O <strong>diálogo</strong> é seletivo quanto à tradição, e po<strong>de</strong> até mesmo requerer a dispensa<br />

completa da tradição<br />

Quando uma tradição doutrinal encontra outra, não há obrigação <strong>de</strong> representar a totalida<strong>de</strong><br />

1 Jan Van Bragt, A ;î Á Ê u “Û B (Questões no <strong>diálogo</strong> inter-religioso), Nanzan Institute for Religion and<br />

Culture, ed.; C ;î o k 5 :;î u Á Ê D (Religião e cultura: O <strong>diálogo</strong> entre religiões). Kyoto: Jinbun Shoin, 1994, 45.<br />

22


da tradição, no contexto. Aquilo que po<strong>de</strong>ria comprometer a integrida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém <strong>em</strong> discussões<br />

teológicas ou na história comparativa <strong>de</strong> idéias - quando o contexto, ou parte <strong>de</strong>le, é s<strong>em</strong>pre poten-<br />

cialmente relevante - não representa o mesmo perigo para o <strong>diálogo</strong> inter-religioso. A questão <strong>de</strong><br />

Deus, por ex<strong>em</strong>plo, po<strong>de</strong> não exigir que os cristãos comprometam a doutrina da Trinda<strong>de</strong>. Quando<br />

se fala da salvação, não é necessário representar teorias da alma e do juízo final. Ao elaborar uma<br />

questão para discussão <strong>em</strong> comum, o número <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong>ixados na penumbra é muito maior<br />

quando um cristão fala com um xintoísta, um budista, ou um taoísta, do que quando ele fala com<br />

outros cristãos, e vice-versa. Realmente, <strong>em</strong> um <strong>diálogo</strong>, a tentativa <strong>de</strong> assolar a discussão com<br />

<strong>de</strong>talhes oriundos do sentido <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> à tradição é sufocante. Enquanto a preocupação com a<br />

clareza <strong>de</strong> pensamento sobre a dimensão religiosa do hom<strong>em</strong> for prioritária, o esclarecimento da<br />

tradição permanecerá secundário. Não tenho dúvidas <strong>de</strong> que isso é importante, e po<strong>de</strong> ganhar com<br />

a discussão inter-religiosa. Compreendo que o <strong>diálogo</strong> é melhor quando os participantes são dis-<br />

pensados da obrigação da tradição. Essa ascese é b<strong>em</strong> conhecida daqueles que se un<strong>em</strong> com outros<br />

religiosos, para causas sociais – ela também t<strong>em</strong> seu lugar no <strong>diálogo</strong> intelectual.<br />

Como um corolário, po<strong>de</strong>-se mencionar o probl<strong>em</strong>a do fundamentalismo. Não acredito que o<br />

fundamentalismo doutrinário seja uma postura racional aceitável, mas tampouco creio que a única<br />

opção seja tratá-lo com o mesmo nível <strong>de</strong> intolerância. No que diz respeito à discussão teológica e<br />

filosófica, o fundamentalismo não t<strong>em</strong> vez. No entanto, no <strong>diálogo</strong> entre crentes religiosos, a falta<br />

<strong>de</strong> apelo para diferenciar doutrinas, que são <strong>em</strong> princípio rejeitadas pela postura fundamentalista,<br />

não marca o fim do <strong>diálogo</strong>. É, sobretudo, um teste máximo <strong>de</strong> seu coração. No acordo que há en-<br />

tre nós, todo o <strong>de</strong>sejo natural <strong>de</strong> saber mais sobre o mistério que envolve a vida – visto que crença<br />

e prática religiosas faz<strong>em</strong> parte da mesma tentativa <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a este anseio - <strong>de</strong>veria ser possí-<br />

vel tolerar a dispensa das afirmações doutrinais específicas da fé <strong>de</strong> cada um. Desta forma, seria<br />

possível ampliar o campo <strong>de</strong> entendimento comum, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sejam atendidas as condições discu-<br />

tidas <strong>em</strong> outros sutras expressos aqui.<br />

Embora tenhamos a tendência <strong>de</strong> associar o fundamentalismo a uma posição estabelecida e<br />

abrangente, é mais fácil encontrar este el<strong>em</strong>ento como uma dimensão <strong>de</strong> todas as tradições articu-<br />

ladas. Aqui também a ênfase no <strong>diálogo</strong> <strong>de</strong>ve estar <strong>em</strong> recuperar uma religiosida<strong>de</strong> humana básica<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do fundamentalismo, como única cura para a chaga da intolerância - e não avaliar, a<br />

qualquer custo, a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> doutrinária.<br />

Sutra V - O <strong>diálogo</strong> é uma ativida<strong>de</strong> religiosa, mas não conduz n<strong>em</strong> para a conversão, n<strong>em</strong><br />

para a convergência religiosa<br />

Por um lado, os críticos do <strong>diálogo</strong> intelectual, com suas preferências pelo domínio do discur-<br />

so lógico sobre a completa representação da tradição e sua distância das instituições estabelecidas,<br />

23


eclamam freqüent<strong>em</strong>ente que o <strong>diálogo</strong> é uma tentativa camuflada <strong>de</strong> fundir tradições religiosas<br />

existentes, uma na outra, <strong>em</strong> seus pontos <strong>de</strong> contato. Por outro lado, os críticos da predominância<br />

da presença cristã no <strong>diálogo</strong> se queixam <strong>de</strong> que essa é uma tentativa camuflada <strong>de</strong> converter ou-<br />

tras religiões à doutrina cristã, ou pelo menos ao modo cristão <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r doutrina.<br />

O <strong>diálogo</strong> intelectual, como insisti anteriormente, é s<strong>em</strong>pre mais do que um fórum para o <strong>de</strong>-<br />

bate intelectual ou a troca <strong>de</strong> informações entre especialistas versados. Não é meramente sobre<br />

religião, segundo o modo da filosofia, da sociologia, da psicologia ou da história da religião, mas,<br />

<strong>em</strong> um sentido importante, é por si um ato religioso - um exercício da fé. Todavia, isso não implica<br />

na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma mudança <strong>de</strong> afiliação ou qualquer outra tentativa <strong>de</strong> ajustar os compromis-<br />

sos institucionais anteriores dos indivíduos. A experiência do <strong>diálogo</strong> po<strong>de</strong>, é claro, incitar uma<br />

conversão <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada religião estabelecida para outra, ou simplesmente uma conversão que<br />

afaste <strong>de</strong> uma religião estabelecida. Mas tais conseqüências não se constitu<strong>em</strong> a preocupação do<br />

<strong>diálogo</strong>. Ocorr<strong>em</strong> fora <strong>de</strong>le, no mundo repleto <strong>de</strong> tradição e prática religiosas, on<strong>de</strong> as condições<br />

austeras do <strong>diálogo</strong> não têm influência.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, é preciso admitir que <strong>de</strong>ntro dos parâmetros do <strong>diálogo</strong>, diferenças <strong>de</strong> cren-<br />

ças que separam uma religião da outra são geralmente ignoradas. Em termos <strong>de</strong> interação entre<br />

diferentes <strong>igreja</strong>s cristãs engajadas <strong>em</strong> religiões como o Budismo, é verda<strong>de</strong> que há um certo clima<br />

<strong>de</strong> ecumenismo espontâneo que predomina e põe <strong>de</strong> lado preocupações secundárias, que tirariam<br />

<strong>de</strong> curso todo o funcionamento <strong>de</strong> um colóquio entre religiões. Embora o sectarismo budista seja<br />

muito diferente do que se encontra no mundo cristão, e o progresso do movimento ecumênico in-<br />

tra-budista ainda esteja engatinhando, esse sectarismo n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é pertinente e com freqüência<br />

precisa ser negligenciado, <strong>em</strong> prol do esclarecimento do assunto <strong>em</strong> discussão. Não há nenhuma<br />

razão, <strong>em</strong> princípio, para que este hábito, bastante comum no <strong>diálogo</strong> intelectual, seja levado para<br />

a esfera mais ampla da teoria e da prática religiosas, <strong>em</strong>bora não seja impossível que o que se t<strong>em</strong><br />

observado no <strong>diálogo</strong> não <strong>de</strong>va fazê-lo também. Repetindo, as condições do <strong>diálogo</strong> não geram<br />

n<strong>em</strong> inib<strong>em</strong> <strong>de</strong>cisões posteriores sobre dar fim a disjunções sectárias antiquadas, ou mesmo a fusão<br />

<strong>de</strong> religiões diferentes <strong>em</strong> alguma forma nova <strong>de</strong> religião. Para ser<strong>em</strong> avaliadas, tais <strong>de</strong>cisões re-<br />

quer<strong>em</strong> muito mais do que as ferramentas do <strong>diálogo</strong> intelectual - e o distanciamento <strong>de</strong>liberado do<br />

<strong>diálogo</strong> apenas acentua esse fato.<br />

A esse respeito, é bom <strong>de</strong>scartar aqui a crítica <strong>de</strong> que o Cristianismo, <strong>em</strong> função <strong>de</strong> seu mono-<br />

teísmo, ten<strong>de</strong> a promover um exclusivismo e um conflito entre religiões que são alheias ao inclusi-<br />

vismo inveterado e à aproximação harmoniosa das religiões orientais não-monoteístas. No Japão, o<br />

argumento é usado para apoiar a alegação <strong>de</strong> que a difusão do Cristianismo, com sua suposição <strong>de</strong><br />

que religião requer que cada indivíduo afirme sua afiliação a uma instituição e negue sua afiliação<br />

a qualquer outra, é responsável pela política <strong>de</strong> separar Xintoísmo e Budismo, inaugurada no pri-<br />

24


meiro ano da era Meiji. Ainda mais, o argumento sustenta a alegação <strong>de</strong> que entrar no <strong>diálogo</strong> in-<br />

ter-religioso com o Cristianismo envolve uma certa <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, dada a tendência inveterada do<br />

Cristianismo <strong>de</strong> erguer divisões <strong>em</strong> uma forma <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> que é naturalmente pluralística. 2<br />

Há diversos probl<strong>em</strong>as com tal argumento, todos eles vindo à tona no <strong>diálogo</strong>. Para começar,<br />

o Cristianismo cont<strong>em</strong>porâneo está muito dividido na questão do pluralismo, com aqueles mais<br />

atuantes no <strong>diálogo</strong> inter-religioso <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o mais forte argumento a favor <strong>de</strong>sta posição. Lon-<br />

ge <strong>de</strong> promover uma forma oculta <strong>de</strong> exclusivismo, o Cristianismo mostra no <strong>diálogo</strong> sinais <strong>de</strong><br />

curar-se do exclusivismo ao qual ficou atrelado por muito t<strong>em</strong>po – ou, talvez, seja melhor dizer:<br />

recuperando uma tolerância há muito t<strong>em</strong>po relegada. Além disso, a pura separação do Cristianis-<br />

mo e das religiões orientais, a qualquer custo, levou ao erro básico que Harnack gostava <strong>de</strong> alertar:<br />

a comparação da teoria <strong>de</strong> uma religião com a prática da outra. 3 O pluralismo que o Cristianismo é<br />

acusado <strong>de</strong> romper, existe muito mais religiosamente na consciência popular, do que na doutrina<br />

das religiões institucionais, para qu<strong>em</strong> o inclusivismo é pouco mais que uma conveniência econô-<br />

mica ou política. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, o monoteísmo puro que, segundo diz<strong>em</strong>, nutre o exclusivismo,<br />

raramente está presente na imaginação popular cristã, cuja religiosida<strong>de</strong> na prática se aproxima<br />

muito mais fenomenologicamente <strong>de</strong> alguma forma <strong>de</strong> politeísmo, do que da alta teologia. A com-<br />

paração é mal <strong>de</strong>sviada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ponto <strong>de</strong> partida, e os esforços do Cristianismo para abrir a tradi-<br />

ção ao <strong>diálogo</strong> estão um pouco subordinados a esse tipo <strong>de</strong> mal-entendido. Na medida <strong>em</strong> que o<br />

fórum <strong>de</strong> discussão com outras religiões é útil à teologia cristã - ou a qualquer método <strong>de</strong> reflexão<br />

doutrinária <strong>de</strong> outra religião -, como oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> propagar seus próprios padrões <strong>de</strong> autoco-<br />

nhecimento como universais, trai o espírito do <strong>diálogo</strong>. Somente com uma consciência superior<br />

<strong>de</strong>ssa tendência à parcialida<strong>de</strong>, métodos diferentes <strong>de</strong> autoconhecimento pod<strong>em</strong> interagir livr<strong>em</strong>en-<br />

te, chocando-se num momento, pegando <strong>em</strong>prestado no outro, persuadindo, mas s<strong>em</strong>pre aberto à<br />

persuasão. Essa é a única forma <strong>de</strong> conversão transitiva, na qual o <strong>diálogo</strong> po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>iro<br />

consigo mesmo.<br />

2 Por ex<strong>em</strong>plo, Û ò Í ,AC ;î í Á Ê Du Ð x §&C ;î í ß ¦D ou Á ²rPJmB, Yamaori Tetsuo (O engano do <strong>diálogo</strong> interreligioso:<br />

Um contraste com a coexistência religiosa). Religião e cultura, 83 –96; C ;î u Ê D (Tokyo:Asahi Shinbunsha,1997),<br />

232 –3.<br />

1930), 59.<br />

3 Citado <strong>em</strong> R.Otto, India’s religion of grace and Christianity compared and contrasted (Londres: SCM Press,<br />

25


cristão<br />

Sutra VI - No coração, o Cristianismo é naturalmente budista, e o Budismo é naturalmente<br />

O famoso ditado <strong>de</strong> Tertullian, anima naturaliter christiana, t<strong>em</strong> sido tradicionalmente tradu-<br />

zido como a alma é naturalmente cristã. Conseqüent<strong>em</strong>ente, não aceitar a fé cristã é se rebelar<br />

contra o que está na nossa natureza. O latim, assim como o contexto original da frase, sugere, en-<br />

tretanto, uma leitura radicalmente diferente, mais próxima ao espírito do <strong>diálogo</strong> inter-religioso.<br />

Na procura <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> encontro entre os crentes e os incrédulos, aos quais falta ensinamento e<br />

escritura comuns, ele recorre a testimonium animae: nas reentrâncias mais profundas do coração<br />

humano, os símbolos e as idéias centrais do Cristianismo são encontrados <strong>em</strong> seu estado natural.<br />

Em outras palavras, o Cristianismo é natural à alma. O Cristianismo não é simplesmente um con-<br />

junto <strong>de</strong> convicções impostas <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro, por forças históricas coletivas, ou seguidas a<br />

<strong>de</strong>speito dos <strong>de</strong>sejos da natureza humana. É, na essência, a expressão <strong>de</strong> nossa natureza. 4<br />

Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sta posição, o Cristianismo é também algo natural à alma daqueles que pro-<br />

fessam outras religiões. Para os cristãos experientes no <strong>diálogo</strong> com o Budismo, no Japão, isso é<br />

evi<strong>de</strong>nte. Por outro lado, o Cristianismo não é a única religião que po<strong>de</strong> fazer essa reivindicação.<br />

Como o <strong>diálogo</strong> atesta, o caminho budista é natural não só para os budistas, mas também para os<br />

cristãos - e não apenas para o pequeno número <strong>de</strong> cristãos que a<strong>de</strong>riram ao fórum do <strong>diálogo</strong>.<br />

Quanto mais budistas e cristãos discut<strong>em</strong> entre si, mais forte se torna, <strong>em</strong> ambos, o sentimento <strong>de</strong><br />

uma familiarida<strong>de</strong> fundamental, <strong>em</strong>bora freqüent<strong>em</strong>ente inesperada. Se este não fosse o caso, o<br />

<strong>diálogo</strong> teria <strong>de</strong>smoronado há t<strong>em</strong>pos, ou pelo menos se redimensionado a um simples intercâmbio<br />

intelectual.<br />

Dizer que o Budismo e o Cristianismo são naturais à alma, equivale a afirmar que eles são na-<br />

turais um ao outro. Esta afinida<strong>de</strong> é confirmada <strong>em</strong> nível doutrinal no <strong>diálogo</strong>. Como Raymundo<br />

Panikkar gosta <strong>de</strong> dizer, as religiões se parec<strong>em</strong> com os idiomas: por um lado, os idiomas dos ou-<br />

tros parec<strong>em</strong> absurdos, para qu<strong>em</strong> não os fala - e as peculiarida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu próprio idioma são <strong>de</strong>s-<br />

conhecidas, até que se aprenda outros idiomas. De qualquer forma, com todas as suas diferenças,<br />

não há uma idéia geral <strong>em</strong> qualquer idioma que não possa ser entendida por um outro. 5 Somente<br />

através da experiência, se po<strong>de</strong> saber o que significa dizer que um novo idioma enriquece a mente,<br />

<strong>em</strong> geral, e a compreensão do próprio idioma, <strong>em</strong> particular. Da mesma forma, quando as escritu-<br />

ras e as expressões doutrinais do Budismo são observadas por uma lente cristã, ou vice-versa, s<strong>em</strong><br />

compromisso com a naturalida<strong>de</strong> fundamental <strong>de</strong> um para o outro, e com a mente que tenta entre-<br />

ter ambos no <strong>diálogo</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po, só pod<strong>em</strong> surgir distorções. Esta consciência po<strong>de</strong> ser<br />

4 Em sua apologia, cujo objetivo era <strong>de</strong>sviar as críticas do hereges e pagãos, Tertullian usa a frase, passando<br />

somente o primeiro sentido. Foi abordado mais plenamente <strong>em</strong> seu De testimonio animae, on<strong>de</strong> o segundo, com significado<br />

mais positivo, vigora.<br />

5 Raimon Panikkar, La nueva inocencia (Estella: Editorial Verbo Divino, 1993), 388.<br />

26


<strong>de</strong>nominada conversão à outra religião, no sentido intransitivo, uma metanóia s<strong>em</strong> a perda da fé.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma consciência que eleva a sensibilida<strong>de</strong> sobre a riqueza do passado <strong>de</strong> sua própria<br />

religião, revelando equivalências e s<strong>em</strong>elhanças nos mais inesperados recantos da tradição.<br />

Obviamente, <strong>em</strong> toda a religião histórica há muitos fatores que representam uma lamentável<br />

imposição ao espírito humano. Em alguns casos, <strong>de</strong> forma tão esmagadora a ponto <strong>de</strong> contaminar a<br />

religião, como um todo. N<strong>em</strong> o Cristianismo, n<strong>em</strong> o Budismo estão livres <strong>de</strong>sse risco. Contudo,<br />

para quaisquer religiões dialogar<strong>em</strong> entre si, tais fatos não pod<strong>em</strong> ser <strong>de</strong>ixados <strong>de</strong> lado. S<strong>em</strong> o<br />

compromisso com uma afinida<strong>de</strong> natural básica, a tentação <strong>de</strong> as discussões <strong>de</strong>generar<strong>em</strong>, nalgum<br />

ponto, <strong>em</strong> competição é quase insuperável. Há formas <strong>de</strong> interação inter-religiosa, que são avalia-<br />

das na distinção entre vencedores e per<strong>de</strong>dores. A guerra é um ex<strong>em</strong>plo óbvio, a conversão através<br />

do proselitismo é outro. O fórum do <strong>diálogo</strong> não é uma arena. Ninguém conta pontos, porque não<br />

há pontos a contabilizar. É mais, como já disse, uma aventura <strong>de</strong> idéias: olhar através das qualida-<br />

<strong>de</strong>s únicas e distintas, que compõ<strong>em</strong> um caminho religioso diferente dos outros, para a Humanida-<br />

<strong>de</strong> universal - e retornar <strong>de</strong>sse universal para se ter um segundo olhar, sob o potencial inexplorado<br />

<strong>de</strong> sua própria particularida<strong>de</strong>.<br />

* * *<br />

A consciência religiosa da ida<strong>de</strong> que alimenta o espírito do <strong>diálogo</strong>, não é muito atraída à<br />

religião institucional, como vimos no passado. Destaca e seleciona dos textos sagrados do passado,<br />

combina-os com textos mo<strong>de</strong>rnos, e costura tudo junto, <strong>em</strong> uma colcha, com seu próprio <strong>de</strong>senho.<br />

Esse é o tecido <strong>de</strong> fé que a religião organizada s<strong>em</strong>pre consi<strong>de</strong>rou perigoso. Por fim, tudo parece<br />

apontar para mudanças radicais, reservadas às gran<strong>de</strong>s religiões históricas do mundo, como as que<br />

conhec<strong>em</strong>os hoje. 6<br />

Em todo caso, o espírito do <strong>diálogo</strong> que experimentamos é certamente maior do que nós, e a-<br />

inda sopra <strong>em</strong> nós. Somos verda<strong>de</strong>iramente seus criados, se nos tornarmos seus mestres. Essa é a<br />

atmosfera na qual mergulhei, há mais <strong>de</strong> duas décadas, e que hoje ainda consi<strong>de</strong>ro viva e <strong>de</strong>safia-<br />

dora, como no passado - quando Jan Van Bragt estava à porta e me acolheu.<br />

6 Ver What time is it for Christianity? – Metanoia, 8:3/4 (1998): 99 –121.<br />

27


“Átimo <strong>de</strong> pó:<br />

Entre a célula e o céu<br />

O dna e Deus<br />

O quark e a via Láctea<br />

A bactéria e a galáxia<br />

Entre o agora e o eon<br />

O íon e o órion<br />

A lua e o magnéton<br />

Entre a estrela e o elétron<br />

Entre o glóbulo e o globo blue<br />

Eu, um cosmos <strong>em</strong> mim só<br />

Um átimo <strong>de</strong> pó<br />

Assim: do yang ao yin<br />

Eu e o nada, nada não<br />

O vasto, vasto vão<br />

Do espaço até o spin<br />

Do s<strong>em</strong>-fim além <strong>de</strong> mim<br />

Ao s<strong>em</strong>-fim aquém <strong>de</strong> mim<br />

Den’ <strong>de</strong> mim.” 7<br />

A Igreja na cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna<br />

Pra começo <strong>de</strong> conversa (ou colocando os <strong>de</strong>safios)<br />

Gilbraz S.Aragão<br />

Teólogo – Professor da UNICAP<br />

Enquanto minha esposa cuidava da barriga on<strong>de</strong> se aninhava o nosso filhinho, eu inventei<br />

<strong>de</strong> escrever um livro para que ele pu<strong>de</strong>sse saber mais tar<strong>de</strong> das coisas que <strong>de</strong>via amar. E <strong>de</strong>ntre elas<br />

eu trato da Igreja, mas nos seguintes “termos”: coloquei uma foto linda <strong>de</strong> Isaura grávida e disse<br />

que Arthur <strong>de</strong>via ver a sua mãe assim, porque é uma parábola da melhor espiritualida<strong>de</strong> que al-<br />

guém po<strong>de</strong> alcançar. A mulher grávida vive do futuro e se alimenta <strong>de</strong> sacramentos <strong>de</strong> um dia que<br />

ainda não nasceu: ela prepara o lugar, arruma o berço vazio, tece sonhos, e o invisível amado<br />

transfigura o seu corpo. Acho que a Igreja é (!?) b<strong>em</strong> assim: experiência simbólica do que o mundo<br />

<strong>de</strong>ve ser, lugar pedagógico on<strong>de</strong> nos livramos das “gorduras” <strong>de</strong>ste t<strong>em</strong>po e criamos espaço – “va-<br />

zio” – para a “eterna criança” nascer <strong>em</strong> nós.<br />

Aí citei Rub<strong>em</strong> Alves para dizer <strong>de</strong>ssa Igreja que o nosso filho <strong>de</strong>ve esperar, um Povo <strong>de</strong><br />

Deus, que seja mesmo do Povo, assumida por todos os cristãos; e <strong>de</strong> Deus, guiada pelos místicos<br />

que revelam o divino no meio da gente e além <strong>de</strong> nós:<br />

7 Canção <strong>de</strong> Giberto Gil e Carlos Rennó.<br />

“A Igreja é a comunida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que o futuro assume forma,<br />

primeiros frutos, aperitivos, carícia do futuro do Reino... E<br />

este futuro? Salvação! Nossos corpos totalmente livres. Livres<br />

<strong>de</strong> tudo o que faz sofrer. Livres das correntes, do medo.<br />

Os olhos não mais perfurarão, e nenhum irmão terá <strong>de</strong><br />

28


escon<strong>de</strong>r, do seu irmão, n<strong>em</strong> a nu<strong>de</strong>z da sua alma e n<strong>em</strong> a<br />

nu<strong>de</strong>z do seu corpo. Livres para a verda<strong>de</strong>, livres para a<br />

beleza, livres para o amor. (...) Possuídos pelo futuro tratar<strong>em</strong>os<br />

<strong>de</strong> fazer viver, no presente, aquilo que nos foi dado,<br />

<strong>em</strong> esperança. E esta comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> visionários, <strong>de</strong> peregrinos,<br />

servirá ao mundo, na sua própria vida, <strong>em</strong> sacramentos<br />

do Reino <strong>de</strong> Deus que se aproxima.” 8<br />

Acredito, então, que somente uma Igreja assim – pré-ocupada com a missão <strong>de</strong> trazer mais<br />

saú<strong>de</strong> e salvação para o povo – po<strong>de</strong>rá evangelizar direito a cida<strong>de</strong>, com os seus <strong>de</strong>safios e virtua-<br />

lida<strong>de</strong>s, com a conscientização “antropocósmica” pós-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> que somos átimos <strong>de</strong> pó ou “nós<br />

<strong>de</strong> relações” na gran<strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> energia que a vida enreda, mas também com a fragmentação do<br />

pensamento e o utilitarismo <strong>de</strong> tudo no mundo nos dias <strong>de</strong> hoje: on<strong>de</strong> vale aquilo que aparece co-<br />

mo <strong>de</strong>sejável ao meu instinto imediato, nessa “louca vida, vida breve”.<br />

A propósito, como este lado sombrio dos nossos t<strong>em</strong>pos também t<strong>em</strong> afetado a comunida<strong>de</strong><br />

eclesial ultimamente, e por l<strong>em</strong>brar aquela imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> grávida, veio-me outro dia uma idéia insóli-<br />

ta: para conseguirmos que certos ministros presidam com mais presença <strong>de</strong> espírito a eucaristia<br />

(on<strong>de</strong> Jesus Cristo se faz corpo e alimento) e até aprendam melhor a tratar das nossas crianças,<br />

<strong>de</strong>víamos convidá-los para acompanhar<strong>em</strong> os pré-natais das nossas famílias e entrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> nossas<br />

salas <strong>de</strong> parto. Talvez aí enten<strong>de</strong>ss<strong>em</strong>, com as mulheres mais do que nos s<strong>em</strong>inários, o que é você<br />

<strong>de</strong>sentranhar-se e transformar um corpo <strong>em</strong> pão para qu<strong>em</strong> necessita, o que é renunciar aos pró-<br />

prios <strong>de</strong>sejos <strong>em</strong> favor do prazer do outro.<br />

Aliás, esse probl<strong>em</strong>a – ou solução para muitos probl<strong>em</strong>as – das mulheres na Igreja, do equi-<br />

líbrio <strong>de</strong> relações entre mulheres e homens na convivência eclesial, junta-se a outro <strong>de</strong>safio interno<br />

que ter<strong>em</strong>os <strong>de</strong> enfrentar nesta virada <strong>de</strong> milênio, que é o da integração dos valores d<strong>em</strong>ocráticos<br />

<strong>em</strong> sua dinâmica, <strong>de</strong>ixando às comunida<strong>de</strong>s locais mais autonomia para estruturar<strong>em</strong> sua vida e até<br />

escolher<strong>em</strong> os chamados ao serviço da presidência. E o ânimo espiritual para essa reforma da Igre-<br />

ja que a missão exige, virá, certamente, na medida do nosso compromisso <strong>em</strong> aproximar Deus das<br />

cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste mundo pós-mo<strong>de</strong>rno.<br />

“Existe alguma vida antes da morte?” Isto foi pixado nos muros <strong>de</strong> uma metrópole, a <strong>de</strong>no-<br />

tar que o clamor da nossa época é por “vida já” e que as pessoas andam muito interessadas é no<br />

“aqui e agora”. E no nosso “aqui e agora” a pastoral da Igreja <strong>de</strong>ve – para que faça sentido a sua<br />

mensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um “a mais” transcen<strong>de</strong>nte – situar-se diante <strong>de</strong> uma dupla ruptura: ruptura vertical<br />

entre a cultura da cristanda<strong>de</strong> clerical-paroquial e o pluralismo cultural que se afirma com o res-<br />

surgimento das culturas indígenas e o crescimento do mundo tecnológico e secularizado; e ruptura<br />

horizontal entre ricos e pobres, entre os que possu<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r cultural e político e aqueles que estão<br />

8 ALVES, R. Creio na ressurreição do corpo. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: CEDI, 1984, p.71.<br />

29


s<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r, s<strong>em</strong> terra e moradia, s<strong>em</strong> voz e s<strong>em</strong> trabalho. Anunciar a mística cristã e o futuro pre-<br />

conizado pela sua Boa-Notícia, nesse contexto, implica libertação dos <strong>em</strong>pobrecidos e inculturação<br />

do Evangelho. A Igreja <strong>de</strong>ve pulsar com o coração <strong>de</strong>ste “século mau”, procurando, na missão <strong>de</strong><br />

vitalizá-lo, a fonte para o seu próprio funcionamento e estrutura.<br />

Com efeito, o mundo que nos foi dado para viver – e salvar – é o da cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna, e<br />

esses são os seus <strong>de</strong>safios. No ano 2000, o Brasil já possuía uma população urbana <strong>de</strong> 138 milhões<br />

<strong>de</strong> pessoas e a população rural era só <strong>de</strong> 34 milhões. Em pouco t<strong>em</strong>po, estar<strong>em</strong>os todos morando<br />

<strong>em</strong> cida<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s, com mais <strong>de</strong> um milhão <strong>de</strong> habitantes – é a tendência mundial. Nessas cida<strong>de</strong>s<br />

existe mais liberda<strong>de</strong> e condições <strong>de</strong> vida, contudo também mais estresse, poluição e <strong>de</strong>gradação.<br />

Os ricos criam privês arborizados no seu entorno, enquanto os pobres se apertam nos conjuntos e<br />

favelas próximas do comércio e dos escritórios.<br />

Como po<strong>de</strong> a Igreja se articular nessas “ilhas” pós-mo<strong>de</strong>rnas? Precisaria criar grupos dinâ-<br />

micos <strong>de</strong> vida cristã e missão urbana que, no seu próprio meio, chamass<strong>em</strong> as pessoas para aceitar<br />

o amor <strong>de</strong> Deus e viver nele e <strong>de</strong>le – o que ensejaria “viagens” solidárias às “ilhas” dos outros.<br />

Mas nossas estruturas paroquiais <strong>católica</strong>s foram uniformizadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> – e para – o mundo rural<br />

medieval e suas polifônicas liturgias... Nas cida<strong>de</strong>s, a fé não se transmite mais por tradição familiar<br />

ou pressão social, a religião é uma escolha que a pessoa po<strong>de</strong> fazer livr<strong>em</strong>ente e se uma Igreja quer<br />

comunicar salvação, t<strong>em</strong> que mostrar sinais <strong>de</strong>ssa experiência – para além da encenação litúrgica,<br />

que é o seu “ensaio”.<br />

Não é <strong>de</strong> admirar, então, que no Brasil, <strong>em</strong> cinqüenta anos, os católicos tenham passado <strong>de</strong><br />

mais <strong>de</strong> 90% da população, para pouco mais <strong>de</strong> 70% no ano 2000 (<strong>em</strong> algumas cida<strong>de</strong>s mais<br />

adiantadas já são quase somente a meta<strong>de</strong> do povo – e o probl<strong>em</strong>a maior é que não se sabe b<strong>em</strong> o<br />

que fazer com os que restaram!). Cresc<strong>em</strong> muito os pentecostais (15% <strong>em</strong> 2000), os espíritas e<br />

também os “s<strong>em</strong>-religião” (7,3%). Na Região Metropolitana do Recife, por ex<strong>em</strong>plo, as crenças<br />

das pessoas já se <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> mais pelo corte protestante pentecostal e/ou pelo sincretismo<br />

espiritualista: “Quarenta e um por cento acreditam <strong>em</strong> Jesus e seus ensinamentos.<br />

A crença <strong>em</strong> Jesus Cristo, Maria e nos ensinamentos<br />

da Igreja Católica é indicada por 31%, enquanto 14% dos<br />

indivíduos apresentam a crença <strong>em</strong> Deus ou <strong>em</strong> uma Força<br />

Superior, s<strong>em</strong> pertencer a nenhuma religião específica como<br />

sua opção. Numa escala inferior a 10%, registramos que 6%<br />

dos/as entrevistados/as crê<strong>em</strong> <strong>em</strong> Jesus como Espírito <strong>de</strong> Luz<br />

e na Reencarnação dos mortos; 5% <strong>de</strong> entrevistados/as afirmam<br />

ser<strong>em</strong> ateus/atéias; os indivíduos que acreditam <strong>em</strong> Orixás,<br />

Guias e <strong>em</strong> Antepassados Ancestrais somam 1%...” 9<br />

9 CERIS. Tendências atuais do catolicismo no Brasil. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Ceris (mimeo.), p. 286.<br />

30


Já começamos b<strong>em</strong> mal (ou como a Igreja se isolou na cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna)<br />

A Igreja per<strong>de</strong>u a cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, que foi resultado da Revolução Industrial e da Ilustração<br />

racionalizadora. Dev<strong>em</strong>os reconhecer este fato, <strong>de</strong> partida – o que é um mal começo. As torres e os<br />

sinos das nossas <strong>igreja</strong>s per<strong>de</strong>ram-se aí, <strong>em</strong> meio aos apitos das fábricas e à grandiosida<strong>de</strong> trans-<br />

cen<strong>de</strong>ntal dos arranha-céus. Ilustrativo ver que o prédio maior da Con<strong>de</strong> da Boa Vista, avenida<br />

central do Recife, é um banco, cuja arquitetura não é nada funcional, pois r<strong>em</strong>ete à imponente aco-<br />

plag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma nave sobre uma pirâmi<strong>de</strong> – símbolo esotérico que evoca insconscient<strong>em</strong>ente a uni-<br />

ão do céu com a terra e justifica o sacrifício <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> vai guardar dinheiro ali e, sobretudo, <strong>de</strong><br />

qu<strong>em</strong> vai trabalhar para multiplicá-lo (numa ética b<strong>em</strong> distante da vivenciada por aquele ju<strong>de</strong>u<br />

cujo crucifixo, aliás, está ironicamente pregado <strong>de</strong>ntro da agência, num recurso extra à iconografia<br />

oficial!). É bom notar também que a cúria <strong>de</strong> Dom Hél<strong>de</strong>r foi transferida <strong>de</strong>ssa mesma avenida<br />

para a Várzea – literalmente – e o lugar foi negociado para um shopping.<br />

Entre nós, na periferia do mundo, a razão ilustrada chegou muito mitigada e o progresso<br />

veio mais na forma <strong>de</strong> lixo. A cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna nunca foi mesmo uma réplica mundial <strong>de</strong> Manches-<br />

ter, muito <strong>em</strong>bora todas as gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s do mundo, performadas pela economia industrial, <strong>de</strong>-<br />

senvolveram-se <strong>em</strong> redor do processo mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> progressiva autonomia da realida<strong>de</strong> social e<br />

política, <strong>de</strong> sonho no progresso ilimitado da produção e do consumo materiais, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrimento<br />

do caráter evolutivo <strong>de</strong> todo o real, começando pelo cosmos, continuando pela vida até chegar à<br />

espécie homo...<br />

O po<strong>de</strong>r político <strong>em</strong>ancipou-se da instância religiosa, o racionalismo científico acreditou<br />

po<strong>de</strong>r substituir a religião como explicação da realida<strong>de</strong> e a questão social distanciou gran<strong>de</strong>s mas-<br />

sas <strong>de</strong> população da vida e da prática religiosa. A síntese doutrinal da escolástica e a erudição do<br />

nosso gregoriano ficaram perdidas então. Ou como me disse o querido padre Arnaldo, quando o-<br />

cupei por uns t<strong>em</strong>pos a torre da sua matriz do Espinheiro: “Aqui não adianta botar sino mesmo,<br />

que ninguém escuta mais com os aparelhos <strong>de</strong> ar-condicionado.”<br />

É claro que o Concílio Vaticano II, <strong>em</strong>bora com certo atraso <strong>de</strong> uns quinhentos anos e não<br />

s<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminadas resistência curiais, tratou <strong>de</strong> assimilar os avanços da Reforma (revalorização da<br />

Bíblia e da pregação no culto, autorização da língua vulgar e da comunhão nas duas espécies, par-<br />

ticipação ativa da comunida<strong>de</strong>, reconhecimento do laicato como Povo <strong>de</strong> Deus nos conselhos pa-<br />

roquial e diocesano, inclusão do Papa na colegialida<strong>de</strong> dos bispos, respeito às Igrejas locais e na-<br />

cionais nas conferências episcopais) e, afinal, o Concílio buscou resgatar o paradigma mo<strong>de</strong>rno e<br />

ilustrado (reconhecimento dos direitos humanos, da até então con<strong>de</strong>nada liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> religião e<br />

consciência, afirmação do ecumenismo e nova relação com os ju<strong>de</strong>us, o islã e as outras gran<strong>de</strong>s<br />

religiões, além <strong>de</strong> uma nova atitu<strong>de</strong> frente à ciência, o progresso e, <strong>em</strong> geral, o mundo secular mo-<br />

<strong>de</strong>rno – com a supressão do juramento antimo<strong>de</strong>rnista e do índice <strong>de</strong> livros proibidos).<br />

31


É verda<strong>de</strong> também que o iluminado padre Comblin 10 e tantos pastoralistas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década<br />

<strong>de</strong> sessenta, previram vários tipos <strong>de</strong> laços comunitários e vários tipos <strong>de</strong> pertença à Igreja no mun-<br />

do mo<strong>de</strong>rno: a harmonia na multiplicida<strong>de</strong> faria a configuração da Igreja <strong>de</strong> amanhã. A cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>veria ser uma Igreja local, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veriam coexistir uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Igrejas domésticas<br />

com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tornar a fé acessível ao mundo que se urbanizava com a industrialização.<br />

A Igreja seria comunida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> três níveis integrados e que correspon<strong>de</strong>riam a uma evolu-<br />

ção, respectivamente, da paróquia, dos movimentos leigos <strong>de</strong> pastoral e congregações religiosas, e<br />

da cúria diocesana. Quer dizer, as paróquias, então como ass<strong>em</strong>bléias <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base,<br />

recobririam o nível geográfico-territorial das comunida<strong>de</strong>s; os movimentos, pastorais e congrega-<br />

ções, articulariam, <strong>de</strong>ntro das comunida<strong>de</strong>s e entre si, grupos <strong>de</strong> serviços específicos para aten<strong>de</strong>r a<br />

<strong>de</strong>safios da evangelização, a faixas etárias e a forças articuladoras da cida<strong>de</strong> e probl<strong>em</strong>áticas soci-<br />

ais. Por fim, a cúria seria transformada numa comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças representativas e comuni-<br />

cativas da Igreja na cida<strong>de</strong> e garantidora da comunhão eclesial.<br />

Mas como, na prática, a teoria é outra, e o Vaticano II para muitos resultou <strong>em</strong> ponto <strong>de</strong><br />

chegada e não <strong>de</strong> partida para uma nova história da Igreja, acabamos enredados na burocracia e no<br />

autoritarismo das nossas paróquias medievais ou então com religiosos travestidos <strong>de</strong> funções e<br />

profissões mundanas, mas s<strong>em</strong> articulação fermentadora com as massas operárias e as classes libe-<br />

rais. É tanto, que o próprio Papa Paulo VI, referindo-se à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sabafava dizendo: “A<br />

ruptura entre o Evangelho e a cultura é s<strong>em</strong> dúvida o drama da nossa época.” 11 Mais dramática até<br />

seria a constatação papal se ele falasse <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a América, on<strong>de</strong> n<strong>em</strong> ruptura há propriamente, posto<br />

que nunca existiu muito amálgama entre a boa-notícia cristã e nossas culturas caboclas.<br />

As festas juninas que estamos vivenciando agora, <strong>em</strong> torno do senhor São João principal-<br />

mente, ensejam mesmo que reflitamos sobre a histórica e crônica necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inculturação li-<br />

túrgica, doutrinal e ministerial do movimento cristão na Igreja <strong>de</strong>ste continente, <strong>de</strong> inculturação da<br />

fé cristã na vida do seu povo. Para nós esse probl<strong>em</strong>a da “ruptura” é ainda maior e mais profundo.<br />

“A América é um mundo às avessas (...). O vento norte gélido<br />

da Europa é aqui b<strong>em</strong> morno. Tudo às avessas. Enquanto estou<br />

escrevendo, pela passag<strong>em</strong> da festa <strong>de</strong> São João, estamos no<br />

meio do inverno (...). Em <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro e janeiro, quando na Europa<br />

tudo gela, com<strong>em</strong>os figos e colh<strong>em</strong>os lírios. Numa palavra,<br />

tudo aqui é diferente (...). A diferença está <strong>em</strong> nós mesmos, que<br />

precisamos modificar nosso conceito.” 12<br />

10 Cf. COMBLIN, J. Théologie <strong>de</strong> la ville. Paris : Ed. Universitaires, 1968. Id. Comunida<strong>de</strong>s eclesiais e pastoral<br />

urbana. REB 30/120 (1970). Id. A Igreja na casa. REB 47/186(1987). Id. Evolução da pastoral urbana. In: VVAA.<br />

Pastoral urbana. São Paulo: Paulinas, 1980. Id. Pastoral urbana. Petrópolis: Vozes, 1999.<br />

11 EN 20.<br />

12 Antonio Sepp, jesuíta da redução do Japeju, <strong>em</strong> carta <strong>de</strong> 1692: SEPP A. Viag<strong>em</strong> às missões jesuíticas e trabalhos<br />

apostólicos. Belo Horizonte: São Paulo/ Itatiaia:EDUSP, 1980, p. 73s.<br />

32


Basta dizer que, para os milhões <strong>de</strong> brasileiros católicos que – mormente no Nor<strong>de</strong>ste –<br />

possu<strong>em</strong> a agricultura como matriz cultural, as alegrias do natal <strong>de</strong> Jesus não são tão gran<strong>de</strong>s como<br />

aquelas que se manifestam por ocasião da festa do nascimento <strong>de</strong> São João, que acontece na passa-<br />

g<strong>em</strong> do solstício do inverno entre nós. Na Europa, este solstício, que lá acontece <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro, foi<br />

aproveitado na fixação da data do Natal, transformando-se <strong>em</strong> Roma o carnaval religioso pagão do<br />

<strong>de</strong>us-sol na celebração do nascimento <strong>de</strong> Cristo, agora tido como “luz do mundo”. O probl<strong>em</strong>a é<br />

que os missionários na América b<strong>em</strong> tar<strong>de</strong> perceberam que estavam do outro lado do mundo e que<br />

este era “um mundo às avessas”: O calendário litúrgico acabou transposto para cá, s<strong>em</strong> a incultura-<br />

ção que lá se <strong>de</strong>u. E São João Batista, apenas precursor da “luz do mundo”, terminou com a melhor<br />

ocasião.<br />

Resultado: inconscient<strong>em</strong>ente, movido pelo <strong>de</strong>slumbramento com a fartura que a natureza<br />

propicia pelo encontro do inverno com o sol que chega mais forte, o povo vai pras ruas e faz dia<br />

santo <strong>de</strong> qualquer jeito. A guarda é externada pela espera feita <strong>em</strong> redor da fogueira (também as-<br />

similada, entre os indo-europeus, dos cultos solares), numa vigília que reúne parentes <strong>em</strong> casa a<br />

partir do meio-dia <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> junho, com muitas pamonhas e canjicas, licores e cafés. Mesmo espa-<br />

lhados pela periferia das metrópoles do sul, e contrariando as normas da aeronáutica mo<strong>de</strong>rna, os<br />

nor<strong>de</strong>stinos manifestam a beleza da sua cultura soltando os balões coloridos <strong>de</strong>ssa festa. E a impor-<br />

tância <strong>de</strong> São João é tanta, que o orixá sincretizado com ele na religião afro(nagô)-brasileira, que é<br />

o Xangô dos raios e do fogo, acabou por nomear s<strong>em</strong> mais os terreiros <strong>de</strong> Pernambuco.<br />

Portanto, as festas juninas são as maiores <strong>de</strong>ssa religiosida<strong>de</strong> comum brasileira, que resul-<br />

tou da <strong>de</strong>voção aos santos trazidos pelos colonos portugueses e reverenciados nos oratórios domés-<br />

ticos, com “muita festa e pouca missa, muita reza e pouco padre”. De fato, o catolicismo paroquial,<br />

com missa dominical e vigário <strong>de</strong> batina, enfatizando a pieda<strong>de</strong> e a moralida<strong>de</strong>, foi implantado <strong>em</strong><br />

nosso país a partir <strong>de</strong> 1850. E <strong>de</strong> novo não se soube inculturar, pois a evangelização dos bispos<br />

romanizadores <strong>de</strong>svalorizou o catolicismo dos leigos, trazendo congregações missionárias e santos<br />

e festas que combatiam o liberalismo anti-clerical europeu (como a coroação <strong>de</strong> Nossa Senhora e a<br />

entronização do Coração <strong>de</strong> Jesus) para substituír<strong>em</strong> as folias <strong>de</strong> reis e do divino, procissões das<br />

almas e as festas juninas. Estas per<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>staque na liturgia oficial das <strong>igreja</strong>s.<br />

Resultado novamente: o povo festeja seus santos na rua mesmo. O dia <strong>de</strong> São João é santi-<br />

ficado à moda brasileira: não se precisa ir à <strong>igreja</strong>. E mais: as festas juninas, antropofagicamente,<br />

incorporaram as quadrilhas (valsas européias que são marcadas ainda <strong>em</strong> “francês” no interior do<br />

Nor<strong>de</strong>ste) para celebrar<strong>em</strong> com alegria telúrica o prazer <strong>de</strong> corpos quentes que se enlaçam, cele-<br />

brar<strong>em</strong> com rojões a ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> um fogoso São João. Elas principiam com o “casamento matuto”,<br />

que brinca teatralmente com a família tradicional e questiona as autorida<strong>de</strong>s sociais (o <strong>de</strong>legado é<br />

bêbado, o prefeito tonto, o vigário é vigarista), evocando a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas relações, a sau-<br />

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da<strong>de</strong>-esperança <strong>de</strong> ruas tomadas por um povo dançante, b<strong>em</strong> alimentado pelo milho e aquecido<br />

pelas fogueiras (a propósito: por que a eucaristia não é celebrada com a comida simples daqui, que<br />

é o milho, como o pão <strong>de</strong> trigo era para Jesus e os europeus – ou o arroz é para os asiáticos?!).<br />

Tudo isso po<strong>de</strong> estar <strong>de</strong>saparecendo na socieda<strong>de</strong> que se mecaniza nas cida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> todo<br />

símbolo popular é transformado <strong>em</strong> espetáculo funcional e até as quadrilhas <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser dança<br />

para todos (v<strong>em</strong> daí, inclusive, a sua música, forró: “for all”) e passam a ser “estilizadas”: um<br />

show “<strong>em</strong>presarialmente” tratado para o povo assistir. Mas resta a lição: ao anunciarmos a santida-<br />

<strong>de</strong> maior <strong>em</strong> Jesus Cristo, precisamos consi<strong>de</strong>rar a cultura ambiente e a saú<strong>de</strong> do povo – que do<br />

contrário fica mesmo é com São João do carneirinho, protetor do roçado e do rebanho, e com seus<br />

colegas José, Antônio e Pedro, encarregados <strong>de</strong> arrumar<strong>em</strong> chuva, casamento e casa. Através <strong>de</strong>les<br />

se busca (<strong>de</strong> um <strong>de</strong>us regulador e meio distante) soluções extraordinárias e individuais para as a-<br />

meaças sofridas da natureza ou dos po<strong>de</strong>rosos.<br />

Mas o recurso mágico ao santo po<strong>de</strong> também ser seguimento da sua vida ex<strong>em</strong>plar e <strong>em</strong>an-<br />

cipadora. Se estivermos junto ao povo, po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os passar da <strong>de</strong>pendência do milagre “sobrenatu-<br />

ral” que traz benefício do “santo”, para a crença na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sermos igualmente “santos” e<br />

capazes <strong>de</strong> fazer das nossas vidas um milagre “mais-que-natural” para a vida dos outros – pelo<br />

amor, que é (<strong>de</strong>) Deus! E disso São João é boa test<strong>em</strong>unha – e uma test<strong>em</strong>unha mais abrasileirada<br />

do que a santida<strong>de</strong> duplamente tri<strong>de</strong>ntina que se nos apresenta hoje como nossa (não imagino a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que as meninas e meninos da minha rua possam encontrar nessa santa <strong>de</strong> Trento, cha-<br />

mada Paulina, e n<strong>em</strong> entendo a razão <strong>de</strong> um bispo católico-brasileiro lutar na justiça para apresen-<br />

tar a mesma na “parada gay” do <strong>Rio</strong> – sendo revelador o pronunciamento do organizador <strong>de</strong>ssa<br />

parada: “O evento é uma manifestação <strong>de</strong> alegria e essa santa não combina”).<br />

“Recordam do filósofo que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> conhecer as favelas do<br />

<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, levado ao Cristo Re<strong>de</strong>ntor, saiu-se com esta:<br />

‘É triste que uma cida<strong>de</strong> tão <strong>de</strong>sumana tenha por cartãopostal<br />

um hom<strong>em</strong> que foi tão humano’?! Como é que a gente<br />

po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> Jesus, <strong>em</strong> meio a relações sociais – e eclesiais –<br />

tão <strong>de</strong>sumanas? L<strong>em</strong>bram daquela autorida<strong>de</strong> eclesiástica<br />

que proibiu a fala teologal da Beija-Flor quando tentou mostrar<br />

‘O luxo do lixo’, clamando por uma nova estética e nova<br />

ética – a partir do avesso do tecido social –; e aí quis botar<br />

justamente o Cristo Re<strong>de</strong>ntor na avenida, ele que é tão visto<br />

dos morros do <strong>Rio</strong>, para <strong>de</strong>sfilar na festa <strong>de</strong> Carnaval?! O<br />

coitado do santo teve <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> ‘fantasia’ – e Deus não se vê<br />

com os olhos da cara, mas com os da fantasia mesmo. Desfilou,<br />

ainda que coberto e amarrado, com um cartaz pendurado<br />

no peito que dizia: ‘Mesmo proibido, olhai por nós’...” 13<br />

13 ARAGÃO, G. O pluralismo religioso. In: SUESS, P. Os confins do mundo no meio <strong>de</strong> nós. São Paulo: Pau-<br />

linas, 2000, (135-162), p. 144.<br />

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Essa falta <strong>de</strong> inculturação, por sinal, certamente explica, entre nós e pelo mundo afora, o re-<br />

lativo fracasso das duas gran<strong>de</strong>s – e raras – tentativas <strong>de</strong> evangelização do mundo mo<strong>de</strong>rno. Elas<br />

foram suscitadas pelo Vaticano II nos h<strong>em</strong>isférios norte e sul do planeta, respectivamente: o Mo-<br />

vimento Carismático e as Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Base. Surgiram numa evolução da Ação Católica e no<br />

bojo das reformas litúrgica e bíblica do Concílio, constituindo-se test<strong>em</strong>unhos proféticos da Igreja,<br />

um <strong>de</strong> tendência mais mística e outro mais política – porém ambos igualmente limitados, porque<br />

<strong>de</strong>sarticulados entre si e <strong>de</strong>sconectados da religiosida<strong>de</strong> popular. Esta surge s<strong>em</strong>pre naturalmente<br />

<strong>em</strong> todas as latitu<strong>de</strong>s, da suposição <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r criador do mundo, que é colocado no centro <strong>de</strong><br />

tudo, apontando para seres intermediários – santos – na busca das bênçãos mágicas <strong>de</strong>sse “Pai”<br />

po<strong>de</strong>roso, para o nosso “vale <strong>de</strong> lágrimas”.<br />

Frente a essa tradição espiritual um tanto simplória, o Cristianismo do norte rico, enfatizan-<br />

do a subjetivida<strong>de</strong> e a renovação da pessoa, criou Comunida<strong>de</strong>s Carismáticas e Movimentos Espi-<br />

rituais que visam a uma experiência íntima e psicológica do Espírito <strong>de</strong> Deus, atestando assim os<br />

dons da presença vivificante <strong>de</strong> Cristo no mundo. Por sua vez o Cristianismo do sul pobre da terra,<br />

preocupado com a libertação da história humana, inventou as Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Base e as Pastorais<br />

engajadas: elas criam uma espiritualida<strong>de</strong> <strong>em</strong> torno do seguimento do Senhor Jesus na práxis liber-<br />

tária, questionando pois os senhores <strong>de</strong>ste mundo injusto e militando gratuita e vigorosamente por<br />

um mundo melhor. Esses grupos <strong>de</strong> renovação e <strong>de</strong> libertação <strong>de</strong>v<strong>em</strong> interpelar-se criativamente:<br />

os últimos são muito racionalistas e não penetraram na religiosida<strong>de</strong> do povo; enquanto os primei-<br />

ros penetram mais, todavia não com a <strong>em</strong>ancipadora eficácia evangélica. Desse cruzamento po<strong>de</strong><br />

sair uma nova chance missionária para a Igreja, no mundo pós-mo<strong>de</strong>rno que se nos afigura.<br />

Um novo t<strong>em</strong>po, apesar dos perigos... (ou das características da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>)<br />

Agora, <strong>em</strong> um mundo “globalizado” pela informação e consumo padronizados pelos Esta-<br />

dos Unidos, começa a <strong>de</strong>senhar-se uma cida<strong>de</strong> dita pós-mo<strong>de</strong>rna. Será que nossa Igreja está a fim<br />

mesmo <strong>de</strong> evangelizá-la (e evangelizar-se com isso)? E porventura t<strong>em</strong> condições <strong>de</strong> fazê-lo? Na<br />

verda<strong>de</strong>, as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ixarão até <strong>de</strong> existir nesse “admirável mundo novo”, ao menos como espaci-<br />

alização racionalmente construída do homo fabris e concretização do seu t<strong>em</strong>po concebido como<br />

realização histórica. A vida social no começo <strong>de</strong>ste século XXI <strong>de</strong>nota o aparecimento do homo<br />

lu<strong>de</strong>ns, que gosta <strong>de</strong> shows, que constrói um “espaço <strong>de</strong> fluxos” e um “t<strong>em</strong>po int<strong>em</strong>poral”.<br />

Sua megacida<strong>de</strong> é antes uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ilhas culturais, que vai resultando <strong>de</strong> um novo proces-<br />

so civilizatório, <strong>de</strong>flagrado pela Revolução Informacional e Termonuclear, alavancado pelo para-<br />

digma Holístico da Complexida<strong>de</strong>. Daí virão os contornos da cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna (“pós-<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”, aliás, foi um termo <strong>em</strong>pregado por Toynbee ainda <strong>em</strong> 1947 e que acabou servindo<br />

para nomear as transformações culturais principiadas nos anos sessenta). Nessa <strong>em</strong>ergente socie-<br />

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da<strong>de</strong> do espetáculo, sobressa<strong>em</strong> as técnicas <strong>de</strong> colag<strong>em</strong> e reciclag<strong>em</strong>, favorecidas pelo imediatismo<br />

das trocas, das migrações humanas e viagens <strong>de</strong> turismo, da circulação <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada <strong>de</strong> imagens,<br />

informações e mercadorias. Mas trata-se também <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> baseada nas re<strong>de</strong>s e conexões,<br />

no conhecimento e na liberda<strong>de</strong>, que permite até a passag<strong>em</strong> “do uni-verso para o multi-verso”<br />

como lugar da realida<strong>de</strong> humana e horizonte do seu conhecimento. Com esta consciência da “uni-<br />

multiplicida<strong>de</strong>” ressurge o apreço pelo divino e a abertura para a transcendência, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ela<br />

parta da imanência e do humano – que está “entre a célula e o céu, o dna e Deus...”.<br />

Para explicar a transição pela qual passamos já faz umas três décadas, pod<strong>em</strong>os, como na<br />

canção do xará à epígrafe, recorrer ao I Ching: os filósofos chineses viam a realida<strong>de</strong>, a cuja essên-<br />

cia primária chamaram Tao, como um processo <strong>de</strong> contínua mudança, sustentado pelos pólos ar-<br />

quetípicos Yin e Yang – relacionados aos modos <strong>de</strong> conhecimento intuitivo e racional, respectiva-<br />

mente. Segundo essa abordag<strong>em</strong>, o drama da nossa civilização é que favoreceu o Yang <strong>em</strong> <strong>de</strong>tri-<br />

mento do Yin, a mente <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do corpo, a matéria <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do espírito, o instrumen-<br />

tal <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do comunicativo, a socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento da natureza, o masculino <strong>em</strong> <strong>de</strong>tri-<br />

mento do f<strong>em</strong>inino.<br />

Contudo, alicerçada numa revolução tecnológica <strong>em</strong> curso, uma série <strong>de</strong> movimentos soci-<br />

ais <strong>de</strong> contracultura, da ecologia ao f<strong>em</strong>inismo, v<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvendo um processo <strong>de</strong> mutação cul-<br />

tural, com o suporte da física mo<strong>de</strong>rna (matéria é energia e portanto tudo na vida está interligado e<br />

toda evolução é in<strong>de</strong>terminada, relativa) e da teoria sistêmica (os sist<strong>em</strong>as vivos são organizados<br />

<strong>de</strong> modo que formam estruturas que constitu<strong>em</strong> um todo <strong>em</strong> relação a suas partes, e uma parte<br />

relativamente a todos maiores). O hom<strong>em</strong> olha a terra do espaço e o que antes parecia dividido,<br />

revela-se: um planeta, uma humanida<strong>de</strong>, muitos probl<strong>em</strong>as sinergicamente relacionados.<br />

E a questão primeva da sobrevivência, da vida na Terra, coloca-se <strong>de</strong> maneira crucial e<br />

pungente. Tanto <strong>em</strong> termos ambientais, no sentido da necessida<strong>de</strong> da manutenção e impl<strong>em</strong>ento do<br />

equilíbrio <strong>de</strong> toda a vida, quanto <strong>em</strong> termos éticos, face às gran<strong>de</strong>s e impon<strong>de</strong>ráveis <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

entre diversos grupos humanos; e também existenciais, consi<strong>de</strong>rando-se a felicida<strong>de</strong> e o conheci-<br />

mento, e a busca <strong>de</strong> novos termos para o seu <strong>de</strong>senvolvimento, fora do âmbito restrito do consumo<br />

e da sobrevivência material. A lógica <strong>de</strong> auto-eco-organização passa a permear todos os campos do<br />

saber e um novo paradigma científico se <strong>de</strong>lineia. Nele as noções <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência e autonomia<br />

são essenciais e o que importa não é alcançar um conhecimento geral, uma teoria unitária, mas<br />

estabelecer vínculos, articulações.<br />

Cresce a consciência da <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>, da não-linearida<strong>de</strong>, da diferença, da necessida<strong>de</strong><br />

do <strong>diálogo</strong>, da polifonia, da complexida<strong>de</strong>, do acaso, do <strong>de</strong>svio. Faz-se uma avaliação ampla do<br />

papel construtivo da <strong>de</strong>sord<strong>em</strong>, da auto-organização e uma re-significação profunda das idéias <strong>de</strong><br />

crise e caos, compreendidas mais como informações complexas, do que como simples ausência <strong>de</strong><br />

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ord<strong>em</strong>. Ao invés <strong>de</strong> planejamento absoluto, articulação molecular; ao invés <strong>de</strong> dominação onipo-<br />

tente, cooperação vital.<br />

“Estamos apenas <strong>em</strong> dores <strong>de</strong> parto e não <strong>em</strong> espasmos <strong>de</strong><br />

aborto. Vamos reflorescer e irradiar, pois esse é o <strong>de</strong>stino do<br />

ser humano no t<strong>em</strong>po e na eternida<strong>de</strong>. Entretanto, ninguém<br />

t<strong>em</strong> hoje condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar o perfil da socieda<strong>de</strong>-mundo<br />

nascente. Seria ilusório apresentar um projeto ou um programa.<br />

O que importa é discernir aqueles princípios que pod<strong>em</strong><br />

funcionar como propulsores da nave espacial-Terra. Elencamos<br />

quatro princípios, há séculos enviados ao exílio, agora<br />

regressando lentamente: a Terra, o cuidado, o f<strong>em</strong>inino e a<br />

espiritualida<strong>de</strong>. A geo-socieda<strong>de</strong> se funda neles. A Terra está<br />

sendo vista não mais como um baú <strong>de</strong> recursos ilimitados,<br />

mas como Gaia, um superorganismo vivo, que enlaça <strong>em</strong> re<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendências todos os seres. Nós, humanos, somos<br />

Terra que sente e ama, cuida e venera. Essa percepção<br />

nos leva a ter sentimentos <strong>de</strong> pertença, <strong>de</strong> cooperação e <strong>de</strong><br />

respeito s<strong>em</strong> os quais o novo não irrompe. Terra e humanida<strong>de</strong><br />

têm um <strong>de</strong>stino comum. O cuidado é da essência da vida e<br />

do ser humano. Junto com o trabalho, o cuidado constrói o<br />

mundo humano. Por milênios viv<strong>em</strong>os sob a ditadura do trabalho.<br />

S<strong>em</strong> o cuidado, o trabalho <strong>de</strong>vastou a Terra. O cuidado,<br />

que é uma relação amorosa para com as coisas, salvará<br />

ainda a vida e a Terra. O f<strong>em</strong>inino no hom<strong>em</strong> e na mulher é<br />

um princípio que origina <strong>em</strong> nós a percepção da totalida<strong>de</strong>,<br />

nos permite ver que as coisas são também símbolos, nos faz<br />

cultivar o espaço do mistério, nos inclina ao enternecimento e<br />

ao cuidado e nos torna mais cooperadores do que competitivos.<br />

O resgate da 'anima' (f<strong>em</strong>inino) é fundamental para colocar<br />

no centro <strong>de</strong> tudo a vida e para fundar uma relação nãoutilitarista<br />

mas afetuosa com a realida<strong>de</strong> envolvente. Por fim,<br />

a espiritualida<strong>de</strong>. Ela não é monopólio das religiões mas uma<br />

dimensão do humano. É a nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dialogar com<br />

o Eu profundo e <strong>de</strong> ouvir os apelos da coração. É a consciência<br />

que se sente inserida num todo maior e que capta o elo<br />

secreto que tudo liga e religa à Fonte primeva <strong>de</strong> todo ser,<br />

chamada Deus.” 14<br />

Todavia a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> também t<strong>em</strong> gerado uma vivência superficial, fútil, épica e ar-<br />

<strong>de</strong>nte. On<strong>de</strong> o cheio provoca o oco, a sacieda<strong>de</strong> gera a angústia, o permanente é trocado pelo atual,<br />

o "mais novo", o "mais mo<strong>de</strong>rno"; a imag<strong>em</strong> é preferida à realida<strong>de</strong>: preferimos olhar o conferen-<br />

cista no telão <strong>de</strong> tevê, do que na sua carne e osso ali à frente. Revela-se assim a marca primordial<br />

do nosso t<strong>em</strong>po, que é a paradoxalida<strong>de</strong>. O processo <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> nos alerta para a respon-<br />

sabilida<strong>de</strong> e a cooperação, mas também nos convida para a alegria <strong>de</strong>scompromissada, virtual.<br />

Por ex<strong>em</strong>plo: pod<strong>em</strong>os nos questionar sobre a serieda<strong>de</strong> das <strong>de</strong>clarações, mas o fato é que<br />

as autorida<strong>de</strong>s australianas ficaram intrigadas com os resultados <strong>de</strong> um censo realizado recente-<br />

14 BOFF, L. A volta dos princípios exilados. Jornal do Brasil. 26/4/02.<br />

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mente no país. 15 Mais <strong>de</strong> 70 mil pessoas se <strong>de</strong>clararam seguidores da fé Jedi, religião criada pela<br />

trilogia <strong>de</strong> filmes Star wars, do cineasta George Lucas. De acordo com o censo, um <strong>em</strong> cada 270<br />

consultados - ou 0,37% da população - disse acreditar "na força", um campo <strong>de</strong> energia que dá aos<br />

cavaleiros Jedi o seu po<strong>de</strong>r nos filmes.<br />

E nesse bojo é que o fenômeno religioso retorna à vida social, com a simpatia e apreço até<br />

da nova ciência. Há indícios <strong>de</strong> movimentos profundos <strong>de</strong> busca transreligiosa <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong> análise transdisciplinar do sagrado. Mas sob o signo da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o sagrado que apare-<br />

ce mais é <strong>de</strong> novo selvag<strong>em</strong>, buscado por a<strong>de</strong>são seletiva, com um conteúdo religioso auto-<br />

sist<strong>em</strong>atizado para aten<strong>de</strong>r aos interesses <strong>em</strong>ocionais do momento ou ainda à busca mágica <strong>de</strong><br />

prosperida<strong>de</strong>. Minha vizinha fez promessa – e foi atendida e está “pagando” – a Nossa Senhora da<br />

Penha, <strong>de</strong> que se tornaria “crente” (protestante, o que lhe é sinônimo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>dicação”) se o seu ma-<br />

rido voltasse para casa.<br />

“A experiência religiosa cont<strong>em</strong>porânea ten<strong>de</strong> a ser uma experiência<br />

<strong>em</strong>ocional, ligada à <strong>em</strong>oção, ao corpo, à subjetivida<strong>de</strong>,<br />

o que leva os indivíduos à procura <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong>s que ofereçam<br />

contato imediato com o divino, a experiência místicoespiritual.<br />

Visando recuperar a magia, os indivíduos abraçam<br />

as manifestações religiosas que lhes permit<strong>em</strong> exprimir suas<br />

<strong>em</strong>oções, seja através da dança, risos, abraços, lágrimas, estado<br />

<strong>de</strong> transe ou êxtase. Por sua vez, sobressai nessas formas <strong>de</strong><br />

crer a perspectiva holista ou globalizante. Essa dimensão significa<br />

uma redução das clivagens entre sagrado e profano, numa<br />

dinâmica <strong>de</strong> junção e associação <strong>de</strong>sses pólos, que s<strong>em</strong>pre foram<br />

concebidos separadamente. Este el<strong>em</strong>ento acentua tanto a<br />

personalização da religião (construção pessoal <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a<br />

<strong>de</strong> crenças) quanto a construção <strong>de</strong> um vínculo místico com<br />

energias cósmicas e a mãe natureza. A dimensão terapêutica, a<br />

saú<strong>de</strong>, o equilíbrio psíquico e o b<strong>em</strong>-estar <strong>em</strong> geral são adotados<br />

como referências fundamentais para diferentes grupos religiosos.<br />

A crença na eficácia terapêutica da religião permite aos<br />

indivíduos uma via <strong>de</strong> acesso ao sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>clarando,<br />

simultaneamente, um tipo <strong>de</strong> ‘protesto’ contra o sist<strong>em</strong>a oficial.<br />

À medida que as religiões tradicionais racionalizaram sua prática<br />

e discurso, <strong>de</strong>ixando um vazio <strong>em</strong> relação aos probl<strong>em</strong>as<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> espiritual e físico, as respostas alternativas <strong>em</strong>erg<strong>em</strong><br />

como formas <strong>de</strong> solução, principalmente pelo uso da linguag<strong>em</strong><br />

do <strong>de</strong>sejo dos indivíduos.” 16<br />

15 Cf. http://revistaepoca.globo.com/Epoca/1,6993,EPT377471-1661,00.html, <strong>em</strong> 27/8/02.<br />

16 CERIS. Tendências atuais do catolicismo no Brasil. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Ceris (mimeo.), 2000, p. 14.<br />

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Existirmos, a que será que se <strong>de</strong>stina (ou das contradições da nova civilização)<br />

Parece que ainda estamos longe daquele “ponto <strong>de</strong> mutação” esperado. A teleologia pós-<br />

mo<strong>de</strong>rna é traída às vezes pelas limitações da sua realização cultural, como sói acontecer <strong>em</strong> todo<br />

movimento civilizador. Entr<strong>em</strong>entes, essa nova percepção do real – e do divino – acaba dando su-<br />

porte ao – e/ou é suportada pelo – novo e onipresente capitalismo, <strong>de</strong>senvolvido com o concurso<br />

<strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> energia e <strong>de</strong> tecnologias baseadas na informação, que resultam numa Socieda-<br />

<strong>de</strong> <strong>em</strong> Re<strong>de</strong> globalizada, calcada <strong>em</strong> trocas instantâneas <strong>de</strong> informação, capital e comunicação cul-<br />

tural, para além das regulamentações nacionais.<br />

De qualquer lugar, pod<strong>em</strong>os assistir à copa mundial <strong>de</strong> futebol como se estivéss<strong>em</strong>os no<br />

Japão – e também notar que lá as pessoas ench<strong>em</strong> um estádio para assistir<strong>em</strong> ao jogo que não ocor-<br />

re no gramado, mas <strong>em</strong> um telão; além do que o nome das nações aí vai ce<strong>de</strong>ndo lugar às marcas<br />

publicitárias até nas camisas dos jogadores; como também estes possu<strong>em</strong> raças e rostos misturados<br />

<strong>em</strong> todas as seleções “nacionais”.<br />

“Não exist<strong>em</strong> nações, não exist<strong>em</strong> pessoas, n<strong>em</strong> russos, n<strong>em</strong><br />

árabes (...). Só existe um único, um único sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>as.<br />

Existe tão-somente um interligado, multinacional domínio<br />

dos dólares, petrodólares, marcos, ienes (...) É um sist<strong>em</strong>a<br />

internacional das moedas que <strong>de</strong>termina a totalida<strong>de</strong> da vida<br />

neste planeta. Essa é a ord<strong>em</strong> natural das coisas hoje. Essa é a<br />

estrutura atômica, subatômica e galáctica das coisas que exist<strong>em</strong><br />

neste momento. (...) Não viv<strong>em</strong>os mais um mundo <strong>de</strong><br />

nações e i<strong>de</strong>ologias. O mundo é um colégio <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas, inexoravelmente<br />

<strong>de</strong>terminadas pelas imutáveis leis dos negócios.<br />

O mundo é um negócio (...). Uma vasta e ecumênica<br />

<strong>em</strong>presa holding, para a qual todos os homens trabalharão para<br />

servir a um lucro comum, (...) no qual todas as necessida<strong>de</strong>s<br />

serão satisfeitas, todas as ansieda<strong>de</strong>s tranqüilizadas, todo<br />

tédio resolvido. (...) Este (é o) evangelho.” 17<br />

As nações mo<strong>de</strong>rnas consolidaram-se para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r as indústrias nascentes e <strong>de</strong>saparecerão<br />

nessa fase pós-mo<strong>de</strong>rna do capitalismo, subsumidas <strong>em</strong> mercados-comuns e parlamentos globais.<br />

Surge uma socieda<strong>de</strong> centrada no uso e aplicação da informação para geração <strong>de</strong> lucro e na qual a<br />

divisão do trabalho se efetua, não tanto segundo jurisdições territoriais e interesses sociais, mas<br />

sobretudo segundo um padrão complexo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s interligadas. Surg<strong>em</strong> os <strong>de</strong>safios da oposição<br />

entre homogeneização social e diversida<strong>de</strong> cultural, das transformações estruturais do <strong>em</strong>prego e a<br />

sua conseqüência para a vulnerabilida<strong>de</strong> da mão-<strong>de</strong>-obra, das novas práticas <strong>em</strong>presariais ou da<br />

17 Fragmento do filme Network (título brasileiro: Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> intrigas), <strong>de</strong> Sidney Lumet, EUA, 1976. Apud<br />

ASSMANN, H. As falácias religiosas do mercado. In: MOREIRA, A. e ZICMAN, R. (orgs.). Misticismo e novas religiões.<br />

Petrópolis: Vozes, Bragança: IFAUSF, 1974, p. 123.<br />

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nova divisão internacional do trabalho – que se revela ao mesmo t<strong>em</strong>po um mecanismo <strong>de</strong> inclusão<br />

e <strong>de</strong> exclusão social.<br />

Com a dramática intensificação das práticas transnacionais e da migração, da internaciona-<br />

lização da economia, da "lógica do consumismo" e da busca do efêmero e do estético, ca<strong>em</strong> os<br />

muros i<strong>de</strong>ológicos e a socieda<strong>de</strong> é <strong>de</strong>smobilizada. Busca-se uma política <strong>de</strong> resultados, concretiza-<br />

da no que se ten<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> Estado síndico, administrador patrimonial e amenizador da violência<br />

social dos migrantes <strong>de</strong>slocados. Desponta um novo tipo <strong>de</strong> organização não-estatal para gerir a<br />

esfera pública: as organizações não-governamentais. Cresce a corrupção e a marketização eleitoral,<br />

fortalecendo a confiança das periferias nos po<strong>de</strong>res paralelos das drogas e das gangues.<br />

Ainda como conseqüência da intensificação da inter<strong>de</strong>pendência transnacional e das intera-<br />

ções globais, observa-se que as relações sociais parec<strong>em</strong> estar cada vez mais <strong>de</strong>sterritorializadas,<br />

com os indivíduos se agrupando a partir <strong>de</strong> interesses afins, como acontece nas comunida<strong>de</strong>s virtu-<br />

ais e nos clubes dos gran<strong>de</strong>s centros urbanos. De um modo geral, os hábitos e costumes regionais<br />

ced<strong>em</strong> à pressão da otimização econômica, do universo on-line e da cultura <strong>de</strong> massa. Em todos os<br />

t<strong>em</strong>pos, as culturas particulares se formaram pela criativida<strong>de</strong> interna e pelo contato entre diferen-<br />

tes povos, pela assimilação <strong>de</strong> traços exógenos. Entretanto essa assimilação até agora era lenta e<br />

seletiva, o que garantia a originalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> meio à recriação. O multiculturalismo atual, imposto,<br />

imediato, superficial e sobretudo comercial, justapõe pessoas e costumes e ten<strong>de</strong> a diluir toda ori-<br />

ginalida<strong>de</strong> numa "cultura" global uniforme, <strong>de</strong>struindo o "arco-íris das culturas".<br />

Por outro lado, há também um ressurgimento <strong>de</strong> novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s locais, geralmente par-<br />

tindo <strong>de</strong> indivíduos "translocalizados" ou excluídos dos processos socioeconômicos, fora <strong>de</strong> seus<br />

ambientes <strong>de</strong> orig<strong>em</strong>, que se organizam como microi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, guetos. É o caso da maior cida<strong>de</strong><br />

nor<strong>de</strong>stina do país, São Paulo, on<strong>de</strong> nossos conterrâneos tomam aos domingos o Parque da In<strong>de</strong>-<br />

pendência e transformam os jardins franceses do seu palácio, construídos para <strong>de</strong>cantar o ego da<br />

“nossa” elite, <strong>em</strong> simples tapete para se comer farofa e tirar foto para os parentes daqui (é impres-<br />

sionante ver a capa <strong>de</strong> um imperador na forma <strong>de</strong> estátua ser transformada, s<strong>em</strong> a menor cerimô-<br />

nia, <strong>em</strong> escorrego para os meninos).<br />

A racionalida<strong>de</strong> global da vida social e pessoal acabou por se <strong>de</strong>sintegrar numa miría<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

mini-racionalida<strong>de</strong>s. No que tange às relações entre a pessoa e a socieda<strong>de</strong>, observa-se ainda um<br />

nítido regresso ao indivíduo, à vida privada, ao narcisismo. Paradoxalmente, a vida individual nun-<br />

ca foi tão pública, nunca foi tão prontamente <strong>de</strong>vassável e standardizada pelas web-cams e net<br />

meetings da vida, pelos programas televisivos como esses big-brothers que n<strong>em</strong> Orwell sonharia.<br />

40


Eu quero uma casa no campo (ou das pós-urbanas concepções <strong>de</strong> “espaço <strong>de</strong> fluxos” e “t<strong>em</strong>-<br />

po virtual”)<br />

É claro que a cida<strong>de</strong> <strong>em</strong>ergente nesse contexto <strong>de</strong> transformações socioculturais não será<br />

uma cópia do Vale do Silício norte-americano, muito menos <strong>de</strong> Los Angeles; mas, como na era<br />

industrial, apesar da diversida<strong>de</strong> extraordinária dos contextos físicos e culturais, há algumas<br />

características comuns fundamentais no <strong>de</strong>senvolvimento transcultural da cida<strong>de</strong> “informacional”.<br />

Não se po<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>screver o Recife, <strong>de</strong> toda maneira, como ainda o fazia Gilberto Freyre já no<br />

primeiro terço do século XX:<br />

“Com o recato quase mourisco do Recife, cida<strong>de</strong> acanhada,<br />

escon<strong>de</strong>ndo-se por trás dos coqueiros; e angulosa, as <strong>igreja</strong>s<br />

magras, os sobrados estreitos, alguns, ainda hoje, com quartinhas<br />

às janelas, com gaiolas <strong>de</strong> passarinhos e até araras, junto<br />

às varandas <strong>de</strong> ferro rendilhado; com mulatas <strong>de</strong> casas-<strong>de</strong>rapariga<br />

<strong>em</strong> terceiro ou quarto andar, que <strong>de</strong> madrugada aparec<strong>em</strong><br />

nuas nas varandas para provocar<strong>em</strong> os s<strong>em</strong>inaristas <strong>de</strong><br />

conventos, alvoroçando os fra<strong>de</strong>s moços <strong>em</strong>penhados nas<br />

primeiras rezas do dia. Cida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> saliências n<strong>em</strong> relevos<br />

que dê<strong>em</strong> na vista, toda ela num plano só, achatando-se por<br />

entre touças <strong>de</strong> bananeiras que sa<strong>em</strong> dos quintais dos sobrados<br />

burgueses; por entre as mangueiras, os sapotizeiros, as<br />

jaqueiras das casas mais afastadas.” 18<br />

As megacida<strong>de</strong>s pós-mo<strong>de</strong>rnas serão constelações <strong>de</strong>scontínuas <strong>de</strong> fragmentos espaciais,<br />

peças funcionais e segmentos culturais: na geografia das crianças do bairro chique <strong>de</strong> Alphaville,<br />

<strong>em</strong> São Paulo, Miami é “mais perto” do que o <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, pois é lá que elas passam as férias.<br />

As cida<strong>de</strong>s estarão física e socialmente conectadas com o globo e <strong>de</strong>sconectadas do local: o altar<br />

do Mosteiro <strong>de</strong> São Bento <strong>de</strong> Olinda viajou, com seguro, <strong>em</strong> plena “guerra do terrorismo”, e pô<strong>de</strong><br />

ser visto por turistas <strong>de</strong> todo o mundo <strong>em</strong> Nova York, mas dificilmente inspirará algum dia a <strong>de</strong>-<br />

voção dos católicos da Ilha do Maruim, uma favela próxima (por sinal, monges pós-mo<strong>de</strong>rnos a-<br />

presentaram há pouco o seu canto gregoriano numa catedral <strong>em</strong> Paris, quando as escolas das cer-<br />

canias do seu mosteiro careceriam <strong>de</strong> uma iniciação musical que fosse).<br />

Nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s hoje, verifica-se uma supr<strong>em</strong>acia da representação midiática e infor-<br />

macional sobre a experiência direta das coisas. O altar <strong>de</strong> São Bento, por ex<strong>em</strong>plo, n<strong>em</strong> fez muita<br />

falta no nosso Mosteiro, porque <strong>em</strong> seu lugar ficou uma enorme fotografia que o reproduzia <strong>em</strong><br />

tamanho natural, virtualizando – e, assim, tornando mais “real”, mo<strong>de</strong>rno e atrativo para muitos –<br />

aquele caminho já virtual para o “céu”, que é o altar. Uma cida<strong>de</strong>, então, multiplica-se <strong>em</strong> tantas<br />

quantos possam ser os enquadramentos que <strong>de</strong>la façam os postais e os guias e os sites <strong>de</strong> turismo.<br />

18 FREYRE, G. Guia prático, histórico e sentimental da cida<strong>de</strong> do Recife. 1934. Apud VVAA. A cida<strong>de</strong> <strong>em</strong><br />

fragmentos. Continente multicultural. Ano II, nº 20, ago/02, (34-40), p. 38.<br />

41


Por causa da natureza da nova socieda<strong>de</strong> baseada <strong>em</strong> conhecimento, organizada <strong>em</strong> torno<br />

<strong>de</strong> re<strong>de</strong>s e formada <strong>de</strong> fluxos, a cida<strong>de</strong> informacional não é uma forma, mas um processo. Não é<br />

mais um núcleo habitacional que se vai esten<strong>de</strong>ndo <strong>em</strong> bairros a partir <strong>de</strong> novas instituições e <strong>em</strong>-<br />

presas econômicas e culturais: a cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna está <strong>em</strong> permanente reorganização, a partir<br />

dos fluxos <strong>de</strong> informação que predominam (móveis com brasão maçônico na anticlerical Recife,<br />

por ex<strong>em</strong>plo, compõ<strong>em</strong> agora, por ironia do <strong>de</strong>stino, o salão nobre da nossa próspera universida<strong>de</strong><br />

jesuítica).<br />

A cida<strong>de</strong> hoje é um processo caracterizado pelo predomínio estrutural do “espaço <strong>de</strong> flu-<br />

xos”. Ou seja, pela organização <strong>de</strong> um circuito <strong>de</strong> impulsos eletrônicos (microeletrônica, teleco-<br />

municações, processamento computacional, sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> transmissão e transporte <strong>em</strong> alta velocida-<br />

<strong>de</strong> – também com base <strong>em</strong> tecnologias da informação), pela constituição <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> funções<br />

estratégicas e <strong>de</strong> comunicação, pela organização espacial das elites gerenciais (e não das classes e,<br />

muito menos, dos governos) que exerc<strong>em</strong> a direção <strong>de</strong>sse espaço. As cida<strong>de</strong>s se mudam seguindo<br />

essas elites, que se transfer<strong>em</strong> para on<strong>de</strong> <strong>de</strong>spontam novas ilhas <strong>de</strong> lazer e tecno-informação. Basta<br />

ver como os points da cida<strong>de</strong> são mutantes, como o nosso “marco-zero” virou palco e os cabarés<br />

do “Recife antigo” – e os seus quartéis e armazéns – ce<strong>de</strong>ram lugar aos cibercafés e pubs, no en-<br />

torno do nosso novo “Porto Digital” (cujos cabos <strong>de</strong> fibra ótica <strong>de</strong>senterram e se apóiam nas mura-<br />

lhas coloniais da antiga Ilha do Recife). O “espaço <strong>de</strong> fluxos” se cristaliza no “ciberespaço” que,<br />

nesse mundo secularizado, ganha paradoxal aura <strong>de</strong> sagrado.<br />

“O livro <strong>de</strong> Margaret Wertheim, ‘Uma História do Espaço <strong>de</strong><br />

Dante à Internet’, brinda o leitor com um belo levantamento<br />

sobre as concepções oci<strong>de</strong>ntais do espaço <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média<br />

até nossos dias <strong>de</strong> ciberespaço (...). O que move principalmente<br />

a autora, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras páginas <strong>de</strong> seu texto, é<br />

uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão crítica a respeito do ciberespaço.<br />

Segundo ela, essa dimensão digital estaria sendo investida<br />

por visões celestiais e salvadoras: ‘Os promotores atuais<br />

do ciberespaço apregoam seu domínio como um reino<br />

i<strong>de</strong>alizado acima e além dos probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> um mundo material<br />

conturbado. Exatamente como os cristãos primitivos, promet<strong>em</strong><br />

um porto transcen<strong>de</strong>nte, uma arena utópica <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>,<br />

amiza<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r. O ciberespaço <strong>em</strong> si mesmo não é um<br />

construto religioso, mas, como sustento neste livro, uma maneira<br />

<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r esse novo domínio digital é vê-lo como<br />

uma tentativa <strong>de</strong> construir um substituto tecnológico para o<br />

espaço cristão do céu. (...)Evocando nomes como o <strong>de</strong> William<br />

Gibson, Negroponte, Nicole Stenger, Kevin Kelly, Sherry<br />

Turkle, Howard Rheingold entre outros, Wertheim mostra o<br />

quanto algumas das afirmações <strong>de</strong>sses autores não passariam<br />

<strong>de</strong> visões cristãs seculares re<strong>em</strong>baladas num formato tecnológico.<br />

Daí sua preocupação <strong>em</strong> nos mostrar algumas das várias<br />

versões históricas dos espaços religiosos, Dante <strong>em</strong> primeiro<br />

lugar, para que possamos compreen<strong>de</strong>r o paralelo com<br />

42


o nosso ciberdualismo <strong>de</strong> ‘corpo sentado diante do computador’<br />

versus ‘mente navegando no ciberespaço’. Sua crítica<br />

aos sonhos e visões que povoam o ciberespaço po<strong>de</strong>ria ser<br />

resumida <strong>em</strong> três aspectos: os jogos psicossociais, a imortalida<strong>de</strong><br />

religiosa e as ciberutopias. O primeiro aspecto critica<br />

aqueles que acreditam que o espaço das re<strong>de</strong>s seria propício à<br />

proliferação <strong>de</strong> ‘eus’, seja na forma <strong>de</strong> avatares ou simplesmente<br />

nas salas <strong>de</strong> bate-papo, on<strong>de</strong> encontramos inversões <strong>de</strong><br />

gêneros e mudança <strong>de</strong> papéis sociais. É uma espécie <strong>de</strong> crítica<br />

à alienação <strong>de</strong> nossa própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O segundo aspecto<br />

critica aqueles que quer<strong>em</strong> livrar-se do lastro da materialida<strong>de</strong>,<br />

que <strong>de</strong>sejam transcen<strong>de</strong>r o corpo. O ex<strong>em</strong>plo clássico é<br />

o do especialista <strong>em</strong> robótica, Hans Moravec, que pensava<br />

<strong>em</strong> libertar a mente humana da servidão do corpo material<br />

transportando-a para os bits dos computadores e daí para o<br />

mundo interconectado da re<strong>de</strong>. Trata-se do sonho <strong>de</strong> uma ciberimortalida<strong>de</strong>,<br />

que v<strong>em</strong> acompanhado do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> onisciência,<br />

ou seja, <strong>de</strong> um intelecto global que teria acesso, através<br />

da re<strong>de</strong>, ao conhecimento do Todo. O último aspecto diz respeito<br />

àqueles que sonham com uma comunida<strong>de</strong> global, sendo<br />

que o ciberespaço, <strong>em</strong> especial, seria um ‘lugar para o estabelecimento<br />

<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>alizadas que transcend<strong>em</strong><br />

às tiranias da distância e seriam livres <strong>de</strong> preconceitos <strong>de</strong> sexo,<br />

raça ou cor’. Nesse caso, Wertheim nos l<strong>em</strong>bra os casos<br />

<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s que são ou racistas ou agressivas ou preconceituosas<br />

<strong>em</strong> relação às mulheres, o que indicaria que as ciberutopias<br />

são tão ou mais fantasiosas que as utopias propriamente<br />

ditas. Mesmo estando atenta a todos esses aspectos, a<br />

autora acredita que a noção <strong>de</strong> ciberespaço como re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações<br />

possa ser uma metáfora po<strong>de</strong>rosa para a formação <strong>de</strong><br />

comunida<strong>de</strong>s melhores: ‘...Se o ciberespaço nos ensina alguma<br />

coisa é que os mundos que conceb<strong>em</strong>os são projetos comunais<br />

que exig<strong>em</strong> responsabilida<strong>de</strong> comunal permanente’."<br />

19<br />

Nessas cida<strong>de</strong>s que começam a surgir, a cultura da realida<strong>de</strong> virtual associada a um sist<strong>em</strong>a<br />

multimídia eletronicamente integrado, contribui para a transformação também do t<strong>em</strong>po, no senti-<br />

do da simultaneida<strong>de</strong> e int<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong>. A história agora acontece <strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po único: o t<strong>em</strong>po<br />

mundial. Mas a trama do t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>spe-se <strong>de</strong> sua máscara linear, seqüencial, objetiva e anônima.<br />

Seus diversos focos organizam-se, centram-se e recentram-se continuamente on<strong>de</strong> cada pessoa é<br />

convidada a construir uma narrativa singular do presente: vejam-se os blogs ou diários virtuais na<br />

internet .<br />

Morre a história como um fluxo linear, unívoco e progressivo <strong>de</strong> fatos. Cena <strong>de</strong> um chat <strong>de</strong><br />

aconselhamento psicológico: o sujeito diz que está apaixonado por uma adolescente <strong>de</strong> treze anos,<br />

a mo<strong>de</strong>radora pon<strong>de</strong>ra que isto cheira a abuso e que mesmo casar com menina assim é coisa <strong>de</strong><br />

19 COSTA, R. Reino dos céus tecnológico. Folha <strong>de</strong> São Paulo, 2/12/2001, Ca<strong>de</strong>rno Mais.<br />

43


outra época, outro contexto cultural – no que ele retruca: tudo b<strong>em</strong>, compro passagens para o Pací-<br />

fico e voltamos com os papéis legalizados... Isso para não l<strong>em</strong>brarmos <strong>de</strong> como a novela das oito<br />

<strong>de</strong>spertou sub-reptícios arroubos <strong>de</strong> conversão ao islã, por parte <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>ntes a uma segunda –<br />

ou terceira – esposa. Há outro t<strong>em</strong>po – e espaço – s<strong>em</strong>pre ao nosso alcance<br />

Constrói-se uma cultura que é simultaneamente do eterno e do efêmero, porque alcança to-<br />

da a seqüência passada e futura das expressões culturais e porque cada organização <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do<br />

contexto e do objetivo da construção cultural solicitada: enquanto as enciclopédias organizaram o<br />

conhecimento humano por ord<strong>em</strong> alfabética ou tábua cronológica, a mídia eletrônica fornece aces-<br />

so à informação, expressão e percepção <strong>de</strong> acordo com os impulsos do seu consumidor ou <strong>de</strong>cisões<br />

do produtor, quebrando a or<strong>de</strong>nação normal dos eventos. A eliminação da seqüência cria t<strong>em</strong>po<br />

não-diferenciado, o que equivale à “eternida<strong>de</strong>”.<br />

Por outro lado, a ocorrência dos t<strong>em</strong>pos é sist<strong>em</strong>aticamente misturada, o que permite a rea-<br />

lização <strong>de</strong> transações <strong>de</strong> capital <strong>em</strong> frações <strong>de</strong> segundos, <strong>em</strong>presas com jornada <strong>de</strong> trabalho flexí-<br />

vel, t<strong>em</strong>po variável <strong>de</strong> serviço e lojas convenient<strong>em</strong>ente abertas vinte e quatro horas, in<strong>de</strong>termina-<br />

ção do ciclo da vida e busca da eternida<strong>de</strong> por intermédio da negação da morte, guerras instantâ-<br />

neas ao vivo na televisão (que se confund<strong>em</strong> com os onipresentes jogos eletrônicos, a fundir<strong>em</strong> e<br />

rimar<strong>em</strong> diversão com dominação) e, enfim, cultura do “t<strong>em</strong>po virtual”. Napoleão, por falarmos<br />

nisso, podia ditar até seis cartas simultaneamente, para diferentes secretárias: mas hoje até eu pos-<br />

so abrir ainda mais “janelas” (<strong>de</strong> trabalho e/ou divertimento) na telinha do meu notebook (a propó-<br />

sito, “janelas culturais” ou “cultura das janelas” – ou windows, se quiser<strong>em</strong> – podia ser um bom<br />

epíteto para a nossa época; como também é bom indicativo da nossa era o fato <strong>de</strong> que a interface<br />

da próxima versão do sist<strong>em</strong>a operacional <strong>de</strong> Bill Gates vá se chamar “avatar” – expressão hindu<br />

para indicar a materialização <strong>de</strong> um ser divino).<br />

Quer<strong>em</strong>os Deus, homens ingratos (ou das possibilida<strong>de</strong>s teológicas <strong>de</strong> evangelização <strong>de</strong>sse<br />

“admirável mundo novo”)<br />

A Igreja, com seu tesouro simbólico <strong>de</strong> valores e sentidos para a vida, <strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r abrir por-<br />

tas nessa “al<strong>de</strong>ia global” que teima <strong>em</strong> se fechar <strong>em</strong> um “pensamento único”, <strong>de</strong>ve questionar a<br />

relativização ético-mítica <strong>em</strong>preendida pela pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, b<strong>em</strong> como o utilitarismo <strong>de</strong>senrai-<br />

zado <strong>de</strong>sse processo civilizatório – que se d<strong>em</strong>onstra, não poucas vezes, s<strong>em</strong> civilida<strong>de</strong> alguma:<br />

basta ver as suas gerações <strong>de</strong> yuppies e/ou punks malcriados e “clonados” pelos shoppings e par-<br />

ques afora, ou ver a meninada do tipo “gomalina com celular” nos bancos das nossas escolas e<br />

universida<strong>de</strong>s.<br />

A cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna, por seu turno, questiona a cultura <strong>católica</strong> tradicional, com suas pa-<br />

róquias fechadas e paradas, com sua organização <strong>em</strong> territórios d<strong>em</strong>arcados como na Ida<strong>de</strong> Média<br />

44


e com seu t<strong>em</strong>po cíclico ainda da Revolução Agrícola, com suas liturgias sacrificiais e racionali-<br />

zantes, com sua doutrina jurisdicista e uniformizante, com seus ministérios muito formais e auto-<br />

cráticos. Nada mais triste do que as nossas <strong>igreja</strong>s fe<strong>de</strong>ndo a excr<strong>em</strong>ento <strong>de</strong> morcego, do que as<br />

nossas ass<strong>em</strong>bléias nomeando <strong>de</strong> Deus às coisas que nos faz<strong>em</strong> sofrer. Se o pós-mo<strong>de</strong>rno busca o<br />

lúdico, é alegria que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os oferecer-lhe: mas uma alegria “diferente” e que cause diferença na<br />

vida das pessoas e da socieda<strong>de</strong>. Afinal, se santo Agostinho não tivesse experimentado um Deus<br />

prazeroso, teria ele abandonado os inconfessáveis prazeres do pecado?!<br />

“Tar<strong>de</strong> vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tar<strong>de</strong> vos amei!<br />

Eis que habitáveis <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim, e eu lá fora a procurarvos!<br />

Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes.<br />

Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe<br />

<strong>de</strong> vós, aquilo que não existiria se não existisse <strong>em</strong> vós. Porém<br />

chamastes-me com uma voz tão forte que rompestes a minha<br />

sur<strong>de</strong>z! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira!<br />

Exalastes perfume: respirei-o, suspirando por Vós. Saboreei-vos,<br />

e agora tenho fome e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> vós. Tocastes-me e<br />

ardi no <strong>de</strong>sejo da vossa paz.” 20<br />

Será possível evangelizar mesmo essa cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna? Talvez o que falte à Igreja não<br />

seja uma metodologia ou um melhor conjunto <strong>de</strong> técnicas e equipamentos pastorais, mas antes uma<br />

maior consciência da fé evangélica – que brota <strong>de</strong> uma vivência mais intensa da boa notícia cristã.<br />

A nossa antropologia religiosa e, daí, a nossa imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus, andam ainda meio atrasadas: não<br />

ser<strong>em</strong>os capazes <strong>de</strong> assumir e superarmos o holismo pós-mo<strong>de</strong>rno, permanecendo fincados no dua-<br />

lismo entre matéria e espírito, na oposição entre o mundo natural e o sobrenatural que caracteriza a<br />

pré-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e ainda nos acompanha a muitos – trazendo conseqüências nefastas para a com-<br />

preensão eclesiológica: separando e contrapondo oração e ação, religião e política, clérigos e lei-<br />

gos.<br />

“Em 1996, apareceu um livro particularmente representativo do<br />

novo horizonte intelectual, ‘O Hom<strong>em</strong>-Deus ou o Sentido da<br />

Vida’, <strong>de</strong> Luc Ferry. É certo, diz o autor, que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

acarretou uma ‘perda <strong>de</strong> sentido’, mas ela po<strong>de</strong> ser compensada<br />

graças aos recursos fornecidos pela própria mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. A<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, com efeito, significa uma humanização do divino,<br />

a ascensão irreversível do secularismo. Foi um extraordinário<br />

progresso para o espírito humano, porque permitiu ao hom<strong>em</strong>,<br />

enfim, pensar por si mesmo. Mas a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> também<br />

comporta um movimento oposto, que Ferry chama <strong>de</strong> divinização<br />

do humano. A humanização do divino implica o fim das<br />

transcendências ‘verticais’, autoritárias, situadas fora e acima<br />

do sujeito. Nesse sentido, a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é o reino da imanência.<br />

Mas é possível, também, nas entranhas da imanência, pensar<br />

algo que a transborda, um estar-fora-<strong>de</strong>la, um extravasa-<br />

20 AGOSTINHO, S. Confissões. X, 38: http://m<strong>em</strong>bres.lycos.fr/augustindhippone/livre10.htm.<br />

45


mento <strong>em</strong> direção a transcendências ‘horizontais’, livr<strong>em</strong>ente<br />

consentidas, puramente humanas. É a divinização do humano.<br />

A força motriz da transcendência horizontal é o amor, que leva<br />

os sujeitos a ultrapassar<strong>em</strong> sua interiorida<strong>de</strong> monádica para alcançar<strong>em</strong><br />

o Outro. Ora, é a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que permite o advento<br />

<strong>de</strong>sse amor. Baseando-se nas análises <strong>de</strong> Philippe Ariès, Ferry<br />

afirma que o amor sentimental, conjugal e parental não existia<br />

<strong>em</strong> épocas pré-mo<strong>de</strong>rnas, <strong>em</strong> que o <strong>de</strong>sejo físico reinava s<strong>em</strong><br />

partilha e a família era uma entida<strong>de</strong> predominant<strong>em</strong>ente patrimonial.<br />

A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> engendrou uma forma específica <strong>de</strong><br />

amor. O amor mo<strong>de</strong>rno não <strong>de</strong>ve ser pensado como Eros, pois<br />

este pressupõe a falta do objeto amado e se extingue com a gratificação<br />

do <strong>de</strong>sejo, e sim como ‘philia’, no sentido <strong>de</strong> Aristóteles,<br />

como uma afeição que exige, ao contrário, a presença viva<br />

e constante do ser amado. A ‘philia’, por sua vez, r<strong>em</strong>ete a outro<br />

tipo <strong>de</strong> amor, o ágape cristão, sentimento que nos liga<br />

mesmo aos que nos são indiferentes, mesmo aos nossos inimigos,<br />

e t<strong>em</strong> como horizonte virtual a humanida<strong>de</strong> inteira. Ferry<br />

chama <strong>de</strong> ‘humanismo transcen<strong>de</strong>ntal’ essa perspectiva que<br />

parte da imanência mo<strong>de</strong>rna para chegar a uma transcendência<br />

cujas condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> são dadas pela própria mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Humanismo, porque não é mais possível recuar para<br />

posições pré-mo<strong>de</strong>rnas, <strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> ocupava um lugar<br />

secundário com relação ao divino. Mas humanismo transcen<strong>de</strong>ntal,<br />

porque instaurador <strong>de</strong> valores que exced<strong>em</strong> uma <strong>de</strong>finição<br />

puramente imanentista do humano. O hom<strong>em</strong> não é o produto<br />

cego <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>s que se dão à sua revelia,<br />

e é por isso que essa imanência se abre para a liberda<strong>de</strong> e para<br />

a esperança. Mas com isso se põe a questão das relações entre<br />

o humanismo transcen<strong>de</strong>ntal e a religião cristã. Esse hom<strong>em</strong><br />

divinizado que a reflexão imanente encontra no fim do seu percurso<br />

não é um Prometeu que roubou o fogo do Olimpo n<strong>em</strong><br />

um Lúcifer que usurpou o trono <strong>de</strong> Deus, e sim, muito cristãmente,<br />

um ser capaz <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, que quer completar<br />

a ‘philia’ com o ágape e esten<strong>de</strong>r a todo o gênero humano o<br />

amor que ele t<strong>em</strong> pelos seus próximos. Ferry não recua diante<br />

<strong>de</strong>ssas implicações religiosas. Como o Cristianismo, o novo<br />

humanismo sustenta a existência <strong>de</strong> valores transcen<strong>de</strong>ntais a<br />

partir do amor; acha que esses valores não pod<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre ser<br />

explicados pela razão; acredita que esses valores são religiosos<br />

no sentido etimológico <strong>de</strong> ‘religare’, <strong>de</strong> criar<strong>em</strong> um vínculo entre<br />

todos os homens; afirma que eles constitu<strong>em</strong> um domínio<br />

que <strong>de</strong>ve ser visto como sagrado; e pensa que eles fundam um<br />

vínculo com a eternida<strong>de</strong> e com a imortalida<strong>de</strong>, porque são valores<br />

pelos quais vale a pena lutar e morrer, e portanto se situam<br />

além da vida terrena. Somente, não se trata <strong>de</strong> uma religião<br />

a priori, que v<strong>em</strong> antes do humano para dar-lhe uma legitimida<strong>de</strong>,<br />

mas a posteriori, pois é <strong>de</strong>scoberta pelo hom<strong>em</strong> no interior<br />

da imanência. Ela não está na orig<strong>em</strong>, mas no fim. Não está<br />

numa tradição, a montante da consciência, mas a jusante, como<br />

algo a ser construído e pensado. Não é mais possível aceitar a<br />

religião cristã <strong>em</strong> sua forma, que é a da heteronomia, baseada<br />

46


num magistério ex-cathedra, inadmissível <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

fundou a liberda<strong>de</strong> da razão. Mas convém meditá-la <strong>em</strong><br />

seu conteúdo, enquanto mensag<strong>em</strong> <strong>de</strong> amor. As relações sociais<br />

da época não permitiram concretizar esse conteúdo, mas,<br />

<strong>em</strong>ancipado <strong>de</strong> sua forma pelo advento dos novos t<strong>em</strong>pos, ele<br />

po<strong>de</strong> finalmente se realizar, como conseqüência paradoxal daquela<br />

mesma mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que aparent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>veria tê-lo esvaziado.<br />

Desse modo, torna-se <strong>de</strong> novo possível pensar a questão<br />

do sentido, porque o humanismo transcen<strong>de</strong>ntal, lidando<br />

com princípios e valores últimos, po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a perguntas<br />

que não estão ao alcance do mero saber <strong>em</strong>pírico.” 21<br />

A hodierna sensibilida<strong>de</strong> “antropocósmica”, ecológica e holística, sugere – e exige – que<br />

refaçamos o nosso entendimento do mundo, do humano e do divino. Se quisermos a inculturação<br />

da fé cristã na cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna, pod<strong>em</strong>os começar pela atualização da nossa teologia sobre o<br />

mundo, por um novo entendimento da Criação. Isto já irá <strong>de</strong>sfazer o dualismo existente na cabeça<br />

<strong>de</strong> muitos entre fé e cultura: gran<strong>de</strong> parte das dificulda<strong>de</strong>s que hoje experimentamos para aproxi-<br />

mar fé e cultura t<strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong> numa noção ontológica da criação como realida<strong>de</strong> neutra, à qual<br />

se acrescenta a oferta salvífica <strong>de</strong> Deus – quando não é isso que aprend<strong>em</strong>os nas Escrituras. 22<br />

Deus criou – e cria! – gratuitamente o mundo para o seu amor, as criaturas todas exist<strong>em</strong> e<br />

ag<strong>em</strong> possibilitadas por Deus. A ação humana, que organiza cultura para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e criar vida, é<br />

portanto mediação para a ação <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong> sorte que as culturas todas <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser tomadas como<br />

locais da fala <strong>de</strong> Deus, da atuação do Espírito Santo, dos “sinais dos t<strong>em</strong>pos”. Por mais <strong>de</strong>sfigurada<br />

que esteja, a cultura t<strong>em</strong> a ver com o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar nela uma Palavra <strong>de</strong> Deus<br />

e algum nível <strong>de</strong> fé. Quer dizer, todas as culturas, também as culturas urbanas mo<strong>de</strong>rnas e <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>las as múltiplas “filosofias <strong>de</strong> vida” e religiões do povo, dispõ<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma base comum que pos-<br />

sibilita e <strong>de</strong>sperta o encontro e o <strong>diálogo</strong> <strong>de</strong> fé.<br />

Contudo, a teologia po<strong>de</strong> inspirar mais do que essa consi<strong>de</strong>ração positiva, <strong>de</strong> dimensão sal-<br />

vífica das culturas, que o evangelizador <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>senvolver. Ela po<strong>de</strong> ser também um caminho para<br />

a recuperação e o <strong>de</strong>senvolvimento da antropologia – e metafísica – do nosso povo católico. A<br />

teologia da criação <strong>de</strong>senvolvida pela tradição cristã po<strong>de</strong> questionar e corrigir na fé popular a sua<br />

imag<strong>em</strong> dualista do humano e a sua imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus “<strong>de</strong>sconhecido” e distante, como também<br />

corrigir o utilitarismo espiritualista dito pós-mo<strong>de</strong>rno.<br />

“Assusta-me este Deus <strong>de</strong> barba imensa,<br />

Pai severo e tirano à moda antiga,<br />

Que com o fogo do inferno os maus castiga<br />

Porém, na terra, os bons não recompensa.<br />

21 ROUANET, S. P. A volta <strong>de</strong> Deus. Folha <strong>de</strong> São Paulo, 19/05/02, Ca<strong>de</strong>rno Mais.<br />

22 Cf. SEGUNDO, J. L. Que mundo? Que hom<strong>em</strong>? Que Deus? São Paulo: Paulinas, 1995. Tb. QUEIRUGA, A.<br />

T. Do terror <strong>de</strong> Isaac ao abbá <strong>de</strong> Jesus: por uma nova imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Deus. São Paulo: Paulinas, 2001.<br />

47


Este Deus que a adorá-lo nos obriga,<br />

Mas que só ama a qu<strong>em</strong> o adula e incensa<br />

Nunca há <strong>de</strong> ser o Deus da minha crença<br />

Que eu venere e entre cânticos bendiga.<br />

O Jeová que no Antigo Testamento<br />

Os profetas nos pintam, truculento,<br />

É um velho Deus, motivo <strong>de</strong> pavor.<br />

Moço é o Deus, <strong>de</strong> eterna juventu<strong>de</strong>:<br />

Perdoa. Todo o mal muda <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong>.<br />

De tão humano, é quase um pecador.” 23<br />

A fé cristã reconhece a orig<strong>em</strong> da vida como mistério transcen<strong>de</strong>nte, colocado por um Ou-<br />

tro, anterior e exterior ao mundo, e portanto causa da vida do mundo, fonte <strong>de</strong> inspiração e orienta-<br />

ção para a <strong>de</strong>fesa da integrida<strong>de</strong> do mundo criado. A teologia da criação cristã nos impe<strong>de</strong> assim<br />

<strong>de</strong> separar (dualismo) ou <strong>de</strong> misturar (monismo) o divino e o mundano, impe<strong>de</strong>-nos <strong>de</strong> pessimismo<br />

diante do mundo e <strong>de</strong> presunção da razão, convidando-nos a ajardinarmos o mundo conforme os<br />

projetos (o “é<strong>de</strong>n” bíblico) <strong>de</strong> Deus. Daí se po<strong>de</strong>ria falar <strong>em</strong> dualida<strong>de</strong>, mas não <strong>em</strong> dualismo –<br />

n<strong>em</strong> <strong>em</strong> confusão – entre matéria e espírito, corpo e alma. E esse dualismo está muito presente nas<br />

buscas espirituais que voltaram, também nas experiências <strong>católica</strong>s, com o sagrado selvag<strong>em</strong> do<br />

mundo pós-mo<strong>de</strong>rno mal-resolvido.<br />

A tradição teológica l<strong>em</strong>bra que o mundo t<strong>em</strong> uma orig<strong>em</strong>, um projeto <strong>de</strong> caos ao cosmos,<br />

um sentido eterno que <strong>de</strong>riva do ato livre e amoroso do criador. De forma que esse sentido da rea-<br />

lida<strong>de</strong> e da vida, <strong>em</strong> última instância, continua mistério <strong>de</strong> Deus — somente dado a conhecer a<br />

qu<strong>em</strong> ama o amor <strong>de</strong> Deus. A criação é fruto do amor entre as pessoas divinas (“pelo Verbo, no<br />

Amor”), <strong>de</strong> maneira que é um ato eternamente cuidado, como eterno é o amor <strong>em</strong> Deus. S<strong>em</strong> con-<br />

fusão e s<strong>em</strong> separação, ama-se <strong>em</strong> Deus e Deus ama o mundo.<br />

Daí que a transcendência <strong>de</strong> Deus, enquanto revelado como amor, não significa <strong>de</strong>sprezo<br />

pelo mundo e pelo corpo, que ficam implicados no mistério da encarnação e da ressurreição. Por<br />

outro lado, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os reconhecer o primado da graça <strong>de</strong> Deus e questionarmos toda tentativa <strong>de</strong><br />

manipulação divina, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os consi<strong>de</strong>rar a categoria <strong>de</strong> mistério, no sentido <strong>de</strong> que n<strong>em</strong> todas as<br />

respostas e soluções aos probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> grupos pod<strong>em</strong> ser alcançadas <strong>de</strong> modo automá-<br />

tico e imediato – como propõ<strong>em</strong> os movimentos religiosos mágicos, também no catolicismo que se<br />

apresenta como pós-mo<strong>de</strong>rno.<br />

Por fim, recorda a teologia, o ser <strong>de</strong> Deus não <strong>de</strong>ve ser buscado <strong>em</strong> essência, porque ele se<br />

revela <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ato criador, como liberda<strong>de</strong> amorosa. Pod<strong>em</strong>os perceber a Deus é nos atos criadores<br />

do mundo, nas criaturas do mundo, sobretudo no Cristo encarnado <strong>em</strong> Jesus – para recriar todas as<br />

coisas. De maneira que o mistério das criaturas r<strong>em</strong>ete ao mistério <strong>de</strong> Deus, porque <strong>em</strong> todas elas<br />

Tigre, <strong>em</strong> 1955.<br />

23 Deus humano: po<strong>em</strong>a manuscrito presenteado pela aluna Giselle Tigre, escrito pelo seu tio Manoel Bastos<br />

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age o Espírito Santo <strong>de</strong> Deus. O Deus da revelação cristã não é essência abstrata, mas comunhão<br />

<strong>de</strong> pessoas, que se manifesta no mundo, <strong>em</strong> alterida<strong>de</strong> amorosa – mesmo quando não é amado pe-<br />

las criaturas, o que dá orig<strong>em</strong> ao mal.<br />

Daí que interessa à fé cristã não somente as questões tidas como “espirituais”, da religião –<br />

e da nossa religião – mas a dinâmica econômico-política e interpretativa da cultura como um todo<br />

– também das outras culturas. E disso <strong>de</strong>rivam certos aspectos que questionam a espiritualida<strong>de</strong><br />

chamada pós-mo<strong>de</strong>rna: a gratuida<strong>de</strong> que interpela o consumo como valor, a comunitarieda<strong>de</strong> que<br />

interpela o isolacionismo e o individualismo, o engajamento que interpela o <strong>de</strong>scompromisso con-<br />

sumista, a solidarieda<strong>de</strong> que interpela a exclusão e a marginalização, a cruz que interpela a expec-<br />

tativa <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong>.<br />

Que prazer, que alegria, o nosso encontro <strong>de</strong> irmãos (ou dos encaminhamentos pastorais na<br />

pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>)<br />

Além <strong>de</strong> uma teologia atualizada, a Igreja na cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna necessita <strong>de</strong> uma pastoral<br />

a<strong>de</strong>quada – e essas dimensões novas exigirão renovadas estruturas eclesiais. A pastoral tri<strong>de</strong>ntina<br />

baseava-se no clero e nas suas paróquias, não via a pessoa como sujeito e sim como “freguês” das<br />

suas “freguesias”, procurando apresentar objetivamente a reta doutrina, a exata liturgia e a justa<br />

disciplina. A pastoral do Concílio Vaticano II ainda está numa fase <strong>de</strong> síntese, mas o certo é que a<br />

Igreja precisa assumir uma “pastoral <strong>de</strong> conjunto” <strong>em</strong> nossas megalópoles, convertendo assim as<br />

suas priorida<strong>de</strong>s e plataformas (<strong>de</strong> jurisdições territoriais, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente litúrgicas).<br />

Ela <strong>de</strong>verá apostar mais nas pastorais ambientais e virtuais, através das quais todas as pes-<br />

soas po<strong>de</strong>rão acompanhar a mensag<strong>em</strong> cristã nos múltiplos fluxos <strong>de</strong> cultura que organizam o no-<br />

vo espaço urbano; ela <strong>de</strong>verá investir mais na comunicação <strong>de</strong>scentralizada e pluralista – aparen-<br />

t<strong>em</strong>ente caótica – da sua mensag<strong>em</strong>, para aten<strong>de</strong>r aos diversos “t<strong>em</strong>pos” da nova cida<strong>de</strong>. Os luga-<br />

res e possibilida<strong>de</strong>s da evangelização são agora muitos: a filha <strong>de</strong> uma antiga namorada, criada <strong>em</strong><br />

meio agnóstico, aos sete anos começou a ser “catequizada” – s<strong>em</strong> muito sucesso, diga-se <strong>de</strong> passa-<br />

g<strong>em</strong> – pela avó <strong>católica</strong>, através <strong>de</strong> filminhos bíblicos – pasm<strong>em</strong>! – do Sílvio Santos (uma vez ela<br />

disse, assistindo à travessia epopéica do Mar Vermelho: “O He-Man t<strong>em</strong> muito mais po<strong>de</strong>r do que<br />

esse Moisés daí...”).<br />

Muitos t<strong>em</strong>plos, por ex<strong>em</strong>plo, precisam ser vendidos aos clubes ou doados para a assistên-<br />

cia social ou para o patrimônio histórico. Eles foram construídos <strong>em</strong> profusão, correspon<strong>de</strong>ndo ao<br />

esqu<strong>em</strong>a mental tradicional e dualista, que separava e privilegiava com ricos ornamentos os espa-<br />

ços para o sagrado, que entendia missão como “implantação da Igreja” através da construção <strong>de</strong><br />

<strong>igreja</strong>s. Estas foram erguidas para enevoar a miséria humana e representar a distância hierárquica<br />

do divino – e guardar as imagens <strong>de</strong> um caminho penitencial para se o alcançar.<br />

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Agora, missão cristã é partilhar a vida e <strong>de</strong>spertar, <strong>em</strong> torno da Palavra <strong>de</strong> Deus, comunida-<br />

<strong>de</strong>s solidárias. Estas pod<strong>em</strong> se reunir nas casas e nos salões comunitários, poucas <strong>igreja</strong>s são ne-<br />

cessárias para as celebrações maiores: <strong>de</strong> preferência as que favoreçam a participação pela arquite-<br />

tura circular, as que facilit<strong>em</strong> uma experiência <strong>de</strong> Deus <strong>em</strong> nosso meio, <strong>em</strong> um clima <strong>de</strong> austerida-<br />

<strong>de</strong> e beleza on<strong>de</strong> sobressaiam as pessoas – e daí se favoreça a sua transcendência.<br />

Não é mais, também, o caso do padre comprar um sino ou difusora e n<strong>em</strong> mesmo um pro-<br />

vedor <strong>de</strong> internet para a paróquia anunciar as “verda<strong>de</strong>s” <strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre, mas <strong>de</strong> ajudar o povo a se<br />

educar misticamente e a se auto<strong>de</strong>terminar como re<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s, ocupando assim os meios<br />

informacionais que se d<strong>em</strong>ocratizam, para test<strong>em</strong>unhar a graça que experimenta da parte <strong>de</strong> Deus<br />

(a informática está presente apenas <strong>em</strong> <strong>de</strong>z por cento dos lares brasileiros, mas já é onipresente nos<br />

meios públicos). N<strong>em</strong> é o caso também <strong>de</strong> a diocese comprar uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> televisão ou rádio para<br />

transmitir práticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>voções e sacramentos sob medida para a funcionalida<strong>de</strong> individualista do<br />

nosso t<strong>em</strong>po, mas sim <strong>de</strong> criar escolas teológicas e cursos on-line e a distância, on<strong>de</strong> o Povo <strong>de</strong><br />

Deus se prepare para aproximar o divino ao tratar <strong>de</strong> qualquer t<strong>em</strong>a, <strong>em</strong> qualquer programa. Com<br />

certeza, pela mídia, muita gente não entrará nas comunida<strong>de</strong>s, mas po<strong>de</strong>rá ser “simpatizante” do<br />

movimento cristão – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que este se apresente aí como “movimento” e “simpático” e não como<br />

casta discordante.<br />

Ou seja, não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os buscar controlar os piores meios <strong>de</strong> comunicação que a cida<strong>de</strong> t<strong>em</strong><br />

inventado, os mais monopolizadores, mas sim colaborar na “inclusão digital” e na “leitura crítica<br />

da comunicação”. Dev<strong>em</strong>os tratar <strong>de</strong> exercitar as melhores experiências <strong>de</strong> socialização da urbani-<br />

da<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna – e até <strong>de</strong> superá-las, vinculando a nossa “re<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s” à “re<strong>de</strong> <strong>de</strong> co-<br />

municação” eclesial.<br />

A pastoral urbana pós-mo<strong>de</strong>rna exige principalmente que se reconheça a importância do<br />

que se costuma chamar comunida<strong>de</strong> ambiental ou comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são ou ainda comunida<strong>de</strong><br />

afetiva – mesmo que esta não seja no local <strong>de</strong> residência da pessoa: o que importa é que o grupo<br />

seja homogêneo, tenha li<strong>de</strong>rança dinâmica, possua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> b<strong>em</strong> formada. Implica também o<br />

investimento nos processos catecumenais (pela análise <strong>de</strong> filmes, meditação frente a obras <strong>de</strong> arte,<br />

test<strong>em</strong>unhos históricos), através dos quais se toma contato com a especificida<strong>de</strong> da vivência cristã,<br />

nela fazendo um gradativo e pedagógico ingresso, com possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> múltiplas expressões li-<br />

túrgicas e doutrinais <strong>de</strong>ssa a<strong>de</strong>são, conformes as tantas culturas da cida<strong>de</strong>.<br />

As comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> periferia pod<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolver mais os grupos comunitários locais, que<br />

ainda são possíveis e úteis nesse contexto. As comunida<strong>de</strong>s inseridas nos ambientes mais urbanos,<br />

sobretudo aquelas do centro e das áreas <strong>de</strong> lazer, pod<strong>em</strong> abrir para toda a cida<strong>de</strong> serviços e ativida-<br />

<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> assistência, são chamadas a <strong>de</strong>senvolver múltiplos horários e locais <strong>de</strong> atendi-<br />

mento (tipo “cafés católicos” ou centros <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong>) e, mais do que eles, diversos ministé-<br />

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ios <strong>de</strong> acolhimento, aconselhamento e escuta, que sejam hábeis <strong>em</strong> manifestar evangélico interes-<br />

se pelos probl<strong>em</strong>as pessoais, mas também firmes na indicação do caminho a seguir, como compa-<br />

nheiros <strong>de</strong> Cristo, na restauração da criação e na construção do Reino – expressão que Jesus tirou<br />

da política para nomear o seu movimento espiritual, com claras conotações sociais.<br />

E <strong>em</strong> todas as comunida<strong>de</strong>s, a Igreja precisa visibilizar mais a comunhão que anseia para o<br />

mundo, através <strong>de</strong> estruturas mais d<strong>em</strong>ocráticas <strong>de</strong> participação do Povo <strong>de</strong> Deus – principalmente<br />

das mulheres e dos jovens, que são os mais animados e os mais excluídos. Deve-se criar e dinami-<br />

zar ass<strong>em</strong>bléias e conselhos <strong>em</strong> todos os níveis <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação.<br />

Assim sendo, uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s cristãs (resultantes daquele misto <strong>de</strong> CEBs e Re-<br />

novação Carismática) forma a base <strong>de</strong>sejável da evangelização na cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna. Cada co-<br />

munida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> até crescer com grupos <strong>de</strong> liturgia, <strong>de</strong> catequese e <strong>de</strong> serviço social e, certamente<br />

com a ajuda dos religiosos e respectivas congregações, elas pod<strong>em</strong> se associar amplamente <strong>em</strong><br />

diversos Movimentos Pastorais. Mas a sua articulação também precisa ser garantida <strong>em</strong> nível <strong>de</strong><br />

cida<strong>de</strong> por um centro pastoral urbano, encarregado <strong>de</strong> fomentar a unida<strong>de</strong> e a comunicação entre<br />

os cristãos e <strong>de</strong> representar publicamente a Igreja. Esta é, naturalmente, uma responsabilida<strong>de</strong> da<br />

equipe do presbitério e do bispo. Outro dia, presenciei comovente alvoroço <strong>de</strong> contentamento nu-<br />

ma mesa <strong>de</strong> bar ao meu lado, quando se leu furtivamente a manchete “O arcebispo – <strong>de</strong> Chicago! –<br />

vai morar num bairro popular da cida<strong>de</strong> e põe à venda seu palácio <strong>de</strong> meio milhão <strong>de</strong> dólares (sic),<br />

para investir nas escolas <strong>católica</strong>s” (pena que aquele pessoal não sabia que Dom Hél<strong>de</strong>r já havia<br />

feito coisa parecida no Recife e inclusive sugerido a Paulo VI que transformasse o Vaticano <strong>em</strong><br />

museu da ONU e fosse morar na periferia <strong>de</strong> Roma – porque assim teria mais “po<strong>de</strong>r” para falar ao<br />

mundo...).<br />

“O bispo <strong>de</strong>ve ser eleito pela razão <strong>de</strong> ter o carisma. (...) Uma<br />

das reformas mais urgentes na Igreja <strong>católica</strong> é, naturalmente,<br />

a eleição dos bispos. Não é da tradição da Igreja que os bispos<br />

sejam <strong>de</strong>signados pelo Papa. (...) Claro está que o ministério<br />

presbiteral também precisa <strong>de</strong> uma séria reforma. Reforma<br />

na escolha das pessoas. (...) Há pessoas com as qualida<strong>de</strong>s<br />

e os dons requeridos e pessoas que, por ser<strong>em</strong> excelentes<br />

pessoas, n<strong>em</strong> por isso têm o carisma <strong>de</strong> exercer a função<br />

<strong>de</strong> assistente do bispo. (...) Quando o Concílio restabeleceu o<br />

diaconato, era como primeiro passo <strong>em</strong> vista <strong>de</strong> uma reforma<br />

geral da Igreja. A reforma não veio. No entanto, hoje <strong>em</strong> dia,<br />

ela é mais urgente do que nunca. Já se po<strong>de</strong>ria multiplicar os<br />

diáconos <strong>em</strong> previsão <strong>de</strong> uma reforma cuja urgência se faz<br />

sentir cada vez mais. Seria o caso <strong>de</strong> entregar aos diáconos<br />

todas as <strong>igreja</strong>s e capelas, todas as comunida<strong>de</strong>s, reservando<br />

para os presbíteros a orientação espiritual e pastoral das comunida<strong>de</strong>s<br />

e dos grupos, a celebração da eucaristia e do sacramento<br />

da penitência e a formação dos futuros ministros,<br />

ao lado do bispo, formando o conselho permanente, o presbi-<br />

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tério. Não precisaria haver tantos presbíteros mas apenas os<br />

que realmente têm o carisma.” 24<br />

É verda<strong>de</strong> que uma pastoral b<strong>em</strong> fundamentada da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar também uma<br />

pastoral <strong>de</strong> massa, que crie eventos coletivos e <strong>em</strong>ocionais, romarias ou gran<strong>de</strong>s celebrações nos<br />

t<strong>em</strong>pos e espaços públicos, on<strong>de</strong> se reafirm<strong>em</strong> as convicções do povo, através <strong>de</strong> símbolos, atos ou<br />

gestos. Uma ação <strong>de</strong> massa supõe, por um lado, a conquista da confiança das pessoas, através do<br />

test<strong>em</strong>unho efetivo <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interesses; por outro lado, exige também o bom uso dos símbo-<br />

los, pela atribuição <strong>de</strong> novos significados ou incorporação <strong>de</strong> novos el<strong>em</strong>entos – cujo êxito <strong>de</strong>pen-<br />

<strong>de</strong> da associação que a massa possa fazer entre eles e alguma experiência positivamente valoriza-<br />

da.<br />

Assim sendo, é a sintonia com as lutas populares que torna possível uma pastoral <strong>de</strong> massa<br />

libertadora, uma expressão religiosa que reúna símbolos capazes <strong>de</strong> animar a vonta<strong>de</strong>, o compor-<br />

tamento e a coesão no sentido do processo libertador cristão. O el<strong>em</strong>ento central do nosso catoli-<br />

cismo é a <strong>de</strong>voção aos santos. Des<strong>de</strong> o último Concílio, muitos abandonaram o culto privatizado<br />

aos santos protetores e enfatizaram a Bíblia numa perspectiva cristocêntrica, ligada ao engajamen-<br />

to social a partir das comunida<strong>de</strong>s. Precisam agora, como fermento, propor à massa <strong>católica</strong> uma<br />

<strong>de</strong>voção aos santos que se realize comunitariamente e que tenha como referência santos compa-<br />

nheiros <strong>de</strong> caminhada ou companheiros <strong>de</strong> caminhada e luta pela vida, <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> se reconhece san-<br />

tida<strong>de</strong>.<br />

É ex<strong>em</strong>plar, a esse respeito, que ninguém tenha praticamente reparado a santida<strong>de</strong> confir-<br />

mada do índio <strong>de</strong> Guadalupe e que tanta <strong>em</strong>polgação tenham causado as “aparições” – por assim<br />

dizer, pós-mo<strong>de</strong>rnas – <strong>de</strong> santas pelos vidros das nossas cida<strong>de</strong>s. Com efeito, nestes dias, s<strong>em</strong> mui-<br />

ta notícia <strong>em</strong> nossos meios <strong>de</strong> comunicação, a Igreja canonizou o indígena João Diego no México<br />

– cuja santida<strong>de</strong> está ligada à aparição <strong>de</strong> Maria, que ficou estampada no seu poncho e foi consi<strong>de</strong>-<br />

rada padroeira da América Latina. Trata-se <strong>de</strong> um evento significativo <strong>de</strong> evangelização incultura-<br />

da que este índio e/ou a “Moreninha <strong>de</strong> Guadalupe” – como ficou conhecida essa santa – protago-<br />

nizaram nos albores do nosso continente.<br />

Diz<strong>em</strong> que um suicida foi curado pela intercessão <strong>de</strong> João Diego, mas muito mais gente sa-<br />

iria “curada” do <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> viver se tivesse contato com a sua história ou tradição: ao invés <strong>de</strong><br />

pedir sacrifícios mágicos <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> benefícios milagrosos, ela nos mostra que qualquer “índio”<br />

po<strong>de</strong> ser santo: capaz <strong>de</strong> fazer da sua vida um milagre para a vida dos outros, pelo amor! Aliás,<br />

pouca gente sabe ou admite que essa “Moreninha” do Diego seja a padroeira continental dos cató-<br />

licos. Se muitos religiosos reconhecess<strong>em</strong>, não precisariam importar “Nossas Senhoras” européias<br />

para animar a “nova evangelização” da nossa gente. Pois, nesse encontro com João, a mensag<strong>em</strong><br />

24 COMBLIN, J. Pastoral urbana: o dinamismo na evangelização. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 58s.<br />

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cristã chegou perto da nossa cultura cabocla, contrariando a catequese promovida pelo sist<strong>em</strong>a dos<br />

colonizadores <strong>de</strong> então.<br />

De fato, <strong>em</strong> 1531, o índio João Diego, no México, freqüentava a catequese <strong>católica</strong> dos<br />

dominadores espanhóis. Seu povo era explorado pelo reino católico, <strong>em</strong> nome do Deus cristão.<br />

Acontece que João, na periferia da capital, encontrou e/ou foi encontrado por Maria, com um rosto<br />

mestiço, falando língua indígena e trazendo símbolos das divinda<strong>de</strong>s do povo. Aí essa “Moreninha<br />

<strong>de</strong> Guadalupe” pediu para se construir um t<strong>em</strong>plo, porque ela queria reunir o povo e escutar seus<br />

lamentos, alentar sua resistência. O bispo local não acreditou <strong>em</strong> João. Mas, como ele conseguiu<br />

converter e entusiasmar seus irmãos astecas com esta experiência tão solidária <strong>de</strong> Deus – através<br />

<strong>de</strong> Maria –, o bispo acabou indo construir a Igreja na periferia, entre os pobres. João Diego nos<br />

ensina a evangelizar, não com a união <strong>de</strong> cruz e espada – estruturas po<strong>de</strong>rosas –, mas com verda<strong>de</strong><br />

e flores, com test<strong>em</strong>unho amoroso.<br />

Quinhentos anos <strong>de</strong>pois, parece que Nossa Senhora cismou <strong>de</strong> aparecer novamente pelos<br />

quatro cantos do continente e/ou t<strong>em</strong> muito “João” tentando vislumbrá-la nos vidros reciclados das<br />

casas das periferias. Pelo menos é o que a imprensa t<strong>em</strong> noticiado com muito alar<strong>de</strong>. Qual <strong>de</strong>ve ser<br />

a atitu<strong>de</strong> cristã diante <strong>de</strong>sta busca da “religiosida<strong>de</strong> natural” por sinais extraordinários e sobrenatu-<br />

rais? Possíveis fenômenos físicos ou psicológicos são interpretados simbolicamente – como s<strong>em</strong>-<br />

pre acontece na produção religiosa – e as imagens <strong>de</strong> Maria se multiplicam agora para que a gente<br />

sofrida elabore do inconsciente uma linguag<strong>em</strong> que sacraliza a nostalgia maternal das famílias es-<br />

faceladas pela pobreza e migração, para que o povo antecipe <strong>em</strong>otivamente a recriação da vida que<br />

se <strong>de</strong>seja <strong>em</strong> meio à violência, na crise da economia e dos valores da nossa socieda<strong>de</strong>.<br />

Todavia, um cristão sabe que não existe melhor imag<strong>em</strong> do divino que o rosto – ou as tri-<br />

pas – do irmão ou da irmã ao seu lado. Todas essas santas serão legítimas, portanto, somente na<br />

medida <strong>em</strong> que nos abrir<strong>em</strong> para a acolhida dos migrantes dos bairros populares, dos doentes nos<br />

hospitais, dos indígenas das matas – como pe<strong>de</strong> a Campanha da Fraternida<strong>de</strong> e a santa <strong>de</strong> Guada-<br />

lupe – e das populações <strong>de</strong> rua – que “enxergaram” a santa pelo lado <strong>de</strong> fora dos vidros <strong>de</strong> um<br />

convento... Talvez a recomendação <strong>de</strong> arrancar simplesmente esses vidros seja <strong>de</strong>smesurada. Tal-<br />

vez a gente precise vê-los com o olhar do povo simples e assim auxiliá-lo a observar mais. Essas<br />

“aparições” pod<strong>em</strong> ganhar um sentido cristão se nos ajudam a, contra a racionalida<strong>de</strong> instrumental<br />

da globalização capitalista, valorizar o sentimento das famílias populares e a sapiência das culturas<br />

do povo – como fez a Moreninha <strong>de</strong> Guadalupe. Se nos ajudam a, contra as catequeses da “prospe-<br />

rida<strong>de</strong>” individualista dos pentecostais ou carismáticos, transformar a intimida<strong>de</strong> com o sagrado<br />

<strong>em</strong> nova possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida comunitária para os pobres e <strong>de</strong>serdados – como fez João Diego.<br />

Quer dizer, numa saudável leitura teológica, o “milagre” possível <strong>de</strong>ssas santas não estaria<br />

na mudança que porventura imprim<strong>em</strong> a um objeto físico, mas na transformação que esse “sinal”<br />

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intrigante provocaria <strong>em</strong> nossos corações: pod<strong>em</strong>os ser bons e amorosos, como o mundo po<strong>de</strong> ser<br />

mais belo e animado – apesar <strong>de</strong> toda frieza dos vidros, com os quais a mo<strong>de</strong>rna arquitetura assep-<br />

ticamente nos separa uns dos outros. Isto sim é milagre, capaz <strong>de</strong> converter novamente até bispo –<br />

e permitir a Igreja nova da periferia, dos grupos <strong>de</strong> irmãos que se encontram pelas casas e pelas<br />

ruas, <strong>de</strong>scobrindo nos símbolos religiosos motivos <strong>de</strong> união e luta por mais vida.<br />

Falar nisso, e na euforia que as aparições <strong>de</strong> santo provocam, l<strong>em</strong>brei-me que uma vez<br />

Dom Hél<strong>de</strong>r chegou b<strong>em</strong> atrasado para a missa dominical da manhã, que era celebrada no santuá-<br />

rio dos salesianos e transmitida pela rádio Olinda, com gran<strong>de</strong> audiência. Então, <strong>de</strong>sculpou-se e<br />

disse: “Quando eu vinha, acabei tendo um encontro com o próprio Jesus Cristo e por isto me <strong>de</strong>-<br />

morei.” Enquanto as beatas levantavam as mantilhas e cochichavam: “Será que alguma imag<strong>em</strong><br />

chorou ou o bispo teve uma aparição...”, o Dom arr<strong>em</strong>atou <strong>de</strong> chofre: “Acabei <strong>de</strong> me encontrar<br />

com Nosso Senhor ali na lixeira dos padres, estava lá, catando lixo!” Coisa <strong>de</strong> santo...<br />

As nossas comunida<strong>de</strong>s necessitam, ad<strong>em</strong>ais, e por falarmos <strong>em</strong> santida<strong>de</strong>, equilibrar a sua<br />

vivência espiritual com uma consciência maior do teologal na vida do povo, ou, mas precisamente,<br />

da atuação do Espírito Santo na sua cultura – para o que ajuda a teologia da criação que t<strong>em</strong>atiza-<br />

mos acima. Se as Comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Base não conseguir<strong>em</strong> apresentar ao povo um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> santi-<br />

da<strong>de</strong> encarnado e socialmente engajado e não conseguir<strong>em</strong> equilibrar a sua referência a Deus, in-<br />

cluindo e relacionando, junto ao seguimento <strong>de</strong> Jesus Cristo, a abertura cont<strong>em</strong>plativa ao Espírito<br />

Santo, então a religiosida<strong>de</strong> popular certamente ficará entregue a uma cooptação nada evangélica<br />

do seu potencial.<br />

Pois a religião popular, ganhando na cida<strong>de</strong> um contorno mais subjetivista <strong>de</strong> busca senti-<br />

mental <strong>de</strong> força vivificante (visto que o Deus objetivo da natureza está agora mais distante), acaba<br />

presa fácil <strong>de</strong> uma falsa inculturação do evangelho: pelo marketing simplesmente, no qual o show,<br />

especialmente o televisivo, substitui a procissão <strong>de</strong> antigamente e figuras tipo padre Marcelo Rossi<br />

surg<strong>em</strong> como um frei Damião para a cida<strong>de</strong>. Trata-se <strong>de</strong> um projeto que apela para as <strong>em</strong>oções e<br />

usa os Carismáticos e os santos (especialmente o Espírito Santo), mas funciona sob medida para o<br />

povo segundo a cultura dominante, proporcionando-lhe um êxtase espiritual que não leva à vivên-<br />

cia comunitária, n<strong>em</strong> à transformação da realida<strong>de</strong>.<br />

Quando o padre Marcelo esteve <strong>em</strong> uma capital nor<strong>de</strong>stina, durante edição especial do pro-<br />

grama do “Gugu”, e a padroeira local apareceu la<strong>de</strong>ada por “chacretes” (ou “guguetes”?!) s<strong>em</strong>inu-<br />

as, assistimos <strong>de</strong>veras a um curto-circuito simbólico. É claro que nossas celebrações precisam res-<br />

gatar a busca pós-mo<strong>de</strong>rna pela alegria, pelo corpo e pelo erotismo (Simone <strong>de</strong> Beauvoir, a propó-<br />

sito, dizia que “o sagrado, verda<strong>de</strong>iramente sagrado, é erótico; e o erótico, verda<strong>de</strong>iramente eróti-<br />

co, é sagrado”). Porém, <strong>em</strong>bora consi<strong>de</strong>rando também a kenosis-esvaziamento necessário para a<br />

encarnação comunicativa da Palavra, “os meios já contêm os fins” e não pod<strong>em</strong>os compactuar com<br />

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a corpolatria pós-mo<strong>de</strong>rna e o uso do corpo (das mulheres principalmente) para se ven<strong>de</strong>r toda a<br />

sorte <strong>de</strong> quinquilharias (especialmente as religiosas). Esses programas são <strong>de</strong>pravados e apelativos,<br />

o verda<strong>de</strong>iro erotismo se encontra envolto no mistério que r<strong>em</strong>ete ao <strong>de</strong>sejo e tal marketing não<br />

serve mais do que para ven<strong>de</strong>r terços e discos – o que não é por si o evangelho cristão.<br />

“Julgo que o pós-mo<strong>de</strong>rno não é uma tendência que possa ser<br />

<strong>de</strong>limitada cronologicamente, mas uma categoria espiritual<br />

(...), um modo <strong>de</strong> operar. Pod<strong>em</strong>os dizer que cada época t<strong>em</strong><br />

o seu próprio pós-mo<strong>de</strong>rno (...). O passado nos condiciona,<br />

nos oprime, nos ameaça. A vanguarda histórica (mas aqui eu<br />

enten<strong>de</strong>ria meta-histórica) procura ajustar contas com o passado<br />

(...). Penso na atitu<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna como a <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong><br />

que ama uma mulher muito culta e sabe que não po<strong>de</strong><br />

dizer-lhe ‘eu te amo <strong>de</strong>sesperadamente’, porque sabe que ela<br />

sabe (e ela sabe que ele sabe) que esta frase foi escrita por<br />

Liala. Entretanto, existe uma solução. Ele po<strong>de</strong>rá dizer:’como<br />

diria Liala, eu te amo, <strong>de</strong>sesperadamente’. A esta altura, tendo<br />

evitado a falsa inocência, tendo dito claramente que não se<br />

po<strong>de</strong> mais falar <strong>de</strong> maneira inocente, ele teria dito à mulher o<br />

que queria dizer: que a ama, mas que a ama <strong>em</strong> uma época <strong>de</strong><br />

inocência perdida. Se a mulher entrou no jogo, terá igualmente<br />

recebido uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor. Nenhum dos dois interlocutores<br />

se sentirá inocente, ambos terão aceito o <strong>de</strong>safio do<br />

passado, do já dito que não se po<strong>de</strong> eliminar, ambos jogarão<br />

conscient<strong>em</strong>ente e com prazer o jogo da ironia... Mas ambos<br />

terão conseguido mais uma vez falar <strong>de</strong> amor.” 25<br />

A Igreja foi um baluarte contra a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> – e per<strong>de</strong>u a cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. Não se trata<br />

agora, contudo, <strong>de</strong> cair no extr<strong>em</strong>o oposto. O gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio da Igreja na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é con-<br />

seguir test<strong>em</strong>unhar o amor novamente, mas para além da inocência que Marx, Freud e Nietzsche<br />

nos obrigaram a per<strong>de</strong>r <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos. As massas populares, ainda pré-mo<strong>de</strong>rnas ou ressa-<br />

cadas do racionalismo mo<strong>de</strong>rnizante, têm até o direito <strong>de</strong> buscar o sagrado infantil e mágico. Mas a<br />

Igreja, quando recorre a estratégias <strong>de</strong>vocionais e massivas para oferecer ao povo o reencantamen-<br />

to do seu mundo hoje, não po<strong>de</strong> fazê-lo inocent<strong>em</strong>ente. Precisa <strong>de</strong>clarar que essa aproximação<br />

<strong>em</strong>otiva é parte <strong>de</strong> um processo que passa pelo engajamento consciente <strong>em</strong> prol da <strong>em</strong>ancipação<br />

humana – com o que respon<strong>de</strong> à crítica psicossocial e filosófica <strong>de</strong> que toda transcendência é pro-<br />

jeção das nossas neuroses e alienações.<br />

Os cristãos que quiser<strong>em</strong> falar à cida<strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>v<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r invocar, <strong>em</strong> meio a ce-<br />

lebrações vivas <strong>de</strong> corpos tomados pelo Espírito, também uma práxis conforme a <strong>de</strong> Jesus, na qual<br />

os condicionamentos sociais e psicológicos são quebrados por gestos <strong>de</strong> amor à vida, na qual se<br />

po<strong>de</strong> afirmar a razoabilida<strong>de</strong> trans-racional da experiência <strong>de</strong> fé. Precisamos organizar o – ou cola-<br />

borar no – voluntariado dos bairros, <strong>em</strong> mutirões <strong>de</strong> segurança, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e educação, nas iniciati-<br />

25 ECO, U. Pós-escrito a O Nome da Rosa. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 10s.<br />

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vas políticas dos Conselhos <strong>de</strong> Moradores e Sindicatos <strong>de</strong> Trabalhadores, formando núcleos <strong>de</strong><br />

cristãos até nos partidos afinados com o projeto popular. Afinal, inculturação é metodologia e a<br />

finalida<strong>de</strong> da pastoral é a libertação – “do hom<strong>em</strong> todo e <strong>de</strong> todos os homens”, a começar pelos<br />

<strong>em</strong>pobrecidos.<br />

E, com o pluralismo religioso permitido pela circulação <strong>de</strong> informações da pós-<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, fica também o <strong>de</strong>safio do ecumenismo e <strong>diálogo</strong> inter-religioso. Pois, enquanto as<br />

Igrejas tropeçam <strong>em</strong> barreiras corporativistas, os cientistas e pensadores civis – certamente com o<br />

sopro do Espírito <strong>de</strong> Deus – l<strong>em</strong>bram a todos que o ser humano é <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro rebento da árvore da<br />

vida, a expressão mais complexa da biosfera. O homo sapiens/d<strong>em</strong>ens do qual somos her<strong>de</strong>iros<br />

imediatos <strong>em</strong>ergiu há cinqüenta ou c<strong>em</strong> mil anos, trazendo no tecido <strong>de</strong> seu corpo e incrustado na<br />

sua psique a história, bilionária história, <strong>de</strong> todo o universo. Na gran<strong>de</strong> dança do mundo, somos<br />

todos pares <strong>de</strong> todos: os quarks, as estrelas, as pedras, as galáxias, as formigas e os humanos e as<br />

florezinhas.<br />

Para além das fronteiras religiosas, cresce a consciência <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veríamos nos reconhecer<br />

como comunida<strong>de</strong> humana, geneticamente ligada com todos os seres vivos, evoluindo junto com a<br />

totalida<strong>de</strong> do cosmos. Nossa existência <strong>de</strong>ve ser concebida – (quanta espiritualida<strong>de</strong>!) – como in-<br />

ter<strong>de</strong>pendência a todos os níveis. Todos os povos e a terra inteira estamos ligados, <strong>de</strong> sorte que<br />

juntos é que <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os encarar nossa missão comum <strong>de</strong> salvar a vida. Sendo assim, não dá para en-<br />

ten<strong>de</strong>r que um só povo ou religião ou Igreja, um só sexo ou raça ou classe sejam a luz do mundo.<br />

Todos somos luz e treva, <strong>em</strong> comunitária evolução. Nenhum triunfalismo, religioso ou <strong>de</strong> qualquer<br />

espécie, po<strong>de</strong> ter lugar neste – que um dia será – “novo” paradigma <strong>de</strong> universo, on<strong>de</strong> se procura<br />

permitir a vida a todos.<br />

Para suspen<strong>de</strong>rmos a conversa (ou do ânimo para assumir as tarefas)<br />

Já que tratei <strong>de</strong> novos paradigmas culturais e eclesiais, gostaria, para amenizar o impacto<br />

das mo<strong>de</strong>rnagens propostas, <strong>de</strong> partilhar uma surpresa que tive com Dom Hél<strong>de</strong>r quando da<br />

publicação 26 da carta que en<strong>de</strong>reçou a Jerônimo Po<strong>de</strong>stá, bispo casado, e sua esposa Clélia. Trata-<br />

se <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> três sonhos que o Dom tinha <strong>em</strong> outubro <strong>de</strong> 1981 (então com 72 anos e às<br />

vésperas <strong>de</strong> aposentar-se da diocese). O primeiro sonho era <strong>de</strong>, como Igreja, colaborar na<br />

integração latino-americana, para ajudar os pobres <strong>de</strong>sses países irmãos a conquistar<strong>em</strong><br />

in<strong>de</strong>pendência econômica e cultural.<br />

O segundo sonho era <strong>de</strong> tornar possível – n<strong>em</strong> que fosse “ajudando da Casa do Pai” – a rea-<br />

lização do Concílio <strong>de</strong> Jerusalém II, para transformação da Cúria Romana, <strong>de</strong> modo a tornar-se,<br />

efetivamente, serviço à colegialida<strong>de</strong> episcopal e à corresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todo o Povo <strong>de</strong> Deus,<br />

26 no Diário <strong>de</strong> Pernambuco <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2000, p. 2.<br />

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para “libertar-se da engrenag<strong>em</strong> do dinheiro e da tentação <strong>de</strong> prestígio, e viver o anúncio da Boa-<br />

Nova com salvaguarda efetiva das culturas, no meio das quais o Espírito <strong>de</strong> Deus s<strong>em</strong>pre s<strong>em</strong>eou<br />

verda<strong>de</strong>s cristãs que se ignoravam”. Até aí, por mais escândalo que isto já provoque, tudo b<strong>em</strong>: era<br />

<strong>de</strong> se esperar do velho Dom. Mas vejam o terceiro sonho:<br />

“Diálogo autêntico com os mundos dos mundos: nós sab<strong>em</strong>os<br />

que a galáxia a que pertenc<strong>em</strong>os está longe <strong>de</strong> ser das<br />

maiores. Nosso Sol, que nos parecia imenso, é <strong>de</strong> sexta ou sétima<br />

ord<strong>em</strong>. Nossa Terra é poeira na cavalgada dos Astros.<br />

Como cristãos, jamais esquec<strong>em</strong>os que o Filho <strong>de</strong> Deus se<br />

encarnou <strong>em</strong> nossa Terra, pequenina e humil<strong>de</strong>. Mas como<br />

insistir <strong>em</strong> pensar que o Criador, infinitamente sábio e po<strong>de</strong>roso,<br />

criou bilhões <strong>de</strong> estrelas, milhões <strong>de</strong> vezes maiores do<br />

que a Terra, só para ficar<strong>em</strong> a enormes distâncias cintilando<br />

para a alegria do olhar humano! Será orgulho absurdo preten<strong>de</strong>r<br />

que a vida e sobretudo vida inteligente e livre somente<br />

exista na Terra. Deve haver, nos mundos dos mundos, Vida<br />

no nível da nossa, Vida abaixo e Vida acima do nível da nossa.<br />

O probl<strong>em</strong>a para a criatura humana seria atingir mundos<br />

tão distantes...” 27<br />

E o Dom sai por aí sonhando <strong>em</strong> se relacionar com outros mundos: “Ainda hoje, há qu<strong>em</strong><br />

duvi<strong>de</strong> da <strong>de</strong>scida do hom<strong>em</strong> na Lua. Há qu<strong>em</strong> diga que se é verda<strong>de</strong> (a chegada à Lua) é sinal do<br />

fim do mundo, quando ainda estamos no primeiro dia da criação.” E ainda arr<strong>em</strong>ata: “Pretendo<br />

entrosar-me, s<strong>em</strong>pre mais, com especialistas <strong>em</strong> Astronomia e <strong>em</strong> Astronáutica, <strong>em</strong> Astrofísica,<br />

<strong>em</strong> Astroquímica, <strong>em</strong> Astropolítica, para ajudar a trazer a Igreja <strong>de</strong> Cristo <strong>em</strong> dia com a marcha do<br />

sonho número três.” Eis, portanto, um estímulo para o nosso <strong>diálogo</strong> com a cultura pós-mo<strong>de</strong>rna e<br />

com tudo <strong>de</strong>ste mundo – e até dos “outros mundos”.<br />

L<strong>em</strong>bro-me, por fim e por falar do Dom e à guisa <strong>de</strong> conclusão, <strong>de</strong> um filme <strong>de</strong> Win Wen-<br />

<strong>de</strong>rs, chamado Asas do <strong>de</strong>sejo, no qual o cineasta-pensador aproxima um olho <strong>de</strong> “anjo” <strong>de</strong> uma<br />

metrópole pós-mo<strong>de</strong>rna. A tela está <strong>em</strong> preto-e-branco e po<strong>de</strong>ríamos recriar a cena entre nós as-<br />

sim: um trabalhador espera com sua marmita o metrô <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um expediente sacal, a mulher<br />

cuida da roupa no apartamento-apertamento quente e insalubre, o menino assiste televisão “com a<br />

boca cheia <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntes” e aparelhos ortodônticos, hambúrguer e coca-cola.<br />

Então, <strong>de</strong>scobrimos com o filme que muitos “anjos” até já trabalham na cida<strong>de</strong> e, nas situa-<br />

ções-limite, o que faz<strong>em</strong> é escutar as pessoas e tocar nos seus ombros com <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za para que as<br />

“asas do <strong>de</strong>sejo” volt<strong>em</strong> a ruflar. Aí a tela fica colorida, o trabalhador po<strong>de</strong> voltar para os compa-<br />

nheiros e apostar numa comissão para melhorar as condições <strong>de</strong> trabalho e vida, a mulher po<strong>de</strong><br />

acreditar na sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enlouquecer alguém e buscar entre as roupas um espelho para re-<br />

27 Ibid<strong>em</strong>.<br />

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compor-se, a criança po<strong>de</strong> pular para o pátio e dançar com os colegas uma brinca<strong>de</strong>ira mais inebri-<br />

ante do que o “ilariê” e criar com elas um programa mais gostoso do que o abominável Mcdonalds.<br />

Quer dizer, dá-se uma mágica ou mítica passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um mundo mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> homens <strong>de</strong>-<br />

sencarnados do <strong>de</strong>sejo, enclausurados <strong>em</strong> si, para um mundo novo, on<strong>de</strong> as asas dos “anjos” tor-<br />

nam-se asas dos homens <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>sejo, asas acionadas pelo encontro com o radicalmente Outro.<br />

Qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>ra, como Igreja, pudéss<strong>em</strong>os segurar a corda do trapézio, on<strong>de</strong> as pessoas “por um fio”<br />

equilibram-se neste mundo, para que recuperass<strong>em</strong> as suas “asas” e conseguiss<strong>em</strong> “dançar a vida”<br />

com mais beleza e leveza. Qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>ra, como um Povo, passáss<strong>em</strong>os da uniformida<strong>de</strong> eclesial para<br />

a “unimultiplicida<strong>de</strong>” pastoral e, assim mais soltos, alcançáss<strong>em</strong>os ouvidos <strong>de</strong> “anjo” e mãos <strong>de</strong><br />

“Deus” para tocar <strong>em</strong> cada pessoa como se fosse a “casa da humanida<strong>de</strong>”...<br />

“Unimultiplicida<strong>de</strong>:<br />

Cada hom<strong>em</strong> é, sozinho,<br />

A casa da humanida<strong>de</strong>.<br />

Não tenho nada na cabeça<br />

A não ser o céu.<br />

Não tenho nada por sapato<br />

A não ser o passo,<br />

Não faço nada com o passo<br />

Só traço a linha do futuro.<br />

E o futuro t<strong>em</strong> caminho<br />

Na unimultiplicida<strong>de</strong>,<br />

Pois cada hom<strong>em</strong> é, sozinho,<br />

A casa da humanida<strong>de</strong>.<br />

Não tenho nada no Guaíba<br />

A não ser a vida<br />

Não tenho nada nas estradas,<br />

Só uns amigos meus.<br />

Não tenho nada com as águas<br />

Somente o berço original<br />

E esse berço se abraça<br />

Na unimultiplicida<strong>de</strong>.” 28<br />

28 Canção <strong>de</strong> Tom Zé, composta para o Fórum Social Mundial <strong>de</strong> Porto Alegre, 2001.<br />

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