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o feminismo perspectivista como aporte teórico nas pesquisas

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES<br />

Educação, Saúde, Movimentos Sociais, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos<br />

20 a 31 de Julho de 2009<br />

Salvador - BA<br />

O FEMINISMO PERSPECTIVISTA COMO APORTE TEÓRICO NAS PESQUISAS<br />

SOBRE OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS DAS MULHERES<br />

SITUANDO O DEBATE<br />

Lucia Helena Rodrigues Costa. 1<br />

O <strong>feminismo</strong>, desde os grandes primeiros movimentos nos anos 1960, sempre defendeu que<br />

o acesso das mulheres ao mundo do trabalho – bem <strong>como</strong> o controle sobre o seu corpo, isto é, sobre<br />

o exercício da sua sexualidade e o controle da reprodução – lhes trariam autonomia. Preocupada<br />

com as causas da opressão feminina e origens da dominação masculina, duas vertentes já<br />

despontavam: uma delas defendendo que a dominação baseia-se principalmente no controle sobre a<br />

força de trabalho (Hirata;kergoat, 1988) e, a outra, mais ligada às feministas anglo-saxônicas,<br />

argumentava que a dominação estava fundamentalmente ligada ao controle da sexualidade.<br />

Em meio ao debate colocado por estas duas vertentes, aos poucos a idéia de fixar-se <strong>nas</strong><br />

questões sobre opressão e dominação perde fôlego na perspectiva argumentativa de algumas<br />

teóricas de que as indagações sobre as origens da opressão levavam sim a certa neutralidade<br />

histórica sem contribuir efetivamente para o desenvolvimento da perspectiva teórica do <strong>feminismo</strong>.<br />

Enfim, muitas estudiosas chegavam à conclusão que tais investigações sobre as origens da<br />

dominação pouco contribuíam para as mudanças <strong>nas</strong> relações entre homens e mulheres.<br />

Essa conclusão foi levada a cabo a partir das duras críticas às definições do patriarcado que<br />

traziam sempre a premissa da separação conceitual entre sistema econômico e sistema social e<br />

ideológico. Tais sistemas não estão isolados e sim em inter-relação dentro de realidades históricas<br />

concretas. Estes questionamentos sobre as teorias do patriarcado conduziram às teorizações sobre<br />

gênero.<br />

Joan Scott, em seu artigo “Gênero uma categoria útil de análise histórica”, vai contribuir<br />

decisivamente para os estudos de gênero e feministas quando afirma que não é a diferença e, sim,<br />

que são a hierarquia e as assimetrias <strong>nas</strong> relações, determinantes para o estabelecimento das<br />

desigualdades de poder, assim <strong>como</strong> as desigualdades de classe e raça/etnia. Ela diz que “o termo<br />

‘gênero’ parece ter feito sua aparição inicial entre as feministas america<strong>nas</strong>, que queriam enfatizar o<br />

1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Enfermagem/ UFBA. Bolsista FAPESB. Docente<br />

do Curso de Enfermagem da UNIMONTES/MG. E mail: luhecosta13@yahoo.com.br<br />

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caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra indica uma rejeição do<br />

determinismo biológico implícito no uso de termos <strong>como</strong> ‘sexo’ ou ‘diferença Sexual’(SCOTT,<br />

1990 p.72).<br />

A partir deste enfoque houve uma mudança de eixo principalmente a partir dos anos 1980,<br />

uma postura de interrogações profundas sobre a perspectiva científica da modernidade que adentrou<br />

o século XXI e “de fato instrumentada por um olhar desconstrucionista de gênero, a crítica<br />

feminista tem avançado da mera denúncia da exclusão e invisibilidade das mulheres no mundo da<br />

ciência para os questionamentos dos próprios pressupostos básicos da Ciência Moderna, virando-a<br />

de cabeça para baixo ao revelar que ela não é nem nunca foi ‘neutra” (SARDENBERG, 2002, p.90).<br />

Entretanto, os posicionamentos da crítica feminista não foram em nenhum momento<br />

homogêneos, implicando em desdobramentos e correntes diferenciadas. Olensen (2007) informa<br />

que Sandra Harding, em 1987, identificou três tipos de investigação feminista: o empirismo<br />

feminista (que mantém as bases da ciência tradicional), as teorias <strong>perspectivista</strong>s ou do ponto de<br />

vista (as quais partem do pressuposto de que todas as experiências são localizadas e, portanto, o<br />

conhecimento científico deve partir de localizações sociais objetivas) e as teorias pós-moder<strong>nas</strong><br />

(que, de certa maneira, invalidam a possibilidade de um projeto de ciência feminista).<br />

Sandra Harding acredita que esses olhares divergentes não enfraquecem a perspectiva<br />

feminista e enriquecem o debate. Entretanto, <strong>como</strong> aponta Sardenberg, 2002, p.102, “Harding,<br />

(1986) não esconde suas simpatias pelo <strong>feminismo</strong> <strong>perspectivista</strong>, e que ela, mais tarde defenderá<br />

abertamente”. Em estudos produzidos em 1991, Harding ”sugere que tanto o compromisso<br />

fundamentalista do <strong>feminismo</strong> empiricista com a Ciência Moderna, bem <strong>como</strong> o interpretacionismo<br />

sem chão do <strong>feminismo</strong> pós-moderno, oferecem muito pouco para uma estratégia epistemológica<br />

feminista comprometida com a produção de saberes emancipatórios” (SARDENBERG, 2002,<br />

p.102).<br />

Analisando <strong>feminismo</strong>s e produção de pesquisa, Olensen (2007) aponta avanços <strong>nas</strong><br />

<strong>pesquisas</strong> qualitativas de orientação feminista em vários campos e ressalta as áreas de educação e<br />

saúde <strong>como</strong> as que se destacam principalmente nos estudos empírico qualitativos.<br />

A saúde vislumbrou avanço significativo em relação aos modos de se tratar das questões<br />

relativas à saúde da mulher, ao colocar em debate a situação da dominação do corpo feminino pela<br />

medicina moderna.Abandonou o modelo materno-infantil buscando uma proposta de saúde<br />

reprodutiva que, por força dos movimentos feministas se articula <strong>como</strong> direitos reprodutivos. Na<br />

última década do século XX, frente à gravidade da pandemia provocada pelo HIV/AIDS, aparece a<br />

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definição de saúde sexual proposto pela Organização Mundial de Saúde/OMS que, mais uma vez<br />

problematizada pelos movimentos feminista, gay e lésbico, vai propor os direitos sexuais <strong>como</strong><br />

direitos humanos.<br />

Estudos têm apontado na direção de que a situação das mulheres usuárias do Sistema Único<br />

de Saúde (SUS) no Brasil ainda está aquém das perspectivas discursivas colocadas em relação aos<br />

direitos sexuais e reprodutivos: o aumento de mulheres infectadas pelo HIV, e o alto índice de<br />

aborto e de gravidez não planejada ainda é uma dura realidade brasileira. Sobre esta questão, Giffin<br />

(2002, p.106) afirma que “enquanto a taxa nacional de uso e os métodos usados são modernos, a<br />

perversidade é conseqüência do fato de que as escolhas reprodutivas são altamente condicionadas<br />

pela pobreza e falta de cidadania”.<br />

O objetivo deste ensaio é argumentar em favor da Epistemologia Feminista Perspectivista ou<br />

do Ponto de Vista <strong>como</strong> instrumento <strong>teórico</strong> fundamental para avançarmos <strong>nas</strong> <strong>pesquisas</strong> empíricas<br />

sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.<br />

EPISTEMOLOGIA FEMINISTA DO PONTO DE VISTA<br />

Abgail Brooks, em “Epistemologia Feminista do Ponto de Vista: construindo conhecimento<br />

e empoderamento através da experiência vivida da mulher”, começa o texto apresentando a citação<br />

de Harriet Jacobs, escrava que na primeira metade do século XIX escreveu sua autobiografia.<br />

Jacobs escreveu sobre sua própria experiência e não a partir da experiência de outros/as.<br />

Especialmente relatou o que significava ser uma jovem negra escrava: o sofrimento, as dores, o<br />

assédio sexual, enfim, a experiência existencial que produziu um relato capaz de sensibilizar a<br />

opinião pública e ajudar no movimento anti escravagista. Brooks, (2006, p. 54) indaga:<br />

Harriet Jacobs viveu e escreveu quase 150 anos atrás, e ainda hoje temos de olhar<br />

para ela <strong>como</strong> orientação para darmos início a nossa discussão de abordagens<br />

contemporâneas feministas da investigação e construção do conhecimento. Por<br />

quê? Porque a história de vida de Harriet Jacobs, as estratégias e os objetivos que<br />

ela esperava alcançar entrelaçam fortemente com o projeto em curso de<br />

investigação feminista.<br />

Brooks, 2006 informa então que a Epistemologia Feminista do Ponto de Vista é uma<br />

filosofia e uma proposta de abordagem de pesquisa, enfim, de construção do conhecimento que<br />

coloca dois desafios fundamentais: ver e compreender o mundo, através dos olhos e as experiências<br />

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de mulheres oprimidas; e aplicar a visão e os conhecimentos de mulheres oprimidas em prol do<br />

ativismo e mudança social” (p.55).<br />

Algumas questões se configuram <strong>como</strong> problemáticas: o lugar da mulher dentro da própria<br />

ciência, o lugar da mulher feminista dentro do contexto sócio cultural das ciências, além das<br />

experiências das mulheres estarem sempre subestimadas. Esta problemática se apresenta <strong>como</strong> três<br />

indagações que Abigail Brooks propõe e a partir das quais ela demarca a trajetória da Epistemologia<br />

Feminista do Ponto de Vista desde os anos 1970 que são:<br />

• Como promover a integração de uma perspectiva feminista em nossas práticas de<br />

investigação?<br />

• Quais são algumas das novas idéias e perspectivas que a vida e a experiência das mulheres<br />

revelam que podem contribuir para maiores mudanças sociais?<br />

• Como vamos traduzir e transformar o que aprendermos com a vida cotidiana das mulheres,<br />

das diferentes posições de mulheres na sociedade, em política e ação social?<br />

Tais indagações já estavam presentes no posicionamento feminista dos anos 1960 que<br />

denunciava a invisibilidade feminina nos relatos históricos <strong>nas</strong> mais distintas culturas bem <strong>como</strong> a<br />

inferioridade atribuída aos fazeres historicamente considerados femininos <strong>como</strong> o cuidado. Nesse<br />

período questionou-se profundamente a ausência das mulheres em cargos de direção, de<br />

planejamento e execução de políticas públicas, na política decisória dos Estados, <strong>nas</strong> profissões de<br />

maior prestígio social <strong>como</strong> a medicina e o direito ou inseridas <strong>nas</strong> ciências etc. Estudantes de<br />

sociologia em universidades norte america<strong>nas</strong> nos anos 1970 e 1980 colocaram em questão o<br />

profundo viés sexista das Ciências Sociais. Este olhar “feminino” produz uma nova ótica, um outro<br />

olhar sobre a realidade circundante.<br />

Esta “autêntica expressão” da vida das mulheres é traduzida <strong>como</strong> a experiência no cotidiano<br />

em que desenvolvem suas atividades. Estes fazeres estão fortemente marcados pelo cuidado: com os<br />

filhos, com a casa, com os idosos, enfim com toda uma teia de afazeres que promovem o conforto<br />

do outro.<br />

A partir do significado da palavra cuidado em inglês, care, que significa assumir uma carga,<br />

Tronto, (2008) sugere que uma pessoa ou um grupo assumem um grande compromisso quando<br />

cuidam. Ela argumenta que há dois tipos de cuidados em nossa sociedade intimamente ligadas aos<br />

objetos a que se destinam, que seriam o “cuidado com” (preocupar-se) e o “cuidado de”. Embora a<br />

própria autora afirme a dificuldade de se delimitar essa diferença, em linhas gerais isso significaria<br />

que no “cuidado com” o objeto é mais genérico, mais distante, e no “cuidado de” ele é mais<br />

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definido, mais próximo, é cuidar dos outros. Assim ela diz que na sociedade ocidental é preciso<br />

estarmos atentas ao significado e às representações sobre o cuidado porque:<br />

Cuidar é uma atividade regida pelo gênero tanto no âmbito do mercado quanto na vida<br />

privada. As ocupações de mulheres são aquelas que envolvem cuidados e elas realizam um<br />

montante desproporcional de atividades de cuidado no âmbito doméstico privado. Para<br />

colocar a questão claramente, os papéis tradicionais de gênero em nossa sociedade<br />

implicam que os homens tenham “cuidado com” e as mulheres “cuidem de”. (TRONTO,<br />

1988, p.189)<br />

Essa conjuntura deságua em um novo desdobramento da epistemologia feminista do ponto<br />

de vista: a lente das experiências das mulheres para compreender a sociedade e/ou transformá-la.<br />

Brooks, 2006 exemplifica a partir dos resultados de pesquisa de duas pesquisadoras feministas:<br />

Patricia Hill Collins's ( 1990) e Alison Jaggar ( 1997).<br />

A pesquisa de Collins’s apontou uma conduta comum entre mulheres afro-america<strong>nas</strong> no<br />

exercício da “ maternagem” ou seja, do cuidado às crianças que extrapola ao biológico e ao espaço<br />

do lar. Trata-se do cuidado dispensado por estas mulheres às crianças da vizinhança cujas mães se<br />

ausentam para o trabalho. Ao mesmo tempo em que esta prática evidencia a solidariedade entre as<br />

afro-america<strong>nas</strong> desnuda o lado perverso e frágil da sociedade norte-americana que não dá suporte<br />

às mulheres socialmente menos privilegiadas em relação ao cuidado com as crianças.<br />

Já o estudo de Jaggar demonstra <strong>como</strong> o cumprimento do papel social de cuidadoras no<br />

âmbito doméstico lhes propicia desenvolver uma série de habilidades em torno do manejo da dor do<br />

controle e da gênese das emoções. Ela argumenta que tais competências se transpostas e aplicadas<br />

ao mundo social poderiam mudar concepções no campo das ciências sociais e da filosofia bem<br />

<strong>como</strong> apresentar novas ferramentas psicoterapeuticas no campo da psiquiatria. Aponta inclusive<br />

que talvez a maior contribuição da perspicácia emocional desenvolvida pelas mulheres no mundo<br />

social estaria localizada em uma “análise política da responsabilização” (BROOKES, 2006).<br />

Tais situações indicam que, a exemplo do caso da mulher escrava, a visibilização das<br />

experiências das mulheres pode representar um caminho importante rumo às mudanças sociais.<br />

Brooks, (2006) enfatiza que “muitas vezes o próprio processo de capacitar as mulheres para<br />

articular as suas próprias experiências de opressão sensibiliza, entre as mulheres e outros, sobre as<br />

dificuldades específicas que as mulheres enfrentam e inspira movimento para a mudança”.<br />

O desvelamento da realidade lhes permite enxergar outro aspecto importante que as<br />

estudiosas feministas do ponto de vista tem se debruçado: a dupla consciência. Para elas as<br />

mulheres,<br />

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“ (...) enquanto membros de um grupo oprimido, tem cultivado uma duplaconsciência<br />

uma maior sensibilização não ape<strong>nas</strong> das suas próprias vidas, mas da<br />

vida do grupo dominante também (homens). (...) Em alguns casos a dupla<br />

consciência surge no cumprimento de normas socialmente aceitas que determinam<br />

funções, tais <strong>como</strong> as de esposa e mãe. Em outros casos, as mulheres desenvolvem<br />

uma dupla consciência para garantir a sua própria consciência, e da sua família, a<br />

sua sobrevivência física e econômica” (BROOKS, 2006, p.55).<br />

A vinculação permanente aos papéis tradicionais e o acesso ao mundo masculino dominante<br />

cria lentes especiais <strong>como</strong> já falamos anteriormente. São estas lentes que merecem estar presente<br />

<strong>nas</strong> <strong>pesquisas</strong> fundamentadas pela epistemologia feminista do ponto de vista porque as mulheres<br />

sintonizam-se tanto em suas atividades quanto <strong>nas</strong> dos homens, enquanto estes geralmente não se<br />

aproximam das atividades das mulheres e partem ape<strong>nas</strong> de sua própria experiência.<br />

As mulheres criam estratégias de sobrevivência usando recursos dos grupos dominantes para<br />

circularem com maior facilidade entre as esferas publica e privada. Estas estratégias se apresentam<br />

com clareza na medida em que os projetos de pesquisa apresentem-se plenos de adequações<br />

filosóficas e metodológicas utilizando o viés feminista.<br />

Estudos de orientação feminista têm dado contribuições significativas ao mesclarem as<br />

textualidades vividas aos projetos científicos tradicionais. Neste sentido, a perspectiva defendida<br />

por Sandra Harding que, segundo Olensen, (2007, p. 233/234) “ sugere uma estratégia de ‘ forte<br />

objetividade’ que tome as pesquisadoras e também as pesquisadas <strong>como</strong> foco de explanações<br />

críticas, causais, científicas, e exija o exame crítico da localização da pesquisadora” se apresenta<br />

<strong>como</strong> fundamental, tanto para a transformação do paradigma da ciência tradicional quanto para o<br />

cotidiano das mulheres em seus contextos sócio-históricos.<br />

Em texto que analisa as epistemologias feministas e seus posicionamentos em relação à<br />

objetividade, Sérgio Dansilio, s/d relata que para Sandra Harding há duas alternativas: “optar por<br />

uma objetividade fraca apoiada pelos ideais de neutralidade ou pela objetividade forte que se<br />

alimenta das epistemologias feministas. A objetividade ‘fraca’ é marcada fundamentalmente pela<br />

suposta dissociação entre pensamento e sentimento – dissociação esta que tem suas origens em<br />

Platão”.<br />

Desta forma a objetividade forte permite a aproximação, o mergulho efetivo no contexto em<br />

que se inserem as mulheres. Entretanto as pesquisadoras do ponto de vista precisam estar o tempo<br />

todo conscientes de que pode-se “fundir com o Outro, mas no fim voltar a analisar a cultura em<br />

todos as suas particularidades de um ponto mais distante, crítico, objetivando localização” Harding,<br />

(1988, p. 151), o que evita o relativismo intelectual.<br />

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Na medida em que tais questões foram sendo colocadas e debatidas uma outra situação se<br />

apresentou: a influencia do desconstrutivismo pós-moderno veio se estabelecendo pela diversidade<br />

dos textos de mulheres não brancas, pós-coloniais, lésbicas, gays, queer etc. O aumento das<br />

complexidades provocou críticas sobre a viabilidade da epistemologia feminista do ponto de vista.<br />

Entretanto esta miríade de possibilidades se mostrou muito fértil porque <strong>como</strong> afirma Olensen,<br />

2007, p. 230:<br />

Em nenhum outro aspecto houve uma dedicação mais incisiva do que na<br />

reconsideração do tópico da mulher <strong>como</strong> participante da pesquisa (...) e na<br />

desestabilização da concepção da pesquisadora feminista <strong>como</strong> uma investigadora<br />

livre de contexto, distanciada, unificada, a qual tudo sabe e parte em busca do<br />

conhecimento objetivado, e cujo próprio gênero garante acesso à vida e aos<br />

conhecimentos das mulheres.<br />

DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: BUSCANDO ARTICULAÇÃO COM A<br />

EPISTEMOLOGIA FEMINISTA DO PONTO DE VISTA<br />

Para algumas estudiosas do campo da saúde reprodutiva as premissas básicas dos direitos<br />

sexuais e direitos reprodutivos das mulheres já estavam contidas na máxima do movimento<br />

feminista dos anos 1970: “nossos corpos nos pertencem”. Existia a idéia de que a inserção maciça<br />

das mulheres na esfera pública – mundo do trabalho –, o controle sobre a fecundidade e reprodução<br />

e o exercício livre da sexualidade feminina sem um vínculo da mesma com a procriação seriam os<br />

passos para a libertação das mulheres.<br />

Quatro décadas depois desta fase do <strong>feminismo</strong> temos uma realidade: um conceito de<br />

direitos sexuais que se entrelaça aos direitos humanos forjado durante encontros que aconteceram<br />

ao redor do mundo. Com forte influência dos movimentos feministas durante a Conferência de<br />

População de Desenvolvimento do Cairo, em 1994, e a Conferência da Mulher de Pequim, em<br />

1995, o conceito foi assim formulado:<br />

“Mulheres e homens tem o direito de decidir livre e conscientemente se desejam ter<br />

filhos, o seu número, o espaçamento entre eles, devendo-lhes ser asseguradas as<br />

informações e os meios necessários para concretizar esta decisão. Têm ainda, o<br />

direito de viver com plenitude e saúde a sua sexualidade. Assim <strong>como</strong> durante a<br />

gestação e o abortamento legal ou inseguro, as mulheres têm o pleno direito de ser<br />

atendidas com segurança e qualidade pelos serviços de saúde".<br />

No relatório de Implementação 2005 do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, na<br />

sessão que trata da saúde, há uma afirmação de que “um grande avanço no sentido de concretizar os<br />

compromissos assumidos foi a ação inédita de lançamento da ‘Política Nacional de Direitos Sexuais<br />

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e Direitos Reprodutivos’, que prevê ações voltadas ao planejamento familiar para o período de 2005<br />

a 2007” (grifos meus).<br />

Percebe-se que apesar da utilização dos termos direitos sexuais e direitos reprodutivos, a<br />

ênfase continua sendo dada à planificação familiar – problemática quando colocada no âmbito da<br />

execução. O ponto nevrálgico das desigualdades sociais não é tocado na medida em que o<br />

planejamento familiar, reivindicado <strong>como</strong> a força motriz dos direitos reprodutivos não surtiu o<br />

diferencial esperado em relação à diminuição da pobreza. Ao contrario, temos assistido a um<br />

empobrecimento global no qual as mulheres aparecem em primeiro plano 2 . Embora a redução de<br />

<strong>nas</strong>cimentos tenha conseguido alcançar seus objetivos nos últimos quarenta anos pela intervenção<br />

dos Estados, não contribuiu para a diminuição da pobreza que tem aumentado em relação às<br />

mulheres em todo o mundo (GIFFIN,2002).<br />

A esta situação soma-se o aumento do número de mulheres contaminadas pelo HIV/AIDS,<br />

além do avanço de gravidez não planejada ou indesejada, responsável pela alta morbimortalidade<br />

materna através da realização de abortos clandestinos. Submetidas às desigualdades de gênero,<br />

classe e etnia, a maioria destas mulheres permanece invisível diante inclusive das mais bem<br />

“intencionadas” políticas de saúde.<br />

Essas mulheres estão inseridas no mercado de trabalho de forma precária e muitas vezes são<br />

a única fonte de renda de seus núcleos familiares. Para Giffin, (2002, p. 108) “a velha divisão<br />

sexual do trabalho atravessa a nova reestruturação produtiva, e reforça a feminilização da pobreza”.<br />

A autora aproxima esta realidade ao campo do movimento feminista ao afirmar que “o fato da<br />

‘feminilização’ da pobreza acompanhar a ‘feminilização’ da força de trabalho, revela os limites da<br />

expectativa feminista de que controlar a fecundidade e“conquistar” o mundo público do emprego<br />

remunerado trariam nova liberdade para “as mulheres”.<br />

Entretanto uma visão liberal aponta na direção de que todos os problemas femininos estão<br />

resolvidos, e que a maioria das mulheres não pode sequer ouvir falar de <strong>feminismo</strong>. “É por isso que<br />

as mulheres de hoje, sobretudo as que desconfiam de uma concepção puramente crítica de sua<br />

situação e de sua ação, manifestam nervosismo ou inquietação diante da evocação de um <strong>feminismo</strong><br />

que lhes aparece <strong>como</strong> inteiramente integrado ao mundo político (...)” Touraine, (2007, p.<br />

30).Também a perspectiva desconstrucionista pós-moderna aliada ao radicalismo do movimento<br />

2 Segundo cálculos da Organização das Nações Unidas/ONU entre o 1,2 bilhão de pessoas que ganham menos de US$ 1<br />

por dia 70% pertencem ao sexo feminino. Atualmente, o rendimento médio das mulheres ocupadas no Brasil, segundo o<br />

IBGE, não chega a 70% dos ganhos masculinos. Para piorar, são elas as mais atingidas pelo desemprego e as que mais<br />

se concentram em empregos precários e no mercado informal. Estes dados estão disponíveis no artigo “ Pobreza tem<br />

sexo e merece crédito” de autoria de José Barroso Filho.<br />

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queer provoca o esvaziamento da categoria mulher. Junta-se a esta situação o uso indiscriminado do<br />

gênero tanto nos meios acadêmicos <strong>como</strong> nos espaços de formulação de políticas públicas que<br />

camuflam a situação das mulheres economicamente menos privilegiadas.<br />

Várias estudiosas do campo das políticas públicas em diversas searas e especialmente da<br />

saúde apontam que a incorporação do termo gênero já faz parte dos pronunciamentos oficiais.<br />

Entretanto, podem estar provocando inclusive as desigualdades entre as mulheres <strong>como</strong> aponta<br />

Giffin, 2002, p. 110 mostrando que “isto equivale a dizer que está havendo um esvaziamento de<br />

conceitos e uma crescente ideologização, na qual a visibilização do gênero encobre tanto o<br />

aprofundamento das desigualdades sociais <strong>como</strong> os conflitos de interesse entre mulheres de classes<br />

sociais diferentes”.<br />

Assim a epistemologia Perspectivista do Ponto de Vista se apresenta <strong>como</strong> perspectiva<br />

teórica capaz de permitir visibilidade às questões centrais de mulheres concretas em suas<br />

localizações reais. Abre o espaço para as múltiplas vozes e suas visões de mundo acerca dos direitos<br />

sexuais <strong>como</strong> inerentes ao exercício da sexualidade <strong>como</strong> liberdade e autonomia, ampliando a<br />

promoção da saúde das mulheres para além do planejamento familiar. E fundamentalmente<br />

oportuniza um olhar sobre a categoria gênero na transversalidade e entrelaçamento com classe<br />

social, raça/etnia, geração e capital cultural dentre outros, e não ape<strong>nas</strong> <strong>como</strong> uma condição que<br />

determina, por si só, diferenciais de vulnerabilidade.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Falar dos direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres nem sempre significa<br />

implementá-los na prática. Há uma diferença entre o que está conceitualmente garantido e o que<br />

está posto no cotidiano em saúde e educação. É possível observar uma distância, às vezes, abismal<br />

entre as prerrogativas teóricas e as condições da prática.<br />

Um fenômeno se desenha em relação a atenção em saúde: cresceu significativamente o número de<br />

mulheres em todas as profissões da área. Poderíamos dizer que cada vez mais são mulheres que<br />

cuidam de mulheres. Mas que impacto esta situação tem causado para a qualidade da promoção da<br />

saúde a partir do cuidado? Parece que um baixo impacto porque apesar das mulheres representarem<br />

a maioria na área, a orientação do cuidado ainda está eminentemente ligada ao modelo biomédico<br />

que é masculino, tecnicista e intervencionista.<br />

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A dimensão holística dos aspectos sócio culturais continua muitas vezes intocada, o que<br />

impede a perspectiva da promoção da saúde. As diferenças de classe aparecem <strong>como</strong> normais uma<br />

vez que para muitas/os profissionais da área os Programas de Saúde da Família/PSF são destinados<br />

aos menos privilegiados <strong>como</strong> se a pobreza fosse um destino que articulada às desigualdades de<br />

raça/etinia e gênero prescindam de uma atuação política que enseja mudanças.<br />

Os cursos da área de saúde, especialmente os de enfermagem, têm garantido em suas grades<br />

curriculares discipli<strong>nas</strong> de gênero, saúde e sexualidade. Mas são suficientes? Minha experiência<br />

<strong>como</strong> docente da área observou que não. Durante cinco anos <strong>como</strong> professora da disciplina<br />

desenvolvida dentro do módulo de saúde da mulher, descobri o quão difícil era para as/os<br />

estudantes incorporarem a categoria gênero <strong>nas</strong> suas análises. É mais fácil permanecer utilizando os<br />

instrumentos tradicionais, <strong>como</strong> aulas informativas de “conscientização” das mulheres – reforçando<br />

o modelo tradicional de planejamento familiar.<br />

Defendo que é preciso incorporar às <strong>pesquisas</strong> na área de saúde e enfermagem,<br />

especialmente voltadas para os direitos sexuais e reprodutivos, a perspectiva feminista. Gênero<br />

precisa ser uma categoria entrelaçada às questões feministas mais amplas ou vai perder o sentido e<br />

tornar-se mera expressão que não representa o potencial de análise e transformação social tão<br />

almejada. Corre-se o risco, <strong>como</strong> algumas estudiosas já apontam, de camuflar as condições de<br />

desigualdade entre as próprias mulheres o que não favorece em nada a equidade em saúde.<br />

REFERÊNCIAS<br />

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em: http://galileo.fcien.edu.uy/epistemologias_feministas.htm. S/D.<br />

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES<br />

Educação, Saúde, Movimentos Sociais, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos<br />

20 a 31 de Julho de 2009<br />

Salvador - BA<br />

FILHO, José Barroso. Pobreza tem sexo e merece crédito. 01/04/2009. Disponível em:<br />

http://portalamazonia.globo.com/detalhe-artigo.php?idArtigo=1135<br />

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