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Murilo Rubião e a narrativa do insólito. Flavio ... - Dialogarts - Uerj

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porque, compreenden<strong>do</strong> os mecanismos de construção da linguagem<br />

textual, garante-se que o estranhamento inicial, ou, ainda,<br />

o <strong>insólito</strong> se transforme, enriqueça, se metamorfoseie até<br />

garantir a verossimilhança <strong>narrativa</strong> interna:<br />

Se as coisas impossíveis podem ter mais efeito de veracidade<br />

que o material bruto da observação ou <strong>do</strong> testemunho, é porque<br />

a personagem é, basicamente, uma composição verbal,<br />

uma síntese de palavras, sugerin<strong>do</strong> certo tipo de realidade.<br />

(CANDIDO, 1972: 78)<br />

O <strong>insólito</strong> e o processo de desumanização provoca<strong>do</strong><br />

por ele são perceptíveis não apenas no âmbito da interpretação<br />

<strong>do</strong> texto como um to<strong>do</strong>, mas num estu<strong>do</strong> lingüístico reside<br />

grande parte <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> e da denúncia de que o <strong>insólito</strong> (a metamorfose)<br />

está contribuin<strong>do</strong> para um vazio gradativo, ou seja,<br />

para a desumanização da personagem. Palavras como “emagrecer”,<br />

“tornar-se transparente”, “desaparecer”, referentes a Anatólio,<br />

já permitem ao leitor deduzir o fim que a personagem terá,<br />

pois tais vocábulos, aparecen<strong>do</strong> em ordem gradativa, assumem<br />

significa<strong>do</strong>s peculiares, expressivos. “Emagrecer” é uma<br />

palavra que não denuncia nada <strong>insólito</strong>, mas no contexto, corrobora<br />

para o já espera<strong>do</strong> clímax <strong>do</strong> evento <strong>insólito</strong>, que se verifica<br />

na desumanização em “O Homem <strong>do</strong> boné cinzento”: “O<br />

diabo <strong>do</strong> magrela não tem mais como emagrecer (...) Ele está<br />

fican<strong>do</strong> transparente! (...) Amanhã desaparecerá.” (RUBIÃO,<br />

2005: 73-75)<br />

Uma leitura de “Os Comensais” também ilumina a desumanização<br />

provocada pela manifestação <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> na personagem.<br />

Desde o início da <strong>narrativa</strong>, o <strong>insólito</strong> se instala nos<br />

companheiros de refeitório de Ja<strong>do</strong>n, personagem principal,<br />

que não se comportavam como seres humanos, não comiam e<br />

não conversavam: “Era-lhe penoso, entretanto, encontrá-los<br />

sempre na mesma posição, a aparentar indiferença pela comida<br />

que lhes serviam e por tu<strong>do</strong> que se passava ao re<strong>do</strong>r.” (RUBI-<br />

ÃO, 2005: 253)<br />

A natureza física <strong>do</strong>s comensais mostra seres humanos<br />

<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />

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esquisitos, fora <strong>do</strong>s padrões da naturalidade humana, legitiman<strong>do</strong><br />

o <strong>insólito</strong> como elemento desumaniza<strong>do</strong>r:<br />

– Vamos, Hebe, vamos – gritava, puxan<strong>do</strong>-a pelos braços que<br />

não ofereciam resistência, transforma<strong>do</strong>s em uma coisa gelatinosa.<br />

No momento em que mais se empenhava em arrastála,<br />

um gesto brusco seu lançou pra trás a cabeça de Hebe e as<br />

suas pálpebras, moven<strong>do</strong>-se como se pertencessem a uma boneca<br />

de massa, descerraram-se. (RUBIÃO,2005: 261-262)<br />

No desfecho da <strong>narrativa</strong>, Ja<strong>do</strong>n se torna um comensal,<br />

manifestan<strong>do</strong>-se nele o mesmo <strong>insólito</strong> inerente aos demais<br />

comensais, o que o faz perder a identidade, desumanizan<strong>do</strong>-se<br />

ao passo que se enquadra no grupo <strong>do</strong>s comensais:<br />

Ao lembrar-se que poderia estar atrasa<strong>do</strong> para o almoço, apressou-se.<br />

Já na sala de jantar, caminhou até a grande mesa<br />

de refeições, assentan<strong>do</strong>-se descuidadamente numa das cadeiras.<br />

Os braços descaíram e os olhos, embaça<strong>do</strong>s, perderam-se<br />

no vazio. Estava só na sala imensa. (RUBIÃO, 2005: 263)<br />

Este fragmento confirma a idéia de transformação da<br />

personagem, que, ao se metamorfosear num comensal, muda a<br />

maneira de se relacionar com o mun<strong>do</strong>, ou seja, o seu espaço<br />

na sociedade passa a ser questiona<strong>do</strong>, e, conseqüentemente, a<br />

sua própria existência, encontran<strong>do</strong>-se numa sala vazia, alija<strong>do</strong><br />

de sua relação com o outro.<br />

Em “Os Comensais”, as relações interpessoais são também<br />

questionáveis, e a rotina a que Ja<strong>do</strong>n é submeti<strong>do</strong>, contribuin<strong>do</strong><br />

gradativamente para o processo de ele se tornar um comensal,<br />

desumanizar-se, condizem com algumas características<br />

<strong>do</strong> sistema pós-moderno: “As rotinas que são estruturadas por<br />

sistemas abstratos têm um caráter vazio, amoraliza<strong>do</strong> – isto vale<br />

também para a idéia de que o impessoal submerge cada vez<br />

mais o pessoal.” (GIDDENS, 1991: 122)<br />

Os elementos <strong>insólito</strong>s que fazem alusão aos temas cotidianos<br />

e rotineiros têm sua importância nas <strong>narrativa</strong>s que se<br />

situam num cenário pós-moderno. A sociedade pós-moderna<br />

refletida nessas <strong>narrativa</strong>s, principalmente naquelas que carregam<br />

o <strong>insólito</strong> como elemento estrutura<strong>do</strong>r, encara o cotidiano<br />

<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />

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