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Murilo Rubião e a narrativa do insólito. Flavio ... - Dialogarts - Uerj

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sempre pelos mesmos motivos: “roubo, embriaguez, desordem”<br />

(RUBIÃO, 2005: 139).<br />

Curiosamente, num momento histórico-cultural esfacela<strong>do</strong><br />

e esfacela<strong>do</strong>r, um autor lança mão de fragmentos de um<br />

discurso que se pretende único e inquestionável enquanto verdade<br />

para abrir a <strong>narrativa</strong> de fatos em que nenhuma verdade<br />

pre<strong>do</strong>mina. E esse movimento se dá não só na introdução das<br />

epígrafes, mas também no próprio texto, quan<strong>do</strong> esses discursos<br />

– bíblico e ficcional – se misturam na narração, tornan<strong>do</strong><br />

ainda mais <strong>insólito</strong>s os eventos narra<strong>do</strong>s:<br />

Imaginou, então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia.<br />

Resolvia o quê? Tinha que resolver algo. Foi nesse instante<br />

que lhe ocorreu transmudar-se no verbo resolver. E o porco se<br />

fez verbo. Um pequenino verbo, inconjugável. (RUBIÃO,<br />

2005: 69)<br />

A temática da metamorfose está presente em vários<br />

contos rubianos. Em “Alfre<strong>do</strong>” e “Os dragões” surge numa<br />

mão-dupla: enquanto neste os dragões adquirem hábitos humanos,<br />

naquele é o homem quem sofre a transformação em vários<br />

elementos, até se tornar um animal. Mas essa metamorfose, em<br />

ambos os casos, não é gratuita. A aquisição de outra forma com<br />

que se apresentar socialmente tenta atender a uma profunda<br />

busca pessoal por tranqüilidade ou felicidade, por realizar algo<br />

que não se consegue na realidade. Uma busca que, por sinal, é<br />

sempre frustrada.<br />

As personagens rubianas, como Alfre<strong>do</strong> e os dragões,<br />

em geral são forasteiras, peregrinas em terra estranha, e nesse<br />

senti<strong>do</strong>, os cenários sempre opõem o lugar de origem e o lugar<br />

estranho, a cidade e o interior, o vale e a serra. Na verdade, em<br />

“Os dragões” há também uma oposição de tempo, saben<strong>do</strong> que<br />

tais animais, seres fabulosos próprios <strong>do</strong> imaginário medieval,<br />

teriam sofri<strong>do</strong> com o atraso <strong>do</strong>s costumes humanos de hoje. É<br />

possível entrever nessas linhas uma crítica à degradação <strong>do</strong><br />

próprio homem, e nesse senti<strong>do</strong> as noções de tempo e evolução<br />

se tornam inversamente proporcionais.<br />

<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />

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Os narra<strong>do</strong>res também denunciam suas angústias. A declaração<br />

inicial <strong>do</strong> conto “Alfre<strong>do</strong>” é uma fala de Joaquim, que<br />

diz: “Cansa<strong>do</strong> eu vim, cansa<strong>do</strong> eu volto” (RUBIÃO, 2005: 65),<br />

e não por acaso se repete como encerramento <strong>do</strong> texto, acrescida<br />

ainda de um reforço afirmativo: “Sim, cansa<strong>do</strong> eu vim, cansa<strong>do</strong><br />

eu volto” (RUBIÃO, 2005: 70). Percebemos a circularidade,<br />

ou tendência para o infinito a que se referiu Schwartz, no<br />

senti<strong>do</strong> de que há um deslocamento, uma passagem, mas o esta<strong>do</strong><br />

inicial <strong>do</strong> personagem é o mesmo: cansaço, melancolia<br />

(Cf. SCHWARTZ, 1982).<br />

De fato, Joaquim, antes de Alfre<strong>do</strong>, já empreendera<br />

uma fuga em busca de tranqüilidade, e depois de trazer o irmão<br />

à aldeia e retornar com ele à serra novamente, chega à conclusão<br />

de que tu<strong>do</strong> foi em vão:<br />

Perdera mais uma jornada ao procurar nas montanhas refúgio<br />

contra as náuseas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. De novo, teria que peregrinar<br />

por terras estranhas. (...) Alcançaria vales e planícies, ouvin<strong>do</strong><br />

rolar as pedras, sentin<strong>do</strong> o frio das manhãs sem sol. E agora<br />

sem a esperança de um paradeiro. (RUBIÃO, 2005: 69)<br />

Observamos que esse destino desesperançoso e sem<br />

rumo é o mesmo reserva<strong>do</strong> aos dragões por <strong>Rubião</strong>. Associa<strong>do</strong>s<br />

de início a demônios, monstros antediluvianos, ou seres<br />

folclóricos no conto, os dragões acabam ten<strong>do</strong>, por fim, escravidão,<br />

<strong>do</strong>enças, vícios, aban<strong>do</strong>no e extinção, finais tão reais e<br />

humanos quanto o de muitos povos registra<strong>do</strong>s na História Universal.<br />

Após terem experimenta<strong>do</strong>, na cidade, a crise da vida<br />

humana moderna, seria natural que os forasteiros não quisessem<br />

mais viver entre nós:<br />

(...) depois disso muitos dragões têm passa<strong>do</strong> pelas nossas estradas.<br />

E por mais que eu e meus alunos, posta<strong>do</strong>s na entrada<br />

da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma<br />

resposta recebemos. Forman<strong>do</strong> longas filas, encaminham-se<br />

para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos. (RUBI-<br />

ÃO, 2005: 142)<br />

Conclui-se que, apesar da “irrealidade” <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s,<br />

<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> aborda a angústia da própria existência<br />

<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />

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