Murilo Rubião e a narrativa do insólito. Flavio ... - Dialogarts - Uerj
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Segun<strong>do</strong> Hegel, os seres humanos, como os animais, têm necessidades<br />
naturais e desejos de objetos externos, como comida,<br />
bebida, abrigo e, acima de tu<strong>do</strong>, a preservação <strong>do</strong> próprio<br />
corpo.Entretanto, o homem difere fundamentalmente <strong>do</strong>s<br />
animais, porque, além disso, deseja o desejo <strong>do</strong>s outros homens,<br />
ou seja, quer ser “reconheci<strong>do</strong>”. Especialmente, quer<br />
ser reconheci<strong>do</strong> como ser humano, isto é, como ser com um<br />
certo valor ou dignidade. (FUKUYAMA, 1992: 17)<br />
Então, percebe-se que os desejos humanos foram banaliza<strong>do</strong>s<br />
e a ordem lógica foi alterada, transforman<strong>do</strong> a protagonista<br />
numa personagem sem identificação humana, sem identidade.<br />
Existe uma manifestação <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> na composição física<br />
dela, pois Bárbara engordava mais e mais a cada pedi<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>.<br />
No entanto, o fato de engordar é conseqüência <strong>do</strong>s pedi<strong>do</strong>s.<br />
É a conseqüência e não a causa. “Bárbara gostava somente<br />
de pedir. Pedia e engordava” (RUBIÃO, 2005: 33). Além<br />
<strong>do</strong> mais, engordar é um processo natural <strong>do</strong> ser humano, e<br />
não há ligação entre fazer pedi<strong>do</strong>s e engordar. O peso de Bárbara<br />
só configura o <strong>insólito</strong> à medida que ela pede, à medida<br />
que existam razões que quebrem as expectativas e fujam à ordem<br />
<strong>do</strong> senso comum. Razões estas que a desumanizam, tornam-na<br />
distante da condição humana.<br />
Numa leitura crítico-interpretativa, essa desumanização,<br />
inserida num contexto de banalização <strong>do</strong>s seres humanos e <strong>do</strong>s<br />
seus desejos, também reflete a sociedade pós-moderna, afetan<strong>do</strong><br />
novamente as relações interpessoais:<br />
Para meu desapontamento, nasceu um ser raquítico e feio pesan<strong>do</strong><br />
um quilo. Desde os primeiros instantes, Bárbara o repeliu.<br />
Não por ser miú<strong>do</strong> e disforme, mas apenas por não o ter<br />
encomenda<strong>do</strong>. (RUBIÃO, 2005: 35)<br />
– Seria tão feliz se possuísse um navio! – Mas ficaremos pobres,<br />
querida! Não teremos com que comprar alimentos e o<br />
garoto morrerá de fome. – Não importa o garoto, teremos um<br />
navio que é a coisa mais bonita <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. (RUBIÃO, 2005:<br />
37)<br />
Mais uma vez, nota-se que a falta de reciprocidade é<br />
uma característica da sociedade pós-moderna, onde as múlti-<br />
<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />
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plas identidades se fragmentam e as relações humanas tornamse<br />
efêmeras e volúveis:<br />
Se ao menos ela desviasse para mim parte <strong>do</strong> carinho dispensa<strong>do</strong><br />
às coisas que eu lhe dava. (...) fomos companheiros inseparáveis<br />
na meninice, namora<strong>do</strong>s, noivos e, um dia, nos casamos.<br />
Ou melhor, agora posso confessar que não passamos<br />
de simples companheiros. (RUBIÃO, 2005: 33)<br />
As personagens em que o <strong>insólito</strong> se manifesta são livres<br />
para descumprir regras e para transgredir espaços e tempo.<br />
No entanto, nas <strong>narrativa</strong>s aqui comentadas, verifica-se sempre<br />
um sentimento de insatisfação, de não realização. Em “Bárbara”,<br />
o mari<strong>do</strong> despreza o caráter <strong>insólito</strong> <strong>do</strong>s pedi<strong>do</strong>s de sua esposa,<br />
realizan<strong>do</strong> seus desejos na esperança de receber mais afeto.<br />
Em “Os Comensais”, Ja<strong>do</strong>n despreza o aspecto <strong>insólito</strong> <strong>do</strong>s<br />
comensais, esperan<strong>do</strong> ser aceito no grupo. Já em “O Homem<br />
<strong>do</strong> boné cinzento”, Roderico se apropria <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> na tentativa<br />
de salvar seu irmão da obsessão que tem pelo vizinho. Verifica-se,<br />
assim, um sentimento de incompletude, como se a felicidade,<br />
nessas <strong>narrativa</strong>s, nunca fosse possível, nunca fosse alcançada<br />
pelas personagens.<br />
A obra literária possui a liberdade que a vida real não<br />
concede ao ser humano e, no caso das <strong>narrativa</strong>s aqui abordadas,<br />
essa liberdade está intimamente relacionada à manifestação<br />
de eventos <strong>insólito</strong>s. A oscilação entre afastamento da realidade<br />
referencial e elevação ao caráter simbólico da <strong>narrativa</strong><br />
faz com que o leitor exercite sua imaginação e seu senso crítico:<br />
A ficção é um lugar ontológico privilegia<strong>do</strong>: lugar em que o<br />
homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas,<br />
a plenitude da sua condição, e em que, transforman<strong>do</strong>-se<br />
imaginariamente no outro, viven<strong>do</strong> outros papéis e destacan<strong>do</strong>-se<br />
de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição<br />
fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de des<strong>do</strong>brar-se,<br />
distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria<br />
situação. (CANDIDO, 1972: 48)<br />
O leitor das <strong>narrativa</strong>s que se estruturam a partir da irrupção<br />
de eventos <strong>insólito</strong>s, sobrenaturais, de caráter ilógico<br />
<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />
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