Murilo Rubião e a narrativa do insólito. Flavio ... - Dialogarts - Uerj
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Aliás, a imagem de uma via de mão-dupla no texto reitera<br />
seu olhar pós-utópico. Nesses tempos, as utopias, vez ou<br />
outra, retornam. No entanto, esse retorno se dá pela rota da crítica,<br />
não da esperança. O “princípio-realidade” faz com que as<br />
utopias sejam retomadas não mais voltadas “para o infinito radiante<br />
<strong>do</strong> futuro” (SEVCENKO, 1995: 50), mas como “pastiche,<br />
simulação, impostura: um gesto repetitivo, anódino e<br />
frouxo” (SEVCENKO, 1995: 51).<br />
Este jogo híbri<strong>do</strong> de utopias e suas negações resulta em<br />
criação interessantíssima quan<strong>do</strong> nos debruçamos nas epígrafes<br />
que abrem as <strong>narrativa</strong>s. Trechos da Bíblia, logo, recorrências<br />
de uma perspectiva utópica, as epígrafes transformam-se em<br />
espaço fértil em tensões.<br />
“A flor de vidro”, por exemplo, abre com a seguinte epígrafe,<br />
retirada o livro de Zacarias, capítulo 14, versículo 7:<br />
“E haverá um dia conheci<strong>do</strong> <strong>do</strong> Senhor que não será dia nem<br />
noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz”. O texto, porém,<br />
propõe uma releitura irônica da epígrafe. O protagonista, Eronides,<br />
imerso em uma relação amorosa ambígua, misto de carinho<br />
e violência, fica cego ao fim <strong>do</strong> texto. Assim, os símbolos<br />
de claridade propostos pela epígrafe (dia, tarde, luz) são desconstruí<strong>do</strong>s<br />
pela cegueira da personagem.<br />
Do mesmo mo<strong>do</strong>, “A cidade” mantém uma relação desconstrutora<br />
com sua epígrafe: “O trabalho <strong>do</strong>s insensatos afligirá<br />
aqueles que não sabem ir à cidade” (Eclesiastes 10, 15). Cariba,<br />
o protagonista, é preso ao chegar a uma cidade desconhecida,<br />
e fazer perguntas, sen<strong>do</strong> assim identifica<strong>do</strong> como um suposto<br />
criminoso que, segun<strong>do</strong> uma profecia, seria identifica<strong>do</strong><br />
por fazer perguntas. Assim, texto e epígrafe operam uma poiesis<br />
singular, a partir da ampliação <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> da referência bíblica.<br />
Afinal, o texto nega a epígrafe – Cariba chegou à cidade<br />
e, mesmo assim, sofreu aflições – ou a referenda,len<strong>do</strong>-se o<br />
“saber ir” não como um sintagma indican<strong>do</strong> localização, mas<br />
<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />
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mo<strong>do</strong>, e assim, Cariba realmente não sabia ir à cidade – não fazen<strong>do</strong><br />
perguntas?<br />
Outro ponto que deve ser considera<strong>do</strong> ao se pensar no<br />
caráter híbri<strong>do</strong> da escrita de <strong>Murilo</strong> é a questão <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. Ao<br />
longo de O pirotécnico, o leitor é guia<strong>do</strong> por uma gama de narra<strong>do</strong>res<br />
multifaceta<strong>do</strong>s, um concerto polifônico que expõe diferentes<br />
focos <strong>do</strong>s textos. De certa forma, os narra<strong>do</strong>res rubianos<br />
retomam na pós-utopia o olhar utópico <strong>do</strong>s narra<strong>do</strong>res primevos<br />
aponta<strong>do</strong>s por Walter Benjamim, narra<strong>do</strong>res que imprimem<br />
suas marcas à <strong>narrativa</strong>, “como mão <strong>do</strong> oleiro na argila <strong>do</strong> vaso”<br />
(BENJAMIM, 1994: 205).<br />
De um la<strong>do</strong>, temos narra<strong>do</strong>res que atuam quase que<br />
como câmeras, heterodiegéticos, manten<strong>do</strong> algo que, a primeira<br />
vista, aparenta ser um distanciamento daquilo que narram. É o<br />
caso <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r de “O edifício”, que narra a construção de gigantesco<br />
prédio, espécie de Torre de Babel, pressago, fértil em<br />
desgraças. Por que afirmamos ser apenas aparente o distanciamento<br />
<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r? Ora, é justamente através dele e de sua voz<br />
distanciada, quase oracular, que o tom místico, profético <strong>do</strong><br />
texto se dá. Assim, seu afastamento é um simulacro, faz parte<br />
<strong>do</strong> esquema <strong>do</strong> texto.<br />
Do outro la<strong>do</strong>, aparecem os narra<strong>do</strong>res em 1ª pessoa,<br />
maioria no livro. Fronteiriços, realçam o caráter fluí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
tempos pós-utópicos. Justamente por estarem em momentoslimites,<br />
suas vozes trazem a ambigüidade, instauram dúvidas.<br />
O “conto” que dá nome ao livro, por exemplo, é narra<strong>do</strong><br />
por um morto-vivo. Assim, seu relato se constrói nas malhas da<br />
hesitação, afinal, o protagonista e narra<strong>do</strong>r encontra-se no espaço<br />
entre a vida e a morte, cambian<strong>do</strong> entre o utópico e o pósutópico.<br />
Aliás, o caráter desconstrutor <strong>do</strong> texto se acentua a<br />
partir de um jogo cromático às avessas opera<strong>do</strong> por Zacarias. A<br />
escala de cores se altera e, em vez de ir-se <strong>do</strong> branco ao colori<strong>do</strong>,<br />
faz-se o caminho inverso, como se o fim virasse início:<br />
A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro<br />
<strong>Murilo</strong> <strong>Rubião</strong> e a <strong>narrativa</strong> <strong>do</strong> <strong>insólito</strong> / ISBN 978-85-86837-31-9 / <strong>Dialogarts</strong> 2007<br />
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