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INTRODUÇÃO Faremos um estudo sobre os debates acerca ... - UFF

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<strong>INTRODUÇÃO</strong><br />

Mente quem fala que quem cala consente.<br />

Quem cala, às vezes, re-sente,<br />

Por trás d<strong>os</strong> mur<strong>os</strong> d<strong>os</strong> dentes,<br />

edifica-se <strong>um</strong> discurso transparente...<br />

[...]<br />

A ausência da voz<br />

é, mesmo assim, <strong>um</strong> discurso.<br />

É <strong>um</strong> rio vazio, cujas margens sem água<br />

dão notícia de seu curso...<br />

[...]<br />

Por isso que o silêncio<br />

da consciência,<br />

quando passa a ser ouvido<br />

não é silêncio<br />

- é estampido.<br />

(Eppur si muove – Affonso Romano de Sant’ Anna)<br />

<strong>Farem<strong>os</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>acerca</strong> do direito de resistência ocorrid<strong>os</strong> na<br />

Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988. Procurarem<strong>os</strong> observar como o referido<br />

direito – que, originariamente, é <strong>um</strong> direito liberal – aparece n<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> d<strong>os</strong> constituintes e<br />

d<strong>os</strong> exp<strong>os</strong>itores das audiências públicas.<br />

Inicialmente, devem<strong>os</strong> advertir que o tema ora prop<strong>os</strong>to – o direito de resistência – é,<br />

na realidade, <strong>um</strong> tema marginal dentro da produção jurídica brasileira, sendo mesmo<br />

considerado por alguns juristas como <strong>um</strong> “não-tema”. E é fácil entenderm<strong>os</strong> o porquê. Afinal,<br />

se as leis foram feitas para serem obedecidas, qual a importância de <strong>um</strong>a discussão <strong>sobre</strong> a<br />

desobediência? Um debate desse tipo não poderia ser até mesmo perig<strong>os</strong>o? Não é sem razão<br />

que o direito de resistência raramente aparece como tópico de <strong>estudo</strong> nas Faculdades de<br />

Direito, embora pudesse ocupar espaço no conteúdo de diversas disciplinas. Estam<strong>os</strong>,


portanto, trabalhando com a ausência: ausência na dogmática jurídica, ausência na construção<br />

normativa. Dessa forma, adentram<strong>os</strong> em <strong>um</strong> campo no qual o silêncio talvez n<strong>os</strong> diga mais do<br />

que aquilo que foi realmente dito.<br />

No âmbito mais específico que constitui o n<strong>os</strong>so objeto de <strong>estudo</strong> – <strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>sobre</strong> o<br />

direito de resistência na Assembléia Nacional Constituinte 1987/1988 – o “não-dito”, ou<br />

aquilo que foi dito apenas de maneira marginal, pode n<strong>os</strong> propiciar informações vali<strong>os</strong>as, não<br />

apenas <strong>sobre</strong> a resistência, mas também <strong>acerca</strong> de <strong>um</strong> momento específico dentro da história<br />

do Brasil no qual a simples referência a esta palavra toma proporções maiores do que às vezes<br />

se pretende, além de ensejar ambigüidades no seu sentido.<br />

Se n<strong>os</strong> concentrarm<strong>os</strong> n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> anteriores ao da convocação da Assembléia Nacional<br />

Constituinte – para <strong>um</strong>a maior delimitação, final da década de 70 e primeira metade da década<br />

de 80 – tem<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> suficientes para compreenderm<strong>os</strong> a situação acima descrita: processo<br />

de abertura democrática, fundação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores (PT), criação do Movimento<br />

d<strong>os</strong> Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), expl<strong>os</strong>ão d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais. Se<br />

considerarm<strong>os</strong> ainda que, após a instauração do regime militar, em 1964, tentou-se associar<br />

14


“golpe” à “Revolução” e “resistência” à “subversão” 1 , o pano de fundo no qual se desenrola<br />

<strong>os</strong> <strong>debates</strong> da Constituinte vai se tornando mais claro e, paradoxalmente, mais complexo.<br />

Enfim, irem<strong>os</strong> trabalhar com a falta, a ausência, o esquecimento (prop<strong>os</strong>ital?) do<br />

direito de resistência, tanto na teoria jurídica quanto na prática legislativa. 2 O silêncio é o que<br />

nutri o n<strong>os</strong>so interesse, e constitui a n<strong>os</strong>sa maior justificativa para o <strong>estudo</strong> do tema.<br />

Ao analisarm<strong>os</strong> a resistência, estam<strong>os</strong> diante de <strong>um</strong> problema que é, simultaneamente,<br />

jurídico e político. Em virtude dessa peculiaridade, o direito de resistência muitas vezes<br />

aparece associado – ou mesmo como sinônimo – a expressões que indicam op<strong>os</strong>ição a<strong>os</strong><br />

element<strong>os</strong> de poder, tais como “contestação” 3 , “luta”, “conflito”, “desobediência”,<br />

1 O Ato Institucional nº 5, de 13 de Dezembro de 1968, é <strong>um</strong> exemplo claro desse tipo de associação. Segue o<br />

preâmbulo no referido ato, apenas a título de exemplo: “CONSIDERANDO que a Revolução brasileira de 31<br />

de março de 1964 teve, conforme decorre d<strong>os</strong> At<strong>os</strong> com <strong>os</strong> quais se institucionalizou, fundament<strong>os</strong> e propósit<strong>os</strong><br />

que visavam a dar ao País <strong>um</strong> regime que, atendendo às exigências de <strong>um</strong> sistema jurídico e político, assegurasse<br />

autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa h<strong>um</strong>ana, no combate à<br />

subversão e às ideologias contrárias às tradições de n<strong>os</strong>so povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste<br />

modo, "<strong>os</strong>. mei<strong>os</strong> indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de<br />

maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, <strong>os</strong> graves e urgentes problemas de que depende a<br />

restauração da ordem interna e do prestígio internacional da n<strong>os</strong>sa pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1,<br />

de 9 de abril de 1964); CONSIDERANDO que o Governo da República, responsável pela execução daqueles<br />

objetiv<strong>os</strong> e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que pessoas ou grup<strong>os</strong> antirevolucionári<strong>os</strong><br />

contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromiss<strong>os</strong> que<br />

ass<strong>um</strong>iu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2,<br />

afirmou, categoricamente, que "não se disse que a Resolução foi, mas que é e continuará" e, portanto, o<br />

processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido; CONSIDERANDO que esse mesmo Poder<br />

Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e<br />

promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização d<strong>os</strong> ideais e<br />

princípi<strong>os</strong> da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional nº 4,<br />

de 7 de dezembro de 1966); CONSIDERANDO, no entanto, que at<strong>os</strong> nitidamente subversiv<strong>os</strong>, oriund<strong>os</strong> d<strong>os</strong><br />

mais distint<strong>os</strong> setores polític<strong>os</strong> e culturais, comprovam que <strong>os</strong> instr<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> jurídic<strong>os</strong>, que a Revolução<br />

vitori<strong>os</strong>a outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de<br />

mei<strong>os</strong> para combatê-la e destruí-la; CONSIDERANDO que, assim, se torna imperi<strong>os</strong>a a adoção de medidas<br />

que impeçam sejam frustrad<strong>os</strong> <strong>os</strong> ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a<br />

tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometid<strong>os</strong> por<br />

process<strong>os</strong> subversiv<strong>os</strong> e de guerra revolucionária; CONSIDERANDO que tod<strong>os</strong> esses fat<strong>os</strong> perturbadores, da<br />

ordem são contrári<strong>os</strong> a<strong>os</strong> ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando <strong>os</strong> que por ele se<br />

responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição [...]”<br />

[grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]<br />

2 É importante ressaltarm<strong>os</strong> que existem inúmeras obras, no âmbito da História e da Sociologia, <strong>sobre</strong> o<br />

fenômeno da resistência. Quando falam<strong>os</strong> em ausência, estam<strong>os</strong> n<strong>os</strong> referindo apenas à omissão em relação ao<br />

<strong>estudo</strong> do “direito de resistência”, tema que pertence ao campo jurídico-político. Esse direito não tem recebido a<br />

devida atenção no Brasil, tanto na dogmática jurídica quanto na construção normativa. Estam<strong>os</strong> n<strong>os</strong> referindo,<br />

portanto, especificamente, à ausência de <strong>estudo</strong>s <strong>acerca</strong> do fenômeno da resistência do ponto de vista jurídico, ou<br />

seja, ausência de <strong>estudo</strong>s de juristas <strong>sobre</strong> o direito de resistência. Ademais, não desconhecem<strong>os</strong> o fato de que o<br />

referido direito aparece, de forma bem incipiente, em divers<strong>os</strong> manuais de Teoria do Estado, Direito<br />

Constitucional, Introdução ao Direito etc. Contudo, são pouc<strong>os</strong> <strong>os</strong> autores que se aventuraram (e se aventuram) a<br />

tratar do direito de resistência como tema principal de <strong>estudo</strong>, seja em artig<strong>os</strong> ou livr<strong>os</strong>.<br />

3 Sobre a distinção entre contestação e resistência ver Norberto Bobbio (1992): “O contrário da resistência é a<br />

obediência, o contrário da contestação é a aceitação” (BOBBIO, 1992, p. 144).<br />

15


“violência”, “revolta”, “rebelião”, “moviment<strong>os</strong> sociais”. Pelo mesmo motivo, <strong>os</strong> discurs<strong>os</strong><br />

que versam <strong>sobre</strong> o instituto aparecem, em geral, envolt<strong>os</strong> por questões ideológicas e<br />

políticas. 4<br />

Gofredo Telles Junior, na introdução de <strong>um</strong> artigo publicado em 1955, faz <strong>um</strong><br />

depoimento bastante esclarecedor <strong>sobre</strong> essa situação:<br />

Em que cas<strong>os</strong> será admissível a resistência violenta a<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> injust<strong>os</strong>? A<br />

resp<strong>os</strong>ta a esta pergunta me tem sido solicitada n<strong>um</strong>er<strong>os</strong>as vezes, por grup<strong>os</strong><br />

divers<strong>os</strong> de estudantes, de várias Faculdades de São Paulo. Bem sei que <strong>os</strong><br />

moç<strong>os</strong> desejam (ou desejavam) <strong>um</strong>a justificação doutrinária para certas<br />

atitudes que haviam tomado, ou queriam tomar, dentro de determinadas<br />

circunstâncias históricas de n<strong>os</strong>so país. Após criteri<strong>os</strong>a meditação, resolvi<br />

dar, agora, n<strong>um</strong> trabalho sistemático, a minha solução ao moment<strong>os</strong>o<br />

problema. Mas, antes de mais nada, faço questão de frisar que este trabalho<br />

não visa, expressa ou ocultamente, condenar, justificar ou explicar qualquer<br />

fato real da política brasileira. Tenho verificado que, em assunt<strong>os</strong> como o<br />

que vou versar, a simples menção a fat<strong>os</strong> realmente acontecid<strong>os</strong> ob<strong>um</strong>bra<br />

muitas vezes as consciências. Aquilo que é mera especulação científica passa<br />

a ser interpretado como crítica d<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> e, mesmo, como<br />

expressão de <strong>um</strong>a atitude partidária. E, então, as palavras recebem <strong>um</strong><br />

sentido que originariamente não tinham, as afirmações são deturpadas, e as<br />

mais altas teses são rebaixadas à categoria de explicações forjadas de acordo<br />

com alg<strong>um</strong> d<strong>os</strong> interesses em luta. Fáceis e comuns são as facci<strong>os</strong>as<br />

interpretações em matéria política, principalmente n<strong>um</strong>a hora de paixões<br />

exacerbadas, como é a fase que ora atravessam<strong>os</strong>. [grifo no original]<br />

(TELLES JUNIOR, 1955, p. 16)<br />

Em suas memórias, Hermes Lima, após dissertar <strong>acerca</strong> de sua tese, intitulada Direito<br />

de Revolução – apresentada por ocasião do concurso para a cátedra de Direito Constitucional<br />

da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – relata:<br />

Este o s<strong>um</strong>o da tese. Ela caía n<strong>um</strong> meio ilustre, erudito, mas de formação<br />

jurídica clássica, e, por isto mesmo, embora não soasse a provocação,<br />

4 Convém advertir – embora esse não seja o tema principal do n<strong>os</strong>so <strong>estudo</strong> – que não estam<strong>os</strong> partindo do<br />

pressup<strong>os</strong>to de que exista alg<strong>um</strong> conhecimento neutro. Como n<strong>os</strong> explica Pedro Demo (1995), a ciência está<br />

cercada de ideologia e senso com<strong>um</strong>. É nesse sentido que o autor coloca como critério de cientificidade não<br />

propriamente a objetividade, mas a objetivação, ou seja, a tentativa – nunca completa – de descobrir a realidade<br />

social tal como ela é, em outras palavras, de se atingir <strong>um</strong> conhecimento objetivo. No caso específico da Ciência<br />

do Direito, também entendem<strong>os</strong> não existir conhecimento neutro, isento de ideologia. Contudo, o que estam<strong>os</strong><br />

tentando enfatizar é que, no caso do direito de resistência, a carga ideológica é muito mais acentuada, em razão<br />

da própria divergência <strong>acerca</strong> da juridicidade do instituto da resistência.<br />

16


assemelhava-se a heterodoxia. Além disso, como teria de me dar conta, <strong>os</strong><br />

moviment<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> rebeldes iniciad<strong>os</strong> em 22 agravaram a ambiência<br />

op<strong>os</strong>icionista em São Paulo, que precisamente na Faculdade de Direito<br />

p<strong>os</strong>suía <strong>um</strong> de seus bastiões. A metafísica revolucionária liberal democrática<br />

dominava <strong>os</strong> espírit<strong>os</strong>. Fundamentar a eficácia da ordem podia ser havido<br />

como sustentação da ordem que vigia, na atm<strong>os</strong>fera abrasada pelo vago mas<br />

contestante espectro da regeneração d<strong>os</strong> c<strong>os</strong>t<strong>um</strong>es polític<strong>os</strong>. (LIMA, 1974,<br />

pp. 74-75)<br />

O objeto em questão p<strong>os</strong>sui grande relevância na medida em que a resistência à<br />

opressão foi – e continua sendo – <strong>um</strong>a das grandes polêmicas do pensamento jurídico-<br />

político. Atualmente, a questão da resistência aparece no discurso do Movimento d<strong>os</strong> Sem-<br />

Terra, n<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> de resistência cultural, nas diversas manifestações de objeção de<br />

consciência. Dessa forma, embora o direito de resistência tenha seus antecedentes na Era<br />

Moderna, ainda hoje é capaz de ensejar inúmeras discussões.<br />

Ademais, o <strong>estudo</strong> da resistência política n<strong>os</strong> remete a outras questões de extrema<br />

importância, tais como a legitimidade d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> e governantes e a necessidade de ordens<br />

jurídicas justas. Nesta perspectiva, <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> adequado do fenômeno da resistência pode<br />

contribuir tanto para <strong>um</strong>a crítica fundamentada do sistema jurídico, quanto para a busca de<br />

soluções para <strong>os</strong> problemas da sociedade democrática.<br />

No presente <strong>estudo</strong> partim<strong>os</strong> das seguintes hipóteses: (a) a escassa bibliografia <strong>acerca</strong><br />

do direito de resistência produzida no Brasil reproduz a teoria liberal-contratualista européia,<br />

em especial a teoria de John Locke; (b) <strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> <strong>acerca</strong> do direito de resistência ocorrid<strong>os</strong><br />

na Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 <strong>os</strong>cilaram entre <strong>um</strong>a perspectiva liberal e<br />

<strong>um</strong>a perspectiva social, de acordo com <strong>os</strong> interesses em jogo no momento.<br />

N<strong>os</strong>so trabalho será dividido em duas partes principais. Na primeira, farem<strong>os</strong> <strong>um</strong><br />

<strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> Direito de Resistência e Dogmática Jurídica. Aqui, procurarem<strong>os</strong> demonstrar<br />

a existência de <strong>um</strong> “direito de resistência liberal” na dogmática jurídica brasileira pré-<br />

Constituinte de 1987/1988. N<strong>os</strong>sa análise se concentrará nas obras de juristas brasileir<strong>os</strong> que<br />

trabalharam com o direito de resistência apenas no século XX. Isso se explica, em parte, pela<br />

17


necessidade de <strong>um</strong>a delimitação do n<strong>os</strong>so objeto, mas também, e principalmente, pela<br />

dificuldade que tivem<strong>os</strong> em encontrar obras de autores brasileir<strong>os</strong> anteriores a esse período<br />

que estudaram o tema. 5 Tivem<strong>os</strong> obstácul<strong>os</strong>, inclusive, em relação às obras do século XX.<br />

Acreditam<strong>os</strong> que isso, longe de constituir <strong>um</strong> problema, apenas valida a n<strong>os</strong>sa percepção de<br />

que estam<strong>os</strong> trabalhando com a ausência.<br />

A segunda parte do n<strong>os</strong>so <strong>estudo</strong> aborda a seguinte questão: Direito de Resistência e<br />

Construção Normativa. Neste ponto n<strong>os</strong> concentrarem<strong>os</strong> especificamente em n<strong>os</strong>so objeto<br />

de <strong>estudo</strong>: <strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>acerca</strong> do direito de resistência na Assembléia Nacional Constituinte de<br />

1987/1988. Esta segunda parte será subdividida em dois itens. O primeiro trata d<strong>os</strong> Emissores<br />

do Discurso, e busca caracterizar, através da biografia, aqueles que se manifestaram (contra<br />

ou a favor) <strong>acerca</strong> do direito de resistência. P<strong>os</strong>teriormente, importa verificar O Discurso<br />

propriamente dito. Utilizarem<strong>os</strong> como doc<strong>um</strong>entação <strong>os</strong> Diári<strong>os</strong> da Assembléia Nacional<br />

Constituinte e seus Suplement<strong>os</strong>. 6 Através da leitura d<strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> da Constituinte,<br />

poderem<strong>os</strong> identificar as <strong>os</strong>cilações de perspectivas em relação ao referido direito.<br />

5 Hermes Lima, escrevendo suas memórias, dá alg<strong>um</strong>as indicações <strong>acerca</strong> de <strong>estudo</strong>s <strong>sobre</strong> o tema no século<br />

XIX. Em capítulo no qual faz <strong>um</strong>a narrativa do período em que prestara concurso para a cátedra de Direito<br />

Constitucional da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, explica: “Minha tese pessoal versava <strong>sobre</strong><br />

‘Direito de Revolução’, tema que, no fim do século passado, Afonso Celso terçara ali mesmo perseverando na<br />

linha clássica da revolução como direito do povo oprimido. Onde o governo trocar a lei pelo arbítrio aí nasce o<br />

direito da revolução, doutrinara Rui Barb<strong>os</strong>a”. (LIMA, 1974, p. 43)<br />

6 Utilizarem<strong>os</strong>, mais especificamente, as seguintes passagens do referido doc<strong>um</strong>ento. (1) Ata da 60º Sessão da<br />

Assembléia Nacional Constituinte, ocorrida em 06 de maio de 1987. Diário da Assembléia Nacional<br />

Constituinte. Ano I, nº 55. Brasília – DF, 7 de maio de 1987, pp. 1719-1720. (2) Emenda apresentada em 15<br />

de maio de 1987, perante a Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão<br />

I), Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Coletiv<strong>os</strong> e Garantias (Subcomissão Ib), pelo então<br />

Constituinte J<strong>os</strong>é Genonio Neto (PT/SP). Doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte. Comissão I,<br />

Subcomissão B, Vol<strong>um</strong>e 75, p. 1. (3) Parecer apresentado pela Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong><br />

Coletiv<strong>os</strong> e Garantias, no dia 25 de maio de 1987. Doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte.<br />

Comissão I, Subcomissão B, Vol<strong>um</strong>e 76, p. 23. (4) Ata da 187º Sessão da Assembléia Nacional Constituinte,<br />

em 26 de janeiro de 1988. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano II, nº 171, Suplemento “C”.<br />

Brasília – DF, 27 de janeiro de 1988, pp. 914-915. (5) Ata da 5ª Reunião e 4ª Reunião de Audiência Pública,<br />

da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão da<br />

Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais (Subcomissão Ia). Diário da Assembléia Nacional<br />

Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, pp. 19-29. (6) 9ª Reunião<br />

realizada e 3ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e<br />

da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic). Diário da<br />

Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, pp. 81-90.<br />

(7) Ata da 8ª Reunião e 2ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias<br />

do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic).<br />

Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987,<br />

p. 70.<br />

18


Tem<strong>os</strong>, portanto, dois objetiv<strong>os</strong> principais. Em primeiro lugar, fazer <strong>um</strong> inventário d<strong>os</strong><br />

juristas brasileir<strong>os</strong> do século XX que, anteriormente à convocação da Assembléia Nacional<br />

Constituinte de 1987/1988, tiveram o direito de resistência como objeto principal de alg<strong>um</strong>a<br />

de suas obras. A partir do levantamento prop<strong>os</strong>to, irem<strong>os</strong> verificar as características<br />

(denominação, modalidades, formas de exercício, natureza jurídica) que tal direito ass<strong>um</strong>e na<br />

perspectiva d<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> autores estudad<strong>os</strong>. Por fim, averiguarem<strong>os</strong> se <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong><br />

relacionad<strong>os</strong> adotam <strong>um</strong>a ótica liberal-contratualista.<br />

N<strong>os</strong>so segundo objetivo consiste em analisar <strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>acerca</strong> do direito de<br />

resistência ocorrid<strong>os</strong> na Assembléia Nacional Constituinte a partir de duas estratégias:<br />

identificação d<strong>os</strong> emissores d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o tema e exame do conteúdo d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong>,<br />

com o fim de compreenderm<strong>os</strong> a partir de quais perspectivas o direito de resistência foi<br />

abordado, tanto n<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> em que foi defendido, quanto naqueles em que foi rechaçado.<br />

Como estam<strong>os</strong> tratando de <strong>um</strong> tema multidisciplinar, no qual o Direito, a História, a<br />

Sociologia e a Ciência Política atuam conjuntamente e de forma não hierárquica, tendo em<br />

vista que nenh<strong>um</strong>a destas ciências é capaz de dar resp<strong>os</strong>tas definitivas, muitas questões<br />

importantes que tangenciam o tema principal dependem de <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> mais aprofundado.<br />

Sendo assim, ao final, levantarem<strong>os</strong> alg<strong>um</strong>as hipóteses que, a partir d<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> já recolhid<strong>os</strong>,<br />

contribuirão para <strong>um</strong>a pesquisa futura.<br />

Não obstante a pluralidade de sentid<strong>os</strong> que a expressão “história das idéias”<br />

comporta 7 , entendem<strong>os</strong> que <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> n<strong>os</strong> moldes a que estam<strong>os</strong> n<strong>os</strong> propondo só é p<strong>os</strong>sível<br />

a partir de <strong>um</strong>a história das idéias jurídicas no Brasil. Nesse sentido, procuram<strong>os</strong> enfatizar a<br />

recepção das idéias européias – e, mais especificamente, das idéias liberais – no discurso<br />

jurídico brasileiro.<br />

7 Para <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>acerca</strong> da pluralidade (e ambigüidade) conceitual das noções de “idéia” e “história das idéias”<br />

ver artigo de Franciso Falcon (1997) <strong>sobre</strong> o tema. O autor, fazendo referência ao <strong>estudo</strong> de divers<strong>os</strong><br />

historiadores, aponta vári<strong>os</strong> ram<strong>os</strong> da história que, de alg<strong>um</strong>a forma, teriam como objeto o <strong>estudo</strong> das idéias, tais<br />

como: história das idéias propriamente dita, história intelectual, história cultural, história social das idéias.<br />

19


Uma perspectiva histórica do direito – como a que estam<strong>os</strong> propondo – necessita de<br />

<strong>um</strong>a metodologia própria e adequada. António Manuel Hespanha (1998) questiona quais<br />

seriam as estratégias científicas e as vias metodológicas mais convenientes para <strong>um</strong>a história<br />

crítica do direito. Para o autor, <strong>um</strong>a das estratégias seria escolher como objeto da história<br />

jurídica o direito em sociedade. Isso significa <strong>um</strong>a história do direito ligada à história d<strong>os</strong><br />

divers<strong>os</strong> context<strong>os</strong> (cultura, tradições literárias, estruturas sociais, convicções religi<strong>os</strong>as) com<br />

<strong>os</strong> quais (e n<strong>os</strong> quais) o direito funciona. Contudo, não se trata apenas de considerar o papel<br />

do direito no interior d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> sociais. Uma das abordagens sugeridas pelo autor seria a<br />

de considerar a produção do direito (d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> jurídic<strong>os</strong>, por exemplo) como <strong>um</strong> processo<br />

social em si mesmo.<br />

Acreditam<strong>os</strong> que <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> jurídic<strong>os</strong> – em n<strong>os</strong>so caso, <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> d<strong>os</strong><br />

<strong>debates</strong> ocorrid<strong>os</strong> durante o processo de elaboração da n<strong>os</strong>sa atual Constituição – deve levar<br />

em consideração especialmente este último aspecto. Em outras palavras, partim<strong>os</strong> da<br />

compreensão de que <strong>os</strong> <strong>debates</strong> constituintes podem revelar mais do que aquilo que está<br />

especificado em seu texto: são capazes de trazer a tona diversas questões que estavam na<br />

ordem do dia no momento em que ocorreram, mais especificamente, no final da década de 80.<br />

Por essa razão, tais doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> foram escolhid<strong>os</strong> como fonte privilegiada em n<strong>os</strong>sa pesquisa.<br />

Ressalte-se que dispom<strong>os</strong> de escasso material de trabalho, tendo em vista que o tema<br />

que estam<strong>os</strong> pesquisando aparece raras vezes durante <strong>os</strong> <strong>debates</strong> da Constituinte. Ademais,<br />

existe <strong>um</strong>a ausência de palavras que se repetem com freqüência n<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong>, o que torna<br />

inviável qualquer análise do texto em term<strong>os</strong> quantitativ<strong>os</strong>. No caso da expressão “direito de<br />

resistência”, importa não tanto o número de vezes que ela aparece, mas sim as palavras com<br />

as quais ela se vincula.<br />

A idéia de resistência e, mais importante do que isso, a questão <strong>acerca</strong> de se é p<strong>os</strong>sível<br />

atribuir-lhe <strong>um</strong> caráter jurídico constitui <strong>um</strong> tema bastante polêmico. Acrescente-se, ainda, a<br />

20


discussão <strong>sobre</strong> a p<strong>os</strong>sibilidade e a conveniência de se inscrever o sup<strong>os</strong>to direito em text<strong>os</strong><br />

constitucionais. Essas questões irão nortear todo o n<strong>os</strong>so trabalho, estando presentes tanto na<br />

análise do direito de resistência na dogmática jurídica, quanto no <strong>estudo</strong> da tentativa de<br />

construção normativa do mesmo na Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988.<br />

21


PARTE I: DIREITO DE RESISTÊNCIA E DOGMÁTICA JURÍDICA<br />

1. A RECEPÇÃO DAS TEORIAS SOBRE O DIREITO DE RESISTÊNCIA NO<br />

DISCURSO JURÍDICO BRASILEIRO PRÉ-CONSTITUINTE<br />

Resiste-se lutando – e até fugindo. Resiste-se com<br />

tir<strong>os</strong>, palavras, espadas, poemas, pancadas,<br />

suborn<strong>os</strong>, prisões, greves, canções, pedras,<br />

sentenças, bombas, terror, lock-outs, boicotes,<br />

espiões, traições, discurs<strong>os</strong>, recurs<strong>os</strong>, ameaças,<br />

trapaças. Até com lágrimas se resiste. Resiste-se à<br />

guerra e à paz, ao amor e ao ódio, à doença e à dor,<br />

ao cansaço e ao sono, ao novo e ao velho, ao<br />

bandido e à polícia, ao trabalho e ao baralho, à<br />

mentira e à verdade, à procura e ao encontro, ao<br />

pecado e a Deus, ao fogo e à água, ao azar e à sorte,<br />

à morte e à vida, ao medo e por medo.<br />

(Márcio Túlio Viana)<br />

No presente capítulo irem<strong>os</strong> abordar o direito de resistência enquanto teoria jurídico-<br />

política. N<strong>os</strong>so objetivo principal consiste em <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> das obras de juristas brasileir<strong>os</strong><br />

anteriores à Constituinte de 1987/1988 que publicaram livr<strong>os</strong> ou artig<strong>os</strong> cujo tema principal é<br />

o direito de resistência. N<strong>os</strong> interessa, especialmente, averiguar as seguintes questões: quem<br />

são esses autores; quais são as características do fenômeno jurídico da resistência apontadas<br />

por eles; que teorias tais juristas reproduzem.<br />

Para estudarm<strong>os</strong> a recepção das teorias <strong>sobre</strong> o direito de resistência no período<br />

anterior ao da Constituinte, examinarem<strong>os</strong> <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> d<strong>os</strong> seguintes juristas: Hermes Lima<br />

(1926), Pedro Palmeira (1933) 8 , Baptista de Mello (1936), Murilo de Barr<strong>os</strong> Guimarães<br />

8 Não foi p<strong>os</strong>sível encontrarm<strong>os</strong> a obra de Pedro Palmeira, intitulada “As leis injustas e a sua sanção. O direito de<br />

resistência”, publicada em Recife, em 1933, pela editora Imprensa Industrial. Tivem<strong>os</strong> notícia de sua obra por<br />

intermédio de outras. Contudo, consideram<strong>os</strong> relevante incluí-lo em n<strong>os</strong>sa análise. Embora não tenham<strong>os</strong><br />

22


1926 1933<br />

Hermes Lima Pedro<br />

Palmeira<br />

(1939), J<strong>os</strong>aphat Marinho (1953), Gofredo Telles Junior (1955), Lourival Vilanova (1976) e<br />

Arthur Machado Paupério (1978).<br />

Interessa-n<strong>os</strong>, ainda, contrastar a teoria clássica <strong>sobre</strong> o direito de resistência, ou seja,<br />

a teoria lockiana, com as obras d<strong>os</strong> juristas nacionais, com o escopo de identificarm<strong>os</strong><br />

similitudes e divergências entre as mesmas. Dessa forma, poderem<strong>os</strong> averiguar como <strong>um</strong><br />

direito de origem liberal foi recepcionado em n<strong>os</strong>sa cultura jurídica.<br />

A resistência às leis ou govern<strong>os</strong> injust<strong>os</strong> é <strong>um</strong> fenômeno complexo e ainda pouco<br />

estudado no Brasil. Em n<strong>os</strong>sa literatura jurídica, o assunto, se não desprezado, foi ao men<strong>os</strong><br />

omitido no debate do direito público, havendo apenas autores dispers<strong>os</strong> no tempo e com<br />

variações temáticas. (BUZANELLO, 2003)<br />

Considerando apenas <strong>os</strong> autores que publicaram obras específicas <strong>sobre</strong> o direito de<br />

resistência no século XX, teríam<strong>os</strong> o seguinte:<br />

1936 1939<br />

Baptista de Murilo de<br />

Mello Barr<strong>os</strong><br />

Guimaraes<br />

1953<br />

J<strong>os</strong>aphat<br />

Marinho<br />

1955<br />

Gofredo<br />

Telles Junior<br />

1976 1978<br />

Lourival Arthur<br />

Vilanova Machado<br />

Paupério<br />

O problema, contudo, não se restringe à escassez de obras relativas ao tema da<br />

resistência. Podem<strong>os</strong> constatar ainda a ausência de <strong>um</strong> consenso em relação à terminologia<br />

utilizada, bem como divergências <strong>acerca</strong> da natureza do instituto. Em outr<strong>os</strong> term<strong>os</strong>, o<br />

conceito de resistência nem sempre aparece associado à idéia de <strong>um</strong> direito p<strong>os</strong>itivo, sendo,<br />

por vezes, visto como <strong>um</strong> direito natural ou como <strong>um</strong> mero fato social ou político.<br />

1990 1994 1996<br />

Nelson Nery Maria Garcia Marcio Tulio<br />

C<strong>os</strong>ta<br />

Viana<br />

A questão da resistência p<strong>os</strong>sui <strong>um</strong>a certa imprecisão, em virtude da ampla quantidade<br />

de significad<strong>os</strong> que lhe tem sido atribuída. Tal fato dificulta <strong>um</strong>a adequada compreensão<br />

conseguido informações <strong>acerca</strong> de sua teoria, entendem<strong>os</strong> que é importante, além da constatação da existência de<br />

<strong>um</strong>a obra de sua autoria a respeito do tema, a identificação do momento de publicação do livro.<br />

23


jurídica do tema, ao mesmo tempo em que obsta, em certa medida, sua construção teórica.<br />

(BUZANELLO, 2003)<br />

acima.<br />

A tabela a seguir – embora incompleta 9 – n<strong>os</strong> oferece <strong>um</strong>a noção do problema descrito<br />

TERMINOLOGIA MODALIDADES/ NATUREZA<br />

UTILIZADA<br />

FORMAS<br />

EXERCICIO<br />

DE<br />

Hermes Lima (1926) Direito de Revolução<br />

TRABALHADAS<br />

Revolução10 Poder11 / “Questão de<br />

fato e de poder” 12<br />

Pedro Palmeira (1933) ? ? ?<br />

Baptista de Mello Direito de Resistência Resistência Passiva, Direito P<strong>os</strong>itivo<br />

(1936)<br />

Resistência Legal,<br />

Resistência Violenta.<br />

13<br />

Murilo de Barr<strong>os</strong> Resistência às leis injustas Resistência Passiva, Direito Natural<br />

Guimarães (1939)<br />

Resistência Defensiva,<br />

Resistência Ativa.<br />

14<br />

J<strong>os</strong>aphat Marinho Direito de Revolução15 Revolução Fato Social16 , Fato<br />

9 Não encontram<strong>os</strong> o trabalho de Pedro Palmeira. Tivem<strong>os</strong> notícia de sua obra por meio de outras.<br />

10 Hermes Lima (1926) compreende a revolução como <strong>um</strong>a ruptura do equilíbrio e da forma da sociedade, <strong>um</strong>a<br />

mudança brusca da ordem social. As revoluções impediriam a continuidade social. Ressalte-se que Lima (1926,<br />

p. 14) procura advertir que não é p<strong>os</strong>sível atribuir à revolução o caráter de <strong>um</strong> “processo orgânico de<br />

transformação social”. A recusa ao aspecto transformador da revolução por parte do jurista vem embasar o seu<br />

arg<strong>um</strong>ento de que as revoluções não serviriam para “dar novas bases a<strong>os</strong> process<strong>os</strong> econômic<strong>os</strong> da vida social”,<br />

nem para estabelecer <strong>um</strong> “sistema de justiça capaz de fixar, n<strong>um</strong> melhor e mais h<strong>um</strong>ano plano, as relações entre<br />

serviç<strong>os</strong> e recompensas” e tampouco para acabar com as desigualdades econômicas. Fica claro na passagem que<br />

o jurista repudia as revoluções socialistas.<br />

11 “Para <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> p<strong>os</strong>sivelmente útil do poder de revolução, será necessário ir <strong>um</strong> pouco além das afirmações<br />

doutrinárias que o consagram como <strong>um</strong> direito. (LIMA, 1926, p. 3)” O caráter não jurídico do direito de<br />

revolução fica claro também em outras passagens da obra. Segundo Hermes Lima (1926, p. 71), “direito de<br />

revolução, no sentido constitucional da expressão, não existe. Qualquer reforma que se caracterize pelo emprego<br />

de medidas violentas, inconstitucionais, é <strong>um</strong>a reforma, do ponto de vista do Direito Público, injurídica.”.<br />

12 “Eu, logo de início, questionava a expressão ‘Direito de Revolução’ porque esta seria antes efeito nascente das<br />

condições sociais que, exigindo direito novo, o vêem repelido pela inércia legal. Revoluções seriam energias<br />

desencadeadas de situações que se precipitam, questão de fato e de poder, mas que se não podiam inserir na<br />

técnica e na doutrina do constitucionalismo como ‘direito’ do povo quando a realidade m<strong>os</strong>trava que o povo, está<br />

lá na tese textualmente, ‘é <strong>um</strong> tipo especial de soberano: precisa sempre de quem o faça falar, de quem trace<br />

r<strong>um</strong>o à sua vontade’. Reconhecia que revoluções existirão sempre ‘enquanto <strong>um</strong> homem governar outro<br />

homem’. Mudam de caráter, de finalidade, porque também se transforma a feição social do mundo; que as<br />

tiranias políticas se estavam sucedendo às tiranias econômicas, mas não se me afigurava, segundo a frase do<br />

Duque de Broglie, que o direito de revolução dormisse ao pé das instituições políticas como ‘sua triste e<br />

derradeira garantia’, pois parecia-me que ao pé de todas elas dormirá ‘como o processo radical e violento de sua<br />

evolução’.” (LIMA, 1974, pp. 43-44)<br />

13 Baptista de Mello (1936) en<strong>um</strong>era vári<strong>os</strong> disp<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong> de lei que, em sua opinião, consagrariam o direito de<br />

resistência.<br />

14<br />

“A resistência às leis injustas pertence a essa ordem de direito que fica acima do legislador, a esse sistema de<br />

normas às quais não pode o legislador fugir se quiser fazer obra eficaz. [...] A resistência às leis injustas é <strong>um</strong><br />

direito que resulta da ordem natural, a instância última para a qual apelam <strong>os</strong> cidadã<strong>os</strong> em defesa d<strong>os</strong> princípi<strong>os</strong><br />

da justiça contra <strong>os</strong> abus<strong>os</strong> do legislador”.(GUIMARÃES, 1939, p. 19)<br />

15 J<strong>os</strong>aphat Marinho demonstra ter consciência das dificuldades que surgem quando do <strong>estudo</strong> do direito de<br />

revolução, apontando, inclusive, o problema terminológico: “tratado por terminologia diversa, prejudicial da<br />

clareza de seu conteúdo – direito à insurreição, direito à rebelião, direito de revolta, direito à reação popular, ou<br />

24


(1953) Político17 e<br />

Fenômeno Jurídico18 Gofredo Telles Junior Faculdade de resistir à Resistência Violenta Fato Social<br />

(1955)<br />

opressão<br />

19<br />

Lourival Vilanova Revolução Revolução como <strong>um</strong>a Fato Jurídico<br />

(1976)<br />

descontinuidade jurídicoconstitucional.<br />

(Teoria de<br />

Kelsen)<br />

20 ou<br />

Direito Subjetivo21 Arthur Machado Direito Político de Op<strong>os</strong>ição às leis injustas, Direito Natural<br />

Paupério (1978) Resistência<br />

Resistência à opressão e<br />

Revolução.<br />

22<br />

Nelson Nery C<strong>os</strong>ta Desobediência Civil Greve “Direito de<br />

(1990)<br />

Cidadania” 23<br />

Maria Garcia (1994) Desobediência Civil Desobediência Civil Direito<br />

Direito<br />

P<strong>os</strong>itivo/<br />

Fundamental24 pelo título genérico, direito de resistência à opressão – é admitido e negado, também, por vári<strong>os</strong> critéri<strong>os</strong>,<br />

com<strong>um</strong>ente incompatíveis com o exame concreto de sua natureza, de seus contorn<strong>os</strong> reais e de sua p<strong>os</strong>ição<br />

histórica”. (MARINHO, 1953, pp. 21-22)<br />

16 “Ora, a revolução é o fato ou o processo em que repousa a idéia de <strong>um</strong> direito à mudança da ordem jurídica e<br />

política instituída, ou do sistema de sua aplicação, sem obediência às formas legais preexistentes”. (MARINHO,<br />

1953, p. 32)<br />

17 “Fenômeno social por sua natureza, a revolução é política no seu desdobramento, ou seja, na sua forma e n<strong>os</strong><br />

seus efeit<strong>os</strong>, visto que atinge, irremissivelmente, em grau maior ou menor, a estrutura do poder e a eficácia do<br />

direito em vigor. É, pois, não obstante a variedade de seus fins preponderantes, fato político [...]”. (MARINHO,<br />

1953, p. 33)<br />

18 “Fato político, a revolução tem fisionomia própria no direito, ou melhor, é, também, fenômeno jurídico. Não é,<br />

por certo, fenômeno com<strong>um</strong>, mas excepcional, dadas as causas e circunstâncias complexas que o condicionam e<br />

em virtude da gravidade de seus efeit<strong>os</strong>. De caráter excepcional, por sua formação e por seu desenvolvimento,<br />

projeta-se, todavia, n<strong>os</strong> diferentes cicl<strong>os</strong> da história, diversamente mas como <strong>um</strong>a força relacionada à idéia de<br />

direito, em face da tirania e da injustiça d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> e das classes dominantes”. (MARINHO, 1953, p. 34).<br />

J<strong>os</strong>aphat Marinho (1953, p. 35) acrescenta em seguida: “a permanência do vínculo entre a revolução e <strong>um</strong>a<br />

aspiração jurídica é que a distingue, em essência, d<strong>os</strong> demais moviment<strong>os</strong> coletiv<strong>os</strong> súbit<strong>os</strong> ou violent<strong>os</strong>, que, em<br />

regra, circunscrevem sua órbita à mudança d<strong>os</strong> titulares do poder. Como estes procediment<strong>os</strong>, a revolução é <strong>um</strong><br />

movimento coletivo e, com<strong>um</strong>ente, brusco e violento, mas, deles se distancia porque visa à reforma ou ao<br />

reajustamento da ordem vigente. Por isso, é, também, em princípio, <strong>um</strong> processo normalmente demorado, de que<br />

o ato brusco ou violento contra o poder representa, apenas, a fase ou o momento culminante, que abre<br />

oportunidade à realização d<strong>os</strong> objetiv<strong>os</strong> programad<strong>os</strong>”.<br />

19 “A resistência é <strong>um</strong> fato, cuja legitimidade (não legalidade) é questão metajurídica porque depende<br />

diretamente, não da lei, mas da consonância desse fato com <strong>os</strong> autêntic<strong>os</strong> interesses da vida h<strong>um</strong>ana” (TELLES<br />

JUNIOR, 1955, p. 20).<br />

20 Segundo Lourival Vilanova (1976, p. 462), a revolução seria <strong>um</strong> “processo de mutação jurídica”. E acrescenta:<br />

“A revolução se coloca <strong>sobre</strong> o ordenamento vigente e antes do ordenamento a ter vigência. Nunca está dentro<br />

do ordenamento”.<br />

21 Vilanova compreende que existiriam duas questões a serem distinguidas: a revolução como fato jurídico e a<br />

revolução como direito. “Como não se pode conceber como direito objetivo, pois que a revolução é<br />

antinormativa, é contra legem, [...] tem<strong>os</strong> que procurar a revolução no lado do sujeito que a tem com faculdade,<br />

ou seja, como direito subjetivo” (VILANOVA, 1976, p. 471).<br />

22<br />

“[...] não podem<strong>os</strong>, entretanto, deixar de considerar a resistência à opressão como autêntico direito natural da<br />

sociedade. [...] Ora, visando à restauração da ordem pública, violada pela tirania, o princípio da resistência à<br />

opressão corporifica <strong>um</strong> verdadeiro direito natural político, como decorrência que é do princípio mais largo do<br />

bem com<strong>um</strong>, objeto precípuo de toda e qualquer atividade comunitária do homem” (PAUPÉRIO, 1997, p. 209-<br />

210).<br />

23<br />

“A teoria da resistência é <strong>um</strong>a categoria jurídica que faz parte d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> da cidadania, que perde conteúdo<br />

quando p<strong>os</strong>itivado” (COSTA, 1990, p. 21).<br />

24<br />

“O direito de resistência – especificamente na sua forma da desobediência civil – que se objetiva neste<br />

trabalho, decorre das p<strong>os</strong>sibilidades estabelecidas pelo § 2º, artigo 5º da Constituição Federal, compreendido<br />

25


Márcio Túlio Viana Direito de Resistência<br />

(1996)<br />

25 Greve26 Direito27 P<strong>os</strong>itivo/<br />

Direito<br />

Fundamental28 Direito Potestativo<br />

e<br />

29<br />

É interessante notar que, mesmo quando são utilizadas expressões idênticas por<br />

diferentes autores, estas são empregadas em sentid<strong>os</strong> divers<strong>os</strong>. É o caso da palavra<br />

“revolução”, que pode significar tanto a “vontade de estabelecer <strong>um</strong>a ordem nova, em face da<br />

falta de eco da ordem vigente na consciência jurídica d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da coletividade”<br />

entre <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> fundamentais, como visto, decorrente do princípio da cidadania” (GARCIA, 1994, p. 262).<br />

25 “Para nós, resistência terá o sentido de defesa, op<strong>os</strong>ição. Não in genere, mas juridicamente. Não de qualquer<br />

modo, mas sem o recurso ao Estado.” (VIANA, 1996, p. 26) E acrescenta: “Mais precisamente – no sentido<br />

usado no cerne da obra – resistência será a defesa direta, pelo empregado ou pelo grupo, do direito violado ou do<br />

justo interesse insatisfeito por empregador, no exercício (irregular) de seu poder diretivo” (VIANA, 1996, p. 26)<br />

Sobre “a doutrina da resistência”, o autor entende que “[...] sempre se resiste em nome da justiça, cujo ideal<br />

pode variar e varia, no espaço e no tempo, mas em cada espaço, e em cada tempo, é <strong>um</strong> dado real, sensível.<br />

Ainda assim, se observarm<strong>os</strong> bem, notarem<strong>os</strong> <strong>um</strong>a diferença: enquanto, em alguns caso, luta-se pela lei que já<br />

se tem, em outro se combate pela lei que se quer ter.” [grif<strong>os</strong> no original] (VIANA, 1996, p. 42). Em outras<br />

palavras, “se, de <strong>um</strong> lado, pode-se resistir pelo direito que se tem, ou mais propriamente, pelo direito p<strong>os</strong>itivado,<br />

por outro lado, como dizíam<strong>os</strong>, é p<strong>os</strong>sível resistir em face dele, no sentido de <strong>um</strong> direito ainda não tornado<br />

lei”. [grif<strong>os</strong> no original] (VIANA, 1996, p. 44).<br />

26 Márcio Túlio Viana (1996) também faz referência, em poucas páginas, à Revolução e à desobediência civil,<br />

procurando distinguir esta última da desobediência crimin<strong>os</strong>a. Contudo, o foco de sua obra é o direito de greve<br />

enquanto direito de resistência. O autor procura enquadrar essas modalidades dentro da distinção feita por ele<br />

entre “A luta pelo direito p<strong>os</strong>to” e “A luta para se pôr o direito”. Viana (1996) utiliza Ihering para fundamentar a<br />

primeira espécie, ou seja, a luta pelo direito p<strong>os</strong>to. “Quanto à segunda maneira de resistir, subdivide-se em duas:<br />

<strong>um</strong>a, legal, como é o caso da greve; outra, pára-legal, como ocorre na revolução e na desobediência civil”.<br />

[grif<strong>os</strong> no original] (VIANA, 1996, p. 42).<br />

27 “Vim<strong>os</strong> que, na órbita de sua atuação política, pode-se defender a idéia de que o ius resistentiae é <strong>um</strong> direito.<br />

Seria assim também na esfera trabalhista?” (VIANA, 1996, p. 71) Dissertando <strong>acerca</strong> da “natureza e<br />

fundament<strong>os</strong> do ius resistentiae” o autor explica: “Para nós, o ius resistentiae é, inegavelmente, <strong>um</strong> direito do<br />

empregado. Pouco importa se lhe traz risc<strong>os</strong>: também <strong>os</strong> tem o empregador quando exercita o seu comando. De<br />

resto, qualquer direito, se mal usado, transborda para o ilícito, e produz conseqüências não desejadas pelo<br />

agente”. (VIANA, 1996, p. 74)<br />

28 “O contrato de trabalho tem <strong>um</strong>a peculiaridade – que é o poder diretivo. Pois bem: o ius resistentiae é a sua<br />

contraface. Não, é claro, no sentido de que amb<strong>os</strong> p<strong>os</strong>sam se efetivar concomitantemente, <strong>um</strong> anulando o outro.<br />

Mas no sentido de que o uso irregular do primeiro faz nascer o segundo”. [grif<strong>os</strong> no original] (VIANA, 1996, p.<br />

74). A partir dessa definição, o autor questiona: “Pergunta-se então: Que espécie de direito será? Qual o seu<br />

fundamento?”. (VIANA, 1996, p. 75). E define: “(...) o empregador que excede <strong>os</strong> limites do poder diretivo<br />

ofende, em regra, o direito fundamental contido no art. 5º, II, da Constituição. Deste modo, ao resistir a essa<br />

ofensa, o empregado exercita outro direito fundamental. Mas ainda quando, excepcionalmente, o ato do<br />

empregador não viola aquela regra (...) nem por isso se deve concluir que o ius resistentiae perde o status de<br />

garantia fundamental. É que a Constituição resguarda o direito de ação. E esse preceito, longe de negar o direito<br />

de resistir, na verdade o reafirma. Basta observar, mais <strong>um</strong>a vez, o que há por detrás das palavras: não é, pura e<br />

simplesmente, a vontade de assegurar o acesso a<strong>os</strong> tribunais, mas, antes e mais do que isso, a vontade de<br />

garantir o primado da lei”. [grif<strong>os</strong> no original] (VIANA, 1996, pp. 78-79). Por fim, conclui da seguinte forma:<br />

“(...) seja qual for o direito que socorra, o ius resistentiae é <strong>um</strong>a garantia fundamental do trabalhador. E garantia<br />

das mais importantes: basta notar que o seu op<strong>os</strong>to é a submissão, sinônimo de dignidade perdida”. [grifo no<br />

original] (VIANA, 1996, p. 79).<br />

29 “E como não leva a <strong>um</strong>a prestação, mas a <strong>um</strong>a sujeição por parte do agente passivo (o empregador), podem<strong>os</strong><br />

qualificá-lo de direito potestativo”. [grif<strong>os</strong> no original] (VIANA, 1996, p. 7)<br />

26


(PAUPÉRIO, 1997, p. 1), quanto <strong>um</strong>a simples mudança na Constituição (VILANOVA,<br />

1976).<br />

A partir das informações apresentadas na tabela acima, podem<strong>os</strong> levantar a hipótese –<br />

embora sua validação não seja o objeto do presente <strong>estudo</strong> – de que a ausência de <strong>um</strong>a<br />

teorização mais consistente no discurso jurídico brasileiro <strong>acerca</strong> do direito de resistência<br />

decorra da dificuldade de caracterizá-lo como <strong>um</strong> fenômeno jurídico, ou seja, da própria<br />

relutância por parte d<strong>os</strong> juristas em aceitar o exercício da resistência como <strong>um</strong> direito.<br />

Acreditam<strong>os</strong>, ainda, que o fato de estar localizado na fronteira d<strong>os</strong> camp<strong>os</strong> político e<br />

jurídico constitui <strong>um</strong> obstáculo ao desenvolvimento teórico do direito de resistência, tendo em<br />

vista que a sua elaboração conceitual fica suscetível às diversas “ideologias” 30 , variáveis de<br />

acordo com o contexto social e político.<br />

Partindo desses dad<strong>os</strong>, podem<strong>os</strong> refletir <strong>sobre</strong> a razão pela qual em n<strong>os</strong>so País a<br />

questão da resistência foi negligenciada no debate do direito público. Embora o assunto<br />

apareça constantemente no discurso do senso com<strong>um</strong>, foi pouco trabalhado no âmbito<br />

acadêmico.<br />

É interessante notar que De Plácido e Silva (1982, p. 122), em seu Vocabulário<br />

Jurídico, não define o direito de resistência, trabalhando apenas com o conceito de<br />

resistência 31 que, segundo ele, seria <strong>um</strong> meio de impedir-se a realização ou a execução de <strong>um</strong><br />

ato. Acrescenta o autor que a resistência pode ser ativa – quando firmada em at<strong>os</strong> de violência<br />

ou em ameaças, caracterizando-se pela op<strong>os</strong>ição – ou passiva, assemelhando-se à<br />

desobediência e revelando-se pelo não c<strong>um</strong>primento à ordem recebida. Nesta última hipótese,<br />

a resistência estaria baseada na omissão ou na inação.<br />

30 Acerca do emprego do termo ideologia neste trabalho, vide nota de rodapé número 4.<br />

31 Do latim, resistentia, de resistere (resistir, opor-se, reagir), em sentido lato entende-se toda reação ou<br />

op<strong>os</strong>ição, a que se faça ou se execute alg<strong>um</strong>a coisa (SILVA, 1982, p. 122).<br />

27


De acordo com Paupério (1997), o direito de resistência pode ass<strong>um</strong>ir <strong>um</strong> tríplice<br />

aspecto: a op<strong>os</strong>ição às leis injustas, a resistência à opressão e a revolução. Para o autor,<br />

portanto, existiriam três modalidades de direito de resistência.<br />

Pela op<strong>os</strong>ição às leis injustas, concretiza-se a repulsa de <strong>um</strong> preceito<br />

particular ou de <strong>um</strong> conjunto de prescrições em discordância com a lei<br />

moral. [...] Pela resistência à opressão, concretiza-se a revolta contra a<br />

violação pel<strong>os</strong> governantes da idéia de direito de que precede o Poder cujas<br />

prerrogativas exerce. [...] Pela revolução, enfim, concretiza-se a vontade de<br />

estabelecer <strong>um</strong>a ordem nova, em face da falta de eco da ordem vigente na<br />

consciência jurídica d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da coletividade. (PAUPÉRIO, 1997, p. 1)<br />

Paupério (1997, p. 206) adverte para o fato de que, embora a resistência à opressão<br />

apareça em muitas Declarações de Direit<strong>os</strong>, raramente aparece em leis ordinárias, o que faz<br />

com que tal direito permaneça no campo do puro “idealismo doutrinário”, sem as sanções<br />

efetivas necessárias para transformar <strong>um</strong> “princípio político em direito p<strong>os</strong>itivo”. Portanto, a<br />

simples afirmação do direito de resistência n<strong>os</strong> “text<strong>os</strong> legais básic<strong>os</strong>” não representa muito<br />

com relação a sua garantia.<br />

Acrescenta ainda que<br />

E conclui:<br />

[...] não deixam <strong>os</strong> homens de ter a faculdade de resistir ao governo, quando<br />

opressivo. Tal faculdade pode apenas não ser <strong>um</strong>a faculdade jurídica ou <strong>um</strong><br />

direito subjetivo, sob o ponto de vista p<strong>os</strong>itivo. Mesmo no caso de alg<strong>um</strong><br />

texto legislativo consagrar a resistência à opressão como direito, de pouco ou<br />

de nada valeria tal consagração. De fato, nenh<strong>um</strong> governo admitirá que<br />

exerce opressão. Assim sendo, de modo alg<strong>um</strong> apoiará a resistência que<br />

porventura se ofereça às suas atitudes. Dessa forma, mesmo que a lei o<br />

reconheça, jamais é o chamado direito de resistência garantido pela força<br />

coativa do governo. Assim, a faculdade de resistir à opressão não pode<br />

apoiar-se na força do governo. Tanto bastaria para demonstrar-se que tal<br />

faculdade não é, a rigor, <strong>um</strong> direito, no sentido técnico p<strong>os</strong>itivo da<br />

expressão. Mas se o exercício da resistência à opressão não importa no<br />

exercício de <strong>um</strong> direito p<strong>os</strong>itivo, nem por isso constitui sempre prática<br />

condenável. (PAUPÉRIO, 1997, p. 207-208)<br />

28


[...] não podem<strong>os</strong>, entretanto, deixar de considerar a resistência à opressão<br />

como autêntico direito natural da sociedade. [...] Ora, visando à restauração<br />

da ordem pública, violada pela tirania, o princípio da resistência à opressão<br />

corporifica <strong>um</strong> verdadeiro direito natural político, como decorrência que é do<br />

princípio mais largo do bem com<strong>um</strong>, objeto precípuo de toda e qualquer<br />

atividade comunitária do homem. (PAUPÉRIO, 1997, p. 209-210)<br />

Não obstante, Paupério (1997, p. 235-237) não concorda com aqueles que negam a<br />

inscrição do direito de resistência, sob qualquer de suas formas, n<strong>os</strong> text<strong>os</strong> constitucionais. A<br />

imp<strong>os</strong>sibilidade de regulamentar tal direito, segundo o autor, não é razão para deixar de<br />

declará-lo n<strong>os</strong> “text<strong>os</strong> fundamentais”. Isso porque, “não importa que a consagração do<br />

chamado direito de resistência seja inócuo por falta de garantias efetivas: sua simples<br />

consagração corporifica poder<strong>os</strong>a e útil advertência.”<br />

Esse entendimento já era adotado por J<strong>os</strong>aphat Marinho. Em tese apresentada por<br />

ocasião do concurso de livre docência de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da<br />

Universidade da Bahia, em 1953, o jurista arg<strong>um</strong>entou no sentido da p<strong>os</strong>sibilidade e da<br />

conveniência de se declarar o direito de revolução em <strong>um</strong> texto constitucional. Para Marinho<br />

(1953, p. 78), mesmo sem o estabelecimento imediato de garantias, “a proclamação<br />

constitucional do direito de revolução valerá como norma de sentido educativo”. Ademais, de<br />

acordo com o autor, o reconhecimento expresso do direito de revolução “confirmará a<br />

tendência hodierna de enriquecer <strong>os</strong> text<strong>os</strong> constitucionais de conteúdo político e sociológico,<br />

para melhor adaptá-l<strong>os</strong> à realidade”. (MARINHO, 1953, p. 79).<br />

Apoiando-se em divers<strong>os</strong> disp<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong> da Constituição em vigor no País na época,<br />

J<strong>os</strong>aphat Marinho conclui que não seria absurdo admitir-se o direito de revolução no sistema<br />

constitucional brasileiro. Para Marinho (1953, pp. 82-84), “a defesa da ordem deve ser<br />

preservada, porém não equiparada à manutenção da tirania”. Nesse sentido, ele defende <strong>um</strong><br />

reconhecimento expresso do direito de revolução na Constituição brasileira, tendo em vista<br />

29


que tal declaração “atenderá, aqui, como n<strong>os</strong> demais países, à necessidade de segurança das<br />

prerrogativas fundamentais do homem”. E termina afirmando que “o direito de revolução,<br />

instituído como norma jurídica, é <strong>um</strong>a forma de adaptação do texto à vida [...]”.<br />

J<strong>os</strong>aphat Marinho (1953, pp. 36-37) compreende que “a revolução é a forma suprema<br />

de resistência popular à injustiça ou à opressão, a sanção última das relações entre o Estado e<br />

o direito”. Para o jurista, o direito de revolução corresponderia à “faculdade, exercitada pelo<br />

povo, de promover a substituição e a reforma da ordem política e jurídica, ou do sistema de<br />

sua aplicação, sem observância d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> legais”. Trata-se, segundo Marinho, de <strong>um</strong><br />

“recurso extremo, cabível, apenas, em conjuntura extraordinária de injustiça ou de violência,<br />

incorrigível pel<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> normais ou comuns previst<strong>os</strong> no direito p<strong>os</strong>itivo.”<br />

Com efeito, verificadas as condições, sociais, políticas ou econômicas, que a<br />

informam, a revolução se impõe como processo necessário e inelutável de<br />

transformação. Daí, aliás, a dificuldade de limitá-la, o que serve, também, de<br />

fundamento a<strong>os</strong> op<strong>os</strong>itores de sua recepção n<strong>os</strong> sistemas legais. Imperativo<br />

no seu exercício, este direito é excepcional pelas circunstâncias que o<br />

justificam, indicativas de profundo desequilíbrio na sociedade ou de abusiva<br />

prática do poder, e pela forma violenta, com que se afirma, com<strong>um</strong>ente.<br />

Demais, não é pertinente ao indivíduo, nem quanto ao seu titular nem no que<br />

concerne a<strong>os</strong> seus fins. É direito da coletividade, no tocante ao seu exercício<br />

e a<strong>os</strong> seus objetiv<strong>os</strong>. Encerra sempre a idéia de reforma ou de reajustamento<br />

de <strong>um</strong>a situação jurídica e política, para criação ou restabelecimento de<br />

princípi<strong>os</strong> e instituições julgad<strong>os</strong> indispensáveis à harmonia social, à<br />

garantia do bem com<strong>um</strong>. É por este processo que beneficia o indivíduo.<br />

(MARINHO, 1953, pp. 37-38)<br />

J<strong>os</strong>aphat Marinho (1953) não concorda com a redução da revolução ao simples fato da<br />

violência ou da abolição do direito vigente. Para o autor, deve-se atentar para o seu caráter<br />

criador e restaurador da ordem jurídica.<br />

O jurista Baptista de Mello (1936, p. 96), dissertando <strong>acerca</strong> do direito de resistência,<br />

estabelece <strong>um</strong>a breve definição do instituto: “contra a ilegitimidade da autoridade, ou<br />

ilegitimidade da lei que a cria injusta, é que há o direito de resistência, isto é, o direito de<br />

30


desobedecer à ilegalidade”. O autor não en<strong>um</strong>era modalidades de direito de resistência, mas<br />

indica formas de exercício do referido direito. 32<br />

Murilo de Barr<strong>os</strong> Guimarães (1939, p. 19), após analisar o conceito de lei injusta,<br />

questiona se a resistência a essas leis seria legítima. O autor parece utilizar a expressão<br />

“resistência às leis injustas” como sinônimo de “direito de resistência”. Assim, conceitua da<br />

seguinte forma o instituto: “A resistência às leis injustas é <strong>um</strong>a sanção necessária da<br />

obrigação que cabe ao legislador de fazer leis justas. [...] O direito de resistência se impõe<br />

como <strong>um</strong> p<strong>os</strong>tulado da Justiça, em face da obra arbitrária do legislador”.<br />

Em seguida, Guimarães (1939) examina se o direito de resistência seria realmente <strong>um</strong><br />

direito ou <strong>um</strong> mero fato. O autor conclui que, para aqueles que identificam o direito com a lei,<br />

condenando toda a resistência, esta aparece como <strong>um</strong> simples fato. Por outro lado, aqueles<br />

que admitem a resistência em cas<strong>os</strong> especiais, enquadram-na na ordem do direito. Acolhendo<br />

esta segunda p<strong>os</strong>sibilidade – que a resistência se enquadra na ordem do direito – o jurista<br />

acrescenta que o direito p<strong>os</strong>itivo não poderia consagrar esse princípio, pois isso seria negar-se<br />

a si próprio. E finaliza:<br />

A resistência é a sanção última contra as leis injustas e só deve aparecer<br />

depois de esgotad<strong>os</strong> <strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> permitid<strong>os</strong> em lei. A consagração desse<br />

princípio na legislação p<strong>os</strong>itiva seria a negação da ordem jurídica. Abalado o<br />

respeito ao princípio da legalidade, o bem com<strong>um</strong> se ressentiria talvez mais<br />

do que pelo fato da injustiça de <strong>um</strong>a lei particular. A resistência às leis<br />

injustas pertence a essa ordem de direito que fica acima do legislador, a<br />

esse sistema de normas às quais não pode o legislador fugir se quiser fazer<br />

obra eficaz. [...] A resistência às leis injustas é <strong>um</strong> direito que resulta da<br />

ordem natural, a instância última para a qual apelam <strong>os</strong> cidadã<strong>os</strong> em defesa<br />

d<strong>os</strong> princípi<strong>os</strong> da justiça contra <strong>os</strong> abus<strong>os</strong> do legislador. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]<br />

(GUIMARÃES, 1939, pp. 19-20)<br />

32 De acordo com o autor, a resistência pode ser passiva, legal ou violenta, sendo que a resistência legal é a única<br />

que pode ser considerada <strong>um</strong> direito. “A resistência passiva é sinônimo de desobediência [...]. A legal é a que se<br />

serve de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de direito, para consecução do seu fim. [...] A resistência violenta, muito ao sabor da<br />

força e da anarquia, é a insurreição, é a guerra civil [...]. Essa espécie de resistência só é compreensível para <strong>os</strong><br />

cas<strong>os</strong> de legítima defesa, contra a tirania, contra <strong>os</strong> desmand<strong>os</strong> pessoais, para salvação da Pátria, ou de <strong>um</strong><br />

regime aceito e acatado pela maioria da Nação.” (MELLO, 1936, p. 98)<br />

31


Assim como Baptista de Mello, Guimarães não trabalha com modalidades de direito<br />

de resistência, ocupando-se apenas com a descrição das suas formas de exercício. 33<br />

O professor Goffredo Telles Júnior, no artigo já mencionado, no qual analisa a<br />

resistência a<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> injust<strong>os</strong>, conclui que<br />

o chamado ‘direito’ de resistência à opressão d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> não é <strong>um</strong> direito.<br />

Todo direito subjetivo se funda em lei, e seu exercício é assegurado pela<br />

força do governo. [...] Ora, o chamado ‘direito de resistência’ não se funda<br />

em lei, mesmo quando a lei o reconhece, e não é jamais garantido pela força<br />

do governo. Logo, a faculdade de resistir à opressão não é faculdade jurídica,<br />

não é direito subjetivo, no sentido técnico desta expressão. É, sim, <strong>um</strong>a<br />

faculdade natural do homem. E a resistência, considerada em si mesma, é<br />

<strong>um</strong> fato, cuja legitimidade (não legalidade) depende de sua consonância com<br />

<strong>os</strong> autêntic<strong>os</strong> interesses da vida h<strong>um</strong>ana. O problema da resistência à<br />

opressão não é, pois, <strong>um</strong> problema de direito p<strong>os</strong>itivo. [grif<strong>os</strong> no original]<br />

(TELLES JÚNIOR, 1955, p. 26)<br />

Hermes Lima (1926, p. 71), trabalhando com a idéia de revolução como <strong>um</strong>a<br />

“mudança brusca da ordem social, realizada fora d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> legais”, compreende que “o<br />

pretenso direito de revolução [...] jamais poderia revestir-se das roupagens de <strong>um</strong>a teoria<br />

jurídica, que lhe permitisse ser consagrado e reconhecido n<strong>os</strong> códig<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>.”<br />

E acrescenta:<br />

Não seria p<strong>os</strong>sível falar de <strong>um</strong> direito de revolução dentro das constituições,<br />

consagrá-lo expressamente nelas. O povo delega o exercício de poderes<br />

soberan<strong>os</strong>, mas retém o poder de controlar <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> que ele formou, não<br />

por meio de golpes violent<strong>os</strong> e ilegais da forca revolucionária, mas pel<strong>os</strong><br />

mei<strong>os</strong> previst<strong>os</strong> na Suprema Lei, que ele a si mesmo se traçou. (LIMA, 1926,<br />

p. 68)<br />

Bem sabem<strong>os</strong> que o povo é soberano, que o poder de fazer e desfazer as leis<br />

lhe pertence, mas subordinado às limitações das suas próprias normas<br />

constitucionais. Fora daí ele terá a faculdade de desconhecer essas normas,<br />

33 De acordo com Guimarães, a classificação geralmente adotada pel<strong>os</strong> juristas e teólog<strong>os</strong> distingue entre<br />

resistência passiva, resistência defensiva e resistência ativa. O autor entende que a resistência se justifica sob<br />

qualquer dessas formas. (GUIMARÃES, 1939, pp. 20-21)<br />

32


de desrespeitá-las, de exercer a sua soberania, por process<strong>os</strong> extraconstitucionais<br />

mas a isso chamar-se-á poder de revolução. [...] Decorre<br />

desse princípio que o poder de revolução, no mecanismo constitucional, não<br />

se poderia codificar como <strong>um</strong> direito, a ser exercido nesta ou naquela<br />

oportunidade. As Constituições desconhecem o direito de revolução, porque<br />

ela é <strong>um</strong>a lei garantidora da normalidade e, dentro da normalidade<br />

constitucional, assegura a<strong>os</strong> cidadã<strong>os</strong> a p<strong>os</strong>sibilidade de, pelo exercício da<br />

liberdade política, se reformarem as instituições. [grif<strong>os</strong> no original] (LIMA,<br />

1926, pp. 72-73)<br />

Lima (1926, p. 15) enxerga a revolução sob <strong>um</strong>a ótica negativa, chegando mesmo a<br />

afirmar, no decorrer do seu texto, que “o pior governo é sempre melhor que a melhor das<br />

revoluções”. Defendendo a continuidade política e social, o autor end<strong>os</strong>sa a idéia de que “não<br />

é p<strong>os</strong>sível inovar, construir, senão respeitando e aproveitando <strong>os</strong> bens adquirid<strong>os</strong> no passado”.<br />

Em seguida, o autor faz <strong>um</strong>a contundente defesa da ordem constituída.<br />

Eis aí está porque seria injusto atribuir a<strong>os</strong> govern<strong>os</strong>, quando eles reagem a<strong>os</strong><br />

golpes da anarquia ou das revoluções, em nome da ordem constituída, o<br />

intuito de, nesta alegação, mascarar escus<strong>os</strong> interesses individuais. O<br />

primeiro dever do governo é esse mesmo: manter, assegurar a ordem. O<br />

título melhor da sua legitimidade não vem das urnas ou do processo pelo<br />

qual ele alcançou o poder. Mas da firmeza, da autoridade com que soube<br />

preservar a ordem da ideologia reformadora d<strong>os</strong> revolucionári<strong>os</strong>. [grifo no<br />

original] (LIMA, 1926, pp. 15-16).<br />

Hermes Lima (1926, p. 17) alega ser daqueles que “preferem considerar a revolução<br />

<strong>sobre</strong>tudo como <strong>um</strong> estado de espírito”. Neste sentido, o jurista explica que a “evolução da era<br />

moderna”, ao invés de ter sido feita por “correções”, operou-se por revoluções. Ou seja, “a<br />

evolução social e política do mundo contemporâneo tem sido inspirada por ideais, que, em<br />

vez de tentarem a adaptação do regime à realidade tentam adaptar a realidade ao tema ideal<br />

que se traçara”.<br />

Lima (1926, p. 18) conclui o raciocínio acima afirmando que “ninguém poderá, dentro<br />

de <strong>um</strong> critério cientificamente defensável, [...] reconhecer <strong>um</strong> direito de revolução”. [grifo<br />

no original].<br />

33


As doutrinas que justificam as revoluções são puras conseqüências do estado<br />

mental das eras revolucionárias. Não há revoluções, sem preexistir a elas<br />

espírito revolucionário. Traçar considerações, portanto, determinando<br />

quando as revoluções serão úteis ou inúteis, é <strong>um</strong>a imp<strong>os</strong>sibilidade, é <strong>um</strong><br />

não senso. As revoluções não surgem em exata correspondência com a época<br />

de sua necessidade, que, de resto, ninguém saberia precisar. O preparo delas<br />

é longo: “já existia n<strong>os</strong> espírit<strong>os</strong>” – é <strong>um</strong>a frase feita que exprime, à justa, <strong>os</strong><br />

antecedentes históric<strong>os</strong> e mentais que a tornaram p<strong>os</strong>sível. Aliás, quem<br />

concretiza, na consciência coletiva, a noção da necessidade da revolução,<br />

ainda é, em última análise, o espírito revolucionário, tanto vale dizer, a<br />

anarquia, a indisciplina mental. (LIMA, 1926, pp. 18-19)<br />

Conforme explicitado na tabela acima, Hermes Lima compreende a revolução como<br />

<strong>um</strong> poder, e não como <strong>um</strong> direito. Falando <strong>sobre</strong> a utilização da expressão direito de<br />

revolução por alguns teóric<strong>os</strong>, o jurista afirma que “tal verbalismo denota apenas lamentável<br />

ausência do sentimento da ordem, que é o bem supremo d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>”. (LIMA, 1926, p. 26).<br />

Podem<strong>os</strong> observar que o conceito de resistência nem sempre aparece associado à idéia<br />

de <strong>um</strong> direito p<strong>os</strong>itivo. Por vezes, a resistência é vista como <strong>um</strong> direito natural ou como <strong>um</strong><br />

mero fato social ou político.<br />

Outro aspecto a ser considerado se refere a<strong>os</strong> arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> juristas<br />

brasileir<strong>os</strong> para justificar o direito de resistência. Podem<strong>os</strong> constatar que a maior parte d<strong>os</strong><br />

autores brasileir<strong>os</strong> parte da idéia de <strong>um</strong>a “quebra de contrato” entre governante e governad<strong>os</strong>.<br />

Neste sentido, o fundamento político do direito de resistência relaciona-se com a legitimidade<br />

d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong>. Também engloba a idéia de <strong>um</strong> contrato político, que consiste na renúncia<br />

parcial d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> do indivíduo em favor do Estado. Trata-se, na verdade, de <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento<br />

político-jurídico, tendo em vista que trabalha com o dualismo direit<strong>os</strong>/obrigações. O<br />

indivíduo, na medida em que é membro de <strong>um</strong>a sociedade política, é compelido a obrigações<br />

e, em contrapartida, p<strong>os</strong>sui direit<strong>os</strong>. Sendo assim, a necessidade de limites tanto para <strong>os</strong><br />

governantes quanto para <strong>os</strong> governad<strong>os</strong> é essencial.<br />

A teoria do contrato político relaciona-se com a origem da resistência moderna. Para<br />

<strong>os</strong> contratualistas, a origem da sociedade e o fundamento do poder político estão prescrit<strong>os</strong> em<br />

34


<strong>um</strong> contrato, isto é, n<strong>um</strong> acordo expresso ou tácito pelo qual <strong>os</strong> indivídu<strong>os</strong> sairiam do estado<br />

de natureza, ingressando na sociedade política. O objeto do contrato reside na alienação d<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> inat<strong>os</strong> do homem no estado de natureza para o Estado.<br />

Ao localizarm<strong>os</strong> o ponto de origem do direito de resistência na Era Moderna não<br />

desconsideram<strong>os</strong>, todavia, a existência de manifestações de op<strong>os</strong>ição ao poder soberano<br />

anteriores a esse período 34 . Contudo, compreendem<strong>os</strong> que o direito de resistência, enquanto o<br />

direito de <strong>um</strong> indivíduo – ou grupo de indivídu<strong>os</strong> – de se opor ao Estado, somente é p<strong>os</strong>sível a<br />

partir das condições teóricas e práticas surgidas na Modernidade.<br />

34 Embora o direito de resistência somente tenha alcançado o seu amadurecimento teórico no pensamento<br />

político-jurídico moderno, as primeiras manifestações de op<strong>os</strong>ição a<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> injust<strong>os</strong> podem ser encontradas<br />

na Antigüidade e na Idade Média. J<strong>os</strong>é Carl<strong>os</strong> Buzanello (2003, p. 3-4) observa que o direito de resistência até o<br />

Medievo confunde-se com a noção de tiranicídio, enquanto direito do povo de afastar o tirano pela morte. De<br />

acordo com Norberto Bobbio (1998, p. 80-81), o problema central d<strong>os</strong> escritores polític<strong>os</strong> d<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> sécul<strong>os</strong><br />

do cristianismo era antes de tudo <strong>um</strong> problema moral, que consistia na relação entre o Estado e a justiça. O autor<br />

ressalta o interesse que o pensamento político medieval demonstrou pelo problema da tirania como <strong>um</strong>a das<br />

conseqüências dessa colocação ética do problema político. Os teólog<strong>os</strong> e filósof<strong>os</strong> da Idade Média foram <strong>os</strong><br />

primeir<strong>os</strong> a discutirem o problema da resistência às leis injustas e o tiranicídio. Não obstante, já encontram<strong>os</strong> leis<br />

na Grécia antiga e em Roma que permitiam abertamente o homicídio do tirano. Como precursores das idéias de<br />

legitimidade ética da resistência à opressão podem<strong>os</strong> indicar, primeiramente, Santo Isidoro de Sevilha (550-636)<br />

e, p<strong>os</strong>teriormente, o monge alemão Manegold von Lautenbach. Arthur Machado Paupério (1997, p. 41) aponta<br />

Santo Isidoro, São Tomás de Aquino (1225-1274) e o jurisconsulto Bartolo (1314-1357) como as principais<br />

tendências medievais no âmbito da teorização do direito de resistência e do tiranicídio. Além desses teóric<strong>os</strong>,<br />

podem<strong>os</strong> mencionar ainda as contribuições de João de Salisbury (1120-1180), Marsílio de Pádua (1275-1343) e<br />

Coluccio Salutati (1331-1406).<br />

35


Quando falam<strong>os</strong> aqui em resistência moderna estam<strong>os</strong> n<strong>os</strong> referindo, especificamente<br />

à teoria de John Locke (1632-1704) 35 , primeiro autor moderno a teorizar e defender o direito<br />

de resistência, associado à noção de limitação do poder soberano.<br />

A obra de Hermes Lima (1926) não é suficientemente clara a esse respeito. Por tratar-<br />

se de <strong>um</strong>a tese que fora apresentada tendo em vista a cátedra de Direito Público e<br />

Constitucional da Faculdade de Direito de São Paulo, o jurista enfatiza temas das áreas de<br />

35 A teoria de Locke parte da idéia de que, inicialmente, estariam <strong>os</strong> homens em <strong>um</strong> estado de natureza. Contudo,<br />

o autor observa que esse direito que todo homem tem de ser o executor da lei da natureza pode trazer divers<strong>os</strong><br />

inconvenientes, razão pela qual ele sugere a constituição de <strong>um</strong> “Governo Civil”. Discorrendo <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> fins da<br />

sociedade política, Locke questiona o motivo que levaria o homem a renunciar a liberdade do estado de natureza<br />

e submeter-se ao domínio e ao controle de outro poder. E responde que, sendo o estado de natureza repleto de<br />

temores e perig<strong>os</strong> constantes, <strong>os</strong> homens procurariam unir-se para a “mútua conservação de suas vidas,<br />

liberdades e bens”, a<strong>os</strong> quais Locke atribui o termo genérico de “propriedade” (LOCKE. O segundo tratado<br />

<strong>sobre</strong> o governo, IX, 124). A busca pela conservação da propriedade faz com que cada homem renuncie ao seu<br />

poder individual de castigar para que este passe a ser exercido por <strong>um</strong> único indivíduo – designado entre eles<br />

para tal fim – e segundo as regras que a comunidade, ou aqueles por ela autorizad<strong>os</strong> para tal fim, concordem que<br />

devam vigorar. Neste ponto, Locke identifica o direito original e a origem d<strong>os</strong> poderes legislativo e executivo,<br />

bem como d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> e das sociedades (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, IX, 127). Assim,<br />

ingressando na sociedade política, <strong>os</strong> homens renunciam a<strong>os</strong> dois poderes que p<strong>os</strong>suíam no estado de natureza: o<br />

de “fazer tudo quanto considere adequado para a preservação de si e do resto da h<strong>um</strong>anidade” e o de “castigar <strong>os</strong><br />

crimes” (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, IX, 128-130). O rompimento do contrato, no ponto de<br />

vista lockiano, relaciona-se com a idéia de limitação do poder político. Ao se associarem, <strong>os</strong> indivídu<strong>os</strong> cedem<br />

parte d<strong>os</strong> seus direit<strong>os</strong> a<strong>os</strong> governantes para que estes utilizem o poder em função do bem com<strong>um</strong>. Embora<br />

Locke defenda que o poder legislativo constitui o poder supremo de cada sociedade política, entende que ele não<br />

pode ser absoluto e nem arbitrário <strong>sobre</strong> a vida e <strong>os</strong> haveres do povo. Isso porque ele não pode exceder o poder<br />

que tinham as pessoas no estado de natureza, pois ninguém pode transferir a outrem mais poder do que ele<br />

próprio p<strong>os</strong>sui. Portanto, o poder legislativo deve se limitar ao bem público da sociedade. (LOCKE. O segundo<br />

tratado <strong>sobre</strong> o governo, XI, 134-135) Locke admite ainda <strong>um</strong> controle d<strong>os</strong> at<strong>os</strong> do poder público por parte do<br />

povo. Embora o teórico sustente que em <strong>um</strong>a sociedade política não pode haver mais de <strong>um</strong> poder supremo, que<br />

é o legislativo – ao qual tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> demais são e devem ser subordinad<strong>os</strong> –, sendo ele apenas <strong>um</strong> “poder fiduciário<br />

para agir com vistas a cert<strong>os</strong> fins”, cabe ainda ao povo “<strong>um</strong> poder supremo para remover ou alterar o legislativo<br />

quando julgar que este age contrariamente à confiança nele dep<strong>os</strong>itada.” (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o<br />

governo, XIII, 149). Quanto à legitimidade do poder político, Locke compreende que <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> não podem ter<br />

outra origem senão a mencionada acima, nem podem <strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> ter por fundamento senão o consentimento do<br />

povo. Entretanto, menciona três formas “ilegítimas” de se adquirir o poder: a conquista, a usurpação e a tirania.<br />

Reconhecendo a p<strong>os</strong>sibilidade de formas ilegítimas de poder, Locke admite a resistência em alguns cas<strong>os</strong>. N<strong>os</strong><br />

países onde a pessoa do príncipe é sagrada por lei, pode-se fazer op<strong>os</strong>ição apenas a<strong>os</strong> at<strong>os</strong> ilegais de seus<br />

funcionári<strong>os</strong> subaltern<strong>os</strong> ou outro comissionado por ele, a men<strong>os</strong> que o príncipe dissolva o governo, “deixando<br />

ao povo apenas a defesa que é direito de tod<strong>os</strong> no estado de natureza”. Neste caso, cabe a resistência. Em tod<strong>os</strong><br />

<strong>os</strong> demais cas<strong>os</strong>, o “caráter sagrado da pessoa isenta-a de todo inconveniente” (LOCKE. O segundo tratado<br />

<strong>sobre</strong> o governo, XVIII, 205). Mas nada impede que se questione, se faça op<strong>os</strong>ição e se resista àqueles que usem<br />

de força injusta, mesmo que estes aleguem ter do rei <strong>um</strong>a inc<strong>um</strong>bência. “Pois, se a autoridade do rei lhe é dada<br />

apenas pela lei, não pode ele conceder a homem alg<strong>um</strong> o poder de agir contra ela” (LOCKE. O segundo tratado<br />

<strong>sobre</strong> o governo, XVIII, 206). Supondo-se, todavia, <strong>um</strong> poder não sagrado, tem<strong>os</strong> que, quando a parte que sofreu<br />

a injúria puder ser compensada e seus prejuíz<strong>os</strong> reparad<strong>os</strong> mediante o apelo à lei, não haverá pretexto para a<br />

força, que só deve ser usada quando alguém for impedido de recorrer à lei. “E é apenas essa força que põe quem<br />

a usa em estado de guerra e torna legítimo resistir-lhe” (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XVIII,<br />

207). Se <strong>os</strong> at<strong>os</strong> ilegais cometid<strong>os</strong> por <strong>um</strong> magistrado não forem além do caso de alguns homens particulares,<br />

embora tenham estes o direito de defender-se e retomar pela força o que pela força ilegal lhes for arrebatado, o<br />

direito de assim proceder não <strong>os</strong> envolverá facilmente em <strong>um</strong>a controvérsia, na qual com certeza perecerão<br />

(LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XVIII, 208). “Se, porém, qualquer desses at<strong>os</strong> ilegais se estender<br />

à maioria do povo, ou se o malefício e a opressão recaírem apenas <strong>sobre</strong> uns quant<strong>os</strong>, mas em cas<strong>os</strong> tais que <strong>os</strong><br />

36


Teoria do Estado e Teoria da Constituição – soberania e federalismo, por exemplo – e utiliza<br />

divers<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> dessas áreas, como León Duguit, Jellineck e Hauriou. Não obstante, existem<br />

também referências a Durkheim e Comte. No âmbito da teoria contratualista, o autor<br />

mencionado é Rousseau. Ademais, divers<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> são utilizad<strong>os</strong> na tese.<br />

Embora não p<strong>os</strong>sam<strong>os</strong> classificar o <strong>estudo</strong> de Hermes Lima como sendo liberal e<br />

contratualista – inclusive pelo fato de o jurista rejeitar claramente esses rótul<strong>os</strong> em alguns<br />

precedentes e as conseqüências pareçam ameaçar a tod<strong>os</strong> e estes se convençam de que suas leis, e com elas seus<br />

haveres, liberdades e vidas, correm perigo, e talvez até sua religião, não sei dizer como poderiam ser impedid<strong>os</strong><br />

de resistir à força ilegal usada contra eles. Trata-se de <strong>um</strong> inconveniente, devo confessar, que toca a todo<br />

governo, qualquer que seja, quando <strong>os</strong> governantes levam as coisas ao ponto em que são objeto da desconfiança<br />

geral do povo, o estado mais perig<strong>os</strong>o em que se podem colocar. Tal estado não deve ser motivo para que se<br />

tenha piedade por eles, pois é facilmente evitado, sendo imp<strong>os</strong>sível a <strong>um</strong> governante, se de fato deseja o bem do<br />

povo e a preservação conjunta deste e de suas leis, não demonstrá-lo de alg<strong>um</strong>a forma, assim como é imp<strong>os</strong>sível<br />

a <strong>um</strong> pai de família não deixar transparecer para <strong>os</strong> filh<strong>os</strong> que <strong>os</strong> ama e por eles vela.” (LOCKE. O segundo<br />

tratado <strong>sobre</strong> o governo, XVIII, 209). Segundo Locke, <strong>um</strong>a das hipóteses que levam à dissolução do governo é<br />

quando o legislativo é alterado: “Quando qualquer pessoa, ou pessoas, empreendem a elaboração de leis sem que<br />

o povo as tenha designado para tal, fazem leis sem autoridade, às quais, portanto, o povo não está obrigado a<br />

obedecer. Dessa forma, o povo se vê novamente livre da sujeição, podendo constituir <strong>um</strong> novo legislativo, tal<br />

como julgar melhor, dispondo de plena liberdade para resistir à força daqueles que, sem autoridade, tentassem<br />

impor-lhe qualquer coisa”. (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XIX, 212). O legislativo pode ser<br />

alterado n<strong>os</strong> seguintes cas<strong>os</strong>: quando o príncipe coloca sua própria vontade arbitrária no lugar das leis, que<br />

constituem a vontade da sociedade, expressa pelo legislativo; quando o príncipe impede que o legislativo se<br />

reúna no momento devido ou aja livremente, conforme <strong>os</strong> fins para <strong>os</strong> quais foi constituído; quando, pelo poder<br />

arbitrário do príncipe, <strong>os</strong> eleitores ou <strong>os</strong> procediment<strong>os</strong> eleitorais são alterad<strong>os</strong> sem o consentimento e<br />

contrariamente a<strong>os</strong> interesses comuns do povo; quando se entrega o povo à sujeição de <strong>um</strong> poder estrangeiro,<br />

seja por obra do príncipe ou do legislativo (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XIX, 214-217). Outra<br />

forma de dissolução do governo é quando aquele que detém o poder executivo supremo negligencia e abandona<br />

seu cargo, de maneira que as leis já elaboradas não p<strong>os</strong>sam ser p<strong>os</strong>tas em execução. “Onde as leis não podem ser<br />

executadas é como se não houvesse leis, e <strong>um</strong> governo sem leis é, suponho, <strong>um</strong> mistério político, inconcebível<br />

para a capacidade h<strong>um</strong>ana e incompatível com a sociedade h<strong>um</strong>ana. Neste caso e em outr<strong>os</strong> análog<strong>os</strong>, quando o<br />

governo é dissolvido, o povo se vê livre para prover por si mesmo instituindo <strong>um</strong> novo legislativo, diferente do<br />

outro pela mudança das pessoas ou da forma, ou de ambas, conforme julgar mais adequado à sua segurança e<br />

bem. Pois a sociedade não pode jamais, por culpa de terceir<strong>os</strong>, perder o direito natural e original de preservar-se,<br />

o que só pode ser feito por <strong>um</strong> legislativo estabelecido e <strong>um</strong>a execução justa e imparcial das leis por este<br />

elaboradas. Mas o estado da h<strong>um</strong>anidade não é tão miserável que não seja capaz de usar esse remédio antes que<br />

seja tarde demais para procurar outro. [...] e <strong>os</strong> homens nunca poderão estar protegid<strong>os</strong> da tirania se não houver<br />

mei<strong>os</strong> para escapar dela até a ela estarem inteiramente submetid<strong>os</strong>. E, portanto, é por isso que eles têm não só o<br />

direito de se livrarem dela, como também o de evitá-la. (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XIX,<br />

219-220). Os govern<strong>os</strong> também podem ser dissolvid<strong>os</strong> quando o legislativo ou o príncipe age contrariamente ao<br />

encargo que lhe fora confiado. O legislativo age dessa forma quando tenta violar a propriedade do súdito e fazer<br />

a si, ou a qualquer parte da comunidade, senhor ou árbitro da vida, liberdade ou bens do povo (LOCKE. O<br />

segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XIX, 221). Nas palavras de Locke, “sempre que tais legisladores tentarem<br />

violar ou destruir a propriedade do povo ou reduzi-lo à escravidão sob <strong>um</strong> poder arbitrário, colocar-se-ão em<br />

estado de guerra com o povo, que fica, a partir de então, desobrigado de toda obediência [grifo n<strong>os</strong>so] e deixado<br />

ao refúgio com<strong>um</strong> concedido por Deus a tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> homens contra a força e a violência. [...] O que disse aqui a<br />

respeito do legislativo em geral é válido também para o executor supremo que, sendo dep<strong>os</strong>itário de <strong>um</strong> duplo<br />

encargo a ele confiado, o de fazer parte do legislativo e o da suprema execução da lei, age contra amb<strong>os</strong> quando<br />

busca estabelecer sua própria vontade arbitrária como lei da sociedade.” (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o<br />

governo, XIX, 222). Tanto quando o legislativo é alterado, quando <strong>os</strong> legisladores agem contrariamente ao fim<br />

para o qual foram constituíd<strong>os</strong>, <strong>os</strong> culpad<strong>os</strong> são “culpad<strong>os</strong> de rebelião”. Pois, quando alguém suprime pela força<br />

o legislativo estabelecido de qualquer sociedade e as leis por este formuladas, extingue com isso a decisão com a<br />

qual tod<strong>os</strong> consentiram para <strong>um</strong>a resolução pacífica de suas controvérsias. Eliminando o legislativo estabelecido<br />

37


moment<strong>os</strong> de seu texto –, podem<strong>os</strong> observar alguns arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> que tendem para <strong>um</strong>a<br />

perspectiva contratualista.<br />

Em primeiro lugar, Lima trabalha com a idéia de existência de <strong>um</strong> direito anterior e<br />

superior ao Estado. Para o autor, existiria <strong>um</strong> “direito espontâneo, inevitável, fatal, natural”, e<br />

somente depois apareceria “o direito juridicamente afirmado, imp<strong>os</strong>to, correlativo à<br />

organização do grupo, cujo tipo fixo de estrutura social já lançado precisa para manter-se de<br />

outras forças, além daquelas derivadas do sentimento ou da ‘espontânea acomodação<br />

natural’.” (LIMA, 1926, p. 9). Na passagem citada aparecem duas idéias comuns a<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong><br />

liberais-contratualistas: a idéia de <strong>um</strong> direito natural anterior ao direito p<strong>os</strong>itivo e a noção de<br />

que, com a formação da a sociedade política, são necessárias outras “forças” para a<br />

manutenção da “estrutura social” – nas palavras de Lima – ou do “contrato social”, em term<strong>os</strong><br />

contratualistas.<br />

O jurista procura enfatizar o momento de surgimento dessa nova ordem jurídica, do<br />

“direito novo”, relacionando-o com a revolução.<br />

Esse direito novo é a seiva das revoluções, das transformações sociais<br />

violentas. Ele se impõe e, neste caso, ou <strong>os</strong> métod<strong>os</strong> de governo o<br />

reconhecem, o concretizam, o objetivam em leis e terem<strong>os</strong> aí evolução legal,<br />

ou ele será desconhecido, mas nem por isso deixará de dominar e vencer, e<br />

pela sociedade, desfazem o vínculo e expõem novamente o povo ao estado de guerra. E, se aqueles que<br />

suprimem o legislativo pela força são “rebeldes”, não se pode querer que não sejam <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> legisladores,<br />

quando eles, que foram justamente instituíd<strong>os</strong> para a proteção e preservação do povo e de sua liberdade e<br />

propriedades, pela força as transgridam e tentem tomá-las (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XIX,<br />

227). Para Locke “todo aquele que, governante ou súdito, pela força empreende invadir <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> do príncipe<br />

ou do povo e lança as bases para a derrubada da constituição e da estrutura de qualquer governo justo, é culpado<br />

do maior crime, penso eu, que <strong>um</strong> homem é capaz de cometer, devendo responder por tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> malefíci<strong>os</strong> de<br />

sangue, rapinagem e desolação que o desmoronamento de <strong>um</strong> governo traz a <strong>um</strong> país. E aquele que o faz deve<br />

com justiça ser considerado inimigo com<strong>um</strong> e praga da h<strong>um</strong>anidade, devendo ser tratado como tal. Tod<strong>os</strong><br />

concordam que, a<strong>os</strong> súdit<strong>os</strong> ou estrangeir<strong>os</strong> que atentem pela força contra as propriedades de qualquer povo,<br />

pode-se resistir pela força. Mas que se p<strong>os</strong>sa resistir a<strong>os</strong> magistrad<strong>os</strong> que procederem da mesma forma vem<br />

sendo negado nesses últim<strong>os</strong> temp<strong>os</strong> – como se aqueles que detêm <strong>os</strong> maiores privilégi<strong>os</strong> e vantagens da lei<br />

tivessem, por isso, o poder de violar as leis que são o único motivo pelo qual foram colocad<strong>os</strong> em <strong>um</strong>a p<strong>os</strong>ição<br />

melhor que a de seus semelhantes, quando o seu delito é, justamente por isso, maior, tanto por ser <strong>um</strong>a<br />

ingratidão pela maior parte que pela lei lhes cabe, como por ser também <strong>um</strong> abuso do encargo a eles confiado<br />

por seus semelhantes. (LOCKE. O segundo tratado <strong>sobre</strong> o governo, XIX, 230-231). Enfim, todo aquele que usa<br />

de “força sem direito” coloca-se em estado de guerra com aqueles contra <strong>os</strong> quais a usar. Dessa forma, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

demais direit<strong>os</strong> cessam e cada <strong>um</strong> tem o direito de defender-se e de resistir ao opressor (LOCKE. O segundo<br />

tratado <strong>sobre</strong> o governo, XIX, 232).<br />

38


terem<strong>os</strong> então a revolução. As revoluções, portanto, podem ser consideradas<br />

como funções práticas do direito novo, ainda que a capacidade de<br />

organização que elas p<strong>os</strong>suam seja, de todo o ponto, insuficiente. Esta<br />

insuficiência vem de que só a <strong>um</strong>a política moldada em métod<strong>os</strong> científic<strong>os</strong><br />

seria p<strong>os</strong>sível inovar onde f<strong>os</strong>se necessário, ao passo que as revoluções se<br />

revestem do caráter doutrinário dogmático e apaixonado que as leva à<br />

destruição radical da ordem existente para a imp<strong>os</strong>ição de <strong>um</strong>a ordem nova.<br />

[grif<strong>os</strong> no original] (LIMA, 1926, p. 12).<br />

Ademais, pode-se perceber que Hermes Lima utiliza arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> relacionad<strong>os</strong> à<br />

quebra de contrato entre governantes e governad<strong>os</strong>. Contudo, é interessante observarm<strong>os</strong> que<br />

em sua teoria – cuja palavra revolução tem <strong>um</strong>a conotação negativa – <strong>os</strong> “revolucionári<strong>os</strong>”<br />

são <strong>os</strong> governantes que quebraram o contrato e <strong>os</strong> “conservadores” são <strong>os</strong> governad<strong>os</strong> que<br />

querem a restauração da ordem constitucional violada. O raciocínio é o mesmo daquele<br />

utilizado pel<strong>os</strong> contratualistas. Todavia, há <strong>um</strong>a mudança na qualificação d<strong>os</strong> atores.<br />

O direito à submissão d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>, cessa n<strong>os</strong> govern<strong>os</strong>, onde começar, por ela<br />

a troca da lei em arbítrio. O dever de obediência a<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> expira n<strong>os</strong><br />

pov<strong>os</strong> desde que <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> mudam em regime de força o regime da<br />

legalidade. A usurpação de <strong>um</strong>a autoridade que as leis não lhe atribuem<br />

deslegitima o poder. Ora, o poder ilegítimo é, de sua natureza, <strong>um</strong> poder<br />

revolucionário. Nesse poder encarna a revolução. Revolucionári<strong>os</strong>, como<br />

ele, são, pois, <strong>os</strong> que se põem da sua parte. Os que o embargam, <strong>os</strong> que lhe<br />

desobedecem, <strong>os</strong> que trabalham pelo reduzir à impotência, esses é que são <strong>os</strong><br />

verdadeir<strong>os</strong> conservadores, lidando, como lidam, por manter a ordem<br />

jurídica, aniquilada ou abalada pelo governo rebelde ao direito. [grifo n<strong>os</strong>so]<br />

(LIMA, 1926, p. 33).<br />

Afirmando que a vontade popular se decreta por meio das constituições, da qual <strong>os</strong><br />

govern<strong>os</strong> são mer<strong>os</strong> executores, Hermes Lima acrescenta:<br />

Portanto, senhores, quando <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> aberram das Constituições que são a<br />

carta da soberania d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>, limitada pela consciência deles mesm<strong>os</strong> e<br />

pelas normas superiores da justiça que lh’a al<strong>um</strong>iam, quando <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> de<br />

serv<strong>os</strong> se arvoram em opressores d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>, a reação d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong> contra <strong>os</strong><br />

govern<strong>os</strong> não é revolução, mas reconstituição da legalidade, e <strong>os</strong><br />

revolucionári<strong>os</strong> não são <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> insurgid<strong>os</strong>, mas <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> oprimentes.<br />

Quem está com a Constituição? Esse estará na ordem, esse o conservador.<br />

Quem não está com a Constituição? Esse é o que estará na desordem, esse o<br />

revolucionário. (LIMA, 1926, p. 34).<br />

39


Embora Hermes Lima (1926, p. 67) defenda a soberania do povo, entende que esta<br />

tem limites: “a nação é a sede, é a fonte, o titular do direito de mando, ela pode destituir<br />

governantes, reivindicar garantias, reformar instituições, mas pel<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> regulares e legais”.<br />

Dessa forma, o jurista afirma que<br />

No direito constitucional contemporâneo é cânon indiscutível que, “sendo a<br />

lei a expressão da vontade geral”, o direito de fazer as leis pertence ao povo,<br />

que o exerce, direta ou indiretamente. [...] Mas a teoria de que o povo pode<br />

transformar as suas instituições à vontade não exprime <strong>um</strong>a faculdade liberta<br />

de quaisquer limites e subordinações. As instituições são <strong>um</strong>a garantia da<br />

ordem e a ordem, sendo o maior d<strong>os</strong> bens, porque é deles <strong>um</strong>a “revelação<br />

experimental”, não poderá estar à mercê de golpes que contra ela se desfiram<br />

fora d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> legais do seu remodelamento. (LIMA, 1926, pp. 70-71)<br />

Baptista de Mello compreende que em toda sociedade política coexistiriam dois<br />

princípi<strong>os</strong> antinômic<strong>os</strong>: a autoridade e a liberdade e que, embora esses dois conceit<strong>os</strong> não se<br />

conciliassem, é imp<strong>os</strong>sível compreender <strong>um</strong> sem que se tenha a noção do significado do<br />

outro. Para o jurista, a autoridade envolve a idéia de obediência, configurando, pois, <strong>um</strong> limite<br />

à liberdade, enquanto faculdade natural de agir. (MELLO, 1936)<br />

De acordo com Mello (1936), a restrição às liberdades não pode ser arbitrária,<br />

devendo estar de acordo com <strong>os</strong> valores existentes na sociedade. A autoridade precisa estar<br />

calcada na idéia de justiça e seus at<strong>os</strong> devem convergir para “a felicidade do povo”. Se a<br />

autoridade não concede ao povo a liberdade necessária, ela deixa de ser justa e legítima. E, em<br />

caso de ilegitimidade, não cabe a obediência, e sim a resistência, pois “a suprema obediência<br />

supõe ignorância naquele que obedece.” 36<br />

36 Norberto Bobbio (1992, p. 143) expõe de forma bastante esclarecedora a contrap<strong>os</strong>ição entre obediência e<br />

resistência: “O alfa e o ômega da teoria política é o problema do poder: como o poder é adquirido, como é<br />

conservado e perdido, como é exercido, como é defendido e como é p<strong>os</strong>sível defender-se contra ele. Mas o<br />

mesmo problema pode ser considerado de dois pont<strong>os</strong> de vista diferentes, ou mesmo op<strong>os</strong>t<strong>os</strong>: ex parte principis<br />

ou ex parte populi. [...] O primeiro ponto de vista é o de quem se p<strong>os</strong>iciona como conselheiro do príncipe,<br />

pres<strong>um</strong>e ou finge ser o porta-voz d<strong>os</strong> interesses nacionais, fala em nome do Estado presente; o segundo ponto de<br />

vista é o de quem se erige em defensor do povo, ou da massa, seja ela concebida como <strong>um</strong>a nação oprimida ou<br />

como <strong>um</strong>a classe explorada, de quem fala em nome do anti-Estado ou do Estado que será. Toda a história do<br />

pensamento político pode ser distinguida conforme se tenha p<strong>os</strong>to o acento, como <strong>os</strong> primeir<strong>os</strong>, no dever da<br />

obediência, ou, como <strong>os</strong> segund<strong>os</strong>, no direito à resistência (ou à revolução).”<br />

40


Utilizando <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento puramente contratualista, Baptista de Mello afirma:<br />

Foi a autoridade que elevou o homem até a h<strong>um</strong>anidade [...] inculcando à<br />

selvagem natureza h<strong>um</strong>ana o senso grave da ordem, da medida e da<br />

harmonia; foi a autoridade que criou a língua, a escrita, o número, ou<br />

inversamente, tudo quanto foi criado e n<strong>os</strong> proporciona essas coisas é a<br />

autoridade. Foi graças à autoridade da política que deixam<strong>os</strong> de vegetar em<br />

hordas selvagens pelas florestas virgens, e que no seio de <strong>um</strong>a vida<br />

organizada pelo Estado pode cada <strong>um</strong> exercer o seu valor, a sua capacidade,<br />

<strong>os</strong> seus conheciment<strong>os</strong> (MELLO, 1936, p. 95)<br />

Murilo de Barr<strong>os</strong> Guimarães utiliza <strong>um</strong>a série de autores para explicar o problema das<br />

leis injustas. Após dissertar <strong>acerca</strong> das relações entre direito e moral, Guimarães (1939, p. 22)<br />

conclui que “o critério da moralidade é o mais adequado para resolução do problema das leis<br />

injustas”. Todavia, embora insista na questão da moralidade, em alguns moment<strong>os</strong> do seu<br />

texto o autor dá alg<strong>um</strong>as indicações de que segue <strong>um</strong>a perspectiva liberal-contratualista. Isso<br />

porque trabalha a resistência a partir do dualismo direit<strong>os</strong> e deveres/obrigações entre<br />

governantes e governad<strong>os</strong>.<br />

Se, como é real, todo cidadão tem o dever de respeitar as leis do seu país, à<br />

autoridade também compete o dever – cronologicamente anterior – de não<br />

promulgar senão leis justas. Ora, o poder d<strong>os</strong> governantes, a autoridade que<br />

estes exercem <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> cidadã<strong>os</strong> não é arbitrária e sim funcional.<br />

(GUIMARÃES, 1939, p. 13)<br />

E acrescenta, mais adiante, nesse mesmo sentido:<br />

A resistência às leis injustas é <strong>um</strong>a sanção necessária da obrigação que cabe<br />

ao legislador de fazer leis justas. A vontade do legislador não é arbitrária e a<br />

regra jurídica é <strong>um</strong>a obra de razão, sujeita a normas objetivas determinadas.<br />

O direito de resistência se impõe como <strong>um</strong> p<strong>os</strong>tulado da Justiça, em face da<br />

obra arbitrária do legislador. (GUIMARÃES, 1939, p. 13)<br />

41


Ademais, Murilo de Barr<strong>os</strong> Guimarães identifica no “renascimento do direito natural”<br />

e na contrap<strong>os</strong>ição entre direito natural e direito p<strong>os</strong>itivo o ponto de partida para o problema o<br />

qual se propõe a estudar, qual seja, <strong>um</strong> critério para a solução do problema da resistência às<br />

leis injustas.<br />

Com o renascimento do direito natural, o problema do valor das leis entra<br />

em <strong>um</strong>a fase de apreciação minuci<strong>os</strong>a, em que não se visa apenas apurar a<br />

legitimidade da sua procedência, e sim as suas próprias condições<br />

intrínsecas. Substituída a concepção unitária do direito pelo dualismo<br />

fundamental – direito natural e direito p<strong>os</strong>itivo – a lei cessa de ser<br />

considerada como <strong>um</strong> tabu perante o qual tod<strong>os</strong> se devem curvar<br />

incondicionalmente, e fica sujeita a <strong>um</strong> exame detido tendente a apreciar a<br />

sua conformidade à ordem jurídica. (GUIMARÃES, 1939, p. 3)<br />

A obra de J<strong>os</strong>aphat Marinho, conforme declaração do próprio jurista, procura limitar o<br />

<strong>estudo</strong> da resistência e, mais especificamente, da revolução, ao plano constitucional. Marinho<br />

utiliza inúmer<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> europeus em sua tese, em sua maioria juristas franceses e italian<strong>os</strong>.<br />

Não podem<strong>os</strong>, portanto, vinculá-lo a <strong>um</strong>a teoria específica. No entanto, alg<strong>um</strong>as observações<br />

podem ser feitas em relação a<strong>os</strong> arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> pelo autor.<br />

Falando brevemente <strong>sobre</strong> o desenvolvimento de teorias <strong>acerca</strong> do direito de<br />

resistência da Idade Média à Revolução Francesa, J<strong>os</strong>aphat Marinho aponta duas doutrinas<br />

específicas: na época medieval, <strong>os</strong> <strong>estudo</strong>s feit<strong>os</strong> por São Tomás de Aquino e, na<br />

Modernidade, a obra de Locke. Sobre este último, o jurista compreende que “seu pensamento<br />

é eminentemente político, pois representa <strong>um</strong>a defesa da Revolução inglesa de 1688, e<br />

baseado na tese contratualista”. Por fim, Marinho menciona a Declaração d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> do<br />

Homem e do Cidadão, de 1789 – “inspirada, inclusive, nas proclamações americanas” –, “em<br />

que culminou o racionalismo liberal, legitimou a resistência como direito natural e<br />

imprescritível”. (MARINHO, 1953, p. 25). Sobre tais teorias, o jurista explica:<br />

42


Essas idéias e esses text<strong>os</strong> revestem-se, assim, de caráter abstrato,<br />

excessivamente político, ou dogmático, e têm, por isso, mais valor histórico<br />

e informativo do que de conceito. A <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> o direito de revolução<br />

na órbita constitucional, e no mundo hodierno, não é, pois, indispensável,<br />

nem recomendável, fundar-se na explanação dessas concepções, de índole<br />

preponderantemente fil<strong>os</strong>ófica. (MARINHO, 1953, p. 25)<br />

O autor reconhece a existência de duas doutrinas antagônicas que se chocam na<br />

interpretação do direito de resistência à opressão: a concepção dogmático-burguesa e a teoria<br />

socialista-soviética. Sobre esta última, Marinho (1953, p. 43) salienta o seu “sentido parcial”<br />

que, segundo o jurista, “em realidade, só justifica o direito de revolução no plano da luta de<br />

classes e em conseqüência das desigualdades econômicas, reduzindo-o, assim, a <strong>um</strong>a forma,<br />

que é fundamental, mas, não exclusiva”. E continua: “se a opressão, além de propriamente<br />

econômica, pode ser cultural e política, a origem e o objeto do direito de revolução têm mais<br />

amplitude do que <strong>os</strong> limites desta teoria”.<br />

J<strong>os</strong>aphat Marinho (1953, pp. 43-44) explica então que o direito de revolução “é <strong>um</strong><br />

direito do homem na coletividade, vale dizer, nela integrado para a ação em conjunto”.<br />

Trata-se, segundo o jurista, “de direito essencial, que é, também, garantia de outras<br />

prerrogativas fundamentais do homem”. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. Nesta definição o jurista utiliza<br />

expressões que apontam para <strong>um</strong>a caracterização do direito de revolução como <strong>um</strong> direito<br />

individual, <strong>um</strong> direito natural, o que, em princípio, aproximaria o seu conceito da perspectiva<br />

moderna de resistência. Contudo, o autor associa a noção de revolução ao conceito de<br />

coletividade, conforme verem<strong>os</strong> a seguir.<br />

Partindo da constatação de que o direito constitucional utiliza a expressão povo para<br />

designar “<strong>um</strong>a coletividade titular de prerrogativas”, Marinho afirma que é exatamente o povo<br />

o titular do direito de revolução. “Contudo, o povo, como unidade, não exercita, salvo<br />

excepcionalmente, este direito. Uma parcela da coletividade nacional é que o exerce”.<br />

Percebem<strong>os</strong>, a partir dessa declaração, que o jurista considera o povo como o sujeito ativo do<br />

direito de revolução. “Do direito, de que é titular, usa o povo, pela pressão de fat<strong>os</strong> graves,<br />

43


contra o poder político, mantenedor da ordem vigente, a-fim-de instituir <strong>um</strong>a forma adequada<br />

de convivência”. (MARINHO, 1953, p. 46).<br />

Todavia, mesmo substituindo o conceito de indivíduo pela de noção de povo – o que<br />

afastaria J<strong>os</strong>aphat Marinho de <strong>um</strong>a perspectiva meramente individualista – a idéia de quebra<br />

de contrato entre governante e governado permanece. Neste sentido, o autor defende que “a<br />

revolução pressupõe <strong>um</strong> estado de desequilíbrio, de desajustamento ou de ineficácia das<br />

instituições e de seus órgã<strong>os</strong> que legitima a ação direta do povo, cessando o mandato<br />

conferido”. (MARINHO, 1953, p. 46). Ademais, compreende que “a natureza excepcional do<br />

direito de revolução já lhe confere a virtude de sanção contra as irregularidades extremas do<br />

poder”. (MARINHO, 1953, p. 45).<br />

Dissertando <strong>acerca</strong> do Estado e <strong>sobre</strong> o seu “incomparável poder de mando”, J<strong>os</strong>aphat<br />

Marinho explica que<br />

O Estado, entretanto, não se legitima pelo poder, que lhe é inerente. O poder,<br />

em si mesmo, não tem valor no plano social e político: o que o cria é a<br />

exigência de coordenação das relações de convivência; o que o explica ou<br />

justifica é a forma por que dirige a vida d<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> e lhes proporciona a<br />

satisfação de suas necessidades. [...] Verdade é que o Estado não se destina,<br />

nem pode destinar-se, regularmente, à execução de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> fins da vida<br />

h<strong>um</strong>ana. Os fat<strong>os</strong> da existência associada são demasiado complex<strong>os</strong> e<br />

multiformes para que <strong>um</strong>a instituição, mesmo que seja a “mais completa e<br />

extensivamente organizada” como o Estado moderno, p<strong>os</strong>sa abrangê-l<strong>os</strong>, em<br />

toda sua variedade, e ordená-l<strong>os</strong> em harmonia com as aspirações de bem<br />

estar, igualdade e liberdade, próprias do homem. C<strong>um</strong>pre à ordem estatal, no<br />

entanto, satisfazer o maior número de necessidades h<strong>um</strong>anas. E esta<br />

satisfação deve ser relativa à comunidade no conjunto de suas unidades e<br />

grup<strong>os</strong>, e não em benefício, apenas, de determinadas parcelas, convertidas<br />

em titulares de privilégi<strong>os</strong>. Como força social predominante, o Estado não é<br />

instr<strong>um</strong>ento de grup<strong>os</strong> ou classes. É forma de organização da vida, a que<br />

cabe compensar e atenuar as desigualdades, que diferenciam indivídu<strong>os</strong> e<br />

grup<strong>os</strong>. (MARINHO, 1953, pp. 55-56)<br />

Sobre as limitações do poder estatal, Marinho compreende que<br />

Por outro lado, lícito não é ao Estado regular nem agir arbitrariamente. Toda<br />

sua atividade de órgão que formula e aplica o direito, ou que promove at<strong>os</strong><br />

44


de utilidade pública, é condicionada, para ser legítima, à conformidade com<br />

<strong>os</strong> princípi<strong>os</strong> de harmonia social e de proteção da personalidade h<strong>um</strong>ana. A<br />

ação do Estado é, pois, em certo sentido, predeterminada pel<strong>os</strong> fins da vida<br />

em sociedade. [...] Enfim, a noção de direito implica a de limitação do poder<br />

político, <strong>sobre</strong>tudo para caracterizá-lo como força de equilíbrio e de<br />

harmonia na sociedade. (MARINHO, 1953, pp. 56-57)<br />

J<strong>os</strong>aphat Marinho (1953, p. 57) observa que “na prática, porém, o Estado não tem<br />

c<strong>um</strong>prido, como deve, essa função superior de ordenamento da vida social. Na variedade de<br />

suas formas históricas, é órgão de garantia e de execução d<strong>os</strong> privilégi<strong>os</strong> e das pretensões das<br />

classes economicamente dominantes”.<br />

Essa atitude de parcialidade do Estado gera, necessariamente, opressão e<br />

injustiça, a que reagem <strong>os</strong> grup<strong>os</strong> sociais por elas atingid<strong>os</strong>. Há, por isso,<br />

conflit<strong>os</strong> constantes na sociedade. [...] C<strong>um</strong>pre reconhecer-se que nem<br />

sempre é ilegítima a resistência popular, mesmo quando ass<strong>um</strong>e a forma de<br />

revolução. [...] O consentimento e a colaboração d<strong>os</strong> governad<strong>os</strong> constituem,<br />

pois, condições de exercício regular do poder, assim como a disciplina<br />

legítima é a que se baseia na coordenação e não a que se apóia na<br />

subordinação. No Estado de Direito, principalmente, o procedimento do<br />

poder é regular na medida em que se harmoniza com a essência da<br />

organização democrática. (MARINHO, 1953, pp. 59-60)<br />

Marinho (1953, pp. 60-61) ressalta que o poder, além de parcial, tende naturalmente<br />

ao arbítrio, “como meio incontrastável de assegurar e manter a soberania de seus at<strong>os</strong>.<br />

Desvirtua a idéia de direito, que deve constituir a pauta de suas ações, ou a desrespeita<br />

abertamente, impondo-se, apenas, como expressão da vontade de seus agentes”.<br />

Pode, assim, o arbítrio converter-se em despotismo, negando ou suprimindo<br />

<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> fundamentais do homem, como o demonstra, largamente, a<br />

história política. Então, já não há, propriamente, ordem a ser obedecida. [...]<br />

De fato, a ordem não pode ser <strong>um</strong>a relação pertinente apenas à hierarquia do<br />

poder, mas extensiva ao grupo social, a que deve garantir condições de vida<br />

materiais e morais, compatíveis com a dignidade h<strong>um</strong>ana. [...] Se o poder já<br />

não revela, precipuamente, senão o propósito de mando, a ordem torna-se,<br />

tão só, a organização da violência. (MARINHO, 1953, pp. 61-62)<br />

45


Em capítulo no qual analisa a p<strong>os</strong>sibilidade e a conveniência da declaração do direito<br />

de revolução no texto constitucional, Marinho reafirma a idéia de coordenação entre indivíduo<br />

e Estado.<br />

[...] a natureza da relação entre o indivíduo e o Estado não é de simples<br />

dependência mas de coordenação, de recíproco respeito, fundado na lei. Esta<br />

relação, portanto, não impede, por seu caráter, que a coletividade promova,<br />

pela revolução, como “arma de última hora”, a mudança da ordem<br />

inadequada ou intolerável. (MARINHO, 1953, p. 76)<br />

Podem<strong>os</strong> concluir que, embora J<strong>os</strong>aphat Marinho utilize <strong>um</strong>a arg<strong>um</strong>entação liberal-<br />

contratualista em seu <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> a resistência, acrescenta outr<strong>os</strong> componentes em sua obra.<br />

O jurista trabalha com o conceito de classe social e adverte para a existência de <strong>um</strong>a<br />

parcialidade do Estado em favor da classe economicamente dominante.<br />

Partindo da noção de que necessitam<strong>os</strong> de <strong>um</strong>a autoridade que estabeleça limites às<br />

liberdades individuais, tendo em vista que a liberdade absoluta inviabilizaria a convivência<br />

h<strong>um</strong>ana, Goffredo Telles Junior (1955, p. 22) defende que “não é a autoridade que gera a<br />

obediência, mas, antes, a obediência (resultante da convicção de que ela é necessária) é que<br />

condiciona a autoridade”.<br />

Neste sentido, Telles Junior compreende que<br />

[...] <strong>os</strong> limites imp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> à autoridade d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong> decorrem da própria<br />

natureza das coisas. Um governo não é <strong>um</strong>a fantasia. Os homens não se<br />

submetem a <strong>um</strong>a autoridade objetiva por <strong>um</strong> mero capricho de<br />

sujeição. A existência de <strong>um</strong> governo tira a sua razão de ser da necessidade<br />

de realizar <strong>um</strong>a determinada idéia e, portanto, da necessidade de ser<br />

implantada <strong>um</strong>a ordem apropriada a essa realização. O fim a atingir fixa <strong>os</strong><br />

limites do poder d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong>, desde o primeiro momento em que, por <strong>um</strong><br />

ato constitucional, o grupo é organizado. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (TELLES JUNIOR,<br />

1955, p. 24).<br />

46


Conforme fica claro na passagem acima, Telles Junior (1955, p. 22) também utiliza<br />

<strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento liberal-contratualista, enfatizando que “expresso ou tácito, o consentimento<br />

d<strong>os</strong> governad<strong>os</strong> é condição da verdadeira autoridade política”.<br />

Lourival Vilanova, embora aborde a idéia de revolução através da teoria kelseniana,<br />

também faz referência à Revolução Francesa e ao liberalismo para teorizar <strong>acerca</strong> do direito<br />

de resistência. Todavia, apesar de utilizar <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento contratualista para dissertar <strong>sobre</strong> o<br />

instituto, seu foco é a perspectiva democrática, inspirada em Rousseau. Dessa forma,<br />

Vilanova repudia a idéia de resistência.<br />

Inicialmente, o autor coloca o povo ou a nação como titular do “pretendido” direito<br />

subjetivo de Revolução. Para Vilanova, portanto, o direito de revolução somente se justifica a<br />

partir do sujeito.<br />

São duas questões a distinguir cuidad<strong>os</strong>amente: <strong>um</strong>a, a revolução como fato<br />

de p<strong>os</strong>sível qualificação jurídica, como fato jurídico; a outra, a revolução<br />

como direito. Como não se pode conceber como direito objetivo, pois que a<br />

revolução é antinormativa, é contra legem, entra no universo-do-direito tã<strong>os</strong>ó<br />

como fato ilícito, como antijuridicidade (politicamente valorada), tem<strong>os</strong><br />

que procurar a revolução no lado do sujeito que a tem com faculdade,<br />

ou seja, como direito subjetivo. O titular desse pretendido direito<br />

subjetivo é o povo ou a nação. [grifo n<strong>os</strong>so] (VILANOVA, 1976, p. 471).<br />

Logo em seguida, demonstrando que compreende a revolução como sinônimo de<br />

direito de resistência, faz referência à Revolução Francesa para esclarecer a passagem<br />

supracitada.<br />

A revolução francesa, sabe-se, incluiu o direito de resistência como <strong>um</strong> d<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> fundamentais de caráter político. A inclusão do direito de resistência<br />

ao poder que se desvirtua em prepotência tem caráter sociologicamente<br />

polêmico. É o direito de resistência à opressão monárquica, direito que<br />

assiste ao povo, se aquele desfizer o pacto constitucional (a Constituição<br />

de 91 foi <strong>um</strong> compromisso, <strong>um</strong>a distribuição de poder constituinte entre<br />

monarca e povo). [grifo n<strong>os</strong>so] (VILANOVA, 1976, p. 471).<br />

47


Podem<strong>os</strong> observar que Lourival Vilanova compreende o direito de resistência por<br />

meio da noção de desfazimento de <strong>um</strong> pacto anteriormente estabelecido entre o monarca e o<br />

povo. Trata-se, assim, de <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento contratualista.<br />

Contudo, como o autor enfatiza a idéia de monarquia constitucional parlamentar, vê<br />

certa incoerência na noção de direito de resistência.<br />

Mas, <strong>um</strong>a vez eliminado o monarca, ou limitado o monarca, politicamente<br />

enfraquecido, dentro de <strong>um</strong>a monarquia constitucional parlamentar, carece<br />

de função ideológica e de instr<strong>um</strong>ento de dep<strong>os</strong>ição de titular de poder o<br />

método da revolução. O direito subjetivo de revolução só tem cabimento na<br />

teoria de que a vontade do monarca é a lei, de que <strong>um</strong> órgão a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> se<br />

<strong>sobre</strong>põe, ou concentra todas as funções e onde o povo não sendo órgão<br />

(corpo participante da formação da vontade estatal) só lhe resta desinvestir<br />

<strong>os</strong> titulares das magistraturas supremas através da violência. Mas, onde a lei<br />

passa a ser a vontade do monarca e do povo (King in Parliament), <strong>um</strong> ato<br />

complexo, com participação de dois órgã<strong>os</strong>, <strong>um</strong> d<strong>os</strong> quais – o legislativo – é<br />

órgão representante de povo-órgão, onde a lei não é a vontade de <strong>um</strong> ou de<br />

alguns mas a expressão da vontade geral, carece de coerência incluir o<br />

direito de resistência. [...] Na monarquia parlamentar, soberano não é o<br />

monarca. O monarca representa politicamente a nação, como representa a<br />

nação o corpo legislativo. O povo-órgão que não se presenta, representa-se.<br />

Os titulares de governo (executivo e legislativo) tiram seus poderes da<br />

Constituição, que é expressão maior da vontade geral, a do constituinte.<br />

(VILANOVA, 1976, pp. 471-472).<br />

Dessa forma, Vilanova, assimilando teorias estrangeiras, em especial a teoria<br />

contratualista e o constitucionalismo, repudia a idéia de resistência, inspirando-se em<br />

Rousseau. 37<br />

37 Logo após falar <strong>sobre</strong> o Pacto Social, Rousseau disserta <strong>acerca</strong> do soberano. Aqui ele estabelece <strong>um</strong>a relação<br />

entre “corpo político” e “soberano”. Sendo assim, explica: “Desde o momento em que essa multidão se encontra<br />

assim reunida em <strong>um</strong> corpo, não se pode ofender <strong>um</strong> d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> sem atacar o corpo, nem, ainda men<strong>os</strong>,<br />

ofender o corpo sem que <strong>os</strong> membr<strong>os</strong> se ressintam”. (ROUSSEAU, Do contrato social, Livro Primeiro, Capítulo<br />

VII, § 4). Mais adiante, ele reforça essa idéia de <strong>um</strong>a “soberania coletiva”. Em capitulo no qual analisa a<br />

inalienabilidade da soberania, afirma que “a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais<br />

pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão <strong>um</strong> ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. O<br />

poder pode transmitir-se; não, porém, a vontade”. (ROUSSEAU, Do contrato social, Livro Segundo, Capítulo I,<br />

§ 2). A diferença entre <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> de “vontade geral” e “vontade de tod<strong>os</strong>” é explicada pelo filósofo no<br />

momento em que ele aborda a questão <strong>acerca</strong> de “se pode errar a vontade geral”: “Conclui-se do precedente que<br />

a vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidade pública; donde não se segue, contudo, que as<br />

deliberações do povo tenham sempre a mesma exatidão. Deseja-se sempre o próprio bem, mas nem sempre se<br />

sabe onde ele está. Jamais se corrompe o povo, mas freqüentemente o enganam e só então é que ele parece<br />

desejar o que é mau. Há com<strong>um</strong>ente muita diferença entre a vontade de tod<strong>os</strong> e a vontade geral. Esta se<br />

prende somente ao interesse com<strong>um</strong>; a outra, ao interesse privado e não passa de <strong>um</strong>a soma das vontades<br />

particulares. Quando se retiram, porém, dessas mesmas vontades, <strong>os</strong> a-mais e <strong>os</strong> a-men<strong>os</strong> que nela se destroem<br />

mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral”. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (ROUSSEAU, Do contrato<br />

48


Assim sendo, ir o povo, através da revolução, contra a vontade geral,<br />

importa em ir contra si mesmo. A teoria democrática, coerentemente levada<br />

às suas maiores conseqüências, importa na eliminação do direito de<br />

revolução, como direito subjetivo incluído no interior do ordenamento<br />

jurídico. Na teoria liberal tem acolhida o direito de revolução. Pois, para o<br />

liberalismo não importa quem é titular de poder. Importa, sim, a definição<br />

d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> individuais e suas garantias. O liberalismo é individualismo<br />

político. Por isso, a teoria de Rousseau, que era democrática e nãoliberal,<br />

recusa o direito de revolução. [...] O liberalismo é compatível com<br />

<strong>um</strong> despotismo ilustrado, ou com <strong>um</strong> monarca que se autolimita, respeitando<br />

<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> individuais. O poder constituinte pode ficar com o monarca (as<br />

Constituições são at<strong>os</strong> de outorga). Na democracia, o poder constituinte tem<br />

como titular o povo ou a nação. Quem está no poder está em seu nome,<br />

como sujeito investido pelo delegante em porções de competência, definidas<br />

pela vontade geral de maior nível que é a Constituição formal.<br />

Juridicamente, o povo autolimita-se através da Constituição e das leis. A<br />

revolução fará retrocedê-lo ao estado-de-natureza, onde tudo pode; no<br />

estado-de-sociedade, politicamente organizada, há a renúncia à<br />

violência. O desmando é substituído pel<strong>os</strong> mecanism<strong>os</strong> de controle do<br />

poder: supremacia da constituição, controle da constitucionalidade das<br />

leis e at<strong>os</strong> de poder, divisão de poderes e técnicas de recíproc<strong>os</strong><br />

controles. Fundamentalmente, pela participação do povo n<strong>os</strong> órgã<strong>os</strong>-dopoder.<br />

[grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (VILANOVA, 1976, pp. 472-473).<br />

A obra publicada por Arthur Machado Paupério, intitulada O Direito Político de<br />

Resistência – p<strong>os</strong>teriormente reeditada e atualizada com o título Teoria Democrática da<br />

Resistência, de conteúdo praticamente idêntico ao do livro anterior –, consiste em <strong>um</strong>a<br />

social, Livro Segundo, Capítulo III, §§ 1-2). A partir das noções de “soberania” e de “vontade geral” de<br />

Rousseau, podem<strong>os</strong> compreender sua recusa a qualquer tipo de desobediência: “A fim de que o pacto social não<br />

represente, pois, <strong>um</strong> formulário vão, compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar<br />

força a<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo <strong>um</strong><br />

corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão<br />

à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a<br />

máquina política, e é a única a legitimar <strong>os</strong> compromiss<strong>os</strong> civis, <strong>os</strong> quais, sem isso, se tornariam absurd<strong>os</strong>,<br />

tirânic<strong>os</strong> e sujeit<strong>os</strong> a<strong>os</strong> maiores abus<strong>os</strong>.” [grifo n<strong>os</strong>so] (ROUSSEAU, Do contrato social, Livro Primeiro,<br />

Capítulo VII, § 8). Sobre <strong>os</strong> “limites do poder soberano” Rousseau defende que, “assim como a natureza dá a<br />

cada homem poder absoluto <strong>sobre</strong> tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> seus membr<strong>os</strong>, o pacto social dá ao corpo político <strong>um</strong> poder absoluto<br />

<strong>sobre</strong> tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha [...] o nome de soberania”.<br />

Todavia, admite que o soberano “não pode onerar <strong>os</strong> súdit<strong>os</strong> com qualquer pena inútil à comunidade”, que<br />

“jamais tem o direito de onerar mais a <strong>um</strong> cidadão do que a outro” e que tal poder, “por mais absoluto, sagrado e<br />

inviolável que seja, não passa nem pode passar d<strong>os</strong> limites das convenções gerais”. (ROUSSEAU, Do contrato<br />

social, Livro Segundo, Capítulo IV, §§ 1, 4 e 9). Sobre o “direito de vida e de morte” do soberano em relação<br />

a<strong>os</strong> particulares, Rousseau afirma: “O tratado social tem como fim a conservação d<strong>os</strong> contratantes. Quem deseja<br />

<strong>os</strong> fins, também deseja <strong>os</strong> mei<strong>os</strong>, e tais mei<strong>os</strong> são inseparáveis de alguns risc<strong>os</strong> e, até, de alg<strong>um</strong>as perdas. Quem<br />

deseja conservar sua vida à custa d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, também deve dá-la por eles quando necessário. Ora, o cidadão não<br />

é mais juiz do perigo ao qual a lei quer que se exponha e, quando o príncipe lhe diz: “É útil ao Estado que<br />

morras”, deve morrer, pois foi exatamente por essa condição que até então viveu em segurança e que sua vida<br />

não é mais mera dádiva da natureza, porém <strong>um</strong> dom condicional do Estado.” (ROUSSEAU, Do contrato social,<br />

Livro Segundo, Capítulo V, § 2)<br />

49


espécie de manual <strong>acerca</strong> do tema da resistência. Sendo assim, o autor aborda divers<strong>os</strong><br />

aspect<strong>os</strong> – histórico e teológico, por exemplo – e se vale de diversas teorias – cristã,<br />

protestante, São Tomás de Aquino, John Locke, Mariana e inúmer<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> teóric<strong>os</strong> – para<br />

explicar o direito de resistência. Portanto, fica difícil indicar <strong>um</strong>a teoria específica seguida<br />

pelo autor. Em todo caso, podem<strong>os</strong> apontar alg<strong>um</strong>as idéias defendidas por Paupério.<br />

Conforme vim<strong>os</strong>, o autor aborda o direito de resistência sob <strong>um</strong> tríplice aspecto:<br />

“op<strong>os</strong>ição às leis injustas”, “resistência à opressão” e “revolução”. De acordo com Paupério<br />

(1997, p. 1), “pela resistência à opressão, concretiza-se a revolta contra a violação pel<strong>os</strong><br />

governantes da idéia de direito de que precede o Poder cujas prerrogativas exerce.”<br />

[grifo n<strong>os</strong>so].<br />

Paupério (1997, p. 3) explica, mais adiante, que, dentre as três modalidades de “recusa<br />

da obediência d<strong>os</strong> governad<strong>os</strong>” mencionadas, irá ter como foco, especialmente, a segunda,<br />

qual seja, resistência à opressão, considerada pelo autor “capítulo d<strong>os</strong> mais importantes dentro<br />

da Ciência Política”. Em seguida, explica tal modalidade a partir de arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> tipicamente<br />

contratualistas. Segundo o autor,<br />

Apesar de individual em seu fundamento, a resistência à opressão é<br />

tipicamente coletiva por seu exercício. Desde que <strong>um</strong>a parte pelo men<strong>os</strong> do<br />

povo não tenha <strong>um</strong> determinado governo por opressor, não há falar-se em<br />

opressão, no sentido político do termo. Contudo, a opressão não se conceitua<br />

in abstracto, mas sempre em correlação com <strong>um</strong>a idéia de direito. Implica,<br />

por isso, em julgament<strong>os</strong> individuais, necessári<strong>os</strong>, em sua origem, para<br />

motivar a resistência. O cidadão que resiste à autoridade não é sempre <strong>um</strong><br />

mero rebelde. Tem muitas vezes o sentido mais elevado da ordem. Não<br />

desobedece por desobedecer. Desobedece para alcançar o respeito e a<br />

harmonia da ordem que julga violada. Se, de fato, de acordo com a<br />

fórmula clássica, “<strong>os</strong> reis são feit<strong>os</strong> para <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> e não <strong>os</strong> pov<strong>os</strong> para <strong>os</strong><br />

reis”, há de tornar-se legítima a resistência contra o abuso e o arbítrio<br />

d<strong>os</strong> governantes quando estes desrespeitarem a ordem jurídica que se<br />

tornou o fundamento da própria vida coletiva. O ato do que resiste à<br />

opressão é, por isso mesmo, <strong>sobre</strong>tudo, <strong>um</strong> ato de julgamento. De<br />

julgamento que <strong>os</strong> cidadã<strong>os</strong> fazem d<strong>os</strong> governantes. Aliás, o valor da<br />

admissibilidade da resistência não está tanto na prerrogativa que <strong>os</strong><br />

governad<strong>os</strong> podem invocar para desobedecer quanto, <strong>sobre</strong>tudo, como<br />

diz Burdeau, no julgamento que estão autorizad<strong>os</strong> a fazer com relação<br />

a<strong>os</strong> governantes. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (PAUPÉRIO, 1997, pp. 4 e 5).<br />

50


A idéia de <strong>um</strong> “fundamento individual” do direito de resistência indica, ainda, a<br />

consciência, por parte do autor, de que está lidando com <strong>um</strong> direito individual. E, conforme<br />

vim<strong>os</strong>, a noção de direit<strong>os</strong> individuais relaciona-se com <strong>um</strong>a perspectiva liberal. Contudo, em<br />

<strong>um</strong> momento p<strong>os</strong>terior, Paupério deixa bastante claro seu p<strong>os</strong>icionamento em relação ao<br />

direito de resistência.<br />

Supondo a existência de <strong>um</strong> largo domínio reservado em benefício do<br />

indivíduo, a resistência à opressão aparece-n<strong>os</strong> com feição<br />

marcantemente liberal, razão pela qual atingiu seu clímax no momento<br />

exato da ecl<strong>os</strong>ão das chamadas revoluções do liberalismo. Mas a resistência<br />

à opressão é muito mais <strong>um</strong>a proteção da ordem do que <strong>um</strong>a garantia da<br />

liberdade. [grifo n<strong>os</strong>so] (PAUPÉRIO, 1997, p. 6)<br />

Podem<strong>os</strong> observar que <strong>os</strong> autores brasileir<strong>os</strong>, em sua maioria, trabalham com a questão<br />

da resistência sob <strong>um</strong>a perspectiva liberal-contratualista. Em primeiro lugar, c<strong>os</strong>t<strong>um</strong>am<br />

caracterizar o referido direito como <strong>um</strong> direito natural, anterior ao direito p<strong>os</strong>itivado pelo<br />

Estado. 38 Ademais, partem da idéia de que a resistência é cabível no caso de desc<strong>um</strong>primento<br />

do “contrato” firmado entre <strong>os</strong> indivídu<strong>os</strong> e o poder político. 39<br />

Entendem<strong>os</strong> que <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> mais aprofundado <strong>sobre</strong> o tema deveria englobar a<br />

recepção das idéias liberais no Brasil. Dessa forma, caberia aqui <strong>um</strong>a abordagem da influência<br />

de Portugal como “exportador” privilegiado de idéias liberais para o Brasil, tendo em vista a<br />

n<strong>os</strong>sa condição de Colônia, bem como <strong>um</strong>a análise das diversas “Revoluções Liberais”<br />

ocorridas no País no final do século XVIII e no século XIX.<br />

38 Neste sentido, Murilo de Barr<strong>os</strong> Guimarães, Lourival Vilanova, Arthur Machado Paupério. Vilanova, embora<br />

fale de <strong>um</strong> “fato jurídico” ou “direito subjetivo”, enfatiza que a revolução se coloca “antes do ordenamento” e<br />

que se trata de <strong>um</strong>a faculdade do sujeito.<br />

39 Neste sentido, Hermes Lima, Baptista de Mello, Murilo de Barr<strong>os</strong> Guimarães, J<strong>os</strong>aphat Marinho, Goffredo<br />

Telles Junior, Arthur Machado Paupério e Lourival Vilanova. Este último, contudo, parte de <strong>um</strong>a perspectiva<br />

democrática, inspirado em Rousseau, e não em Locke. Ou seja, não admite a resistência, tendo em vista que ela<br />

seria contra a “vontade geral”.<br />

51


Mais importante ainda seria <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> como conceit<strong>os</strong> liberais, elaborad<strong>os</strong> em<br />

(e para) sociedades liberais, foram recepcionad<strong>os</strong> em <strong>um</strong>a sociedade escravocrata como a<br />

n<strong>os</strong>sa, o que proporcionaria <strong>um</strong>a compreensão de como se deu o processo de ajuste de idéias a<br />

interesses específic<strong>os</strong>. Dessa forma, <strong>um</strong>a discussão <strong>acerca</strong> da coexistência “pacífica”, no<br />

Brasil, entre liberalismo e escravidão contribuiria imensamente para o n<strong>os</strong>so trabalho.<br />

Ressalte-se, ainda, a necessidade de <strong>um</strong>a análise <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> divers<strong>os</strong> sentid<strong>os</strong> que o termo<br />

liberal foi adquirindo no decorrer do processo de sua incorporação ao ideário nacional.<br />

Não obstante a relevância d<strong>os</strong> temas acima mencionad<strong>os</strong>, não n<strong>os</strong> aprofundarem<strong>os</strong> no<br />

<strong>estudo</strong> d<strong>os</strong> mesm<strong>os</strong>, tendo em vista que este não constitui o n<strong>os</strong>so objetivo principal na<br />

presente pesquisa.<br />

A partir do <strong>estudo</strong> d<strong>os</strong> juristas brasileir<strong>os</strong> que trabalharam com o direito de resistência<br />

no século XX e, mais especificamente, no período anterior ao da convocação da Assembléia<br />

Nacional Constituinte de 1987/1988, foi p<strong>os</strong>sível observarm<strong>os</strong> a perspectiva liberal-<br />

contratualista ass<strong>um</strong>ida por eles.<br />

Percebem<strong>os</strong> que tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> juristas analisad<strong>os</strong> adotam idéias estrangeiras para justificar<br />

<strong>os</strong> seus arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>. E aqui não n<strong>os</strong> referim<strong>os</strong> apenas à utilização de teóric<strong>os</strong> europeus e<br />

norte-american<strong>os</strong> nas obras estudadas, mas também à menção a fat<strong>os</strong> históric<strong>os</strong> totalmente<br />

estranh<strong>os</strong> à cultura do n<strong>os</strong>so País. Em momento alg<strong>um</strong> – salvo alg<strong>um</strong>as citações de artig<strong>os</strong> em<br />

vigor na legislação brasileira no momento de elaboração do <strong>estudo</strong> – existe <strong>um</strong>a preocupação<br />

com a realidade social, econômica e política nacional.<br />

Enfim, podem<strong>os</strong> concluir pela existência de <strong>um</strong> “direito de resistência liberal” na<br />

dogmática jurídica brasileira pré-Constituinte. No próximo capítulo estudarem<strong>os</strong> <strong>os</strong> <strong>debates</strong><br />

<strong>sobre</strong> o direito de resistência ocorrid<strong>os</strong> na Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988,<br />

procurando verificar quais foram <strong>os</strong> arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> na defesa ou rejeição do referido<br />

direito.<br />

52


PARTE II: DIREITO DE RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO NORMATIVA<br />

2. INSTALAÇÃO E FUNCIONAMENTO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONS-<br />

TITUINTE DE 1987/1988 40<br />

As tentativas de mobilização popular em torno da<br />

Constituinte têm resultado, por enquanto, em<br />

fracass<strong>os</strong>. Claro que o tema é, teoricamente,<br />

reservado a especialistas, a bibliografia é chata e o<br />

processo político tem tratado de conservar esse tema<br />

como <strong>um</strong>a problemática de especialistas. [...] Nas<br />

diversas tentativas de mobilização popular, talvez a<br />

pergunta mais significativa tenha sido a de <strong>um</strong>a<br />

40 Não pretendem<strong>os</strong> aqui esgotar o tema <strong>acerca</strong> da instalação, funcionamento e conclusão d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da<br />

Assembléia Nacional Constituinte. Irem<strong>os</strong> apenas traçar <strong>um</strong> panorama geral <strong>sobre</strong> o assunto, bem como apontar<br />

<strong>os</strong> principais impasses surgid<strong>os</strong> na Constituinte e no período pré-Constituinte. O texto abaixo foi produzido<br />

através da consulta à seguinte bibliografia: BARROSO, Magdaleno Girão. O Brasil Constituinte e a<br />

Constituição de 1988: <strong>um</strong> depoimento ao vivo para a História. Brasília: S.N., 1993. BARROSO, Pérsio<br />

Henrique. Constituinte e Constituição: Participação popular e eficácia Constitucional (1987-1997).<br />

Florianópolis: UFSC, 1997. (Dissertação de Mestrado). COELHO, João Gilberto Lucas. OLIVEIRA, Antonio<br />

Carl<strong>os</strong> Nantes de. A nova Constituição: avaliação do texto e perfil d<strong>os</strong> constituintes. Rio de Janeiro: Revan,<br />

1989. COELHO, João Gilberto Lucas. “O Processo Constituinte”. In: GURAN, Milton (Coordenação Editorial).<br />

O Processo Constituinte: 1987-1988: doc<strong>um</strong>entação fotográfica a nova constituição. Brasília: AGIL-UnB,<br />

1988, pp. 41-60. GURAN, Milton (Coordenação Editorial). O Processo Constituinte: 1987-1988:<br />

doc<strong>um</strong>entação fotográfica a nova constituição. Brasília: AGIL-UnB, 1988. SALGADO, Eneida Desiree. Tijolo<br />

por tijolo em <strong>um</strong> desenho (quase) lógico: vinte an<strong>os</strong> de construção do projeto democrático brasileiro. Curitiba:<br />

UFPR, 2005. (Dissertação de Mestrado). SILVA, Marcelo C<strong>os</strong>ta da. O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores na<br />

Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988: <strong>um</strong> perfil sociológico e biográfico de seus parlamentares.<br />

Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2000. (Dissertação de Mestrado). Além dessas obras, outras também foram<br />

utilizadas. Contudo, como farem<strong>os</strong> referência a elas e darem<strong>os</strong> a indicação bibliográfica no decorrer do texto,<br />

optam<strong>os</strong> por não incluí-las neste rol inicial.<br />

53


senhora de <strong>um</strong> bairro da periferia, <strong>um</strong>a dona-de-<br />

casa, que perguntou se, interessando-se pela<br />

Constituinte, isso pudesse representar a diminuição<br />

do preço do feijão.<br />

(Emir Sader)<br />

<strong>Farem<strong>os</strong></strong>, nesta segunda parte, <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>acerca</strong> do direito de<br />

resistência ocorrid<strong>os</strong> na Assembléia Nacional Constituinte 1987/1988. N<strong>os</strong>so maior objetivo –<br />

conforme já foi explicitado – consiste em fazer <strong>um</strong>a análise d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> n<strong>os</strong> quais o referido<br />

direito é mencionado, tendo como base doc<strong>um</strong>ental <strong>os</strong> Diári<strong>os</strong> da Assembléia Nacional<br />

Constituinte. Antes disso, porém, irem<strong>os</strong> traçar o perfil biográfico daqueles que emitiram <strong>os</strong><br />

discurs<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o tema.<br />

Sem pretenderm<strong>os</strong> esgotar o assunto, irem<strong>os</strong>, inicialmente, fazer <strong>um</strong>a narrativa <strong>acerca</strong><br />

da instalação e funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte. Procurarem<strong>os</strong> abordar <strong>os</strong><br />

principais impasses e questões que surgiram no período pré-Constituinte, bem como durante o<br />

funcionamento da ANC. Acreditam<strong>os</strong> que este <strong>estudo</strong> preliminar é relevante não apenas para<br />

c<strong>um</strong>prirm<strong>os</strong> <strong>um</strong>a “formalidade” necessária em n<strong>os</strong>sa pesquisa, mas também porque <strong>os</strong> dad<strong>os</strong><br />

que apresentarem<strong>os</strong> adiante são de fundamental importância para conhecerm<strong>os</strong> o contexto no<br />

qual a Assembléia se instalou e funcionou. Tais informações serão, em seguida,<br />

correlacionadas com as biografias d<strong>os</strong> emissores do discurso e com as falas proferidas por<br />

eles.<br />

No final da década de 70, e ainda sob o regime militar, a questão da Constituinte já<br />

aparecia como tema de discussão, mobilizando divers<strong>os</strong> setores organizad<strong>os</strong> da sociedade<br />

civil. A Ordem d<strong>os</strong> Advogad<strong>os</strong> do Brasil (OAB), em abril de 1977 – ano em que foi baixado o<br />

“Pacote de Abril” – defendeu publicamente a convocação de <strong>um</strong>a Constituinte como única<br />

54


forma de restaurar as instituições democráticas. Em julho do mesmo ano, na XXIX Reunião<br />

Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Constituinte também<br />

apareceu na pauta de <strong>debates</strong>.<br />

Em 8 de ag<strong>os</strong>to de 1977, foi lida pelo jurista Goffredo Telles Junior, no pátio das<br />

Arcadas, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a “Carta a<strong>os</strong> Brasileir<strong>os</strong>”,<br />

doc<strong>um</strong>ento subscrito por divers<strong>os</strong> juristas do País, no qual se defendia <strong>um</strong> retorno ao estado<br />

de direito e a convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte. 41<br />

Em seguida, o MDB – em convenção extraordinária – adotaria a idéia de convocação<br />

de <strong>um</strong>a Constituinte como <strong>um</strong>a de suas principais bandeiras de luta. Em 1978, por ocasião do<br />

lançamento de sua candidatura à sucessão de Ernesto Geisel, o general Euler Bentes ass<strong>um</strong>iu<br />

o compromisso de convocar <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte até dois an<strong>os</strong> após sua<br />

p<strong>os</strong>se. Em março de 1979, o general João Baptista Figueiredo ass<strong>um</strong>iu a presidência,<br />

proclamando a intenção de “fazer deste País <strong>um</strong>a democracia”.<br />

Pode-se perceber, portanto, que, durante a década de 70, alg<strong>um</strong>as manifestações<br />

isoladas foram, a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong>, colocando a questão da Constituinte no cenário político nacional,<br />

41 Alguns trech<strong>os</strong> da “Carta a<strong>os</strong> Brasileir<strong>os</strong>”: “Das Arcadas do Largo de São Francisco, do ‘Território Livre’ da<br />

Academia de Direito de São Paulo, dirigim<strong>os</strong>, a tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong> esta Mensagem de Aniversário, que é a<br />

Proclamação de Princípi<strong>os</strong> de n<strong>os</strong>sas convicções políticas. C<strong>os</strong>t<strong>um</strong>a-se dizer que a Constituição é obra do<br />

Poder. Sim, a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que<br />

o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente. [...] Em conseqüência, sustentam<strong>os</strong> que somente o<br />

Povo, por meio de seus Representantes, reunid<strong>os</strong> em Assembléia Nacional Constituinte, ou por meio de <strong>um</strong>a<br />

Revolução vitori<strong>os</strong>a, tem competência para elaborar a Constituição; que somente o Povo tem competência para<br />

substituir a Constituição vigente por outra, n<strong>os</strong> cas<strong>os</strong> em que isto se faz necessário. [...] Não n<strong>os</strong> podem<strong>os</strong> furtar<br />

ao dever de advertir que o exercício do Poder Constituinte, por autoridade que não seja o Povo, configura, em<br />

qualquer Estado democrático, a prática de usurpação de poder político. [...] Proclamam<strong>os</strong> que o Estado legítimo<br />

é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional. [...] Não n<strong>os</strong> deixarem<strong>os</strong> seduzir<br />

pelo canto das sereias de quaisquer Estad<strong>os</strong> de Fato, que apregoam a necessidade de Segurança e<br />

Desenvolvimento, com o objetivo de conferir legitimidade a seus at<strong>os</strong> de Força, violadores freqüentes da Ordem<br />

Constitucional. [...] Afirmam<strong>os</strong> que o binômio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar<br />

<strong>um</strong>a Ditadura n<strong>um</strong>a Democracia, <strong>um</strong> Estado de Fato n<strong>um</strong> Estado de Direito. [...] Nenh<strong>um</strong> País deve esperar por<br />

seu desenvolvimento econômico, para depois implantar o Estado de Direito. Advertim<strong>os</strong> que <strong>os</strong> Sistemas, n<strong>os</strong><br />

Estad<strong>os</strong> de Fato, ficarão permanentemente à espera de <strong>um</strong> maior desenvolvimento econômico, para nunca<br />

implantar o Estado de Direito. Proclamam<strong>os</strong> que o Estado de Direito é sempre primeiro, porque primeiro estão<br />

<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> e a segurança da pessoa h<strong>um</strong>ana. Nenh<strong>um</strong>a idéia de Segurança Nacional e de Desenvolvimento<br />

Econômico prepondera <strong>sobre</strong> a idéia de que o Estado existe para servir o homem.”. [grif<strong>os</strong> no original]. O<br />

texto integral do doc<strong>um</strong>ento se encontra disponível em:<br />

http://www.goffredotellesjr.adv.br/principal.aspx?tipo=2&Titulo=carta&id=5<br />

55


no ritmo lento e gradual da abertura. 42 Com a reforma partidária de 1979, o tema passou a<br />

constar da pauta de alguns d<strong>os</strong> nov<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais.<br />

Contudo, a questão da convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte somente<br />

tomou força a partir da campanha pelas eleições diretas para Presidente da República em<br />

1984, tendo em vista a intensa mobilização popular ocorrida no País neste período. Apesar da<br />

frustração causada pela derrota da emenda do Deputado Dante de Oliveira – rejeitada em 25<br />

de abril de 1984 –, que instituía eleições diretas a partir de 1984, a campanha foi considerada<br />

<strong>um</strong> importante passo no processo de construção da cidadania brasileira. A idéia da<br />

Constituinte, portanto, voltaria à agenda política em 1984, após a derrota da “Emenda das<br />

Diretas” na Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>. O ano de 1984 foi significativo no que tange ao desejo<br />

d<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong> pela restauração do poder civil.<br />

Em princípio, pretendia-se, com a luta pela Constituinte, manter a mobilização popular<br />

decorrente das “Diretas Já”. Com a cisão provocada no partido governista pela candidatura de<br />

Paulo Maluf, o tema foi incorporado ao acordo entre o PMDB e <strong>os</strong> dissidentes do PDS,<br />

reunid<strong>os</strong> na chamada Frente Liberal. Em 7 de ag<strong>os</strong>to de 1984, foi lançado o manifesto<br />

“Compromisso com a Nação”, base da Aliança Democrática, que sustentaria as candidaturas<br />

de Tancredo Neves e J<strong>os</strong>é Sarney à sucessão presidencial. Em <strong>um</strong> d<strong>os</strong> disp<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong> do<br />

manifesto, havia o compromisso de convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte<br />

livre e soberana.<br />

Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves, após sua eleição para Presidente da<br />

República pelo Colégio Eleitoral 43 , proferiu discurso no qual enfatizou a necessidade de<br />

42 Vale ressaltar que, em 1971, a “Carta do Recife” – doc<strong>um</strong>ento que custou a renúncia do prefeito Marc<strong>os</strong> Freire<br />

– já havia levantado a bandeira da Assembléia Nacional Constituinte. Em 1981, a Ordem d<strong>os</strong> Advogad<strong>os</strong> do<br />

Brasil, no Congresso Pontes de Miranda, realizado em Porto Alegre, ass<strong>um</strong>iu como luta a convocação de <strong>um</strong><br />

poder constituinte.<br />

43 N<strong>os</strong> term<strong>os</strong> d<strong>os</strong> artig<strong>os</strong> 74 e 75 da Carta Constitucional de 1967/1969, o processo eletivo deveria efetuar-se por<br />

meio do Colégio Eleitoral, constituído d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> do Congresso e de delegad<strong>os</strong> das Assembléias Legislativas<br />

d<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong>, indicad<strong>os</strong> estes, em número de seis para cada Legislativo estadual, pela bancada do respectivo<br />

Partido majoritário. Seriam considerad<strong>os</strong> eleit<strong>os</strong> o candidato e seu vice que obtivessem, mediante votação<br />

nominal, a maioria d<strong>os</strong> vot<strong>os</strong> daquele colegiado. Na falta dessa maioria, repetid<strong>os</strong> <strong>os</strong> escrutíni<strong>os</strong>, admitir-se-ia<br />

que no terceiro se considerassem eleit<strong>os</strong> o titular e o vice que pelo men<strong>os</strong> obtivessem a maioria simples. No dia<br />

56


convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte. Inicialmente, ressaltou a importância<br />

da discussão <strong>acerca</strong> d<strong>os</strong> problemas nacionais, colocando a questão n<strong>os</strong> seguintes term<strong>os</strong>:<br />

“Deveis, n<strong>os</strong> próxim<strong>os</strong> meses, discutir, em tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> auditóri<strong>os</strong>, na imprensa e nas ruas, n<strong>os</strong><br />

partid<strong>os</strong> e n<strong>os</strong> parlament<strong>os</strong>, nas universidades e n<strong>os</strong> sindicat<strong>os</strong>, <strong>os</strong> grandes problemas<br />

nacionais e <strong>os</strong> legítim<strong>os</strong> interesses de cada grupo social”. E acrescentou, em seguida: “É nessa<br />

discussão ampla que ireis identificar <strong>os</strong> v<strong>os</strong>s<strong>os</strong> delegad<strong>os</strong> ao poder constituinte e lhes atribuir<br />

o mandato de redigir a lei fundamental do país” (Cf. NEUMANN & DALPIAZ, 1986, p. 17).<br />

A idéia original de <strong>um</strong>a nova constituição não é propriamente de Tancredo.<br />

O movimento por <strong>um</strong>a constituinte para elaborar <strong>um</strong>a nova constituição já<br />

estava na imprensa, nas ruas e na praça pública, há muito tempo. A Ordem<br />

d<strong>os</strong> Advogad<strong>os</strong> do Brasil, sindicat<strong>os</strong>, associações de profissionais liberais,<br />

moviment<strong>os</strong> sociais rurais, urban<strong>os</strong>, a igreja, etc. estavam publicamente<br />

iniciando <strong>um</strong>a campanha pró-constituinte. Havia consciência de que sem<br />

<strong>um</strong>a mudança da constituição, o Brasil jamais alcançaria a chamada<br />

“plenitude democrática”. (NEUMANN & DALPIAZ, 1986, p. 17).<br />

O discurso proferido por Tancredo Neves na Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>, após sua vitória<br />

no Colégio Eleitoral, convocava todo o País ao debate constitucional. A<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> ia se<br />

estabelecendo a agenda institucional da transição que previa a “remoção do entulho<br />

autoritário”, a ampliação do debate constitucional na sociedade e a convocação de <strong>um</strong>a<br />

Assembléia Nacional Constituinte.<br />

Conforme vim<strong>os</strong>, no âmbito da sociedade civil, a luta por <strong>um</strong>a Constituinte livre e<br />

soberana foi impulsionada pela mobilização decorrente do movimento das “Diretas Já”.<br />

Diversas experiências ocorreram no País, culminando na organização, em setembro de 1985,<br />

do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte, que, p<strong>os</strong>teriormente, participou de<br />

forma ativa d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte.<br />

15 de janeiro de 1985, no plenário da Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>, na presença de 686 membr<strong>os</strong>, foram eleit<strong>os</strong><br />

Tancredo Neves, para Presidente da República, e J<strong>os</strong>é Sarney, para vice-presidência. A vitória foi conquistada<br />

em primeiro escrutínio, pela maioria absoluta de 480 vot<strong>os</strong>, contra 180 conferid<strong>os</strong> ao adversário Paulo Maluf e<br />

26 abstenções.<br />

57


Em nível governamental, Tancredo Neves, acolhendo sugestão do jurista Afonso<br />

Arin<strong>os</strong> de Melo Franco, havia decidido criar <strong>um</strong>a Comissão Constitucional, integrada por<br />

element<strong>os</strong> representativ<strong>os</strong> d<strong>os</strong> mais divers<strong>os</strong> segment<strong>os</strong> da sociedade brasileira. A Comissão<br />

teria a finalidade de elaborar, em nome do Executivo, <strong>um</strong> anteprojeto da futura Constituição,<br />

que servisse de subsídio para <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> d<strong>os</strong> constituintes.<br />

O presidente eleito Tancredo Neves foi h<strong>os</strong>pitalizado em 14 de março de 1985,<br />

véspera de sua p<strong>os</strong>se. Em virtude disso, tomou p<strong>os</strong>se, em seu lugar, o vice-presidente J<strong>os</strong>é<br />

Sarney. Com o falecimento de Tancredo, em 21 de abril, o c<strong>um</strong>primento da política de<br />

redemocratização e da agenda de transição ficou a cargo de Sarney, que logo c<strong>um</strong>priria a<br />

missão principal ass<strong>um</strong>ida pela Aliança Democrática, qual seja, a convocação de <strong>um</strong>a<br />

Assembléia Nacional Constituinte.<br />

Em 18 de julho de 1985, por meio do Decreto nº 91.450, Sarney instituiu a Comissão<br />

Provisória de Estud<strong>os</strong> Constitucionais (CPEC), que ficou conhecida como Comissão Afonso<br />

Arin<strong>os</strong>. Esta foi formada por 50 cidadã<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong>, tendo à frente o jurista Afonso Arin<strong>os</strong> de<br />

Melo Franco, que presidiu <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>. 44 O anteprojeto da Comissão foi concluído em 18 de<br />

setembro de 1986. Contudo, ele não foi enviado ao Congresso para servir de embasamento à<br />

Constituinte, como se supunha, mas apenas ao Ministério da Justiça.<br />

44 Integravam-na, além de seu presidente, Alberto Venâncio Filho, Antônio Ermírio de Moraes, Barb<strong>os</strong>a Lima<br />

Sobrinho, Bolívar Lamounier, Cândido Antonio Mendes de Almeida, Celso Furtado, Cláudio Pacheco, Cláudio<br />

Penna Lacombe, Clóvis Ferro C<strong>os</strong>ta, Cristóvam Ricardo Cavalcanti Buarque, Edgar de Godoi da Mata-<br />

Machado, Eduardo Matt<strong>os</strong> Portella, Evaristo de Moraes Filho, Fajardo J<strong>os</strong>é Pereira Faria, Padre Fernando Bast<strong>os</strong><br />

de Ávila, Floriza Verucci, Gilberto de Ulhoa Canto, Gilberto Freyre, Reverendo Guilhermino Cunha, Hélio<br />

Jaguaribe, Hélio Sant<strong>os</strong>, Hilton Ribeiro da Rocha, João Pedro Gouvea Vieira, Joaquim de Arruda Falcão Neto,<br />

Jorge Amado, J<strong>os</strong>aphat Ram<strong>os</strong> Marinho, J<strong>os</strong>é Afonso da Silva, J<strong>os</strong>é Alberto de Ass<strong>um</strong>pção, J<strong>os</strong>é Francisco da<br />

Silva, J<strong>os</strong>é Meira, J<strong>os</strong>é Paulo Sepúlveda Pertence, J<strong>os</strong>é Saulo Ram<strong>os</strong>, Laerte Ram<strong>os</strong> Vieira, Luís Eulálio de<br />

Bueno Vidigal Filho, Luís Pinto Ferreira, Mário de Souza Martins, Mauro Santayana, Miguel Reale, Miguel<br />

Reale Júnior, Odilon Ribeiro Coutinho, Orlando M. de Carvalho, Paulo Br<strong>os</strong>sard de Souza Pinto, Raphael de<br />

Almeida Magalhães, Raul Machado Horta, R<strong>os</strong>ah Russomano, Sérgio Franklin Quintella e Walter Barelli.<br />

Merece destaque ainda a indicação de Fábio Konder Comparato, que não a aceitou, por se p<strong>os</strong>icionar<br />

contrariamente à constituinte congressual e a <strong>um</strong> projeto prévio de Constituição.<br />

58


A idéia de criar <strong>um</strong>a “Comissão de Notáveis” para elaborar <strong>um</strong> anteprojeto de<br />

Constituição era <strong>um</strong> assunto muito polêmico. Ela foi acolhida, como vim<strong>os</strong>, por Tancredo<br />

Neves, e levada adiante pelo Presidente J<strong>os</strong>é Sarney.<br />

As opiniões divergiam <strong>acerca</strong> da validade ou não desta comissão. Aqueles que eram<br />

favoráveis arg<strong>um</strong>entavam no sentido de que a elaboração de <strong>um</strong>a Constituição seria <strong>um</strong>a<br />

tarefa de muita responsabilidade e alta especialização, devendo, portanto, ser confiada a<br />

pessoas que teriam condições para isso. Ademais, afirmavam que a comissão não interferiria<br />

n<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Assembléia, tendo em vista que a sua função seria a de ouvir o povo e, a<br />

partir daí, dar <strong>um</strong> ordenamento às idéias. Arg<strong>um</strong>entavam, ainda, que o trabalho da comissão<br />

terminaria meses antes de ser instalada a Constituinte – não tendo, portanto, como influenciá-<br />

la – e que era tradição na história do constitucionalismo brasileiro o executivo apresentar <strong>um</strong><br />

anteprojeto. (NEUMANN & DALPIAZ, 1986, pp. 26-27).<br />

Aqueles que eram contra a idéia da Comissão de Notáveis arg<strong>um</strong>entavam que <strong>um</strong><br />

anteprojeto era a forma mais fácil de amarrar e condicionar <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Constituinte a <strong>um</strong><br />

certo modo de pensar. Enfatizavam, ainda, que, entre <strong>os</strong> “50 notáveis”, predominavam <strong>os</strong><br />

juristas e empresári<strong>os</strong>, com flagrante ausência d<strong>os</strong> trabalhadores de todas as categorias. Por<br />

fim, ressaltavam que as experiências de anteprojet<strong>os</strong> nas outras Constituições não lograram<br />

êxito. (NEUMANN & DALPIAZ, 1986, p. 27).<br />

As críticas feitas por João Baptista Herkenhoff à Comissão de Notáveis são ainda mais<br />

duras. Dissertando <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> “desvi<strong>os</strong> a evitar no processo constituinte”, o autor afirma:<br />

É preciso evitar que a futura Constituição seja <strong>um</strong> engodo, <strong>um</strong>a mistificação,<br />

mero acordo das cúpulas dominantes. É preciso impedir também que seja<br />

<strong>um</strong>a obra de especialistas, visto que a divisão entre especialistas e nãoespecialistas<br />

é a origem de toda política burocratizada. A Comissão<br />

Constitucional, criada pelo governo, comp<strong>os</strong>ta de “notáveis”, inverte o<br />

processo constituinte, que deve partir das bases. O processo constituinte<br />

não pode suprimir ou substituir as demais lutas populares, nem desviar <strong>os</strong><br />

trabalhadores e <strong>os</strong> segment<strong>os</strong> oprimid<strong>os</strong> da sociedade de seus mais imediat<strong>os</strong><br />

interesses. Só a conexão entre o processo constituinte e a luta d<strong>os</strong> oprimid<strong>os</strong><br />

59


pode vacinar a Constituição contra o vício de ser <strong>um</strong> conjunto de promessas<br />

vãs, <strong>um</strong> jogo de palavras ocas. As conquistas populares fazem-se na luta<br />

concreta do povo; não se fazem em doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> meramente formais. Elas se<br />

fazem nas ruas, n<strong>os</strong> sindicat<strong>os</strong>, nas organizações populares em geral, na<br />

ocupação social, por famílias carentes, de terras egoisticamente concentradas<br />

sem destinação útil, nas concentrações de lavradores sem terra, na luta d<strong>os</strong><br />

índi<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> negr<strong>os</strong> e das mulheres, nas comunidades eclesiais de base, onde o<br />

povo toma consciência de que o Reino de Deus deve começar neste mundo.<br />

A Constituinte será importante na medida em que se integre à luta concreta<br />

das grandes maiorias. [grifo n<strong>os</strong>so] (HERKENHOFF, 1986, pp. 51-52).<br />

A Comissão Provisória de Estud<strong>os</strong> Constitucionais, contudo, também tinha seus<br />

simpatizantes. Em Colóquio <strong>sobre</strong> a Constituinte, realizado na USP em maio de 1986, João<br />

Almino de Souza (1987, pp. 77-78) defendeu que a criação da Comissão apresentava<br />

vantagens <strong>sobre</strong> outras opções. Isso porque “ela reúne especialistas e profissionais de alto<br />

nível, intelectuais consistentes e séri<strong>os</strong> [...] que têm debatido abertamente as questões e têm<br />

estado atent<strong>os</strong> às sugestões da sociedade”. Por isso, <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da CPEC seriam “preferíveis<br />

à alternativa de se ter <strong>um</strong> projeto redigido a poucas mã<strong>os</strong> dentro do Executivo, para ser<br />

lançado, sem grande preparação e sem prévia discussão, diretamente à Assembléia”. Mas<br />

Souza reconhecia que, “por melhor que seja o projeto e ainda que não se pudessem reunir<br />

melhores nomes para compor a Comissão, n<strong>os</strong> defrontam<strong>os</strong>, contudo, com o problema de que<br />

não há representatividade sem eleição”.<br />

A Comissão Afonso Arin<strong>os</strong> foi alvo de críticas de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> lad<strong>os</strong>. Entretanto, durante o<br />

período em que funcionou, a Comissão realizou várias audiências públicas e recebeu<br />

sugestões de entidades e cidadã<strong>os</strong>. Seus resultad<strong>os</strong>, porém, surpreenderam tanto o governo –<br />

que esperava <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento final conservador, que mantivesse o status quo, mas revestido de<br />

legitimidade – como <strong>os</strong> seus crític<strong>os</strong>, por ter resultado – diversamente do que no início era<br />

esperado – n<strong>um</strong>a prop<strong>os</strong>ta de Constituição com pont<strong>os</strong> bastante avançad<strong>os</strong>.<br />

Muit<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> do anteprojeto desagradaram o Executivo, em especial o sistema de<br />

governo parlamentarista e a definição do mandato presidencial em quatro an<strong>os</strong>, razão pela<br />

qual o texto final sequer foi enviado, como sugestão, ao Congresso Nacional.<br />

60


Apesar de não ter funcionado como <strong>um</strong> anteprojeto oficial – que serviria de ponto de<br />

partida para o processo constituinte –, o doc<strong>um</strong>ento serviu para subsidiar as subcomissões e<br />

comissões temáticas, bem como para orientar autores de emendas, tendo influenciado o texto<br />

da Constituição em vári<strong>os</strong> pont<strong>os</strong>.<br />

O c<strong>um</strong>primento da agenda de transição no plano institucional compreendia a<br />

convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte. Conforme vim<strong>os</strong>, Tancredo Neves –<br />

candidato da Aliança Democrática – ass<strong>um</strong>iu o compromisso de convocar a Constituinte e,<br />

quando da sua eleição, declarou tal objetivo a toda nação. Contudo, esse compromisso foi<br />

efetivado por J<strong>os</strong>é Sarney, que enviou ao Congresso Nacional <strong>um</strong>a prop<strong>os</strong>ta de Emenda<br />

Constitucional no sentido de ser convocada <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte.<br />

Em 28 de junho de 1985, a Presidência da República enviou a Mensagem n° 330/1985<br />

ao Congresso Nacional – que então ass<strong>um</strong>iu o n° 48/1985 – no sentido de ser convocada <strong>um</strong>a<br />

Assembléia Nacional Constituinte. A sugestão enviada por Sarney, materializou-se na<br />

Prop<strong>os</strong>ta de Emenda Constitucional nº 43/1985. 45 A prop<strong>os</strong>ta objetivava a convocação de <strong>um</strong>a<br />

Constituinte congressual, e não exclusiva. Neste sentido, concedia poderes constituintes ao<br />

Congresso Nacional a ser eleito em novembro de 1986.<br />

Em ag<strong>os</strong>to de 1985, o Congresso Nacional criou <strong>um</strong>a Comissão Mista para apreciar a<br />

Prop<strong>os</strong>ta de Emenda Constitucional nº 43. A Comissão foi presidida pelo Senador Helvídio<br />

Nunes (PDS), tendo o Deputado Flávio Bierrenbach (PMDB) como relator. A Comissão<br />

ouviu depoiment<strong>os</strong> e analisou prop<strong>os</strong>tas de emendas de parlamentares.<br />

45 “PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 43, DE 1985 - Convoca a Assembléia Nacional<br />

Constituinte. Art. 1º. Os Membr<strong>os</strong> da Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> e do Senado Federal, sem prejuízo de suas<br />

atribuições constitucionais, reunir-se-ão unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e<br />

soberana, no dia 31 de janeiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Art. 2º. O Presidente do Supremo<br />

Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente.<br />

Art. 3º. O Projeto de Constituição será promulgado no curso da Primeira Sessão Legislativa da 48ª. Legislatura,<br />

depois de aprovado, em dois turn<strong>os</strong> de discussão e votação, pela maioria absoluta d<strong>os</strong> Membr<strong>os</strong> da Assembléia<br />

Nacional Constituinte.”<br />

61


O relator apresentou, ao final d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>, <strong>um</strong> substitutivo que, além de não aceitar<br />

determinad<strong>os</strong> detalhes do projeto, acrescentava outr<strong>os</strong>. Dentre outras coisas, o substitutivo<br />

determinava que o poder constituinte originário é do povo e que deveria ser feito <strong>um</strong><br />

plebiscito para ver se a Constituinte deveria ou não se vincular ao Congresso e outro<br />

plebiscito para decidir se <strong>os</strong> atuais senadores eleit<strong>os</strong> em 1982 participariam ou não da ANC,<br />

caso o Congresso Constituinte f<strong>os</strong>se acolhido. Ademais, estabelecia o dia 07 de setembro de<br />

1986 como data para a eleição d<strong>os</strong> constituintes e o dia 15 de novembro do mesmo ano para a<br />

eleição d<strong>os</strong> governadores e deputad<strong>os</strong>. Abordava, ainda, o tema da anistia d<strong>os</strong> militares e civis<br />

e o tempo de desincompatibilização. (NEUMANN & DALPIAZ, 1986).<br />

O relatório do Deputado Flávio Bierrenbach foi lido em outubro de 1985, tendo sido<br />

rejeitado em 18 de outubro de 1985. Além da sugestão de realização de <strong>um</strong> plebiscito para<br />

que o povo escolhesse se a Assembléia Nacional Constituinte seria exclusiva ou congressual,<br />

previa que as Câmaras Municipais receberiam sugestões para a Constituinte, propunha<br />

modificações na Constituição em vigor para afastar o “entulho autoritário” e estabelecia <strong>um</strong>a<br />

comissão legislativa para funcionar enquanto a Constituição estivesse sendo elaborada. A<br />

reprovação do relatório era previsível. Tanto o governo como o PMDB reagiram de forma<br />

dura.<br />

Com a divulgação do substitutivo, houve <strong>um</strong>a reação contrária a ele e <strong>um</strong><br />

descontentamento geral, o que ocasionou a destituição do relator Flávio Bierrenbach, que foi<br />

substituído pelo deputado Valmor Giavarina (PMDB-PR). Elaborou-se <strong>um</strong> novo substitutivo<br />

– que ficou conhecido como “substitutivo Giavarina” –, que também abordava <strong>os</strong> temas da<br />

Constituinte, da desincompatibilização e da anistia a<strong>os</strong> militares cassad<strong>os</strong>. (NEUMANN &<br />

DALPIAZ, 1986, p. 18).<br />

Valmor Giavarina defendeu <strong>um</strong> Congresso Constituinte como a melhor alternativa<br />

para o momento. Ademais, ressaltou que a prop<strong>os</strong>ta apresentada pelo governo garantia as<br />

62


instituições e a redemocratização contra impasses e correspondia ao “encontro entre a vontade<br />

da sociedade e a média do pensamento congressual e do governo”. Seu substitutivo tornou-se,<br />

com pequenas alterações de texto e com a supressão do prazo para o final d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da<br />

Assembléia Nacional Constituinte, a Emenda à Constituição 26/85.<br />

Portanto, no lugar do relatório do deputado Flávio Bierrenbach – afastado pela<br />

Comissão – foi aprovado <strong>um</strong> substitutivo a cargo do deputado Valmor Giavarina. Ainda<br />

assim, o processo de votação da Emenda não foi d<strong>os</strong> mais fáceis. A introdução deste<br />

substitutivo provocou muitas discussões. Após muit<strong>os</strong> impasses e negociações, o substitutivo<br />

foi votado. A Emenda foi aprovada na Câmara e no Senado. Somente após muita tensão e<br />

muito tempo, a prop<strong>os</strong>ta foi aprovada 46 , tornando-se a Emenda Constitucional nº 26 47 , de 27<br />

de novembro de 1985, atendendo às expectativas do Poder Executivo e indo contra a pressão<br />

popular, conforme se verifica na passagem abaixo.<br />

A convocação da Constituinte foi <strong>um</strong> ato de extrema importância.<br />

Infelizmente não foi a convocação esperada pela maioria d<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong>.<br />

Enquanto as pesquisas de opinião revelavam que a tendência maior era<br />

querer <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte exclusiva e autônoma, a<br />

maioria d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e senadores queria que f<strong>os</strong>se congressual. E assim foi<br />

feito, pois eles é que decidem. [...] A realidade é que o atual Congresso não<br />

queria ceder e perder a oportunidade de ser Constituinte. E para melhor<br />

esconder o disfarce transferiu para a própria Constituinte a decisão de ser<br />

exclusiva ou não. Aqui, além de tudo, há <strong>um</strong>a questão de semântica. Para o<br />

povo a palavra exclusiva significava que a Constituinte seria formada por<br />

pessoas escolhidas expressamente para isso e que, portanto, não fariam parte<br />

do Congresso Nacional. Terminada a Constituinte, voltariam a seus trabalh<strong>os</strong><br />

normais. Para <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e senadores, a palavra exclusiva significava que<br />

o Congresso Nacional não teria duas funções, a legislativa e a constituinte.<br />

Apenas a constituinte. Mas, que significado faz se as pessoas são as<br />

mesmas? (NEUMANN & DALPIAZ, 1986, p. 20).<br />

46<br />

Votada no dia 22 de novembro, em segundo turno na Câmara e no Senado, a Emenda Constitucional nº 26 foi<br />

promulgada no dia 27.<br />

47<br />

O texto da emenda é o seguinte: EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 26 - Convoca Assembléia Nacional<br />

Constituinte e dá outras providências. As Mesas da Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> e do Senado Federal, n<strong>os</strong> term<strong>os</strong> do<br />

art. 49 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Art. 1º. Os Membr<strong>os</strong> da<br />

Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembléia Nacional<br />

Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Art. 2º. O<br />

Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembléia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de<br />

eleição do seu Presidente. Art. 3º. A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois<br />

turn<strong>os</strong> de discussão e votação, pela maioria d<strong>os</strong> Membr<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte.<br />

63


Herkenhoff, narrando o episódio descrito acima, <strong>acerca</strong> da votação da Emenda de<br />

convocação de <strong>um</strong>a Constituinte, segue a mesma opinião d<strong>os</strong> autores supracitad<strong>os</strong>, no que diz<br />

respeito ao não acolhimento da vontade popular.<br />

Fazendo ouvido surdo ao apelo d<strong>os</strong> mais ampl<strong>os</strong> segment<strong>os</strong> da sociedade<br />

civil, que queriam <strong>um</strong>a Constituinte exclusiva, a maioria parlamentar seguiu<br />

a orientação do atual Governo e optou pelo Congresso constituinte. Essa<br />

maioria parlamentar não acolheu nem mesmo o parecer do deputado Flávio<br />

Bierrenbach, que propôs se entregasse ao próprio povo a decisão entre as<br />

duas formas p<strong>os</strong>síveis de Assembléia Constituinte, através de <strong>um</strong> plebiscito<br />

que seria realizado em 15 de março de 1986. Em vez de apoiar a democrática<br />

prop<strong>os</strong>ta de plebiscito, as forças do Governo destituíram Flávio Bierrenbach<br />

da função de relator da emenda da Constituinte e aprovaram, contra a<br />

opinião pública nacional, a convocação da Assembléia Constituinte sob a<br />

modalidade de Constituinte congressual. (HERKENHOFF, 1986, p. 55)<br />

Ne<strong>um</strong>ann e Dalpiaz (1986, p. 22) explicam que três alternativas foram levantadas<br />

quando surgiram as discussões <strong>acerca</strong> de quem deveria ficar com o poder constituinte. A<br />

primeira dessas alternativas seria transformar o Congresso Nacional – que permaneceria até<br />

março de 1987 – em Congresso Constituinte. Tal opção foi descartada quando ficou claro<br />

para o governo que <strong>os</strong> constituintes deveriam ser eleit<strong>os</strong> em 1986 para a Constituinte se reunir<br />

em 1987. A segunda alternativa seria transformar <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e senadores eleit<strong>os</strong> em 15 de<br />

novembro de 1986 e mais <strong>os</strong> senadores eleit<strong>os</strong> em 1982, com mandato até 1990, em<br />

constituinte. Seria <strong>um</strong>a Assembléia Constituinte congressual, opção escolhida pelo Executivo<br />

ao enviar o projeto de Emenda. Neste caso, o Congresso teria <strong>um</strong>a dupla finalidade: a de<br />

legislar <strong>sobre</strong> leis comuns e a de elaborar <strong>um</strong>a nova Constituição. Por fim, <strong>um</strong>a terceira<br />

alternativa seria a Assembléia Constituinte exclusiva, com a eleição de constituintes que<br />

teriam como função exclusiva elaborar <strong>um</strong>a Constituição.<br />

Aqueles que defendiam <strong>um</strong>a Constituinte Congressual utilizavam como arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>,<br />

dentre outr<strong>os</strong>, a tradição histórica, <strong>os</strong> cust<strong>os</strong> – tendo em vista que duas grandes assembléias<br />

64


eunidas, o Congresso Nacional e a Constituinte, significaria muita despesa para o País, em<br />

<strong>um</strong> momento em que ele passava por <strong>um</strong>a grave crise econômica – e o “sacrifício” e a<br />

“opção” por parte d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e senadores de então – caso desejassem ser constituintes –,<br />

pois teriam que concorrer para disputar <strong>um</strong> mandato breve, o que prejudicaria aqueles que<br />

desejavam <strong>um</strong>a atividade parlamentar mais longa. A este último arg<strong>um</strong>ento, acrescentou-se a<br />

idéia de que haveria o risco de haver <strong>um</strong>a Constituinte com “pessoas inexperientes”,<br />

escolhidas em razão da ausência d<strong>os</strong> “polític<strong>os</strong> profissionais”. Arg<strong>um</strong>entava-se, também, que<br />

não teria sentido alg<strong>um</strong> <strong>um</strong>a Constituinte não ser Congressual, tendo em vista que o<br />

Congresso teria poder para alterar a Constituição, podendo exercê-lo logo que a mesma f<strong>os</strong>se<br />

aprovada e promulgada. Enfatizavam, ainda, que <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e senadores são eleit<strong>os</strong> pelo<br />

povo e, portanto, são legítim<strong>os</strong> representantes do povo, não havendo, pois, razão para não<br />

aceitá-l<strong>os</strong> como Constituintes. (NEUMANN & DALPIAZ, 1986, pp. 22-23).<br />

Alguns d<strong>os</strong> arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> por aqueles que defendiam <strong>um</strong>a Constituinte<br />

exclusiva – ou seja, <strong>um</strong>a Assembléia formada por pessoas, polític<strong>os</strong> ou não, escolhidas<br />

exclusivamente para a elaboração da Constituição, e dissolvida logo após o término d<strong>os</strong><br />

trabalh<strong>os</strong> – foram <strong>os</strong> seguintes: (a) a proporção de deputad<strong>os</strong> por Estado prejudicaria a<br />

representatividade d<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong>; (b) a ac<strong>um</strong>ulação de duas funções por parte do Congresso<br />

impediria o seu funcionamento normal, o que imp<strong>os</strong>sibilitaria <strong>um</strong> bom trabalho do legislativo,<br />

essencial para o País. Ademais, o Congresso tem a necessidade de se p<strong>os</strong>icionar em relação ao<br />

cotidiano do País, enquanto <strong>um</strong>a Constituinte tem o objetivo de fazer <strong>um</strong>a obra mais perene,<br />

mais permanente, mais extensa e com <strong>um</strong>a visão de futuro; (3) o mandato breve do<br />

constituinte proporcionaria candidat<strong>os</strong> que não desejam a vida parlamentar, mas apenas<br />

contribuir para a elaboração da Constituição; (4) <strong>um</strong> Congresso constituinte seria incapaz de<br />

promover mudanças estruturais. O Congresso acabaria “legislando em causa própria”, tendo<br />

em vista que o constituinte estaria preocupado com a sua situação, a do seu partido, com as<br />

65


funções do Congresso Nacional e as prerrogativas d<strong>os</strong> parlamentares. Uma Constituinte<br />

autônoma e exclusiva representaria a soberania popular, com poderes superiores ao do próprio<br />

Congresso Nacional, legislando, inclusive, <strong>sobre</strong> o mesmo; (5) muit<strong>os</strong> senadores e deputad<strong>os</strong><br />

do Congresso Nacional já estariam comprometid<strong>os</strong> com o sistema e com grup<strong>os</strong> econômic<strong>os</strong><br />

(multinacionais, empresári<strong>os</strong>, latifundiári<strong>os</strong>), sofrendo, por isso, as pressões decorrentes deles;<br />

(6) como o constituinte congressista tem em vista o seu futuro político, teria <strong>um</strong>a p<strong>os</strong>tura, ao<br />

propor mudanças, bem diferente daquele que é apenas constituinte. Este último trataria de<br />

temas e ass<strong>um</strong>iria compromiss<strong>os</strong> apenas referentes à nova Carta. O próprio padrão de<br />

campanha seria diverso n<strong>os</strong> dois cas<strong>os</strong>. (NEUMANN & DALPIAZ, 1986, pp. 23-24).<br />

Para João Baptista Herkenhoff,<br />

A principal vantagem de <strong>um</strong>a Assembléia Constituinte exclusiva é a de<br />

p<strong>os</strong>sibilitar <strong>um</strong>a eleição fundada apenas na discussão de teses, princípi<strong>os</strong> e<br />

compromiss<strong>os</strong> ligad<strong>os</strong> ao debate constituinte. Dizendo em outras palavras:<br />

n<strong>um</strong>a Constituinte exclusiva, partid<strong>os</strong> e candidat<strong>os</strong> comprometem-se com<br />

idéias e programas, pois <strong>os</strong> constituintes seriam eleit<strong>os</strong> apenas para fazer<br />

<strong>um</strong>a Constituição. Na fórmula da Constituinte congressual (ou Congresso<br />

constituinte), <strong>os</strong> candidat<strong>os</strong> podem prometer estradas, empreg<strong>os</strong>, benefíci<strong>os</strong><br />

pessoais, pois a eleição deixa de ser de constituintes exclusiv<strong>os</strong>, para ser de<br />

deputad<strong>os</strong> e senadores. A Constituinte congressual tende também a ser mais<br />

conservadora do que <strong>um</strong>a Constituinte exclusiva, por dois motiv<strong>os</strong>: (1º)<br />

porque facilita a eleição d<strong>os</strong> velh<strong>os</strong> polític<strong>os</strong>, ligad<strong>os</strong> às máquinas eleitorais,<br />

e desencoraja a participação de element<strong>os</strong> descompromissad<strong>os</strong> com<br />

esquemas. [...]. (2º) porque <strong>um</strong> Congresso constituinte, que já nasce sem<br />

liberdade de discutir a própria estrutura do Poder legislativo, tenderá a<br />

reproduzir tudo o mais, ou fazer mudanças apenas superficiais e periféricas.<br />

[...]. (HERKENHOFF, 1986, p. 54)<br />

Ressaltando a importância da Assembléia Nacional Constituinte a ser convocada,<br />

Ne<strong>um</strong>ann e Dalpiaz (1986) relatam as expectativas e frustrações surgidas em torno do tema.<br />

A consciência desta importância foi a<strong>um</strong>entando na medida em que <strong>os</strong><br />

<strong>debates</strong> se ampliaram. O tema Constituinte tomou conta das conversas em<br />

tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> mei<strong>os</strong>. Por isso, houve <strong>um</strong>a grande expectativa em torno de cert<strong>os</strong><br />

pont<strong>os</strong> como a sua convocação, <strong>os</strong> seus participantes, <strong>sobre</strong> a comissão de<br />

notáveis encarregada de preparar o anteprojeto, <strong>sobre</strong> a duração da<br />

Constituinte, <strong>sobre</strong> o local onde se reuniria, etc. Porém, muitas destas<br />

66


expectativas foram desfeitas a partir da aprovação da emenda que convocou<br />

a Constituinte. O Congresso Nacional, mais <strong>um</strong>a vez, não foi sensível ao<br />

desejo do povo que queria <strong>um</strong>a Constituinte exclusiva. Aprovou <strong>um</strong>a<br />

Constituinte congressual que o povo, como <strong>um</strong> todo, não queria.<br />

(NEUMANN & DALPIAZ, 1986, pp. 20-21).<br />

As eleições para a Constituinte foram realizadas no dia 15 de novembro de 1986,<br />

simultaneamente à escolha d<strong>os</strong> governadores de Estado e d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> estaduais. Apesar da<br />

importância das eleições de 1986 para a elaboração da futura Constituição, o tema da<br />

Constituinte foi deixado em segundo plano. Em primeiro lugar, porque o assunto que<br />

prevaleceu nas campanhas d<strong>os</strong> candidat<strong>os</strong>, bem como nas notícias veiculadas na mídia foi o<br />

Plano Cruzado, plano de estabilização econômica do governo federal. O Plano Cruzado havia<br />

sido idealizado por economistas ligad<strong>os</strong> ao PMDB, tendo propiciado ao presidente J<strong>os</strong>é<br />

Sarney alt<strong>os</strong> índices de popularidade. Dessa forma, as discussões políticas acabaram se<br />

reduzindo ao problema da estabilização da economia, concentrando <strong>os</strong> interesses do eleitor<br />

nesse tema. Isso permitiu <strong>um</strong>a grande vitória ao PMDB, que conquistou 22 d<strong>os</strong> 23 govern<strong>os</strong><br />

estaduais. No horário eleitoral gratuito e na grande imprensa o tema da Constituinte foi, de<br />

certa forma, negligenciado.<br />

Ademais, existiu <strong>um</strong> fator institucional – referente ao sistema partidário e eleitoral –<br />

que também influenciou no pleito. Tratava-se de <strong>um</strong>a eleição vinculada à competição pel<strong>os</strong><br />

govern<strong>os</strong> estaduais, envolvendo partid<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> recentes e, em sua maioria, pouco<br />

estruturad<strong>os</strong>. A atenção d<strong>os</strong> eleitores e da mídia foi direcionada para a escolha d<strong>os</strong><br />

governadores estaduais, na época o cargo mais importante disputado eleitoralmente. Além<br />

disso, a lógica das coalizões partidárias, permitidas pela legislação, foi governada pela<br />

diversidade d<strong>os</strong> interesses das elites de cada unidade da Federação.<br />

Em maio de 1986, João Almino de Souza (1987, p. 81) apontava para o fato de que<br />

“até agora tem havido pouca mobilização para a Constituinte e as eleições para governador<br />

têm merecido mais atenção que as eleições para a Assembléia”. Sobre as características do<br />

67


ano eleitoral de 1986, Caldeira (1987, p.3) afirma que “foi <strong>um</strong> ano marcado pelas bem<br />

sucedidas táticas do governo para encobrir suas debilidades políticas e a persistente crise<br />

econômica. Houve distrações para as massas: Roque Santeiro, Cometa Halley, e a Copa do<br />

Mundo no México, entre outras”.<br />

Em virtude de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> fatores mencionad<strong>os</strong> acima, o resultado das eleições para a<br />

Constituinte não conseguiu traduzir, verdadeiramente, <strong>os</strong> interesses da maioria da população.<br />

Cristóvam Buarque, <strong>acerca</strong> do processo de escolha d<strong>os</strong> constituintes, afirma que<br />

Para Pérsio Henrique Barr<strong>os</strong>o,<br />

A Constituinte eleita foi <strong>um</strong>a Constituinte da elite sócio-econômica<br />

brasileira. Com diminuta representação de origem popular, quando no Brasil<br />

estas camadas representam a quase totalidade da população. Com ampla<br />

maioria de graduad<strong>os</strong> de nível superior, quando a soma total de profissionais<br />

superiores não passa de minoria. Sem <strong>um</strong> único camponês e nenh<strong>um</strong> semterra,<br />

embora estes representem quase a metade da n<strong>os</strong>sa população. Com<br />

men<strong>os</strong> de duas dezenas de mulheres. (BUARQUE, 1988, p. 19)<br />

É importante ratificar que, politicamente, a convocação do Congresso<br />

Constituinte não tinha por fim <strong>um</strong>a reestruturação político-jurídica do país,<br />

porém era apenas mais <strong>um</strong>a etapa do processo de transição política pelo alto,<br />

para ser conduzida sob tutela burocrático-militar e controlada pelas forças<br />

conservadoras do grande capital e do latifúndio. É neste ponto que as<br />

experiências locais d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> populares entram em cena, e é a partir<br />

delas que pode se falar n<strong>um</strong>a reação “d<strong>os</strong> de baixo” contra <strong>os</strong> r<strong>um</strong><strong>os</strong> prédeterminad<strong>os</strong><br />

daquela nova fase, que consolidaria a transição conservadora.<br />

(BARROSO, 1997, p. 88)<br />

A Assembléia Nacional Constituinte 48 foi instalada no dia 1º de fevereiro de 1987, em<br />

sessão solene, dirigida pelo Ministro J<strong>os</strong>é Carl<strong>os</strong> Moreira Alves, presidente do Supremo<br />

48 A Assembléia Nacional Constituinte era comp<strong>os</strong>ta por 559 membr<strong>os</strong>, sendo 513 deputad<strong>os</strong> e 46 senadores. A<br />

distribuição d<strong>os</strong> 559 constituintes pel<strong>os</strong> 13 partid<strong>os</strong> era a seguinte: PMDB – 303; Partido da Frente Liberal (PFL)<br />

– 135; PDS – 38; PDT – 26; Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – 18; PT – 16; Partido Liberal (PL) – 7;<br />

Partido Democrata Cristão (PDC) – 6; PCB – 3; Partido Comunista do Brasil (PC do B) – 3; Partido Socialista<br />

Brasileiro (PSB) – 2; Partido Social Cristão (PSC) – 1 e Partido Municipalista Brasileiro (PMB) – 1. Ao longo<br />

do processo constituinte, essa comp<strong>os</strong>ição foi se alterando, alguns parlamentares se afastaram para ass<strong>um</strong>ir<br />

carg<strong>os</strong> n<strong>os</strong> executiv<strong>os</strong> estaduais e federal, e parte considerável mudou de legenda, com destaque especial para a<br />

criação, em julho de 1988, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), <strong>um</strong>a dissidência peemedebista.<br />

68


Tribunal Federal, conforme determinava o Ato Convocatório. Contou com a presença do<br />

Presidente da República, J<strong>os</strong>é Sarney, e de centenas de autoridades e convidad<strong>os</strong>. Na ocasião,<br />

<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e senadores eleit<strong>os</strong> e diplomad<strong>os</strong> prestaram juramento. O Presidente do STF<br />

proferiu discurso, negando tentativas de questões de ordem para que <strong>os</strong> líderes partidári<strong>os</strong><br />

também usassem da palavra. Fora do Congresso houve revista às tropas e concerto da<br />

Orquestra Sinfônica de Brasília, at<strong>os</strong> oficialmente previst<strong>os</strong>. Mas também manifestação<br />

popular.<br />

A segunda sessão da Constituinte também foi presidida pelo Ministro do STF, e tinha<br />

na pauta a eleição do Presidente da Assembléia. Antes disso, no entanto, a questão de ordem:<br />

<strong>os</strong> senadores eleit<strong>os</strong> em 1982 – <strong>um</strong> terço do Senado, isto é, 23 senadores – teriam ou não<br />

direito de voto na Constituinte? A questão foi resolvida através do voto do plenário, que<br />

admitiu <strong>os</strong> senadores de 1982 como constituintes.<br />

Para a Presidência da ANC surgiram duas candidaturas: Ulysses Guimarães (PMDB-<br />

SP) e Lysâneas Maciel (PDT-RJ). A eleição de Ulysses Guimarães deu-se por larga margem,<br />

registrando-se alguns vot<strong>os</strong> de seu próprio partido – o PMDB – para a candidatura alternativa.<br />

Os constituintes precisavam aprovar at<strong>os</strong> preliminares que ordenassem a própria<br />

elaboração e votação do Regimento Interno. As primeiras tensões, divergências e dificuldades<br />

surgiram. Contudo, em 6 de fevereiro, era promulgada a Resolução nº 01, votada pel<strong>os</strong><br />

constituintes, que previa <strong>um</strong>a Mesa de cinco Secretári<strong>os</strong> designad<strong>os</strong> pelo Presidente, a<br />

existência de bancadas e líderes, o ordenamento das sessões, o registro em atas e anais, a<br />

prop<strong>os</strong>ição de requeriment<strong>os</strong> e a tramitação do Projeto de Regimento Interno. O relator das<br />

normas preliminares foi o mesmo do Projeto de Regimento Interno: Fernando Henrique<br />

Card<strong>os</strong>o (PMDB-SP).<br />

69


Admitindo-se a existência de bancadas partidárias – cujas lideranças seriam formadas<br />

por líder e vice-líderes, conforme o número de constituintes de cada bancada – passou-se à<br />

definição das lideranças. 49<br />

Os líderes partidári<strong>os</strong> formularam o Projeto de Resolução nº 02, de 1987, para que<br />

f<strong>os</strong>se dado início ao processo – bastante complexo, como depois se verificou – de definição<br />

das normas regimentais. O Projeto teve 67 artig<strong>os</strong>, e foi de autoria d<strong>os</strong> líderes de bancadas,<br />

sem que isto significasse o compromisso d<strong>os</strong> Partid<strong>os</strong> com o seu conteúdo. Ao projeto inicial<br />

d<strong>os</strong> líderes foram apresentadas 949 emendas, o que comprova as dificuldades operacionais e<br />

de vol<strong>um</strong>e de matéria a ser apreciada, que acompanhariam todo o longo processo de<br />

elaboração regimental e, depois, o constitucional.<br />

Enfim, somente em março de 1987, o substitutivo do relator ao Projeto de Resolução<br />

nº 02 de 1987, as 949 emendas iniciais e as outras 687 apresentadas ao próprio Substitutivo<br />

conseguiam ser votad<strong>os</strong> pelo plenário. Ao todo, o Regimento Interno fora objeto de 1.636<br />

emendas. O Regimento Interno, com seus 86 artig<strong>os</strong>, foi promulgado dia 24 de março de<br />

49 A maioria d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> atribuiu a função de “líder na Constituinte” para <strong>um</strong> de seus líderes na Câmara ou no<br />

Senado. No PMDB, no entanto, houve preferência pela escolha de <strong>um</strong>a liderança específica, o que motivou a<br />

disputa entre o Senador Mário Covas e o Deputado Luiz Henrique. A vitória do primeiro, contestando o<br />

comando partidário, tornou-se <strong>um</strong> fato político significativo para todo o processo. As lideranças das bancadas<br />

ficaram assim: PMDB – Mário Covas; PFL – J<strong>os</strong>é Lourenço; PDS – Amaral Netto; PDT – Brandão Monteiro;<br />

PTB – Gastone Righi; PT – Luiz Inácio Lula da Silva; PL – Adolfo Oliveira; PDC – Mauro Borges; PC do B –<br />

Haroldo Lima; PCB – Roberto Freire; PSB – Jamil Haddad; PMB – Antonio Farias; PSC – Dirce Tutu. A<br />

Deputada Dirce Tutu Quadr<strong>os</strong> deixou o PSC, que ficou sem bancada na Constituinte por <strong>um</strong> longo período. No<br />

início d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>, treze partid<strong>os</strong> tinham representação na Constituinte. Contudo, aconteceram mudanças,<br />

migrações entre partid<strong>os</strong> e surgimento de novas bancadas. Dois parlamentares eleit<strong>os</strong> pelo PMDB logo<br />

ass<strong>um</strong>iram a legenda do PC do B. Ao longo do funcionamento da Assembléia, quase <strong>um</strong>a centena de outr<strong>os</strong><br />

parlamentares mudaram de partido. No início das votações em segundo turno, o surgimento do PSDB (Partido da<br />

Social Democracia Brasileira), alterou bastante as bancadas na Constituinte, pois já nasceria como a terceira<br />

força no total de parlamentares. Uma comparação entre a comp<strong>os</strong>ição das bancadas na instalação da<br />

Constituinte e a situação no momento final de seus trabalh<strong>os</strong> dá <strong>um</strong>a imediata e forte visão das mutações<br />

partidárias acontecidas no País e no seio da Assembléia. Por outro lado, as grandes bancadas m<strong>os</strong>traram-se com<br />

dificuldades internas e contrastes nas votações, apresentando divisões. Isto abriu caminho para a existência de<br />

bloc<strong>os</strong> informais suprapartidári<strong>os</strong> ao longo das atividades constituintes. Logo de início, parlamentares jovens ou<br />

novat<strong>os</strong> formaram grup<strong>os</strong> mais rebeldes, especialmente no PMDB. Mais tarde, articulações entre partid<strong>os</strong> – do<br />

tipo “progressistas” e “moderad<strong>os</strong>” ou “conservadores” – foram significativas. O grupamento em torno da<br />

liderança do PMDB teria muito peso nas decisões. E surgiu, no final de 1987, o grupo denominado Centrão,<br />

reunindo <strong>um</strong>a considerável corrente do centro à direita.<br />

70


1987. Os problemas não estavam totalmente resolvid<strong>os</strong> e impasses polític<strong>os</strong> levariam a<br />

modificações nas regras, em janeiro do ano seguinte.<br />

A questão da participação da sociedade diretamente <strong>sobre</strong> o processo da redação<br />

constitucional gerou intenso debate. Muitas emendas e prop<strong>os</strong>ições <strong>sobre</strong> o tema foram<br />

apresentadas, bem como diversas objeções.<br />

Por fim, o Regimento consagrou alg<strong>um</strong>as oportunidades de participação, nas quais <strong>os</strong><br />

segment<strong>os</strong> mobilizad<strong>os</strong> da sociedade poderiam atuar diretamente no processo de elaboração<br />

constitucional: (1) Sugestões iniciais de qualquer associação, mas, também de Câmaras de<br />

Vereadores, Assembléias Legislativas e Tribunais; 50 (2) Audiências públicas obrigatórias em<br />

que não só especialistas e autoridades poderiam ser convidad<strong>os</strong>, como, <strong>sobre</strong>tudo, entidades<br />

associativas tinham o direito de apresentar-se e opinar 51 ; (3) Emendas de 30 mil cidadã<strong>os</strong> com<br />

a responsabilidade de, pelo men<strong>os</strong>, três entidades associativas, ao texto do Projeto de<br />

Constituição 52 ; (4) Defesa de tais prop<strong>os</strong>tas, ante a Comissão de Sistematização, por <strong>um</strong> de<br />

seus signatári<strong>os</strong>.<br />

De acordo com o Regimento Interno, <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> constituintes foram organizad<strong>os</strong> a<br />

partir de <strong>um</strong> sistema de comissões e subcomissões 53 , de forma a assegurar a participação de<br />

50 Qualquer entidade associativa, ao lado de organism<strong>os</strong> institucionais como Câmaras de Vereadores,<br />

Assembléias Legislativas e Tribunais, e d<strong>os</strong> constituintes, poderia apresentar sugestões iniciais encaminhadas à<br />

subcomissão do assunto tratado. Foram recebidas mais de 11 mil destas sugestões, a maioria delas, no entanto,<br />

d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> constituintes. O prazo foi curto para sua apresentação e as entidades preferiram, em geral, fazê-lo<br />

diretamente n<strong>os</strong> depoiment<strong>os</strong>;<br />

51 Audiências Públicas: Cada subcomissão deveria realizar certo número de audiências públicas, convidando<br />

representações e autoridades e ouvindo as que se apresentassem espontaneamente. Alg<strong>um</strong>as subcomissões<br />

viajaram pelo País. A maioria permaneceu em Brasília, mas foi grande o número de depoiment<strong>os</strong>.<br />

52 A partir do projeto de 15 de julho de 1987, ao lado das emendas d<strong>os</strong> constituintes foram admitidas emendas de<br />

iniciativa d<strong>os</strong> cidadã<strong>os</strong>, assinadas por, no mínimo, 30 mil eleitores e com a responsabilidade de três entidades<br />

associativas. Foram apresentadas 122 destas prop<strong>os</strong>tas, com <strong>um</strong> total de 12.265.854 assinaturas. Oficialmente,<br />

foram admitidas como emendas populares 83 prop<strong>os</strong>tas que atenderam às exigências regimentais, versando <strong>sobre</strong><br />

<strong>os</strong> mais variad<strong>os</strong> temas e apresentadas por trabalhadores, moviment<strong>os</strong> sociais, igrejas, empresári<strong>os</strong>, grup<strong>os</strong><br />

alternativ<strong>os</strong> e outras organizações da sociedade civil. Cada <strong>um</strong>a das 83 prop<strong>os</strong>tas pôde ser defendida na tribuna<br />

da Comissão de Sistematização por <strong>um</strong> d<strong>os</strong> seus signatári<strong>os</strong>, permitindo a participação, no debate constituinte, de<br />

cidadã<strong>os</strong> e debatedores não-parlamentares.<br />

53 As comissões temáticas e respectivas subcomissões foram as seguintes: I) Comissão da Soberania e d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher, I-A) Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações<br />

Internacionais, I-B) Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Coletiv<strong>os</strong> e Garantias, I-C) Subcomissão<br />

d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais; II) Comissão da Organização do Estado, II-A) Subcomissão da União,<br />

Distrito Federal e Territóri<strong>os</strong>, II-B) Subcomissão d<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong>, II-C) Subcomissão d<strong>os</strong> Municípi<strong>os</strong> e Regiões; III)<br />

Comissão da Organização d<strong>os</strong> Poderes e Sistema de Governo, III-A) Subcomissão do Poder Legislativo, III-B)<br />

71


tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> parlamentares. O corpo constituinte – com exceção d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da Mesa – foi<br />

dividido em oito comissões temáticas e <strong>um</strong>a Comissão de Sistematização, respeitando-se no<br />

interior de cada comitê a proporcionalidade partidária. 54 Além das 8 comissões, foram<br />

estabelecidas 24 subcomissões temáticas, para que de cada <strong>um</strong> desses comitês surgisse<br />

indicações para o futuro Projeto. Sabia-se que a definição dessas comissões e subcomissões<br />

temáticas influenciaria na futura Carta, por isso, muita discussão envolveu o rol e a<br />

designação de tais comitês. O relator elaborou diversas alternativas e fez várias negociações,<br />

nas quais estavam envolvid<strong>os</strong> <strong>os</strong> setores interessad<strong>os</strong> em que determinado tema constasse ou<br />

não na futura Constituição.<br />

No decorrer d<strong>os</strong> seus trabalh<strong>os</strong>, as comissões também realizavam audiências públicas,<br />

nas quais eram ouvidas pessoas das mais diferentes áreas, que apresentavam sugestões para a<br />

Constituição. Cada subcomissão tinha <strong>um</strong> presidente e <strong>um</strong> relator. Os relatóri<strong>os</strong> das<br />

subcomissões eram compatibilizad<strong>os</strong> pelo relator da Comissão.<br />

Entre <strong>os</strong> constituintes, não tinha muita aceitação a idéia de que, em alg<strong>um</strong> momento,<br />

<strong>um</strong>a Comissão tivesse a tarefa de organizar o Projeto. Tod<strong>os</strong> queriam estar presentes a todas<br />

as fases da elaboração e isto significava problemas técnic<strong>os</strong> muito complex<strong>os</strong>. Acabou sendo<br />

Subcomissão do Poder Executivo, III-C) Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público; IV)<br />

Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, IV-A) Subcomissão do Sistema<br />

Eleitoral e Partid<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, IV-B) Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, IV-C)<br />

Subcomissão da Garantia da Constituição, Reformas e Emendas; V) Comissão do Sistema Tributário,<br />

Orçamento e Finanças, V-A) Subcomissão de Tribut<strong>os</strong>, Participação e Distribuição das Receitas, V-B)<br />

Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira, V-C) Subcomissão do Sistema Financeiro; VI) Comissão<br />

da Ordem Econômica, VI-A) Subcomissão de Princípi<strong>os</strong> Gerais, Intervenção do Estado, Regime de Propriedade<br />

do Subsolo e da Atividade Econômica, VI-B) Subcomissão da Questão Urbana e Transporte, VI-C) Subcomissão<br />

da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária; VII) Comissão da Ordem Social, VII-A) Subcomissão<br />

d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> Trabalhadores e Servidores Públic<strong>os</strong>, VII-B) Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio<br />

Ambiente, VII-C) Subcomissão d<strong>os</strong> Negr<strong>os</strong>, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias; VIII)<br />

Comissão da Família, Educação, Cultura, Esportes, Comunicação, Ciência e Tecnologia, VIII-A) Subcomissão<br />

da Educação, Cultura e Esportes, VIII-B) Subcomissão de Ciência e Tecnologia e da Comunicação, VIII-C)<br />

Subcomissão da Família, do Menor e do Id<strong>os</strong>o. Havia ainda a Comissão de Sistematização, que começaria a<br />

funcionar quando as outras tivessem concluído seus trabalh<strong>os</strong>.<br />

54 P<strong>os</strong>suidor da maior bancada da Constituinte, o PMDB ficou com a maior parte d<strong>os</strong> carg<strong>os</strong> das comissões e<br />

subcomissões, seguido do PFL e do PDS. As 24 subcomissões funcionaram de 7 de abril a 25 de maio de 1987.<br />

Nessa etapa, a participação d<strong>os</strong> constituintes e da população foi intensa, tendo sido concedidas 182 audiências<br />

públicas, encaminhadas 11.989 prop<strong>os</strong>tas e apresentadas 6.417 emendas a<strong>os</strong> anteprojet<strong>os</strong>. As comissões<br />

temáticas, instaladas formalmente no dia 1º de abril, com a eleição d<strong>os</strong> integrantes da Mesa diretora, só<br />

começaram a trabalhar efetivamente com matéria constitucional após o encerramento d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> das<br />

subcomissões. A partir do dia 26 de maio, as oito comissões receberam <strong>os</strong> anteprojet<strong>os</strong>.<br />

72


adotada a idéia de <strong>um</strong>a Comissão de Sistematização que, após o trabalho das Temáticas,<br />

organizaria <strong>um</strong> Projeto e acompanharia sua tramitação. A aceitação era apenas relativa, e aqui<br />

estaria <strong>um</strong>a das origens de p<strong>os</strong>teriores problemas polític<strong>os</strong> dentro da Assembléia.<br />

Com exceção da Comissão de Sistematização, onde a indicação d<strong>os</strong> integrantes foi<br />

feita pel<strong>os</strong> líderes, cada constituinte tinha direito a <strong>um</strong>a vaga de titular e outra de suplente.<br />

Cada comissão, por sua vez, foi dividida em três subcomissões, iniciando-se, assim, de forma<br />

descentralizada o debate da matéria constitucional. Cada subcomissão, após elaborar seu<br />

anteprojeto, juntou-se às outras duas de sua comissão temática, para a elaboração de novo<br />

anteprojeto. Finalmente, <strong>os</strong> text<strong>os</strong> das oito comissões foram enviad<strong>os</strong> à Comissão de<br />

Sistematização, para que f<strong>os</strong>sem compatibilizad<strong>os</strong> em <strong>um</strong> único projeto constitucional. Esse<br />

projeto seria então enviado ao plenário da Constituinte, para votação em dois turn<strong>os</strong>.<br />

Portanto, após a formulação de <strong>um</strong> texto por cada <strong>um</strong>a das 24 subcomissões, estas se<br />

reuniram em grup<strong>os</strong> maiores, cada <strong>um</strong> englobando três subcomissões, compondo as oito<br />

comissões temáticas. Em cada <strong>um</strong>a das comissões, o relator recebia <strong>os</strong> <strong>estudo</strong>s preliminares<br />

das subcomissões respectivas, reunia o material em <strong>um</strong>a prop<strong>os</strong>ta, discutindo-a,<br />

p<strong>os</strong>teriormente, com a Comissão. Em seguida, elaborava <strong>um</strong> substitutivo, passando,<br />

finalmente, para a fase de votação. 55<br />

Obviamente, <strong>os</strong> text<strong>os</strong> enviad<strong>os</strong> à Comissão de Sistematização não passaram a<br />

constituir, quando reunid<strong>os</strong>, <strong>um</strong> projeto coerente e coeso, tendo em vista a diferente<br />

comp<strong>os</strong>ição de cada comissão, o interesse em questões específicas por parte d<strong>os</strong> divers<strong>os</strong><br />

constituintes, a ação de grup<strong>os</strong> de pressão e interesses organizad<strong>os</strong>. Havia superp<strong>os</strong>ições de<br />

conteúd<strong>os</strong>, bem como p<strong>os</strong>ições antagônicas <strong>sobre</strong> a mesma matéria em diferentes comissões.<br />

A Comissão de Sistematização foi instalada com a tarefa de elaborar o Projeto de<br />

Constituição que, enviado ao Plenário, serviria como base para discussão e votação em<br />

55 No início foram apresentadas 7.727 emendas no conjunto das Comissões. Sobre <strong>os</strong> substitutiv<strong>os</strong> d<strong>os</strong> relatores,<br />

outras 7.184. No total, portanto, foram apresentadas nesta fase 14.911 novas prop<strong>os</strong>tas de constituintes.<br />

73


primeiro turno. O projeto deveria ser feito a partir d<strong>os</strong> oito relatóri<strong>os</strong> das Comissões e das<br />

emendas populares apresentadas. A Comissão de Sistematização, além de coordenar <strong>os</strong><br />

anteprojet<strong>os</strong> enviad<strong>os</strong> pelas comissões temáticas 56 , reunindo-<strong>os</strong> em <strong>um</strong> texto preliminar para<br />

discussão, deveria elaborar <strong>um</strong> anteprojeto substitutivo. Esta fase incluía o recebimento das<br />

emendas populares e a concessão de audiência pública para que <strong>os</strong> representantes das<br />

prop<strong>os</strong>tas as defendessem perante a Constituinte. Também cabia a<strong>os</strong> componentes da<br />

Comissão de Sistematização – por delegação d<strong>os</strong> demais – a competência para debater as<br />

prop<strong>os</strong>tas, definindo, pelo voto, o projeto de Constituição a ser enviado ao plenário.<br />

Em 26 de junho de 1987 o Relator Bernardo Cabral apresentou a primeira tentativa de<br />

organizar <strong>os</strong> text<strong>os</strong> das Comissões temáticas. Era <strong>um</strong> anteprojeto de Constituição, com 501<br />

artig<strong>os</strong> distribuíd<strong>os</strong> em dez títul<strong>os</strong>. 57 Somente no dia 15 de julho começava a tramitar o<br />

Projeto “Zero”, o primeiro texto oficial para a futura Constituição. Alguns dias antes – 9 de<br />

julho – o Relator havia apresentado <strong>um</strong> trabalho no qual diminuía o número de artig<strong>os</strong> para<br />

496.<br />

A Constituinte, após cinco meses e meio de trabalho, chegou ao seu ponto de partida<br />

formal. A partir desse momento, passou a existir <strong>um</strong> projeto ao qual seriam apresentadas<br />

emendas e, depois, <strong>um</strong> parecer da Comissão de Sistematização. Como o Regimento atribuía o<br />

direito de emendas a qualquer constituinte, <strong>um</strong> número bastante expressivo – 20.790 – foi<br />

apresentado. Também era admitida a emenda de cidadã<strong>os</strong>. Neste caso, era necessário que<br />

trinta mil eleitores subscrevessem a prop<strong>os</strong>ta, que deveria ser organizada sob a<br />

responsabilidade de, pelo men<strong>os</strong>, três entidades associativas. A Constituinte registrou o<br />

recebimento de 122 emendas populares, somando 12.277.423 assinaturas. Contudo, muitas<br />

56 Dentre <strong>os</strong> relatóri<strong>os</strong> das Comissões, dois se destacam por motiv<strong>os</strong> op<strong>os</strong>t<strong>os</strong>. Primeiramente, o da Comissão da<br />

Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher, considerado o mais avançado de tod<strong>os</strong>,<br />

significando importante vitória da esquerda. Em segundo lugar, o da Comissão da Ordem Econômica, por seu<br />

caráter conservador.<br />

57 Aberto prazo para emendas de constituintes em relação a este anteprojeto, foram apresentadas 977 emendas de<br />

adequação e 4.638 envolvendo o mérito de disp<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong>.<br />

74


não c<strong>um</strong>priam <strong>os</strong> requisit<strong>os</strong> regimentais. No final, 83 emendas populares foram admitidas<br />

como tal, preenchendo as exigências do Regimento. O prazo para emendas de constituintes e<br />

de cidadã<strong>os</strong> encerrou-se no dia 13 de ag<strong>os</strong>to.<br />

Em seguida – em c<strong>um</strong>primento de disp<strong>os</strong>itivo regimental –, a Comissão de<br />

Sistematização ouviu, em Plenário, a defesa de cada <strong>um</strong>a das emendas populares por <strong>um</strong> de<br />

seus subscritores. Em 23 de ag<strong>os</strong>to esgotou-se o prazo para a discussão no Plenário.<br />

Neste momento, a Constituinte enfrentava dificuldades internas e externas.<br />

Externamente, o Presidente da República havia feito <strong>um</strong> pronunciamento à Nação no qual<br />

apresentava sérias divergências com relação a<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> de elaboração constitucional e com<br />

o seu conteúdo. No âmbito interno, em razão do vol<strong>um</strong>e de questões a serem discutidas, <strong>os</strong><br />

constituintes exigiam nov<strong>os</strong> praz<strong>os</strong> e alterações no roteiro previamente estabelecido.<br />

O relator fez <strong>um</strong> novo trabalho, dando parecer às emendas apresentadas. Foi reaberto<br />

prazo para novas emendas. O Substitutivo do relator foi apresentado apenas no dia 18 de<br />

setembro de 1987 – pelo calendário inicial, no dia 20 de setembro já deveriam começar as<br />

votações em Plenário para o primeiro turno –, para que, a partir de então, começasse a<br />

tramitação interna na Comissão de Sistematização, que deveria dar <strong>um</strong> parecer antes da<br />

votação em Plenário. O Substitutivo era <strong>um</strong> texto de 264 artig<strong>os</strong> nas disp<strong>os</strong>ições permanentes<br />

e 72 transitórias. Também nesta fase <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Comissão de Sistematização começaram<br />

sob fortes tensões.<br />

Paralelamente a<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Comissão de Sistematização, grup<strong>os</strong> suprapartidári<strong>os</strong><br />

foram sendo articulad<strong>os</strong> com o objetivo de influenciar no trabalho d<strong>os</strong> relatores. Dentre esses<br />

grup<strong>os</strong>, podem<strong>os</strong> destacar o “Grupo d<strong>os</strong> 32” – liderado pelo Senador J<strong>os</strong>é Richa (PMDB-PR)<br />

e que chegou a elaborar anteprojet<strong>os</strong> informais – o “Grupo do Consenso” – que reunia<br />

parlamentares de centro e centro-esquerda – e <strong>um</strong>a coalizão de centro e direita, que ficou<br />

conhecida como “Centrão”, que reunia a parcela conservadora do PMDB – Centro<br />

75


Democrático –, PFL, PDS, PTB, PL e PDC. A organização deste último bloco foi incentivada<br />

pelas elites empresariais – insatisfeitas com a aprovação de direit<strong>os</strong> sociais e de disp<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong><br />

nacionalistas e estatizantes – e pelo governo federal, com o objetivo de derrubar alg<strong>um</strong>as<br />

definições como o sistema parlamentar de governo e o mandato presidencial de quatro an<strong>os</strong>.<br />

Também havia articulação d<strong>os</strong> setores militares, em razão da preocupação d<strong>os</strong> mesm<strong>os</strong> com o<br />

que consideravam ser <strong>um</strong>a tendência esquerdista da Sistematização.<br />

A Comissão de Sistematização tinha divers<strong>os</strong> problemas de funcionamento. Percebeu-<br />

se, então, que o prazo atribuído à Comissão era muito pequeno, e necessitava de prorrogações.<br />

Estas foram sendo concedidas, embora tal concessão contribuísse para <strong>um</strong> descontentamento<br />

daqueles constituintes que não faziam parte da Sistematização. Ao longo d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>,<br />

soluções foram sendo encontradas para <strong>os</strong> problemas de funcionamento: a Mesa da Comissão<br />

foi ampliada, <strong>os</strong> líderes passaram a fazer rodadas de negociações prévias, o relator Bernardo<br />

Cabral organizou <strong>um</strong> grupo de relatores auxiliares, institucionalizou-se a figura do relator-<br />

adjunto. Uma prorrogação inicial, até 28 de outubro, e outra, até 30 de novembro,<br />

demonstravam as dificuldades decorrentes do vol<strong>um</strong>e e gravidade das matérias. A Comissão<br />

concluiu seus trabalh<strong>os</strong> dentro desse segundo prazo.<br />

Estava pronto o primeiro trabalho da Comissão de Sistematização destinado ao<br />

Plenário, e foi denominado Projeto de Constituição-A. Este era comp<strong>os</strong>to por <strong>um</strong> preâmbulo,<br />

271 artig<strong>os</strong> na parte permanente – subdividida em oito grandes títul<strong>os</strong> – e 63 na parte<br />

denominada “Ato das Disp<strong>os</strong>ições Gerais e Transitórias”.<br />

Já no final d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Comissão de Sistematização, o “Centrão” articulou-se com<br />

o objetivo de modificar o Regimento Interno. A articulação ultrapassou a maioria absoluta da<br />

Constituinte, ou seja, tinha apoio de mais de 280 constituintes. Embora <strong>os</strong> integrantes desse<br />

grupo tivessem p<strong>os</strong>ições muito diferenciadas em relação a divers<strong>os</strong> temas, estavam unid<strong>os</strong> em<br />

razão do descontentamento com o momento d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> constituintes e em virtude do<br />

76


propósito que tinham de alteração regimental. O principal arg<strong>um</strong>ento era em relação ao<br />

processo de votação em primeiro turno.<br />

Após diversas controvérsias e negociações, foi aprovada a Resolução nº 3, publicada<br />

em 5 de janeiro de 1988. 58 O impasse atrasou em mais de <strong>um</strong> mês o cronograma da<br />

Constituinte, que teve que ser novamente refeito. Dentre as mudanças empreendidas,<br />

permitiu-se que f<strong>os</strong>se reaberta a p<strong>os</strong>sibilidade de emendas, tendo sido apresentadas 2.021.<br />

Todas as anteriores ficaram prejudicadas, exceto as de iniciativa d<strong>os</strong> cidadã<strong>os</strong>. Ademais, nesta<br />

fase – assim como entre o primeiro e segundo turn<strong>os</strong> –, a Comissão de Sistematização<br />

desapareceria, sendo substituída pela figura individual do relator. Para a redação final foi<br />

prevista a criação de <strong>um</strong>a Comissão de Redação.<br />

O relator teve até 20 de janeiro para dar parecer às novas emendas. Com a publicação<br />

do parecer, e abert<strong>os</strong> <strong>os</strong> praz<strong>os</strong> para destaques e preferências, a votação em plenário somente<br />

começou <strong>um</strong> ano depois da instalação da Constituinte.<br />

Em 27 de janeiro de 1988 teve início o primeiro turno de votação em plenário. Diante<br />

da complexidade e da diversidade das matérias em votação, e sob a pressão externa para a<br />

conclusão d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>, tornou-se necessária a organização da agenda constituinte, antes da<br />

abertura das sessões plenárias. O Colégio d<strong>os</strong> Líderes – <strong>um</strong> mecanismo de negociação e<br />

decisão que agrupava as principais lideranças partidárias e do Centrão, a Mesa, o relator e sua<br />

equipe –, acrescido d<strong>os</strong> constituintes particularmente interessad<strong>os</strong> na matéria em votação,<br />

ass<strong>um</strong>iu <strong>um</strong> papel preponderante na organização das deliberações. Esse colegiado selecionava<br />

58 O “Centrão”, inconformado com o teor “esquerdizante” do projeto e confiante na pretensa maioria em<br />

plenário, consegue modificar, após tentativas de acordo e duas votações, o Regimento, no sentido de exigir a<br />

maioria qualificada de 280 vot<strong>os</strong> não só para aprovar <strong>um</strong>a emenda modificativa, mas também para manter o<br />

texto de <strong>um</strong> artigo do projeto já aprovado na Sistematização. A esquerda reage, chegando a propor sua retirada<br />

da Constituinte, caso vençam as prop<strong>os</strong>tas do Centrão. O próprio Bernardo Cabral demonstra o temor de que o<br />

Centrão p<strong>os</strong>sa anular <strong>os</strong> partid<strong>os</strong> pequen<strong>os</strong>. A estratégia da esquerda passa a ser, no entanto, a de pedir destaques<br />

em separado, obrigando o Centrão a manter sempre 280 d<strong>os</strong> seus membr<strong>os</strong> em plenário. O Centrão recua e faz<br />

acord<strong>os</strong> que permitem a aprovação de temas como o princípio da democracia direta, o habeas data, o mandado<br />

de segurança coletivo, de injunção e a função social da propriedade.<br />

77


<strong>os</strong> assunt<strong>os</strong> em discussão, discernindo <strong>os</strong> pont<strong>os</strong> polêmic<strong>os</strong> d<strong>os</strong> não polêmic<strong>os</strong>, e definia o<br />

conteúdo e o grau das discordâncias, buscando alternativas para evitar o impasse. 59<br />

Em 30 de junho de 1988 foi concluído o primeiro turno de votações, tendo sido<br />

realizadas 732 votações. Nesse período, ocorreram 119 sessões e inúmeras reuniões externas<br />

para discussão e acert<strong>os</strong>, envolvendo <strong>um</strong> total de 2.277 destaques.<br />

Em julho de 1988, cinco meses após o seu início, o primeiro turno das votações em<br />

plenário estava concluído. Para a votação em segundo turno, o relator Bernardo Cabral<br />

apresentou, no dia 5 de julho, o Projeto de Constituição-B, estruturado em Preâmbulo, nove<br />

títul<strong>os</strong> e <strong>um</strong> Ato das Disp<strong>os</strong>ições Constitucionais Transitórias. Ao todo, o Projeto continha<br />

322 artig<strong>os</strong>, dentre <strong>os</strong> quais 245 estavam na parte permanente e 77 na parte transitória.<br />

A votação em segundo turno começou em <strong>um</strong> momento tenso, do ponto de vista<br />

institucional. Diante da previsível dificuldade para a alteração do projeto, o Governo Federal e<br />

setores empresariais pressionaram a Constituinte, pedindo mudanças nas regras de votação.<br />

Para <strong>os</strong> empresári<strong>os</strong>, a ampliação d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> sociais tornaria inviável a atividade produtiva e<br />

a tendência nacionalista e estatizante da Ordem Econômica afastaria investidores extern<strong>os</strong>. A<br />

Presidência da República, além dessas críticas, afirmava que o anteprojeto a<strong>um</strong>entaria as<br />

despesas púbicas e desorganizaria o sistema tributário, dificultando a superação da crise<br />

econômica pela qual passava o País.<br />

Em 26 de julho, o presidente J<strong>os</strong>é Sarney tornou pública suas criticas ao Projeto de<br />

Constituição-B. Em rede nacional de rádio e TV, afirmou que o Projeto, se aprovado, tornaria<br />

o País ingovernável. A reação foi imediata. No dia seguinte, o presidente da Assembléia<br />

Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, apresentou <strong>um</strong>a réplica, na qual fazia <strong>um</strong>a defesa<br />

da Constituinte. O discurso foi exibido à noite em rede nacional de rádio e TV. A votação do<br />

59 Entre as questões em conflito, destacaram-se o sistema de governo, o mandato presidencial e a Reforma<br />

Agrária, cujo resultado – favorável à União Democrática Ruralista (UDR) – só foi p<strong>os</strong>sível através da utilização<br />

do destaque para votação em separado (DVS), <strong>um</strong> disp<strong>os</strong>itivo que fazia com que, a partir de <strong>um</strong> requerimento<br />

subscrito por, no mínimo, 187 constituintes, a matéria destacada do substitutivo ou do projeto somente f<strong>os</strong>se<br />

incluída no texto constitucional se aprovada pela maioria absoluta d<strong>os</strong> constituintes.<br />

78


texto alcançou expressiva maioria, confirmando o trabalho do primeiro turno. O Projeto B foi<br />

aprovado por 403 vot<strong>os</strong> contra 13 e 55 abstenções.<br />

A conjuntura social e econômica – bem como a proximidade das eleições municipais,<br />

com candidat<strong>os</strong> já em campanhas – contribuiu para a percepção de que <strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da<br />

Assembléia Nacional Constituinte deveriam ser acelerad<strong>os</strong> e finalizad<strong>os</strong>.<br />

Continuaram as divergências, <strong>os</strong> <strong>debates</strong> e as negociações. Todavia, o texto não sofreu<br />

muitas alterações de princípi<strong>os</strong> no segundo turno de votações. Foram feit<strong>os</strong>, contudo, divers<strong>os</strong><br />

ajustes e mudanças na redação d<strong>os</strong> disp<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong>, ocasionando repercussões no seu significado<br />

e aplicação. A conclusão do segundo turno se deu na madrugada do dia 2 de setembro, após<br />

38 sessões e 288 votações.<br />

Restava ainda a preparação da última versão, a ser ratificada pelo plenário. A Reforma<br />

Regimental – Resolução nº 3, de janeiro de 1988 – transferiu essa tarefa a <strong>um</strong>a Comissão de<br />

Redação, nomeada pelo Presidente. E novamente aparecem divergências em relação à<br />

comp<strong>os</strong>ição desta Comissão.<br />

O relator Bernardo Cabral preparou <strong>um</strong> texto para ser submetido à Comissão.<br />

Admitidas emendas de redação por parte de qualquer constituinte, 833 delas foram<br />

apresentadas. A redação final foi submetida a <strong>um</strong>a última e rápida votação em plenário, com<br />

quatro observações levantadas e aceitas.<br />

Em 22 de setembro de 1988, o plenário da Assembléia Nacional Constituinte, na<br />

1.021ª votação, aprovou, por 474 vot<strong>os</strong> contra 15 – tod<strong>os</strong> de constituintes do PT 60 – e seis<br />

abstenções, o Projeto de Constituição-D.<br />

A Constituição foi promulgada no dia 5 de outubro de 1988, em sessão solene.<br />

Prestaram juramento <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e senadores, o Presidente da República J<strong>os</strong>é Sarney e o<br />

Presidente do STF, Rafael Mayer. A sessão contou ainda com a participação das maiores<br />

60 João Paulo Pires de Vasconcel<strong>os</strong> (PT-MG) foi o único parlamentar do PT que votou a favor do Projeto de<br />

Constituição-D, contrariando a deliberação do Diretório Nacional do Partido, que decidira votar contra o texto<br />

final.<br />

79


autoridades do País e de delegações estrangeiras. O texto final ficou comp<strong>os</strong>to por 315<br />

artig<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> quais 245 distribuíd<strong>os</strong> por oito títul<strong>os</strong> das disp<strong>os</strong>ições permanentes e 70 nas<br />

disp<strong>os</strong>ições transitórias.<br />

Ao todo foram 583 dias desde a instalação da ANC até a solene promulgação da<br />

Constituição. Não foi o processo constituinte mais longo de que se tenha conhecimento.<br />

Porém, muitas dificuldades foram encontradas no decorrer do processo. Um enorme vol<strong>um</strong>e<br />

de matérias foi examinado. Antes da Comissão de Sistematização, entre anteprojet<strong>os</strong> e<br />

projet<strong>os</strong>, tivem<strong>os</strong> quatro, somente o último valendo como oficial. Da Sistematização resultou<br />

mais <strong>um</strong>. Do primeiro turno, outro. Do trabalho do relator entre <strong>os</strong> dois turn<strong>os</strong> de plenário,<br />

mais <strong>um</strong>. No segundo turno, outro projeto. E, finalmente, a redação final. Ao todo, existiram<br />

nove anteprojet<strong>os</strong> ou projet<strong>os</strong> de Constituição, desde o de 15 de julho de 1987, até o último, a<br />

redação final, em 22 de setembro de 1988. Além disso, durante as várias fases – comissões,<br />

sistematização, primeiro e segundo turn<strong>os</strong> de plenário –, foram apresentadas 65.809 emendas.<br />

Antes de concluirm<strong>os</strong> esta etapa, consideram<strong>os</strong> relevante, para <strong>um</strong>a abordagem do<br />

período de instalação e funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte, <strong>um</strong> enfoque não<br />

apenas institucional. Acreditam<strong>os</strong> que, em n<strong>os</strong>so <strong>estudo</strong>, a mobilização social ocorrida por<br />

razão da Constituinte pode n<strong>os</strong> propiciar informações mais relevantes do que as características<br />

institucionais do momento.<br />

Podem<strong>os</strong> observar que muitas obras da época – mais especificamente d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> de<br />

1985 e 1986 – p<strong>os</strong>suem <strong>um</strong> caráter “panfletário”, por dois motiv<strong>os</strong>. Em primeiro lugar,<br />

procuram deixar claro o caráter ideológico de seus text<strong>os</strong>. Ademais, muit<strong>os</strong> desses <strong>estudo</strong>s<br />

foram elaborad<strong>os</strong> com o objetivo específico de serem difundid<strong>os</strong> para a população brasileira –<br />

para que o público em geral tivesse conhecimento das questões <strong>acerca</strong> da Constituinte que<br />

estavam em pauta no momento –, e não apenas com o intuito de permanecerem no âmbito<br />

acadêmico. Acreditam<strong>os</strong> que essa característica, longe de consistir em <strong>um</strong> obstáculo para as<br />

80


n<strong>os</strong>sas investigações, contribui para que tenham<strong>os</strong> <strong>um</strong> maior dimensionamento do grau de<br />

mobilização social existente na década de 80.<br />

João Baptista Herkenhoff (1986, p. 7), em livro intitulado Como participar da<br />

Constituinte, enfatiza na apresentação da obra que ela “se destina, prioritariamente, à pessoa<br />

com<strong>um</strong>, ao leigo em direito, que deseje ter à mão element<strong>os</strong> de informação e reflexão para<br />

p<strong>os</strong>icionar-se em face do tema ‘Constituinte’”. Acrescenta, corroborando o que foi dito no<br />

parágrafo acima, que “não é <strong>um</strong> livro neutro”.<br />

O autor, em divers<strong>os</strong> moment<strong>os</strong> de sua obra, procura enfatizar a importância do<br />

processo de elaboração constitucional, dando mais relevância a esse processo do que ao<br />

próprio produto dele decorrente, qual seja, a Constituição. Ainda na apresentação do livro,<br />

Herkenhoff afirma:<br />

Suponho que ganh<strong>os</strong> efetiv<strong>os</strong> poderão ser alcançad<strong>os</strong> pelo povo – entendido<br />

como esta imensa multidão de trabalhadores, de desempregad<strong>os</strong>, de<br />

marginalizad<strong>os</strong> em geral – se houver participação popular na Constituinte.<br />

Creio que haverá mais ganh<strong>os</strong> no decorrer e por força do processo<br />

constituinte do que, até mesmo, pelo produto desse processo: a<br />

Constituição. [grifo no original] (HERKENHOFF , 1986, p. 8).<br />

Mais adiante, falando <strong>sobre</strong> “O povo e o processo constituinte”, o jurista reforça essa<br />

idéia: “em matéria de Constituinte/Constituição, acho que o trabalho de elaboração é mais<br />

importante do que o produto desse trabalho, ou seja, parece-me que o processo constituinte é<br />

mais importante do que a própria Constituição” [grifo no original] (HERKENHOFF, 1986, p.<br />

72). 61<br />

61 João Baptista Herkenhoff (1986, pp. 47-50) en<strong>um</strong>era divers<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> pel<strong>os</strong> quais se torna significante a<br />

eleição e o funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte, na “atualidade brasileira”: (a) “retomada do<br />

‘estado de direito’, ou seja, o reencontro do Brasil com <strong>um</strong>a ordem legal”; (b) “legitimidade do poder”, ou seja,<br />

devolver ao poder a legitimidade, “ou o mínimo da legitimidade necessária n<strong>um</strong> Estado democrático”; (c)<br />

“recuperação de conquistas usurpadas”, ou seja, recuperação das conquistas políticas e sociais perdidas ao longo<br />

do regime instituído em 1964; (d) “solidificação de avanç<strong>os</strong> alcançad<strong>os</strong>”; (e) “amplo debate das questões<br />

nacionais”, em op<strong>os</strong>ição ao “regime de decisões tomadas a portas trancadas”; (f) “p<strong>os</strong>sibilidade de conquistas<br />

das classes oprimidas”, na medida em que “se organizem e tenham força para fazer imp<strong>os</strong>ições à classe<br />

dominante”; (g) “consciência da necessidade de luta”, ou seja, “a compreensão de que <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> da maioria não<br />

são passíveis de outorga, mas devem resultar de conquista, pela luta organizada”; (h) “avanço das lutas populares<br />

em geral”, que devem “correr paralelas à luta da Constituinte”. Neste sentido, “será indispensável que o debate<br />

81


Considerando a Constituinte e a Constituição como “caminho para atuação e<br />

reivindicação d<strong>os</strong> oprimid<strong>os</strong>”, João Baptista Herkenhoff faz <strong>um</strong>a defesa da participação<br />

popular na Constituinte.<br />

Entretanto, apesar de reconhecerm<strong>os</strong> <strong>os</strong> limites da lei, por si mesma, e, por<br />

conseguinte, também <strong>os</strong> limites de <strong>um</strong>a Constituição, acham<strong>os</strong> que a<br />

Constituinte e a Constituição podem abrir caminh<strong>os</strong> para a atuação e as<br />

reivindicações d<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> subaltern<strong>os</strong> da sociedade, na medida em que esses<br />

grup<strong>os</strong> se organizem. As classes populares perderiam <strong>um</strong>a grande<br />

oportunidade de vitórias efetivas se cruzassem <strong>os</strong> braç<strong>os</strong> diante da<br />

Assembléia Constituinte. Esta necessidade de engajamento das classes<br />

oprimidas, na luta da Constituinte, está sendo compreendida, motivo pelo<br />

qual partid<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> comprometid<strong>os</strong> com o povo, sindicat<strong>os</strong> operári<strong>os</strong>,<br />

associações de moradores, comunidades eclesiais de base, moviment<strong>os</strong><br />

populares em geral estão empenhad<strong>os</strong> na mobilização do povo pela<br />

Constituinte. (HERKENHOFF, 1986, p. 31)<br />

E acrescenta, neste mesmo sentido, que<br />

Em síntese, parece adequado concluir que a Constituinte não é tudo, não é<br />

<strong>um</strong>a panacéia para a solução de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> problemas brasileir<strong>os</strong>. Afirmar tal<br />

coisa é, ao meu ver, <strong>um</strong> equívoco. Mas também não é inútil, não é <strong>um</strong> nada.<br />

Colocar-se nesta segunda p<strong>os</strong>ição significaria subtrair do povo a<br />

oportunidade de ocupar <strong>um</strong> espaço, de fazer alg<strong>um</strong>a espécie de conquista.<br />

Parece-me que, na perspectiva das classes oprimidas, a Constituinte é <strong>um</strong><br />

momento muito importante na luta do povo. (HERKENHOFF, 1986, p. 52)<br />

Teorizando <strong>sobre</strong> como o povo pode – e deve – participar do processo constituinte,<br />

Herkenhoff (1986, p. 67) defende que “essa participação será escola, avanço na organização e<br />

na luta popular e requisito de legitimidade da própria assembléia”. De forma bastante<br />

<strong>sobre</strong> a Constituição seja travado em cotejo com a situação real das classes trabalhadoras evitando-se que a<br />

manipulação, cientificamente dirigida, desloque o grande eixo de discussões para questões secundárias, que se<br />

<strong>sobre</strong>ponham às questões essenciais”; (i) “4ª Constituinte na História do Brasil”, tendo em vista que será a “4ª<br />

Constituição promulgada”; (j) “Constituinte de <strong>um</strong> novo tempo”, que “já se distancia 40 an<strong>os</strong> da última que<br />

tivem<strong>os</strong>, período em que o Brasil sofreu profundas transformações”; (k) “desencadeamento do processo<br />

constituinte” que, “como fato social e político, pode suplantar (e provavelmente suplantará) a importância da<br />

própria Constituição que será elaborada”; (l) “experiência importante, ainda que a Constituinte frustre<br />

esperanças”, em outr<strong>os</strong> term<strong>os</strong>, “constitui <strong>um</strong>a experiência histórica para as classes populares, até mesmo para<br />

que concluam, se for o caso, como a representação política traiu <strong>os</strong> interesse da maioria, ou mesmo para tornar<br />

claras as limitações reais de <strong>um</strong>a Constituinte dentro de <strong>um</strong>a sociedade na qual o poder efetivo pertence a<strong>os</strong><br />

don<strong>os</strong> do capital”.<br />

82


otimista, o autor afirma que “a Constituinte poderá ser <strong>um</strong> momento muito importante na vida<br />

brasileira, na medida em que represente <strong>um</strong> amplo debate nacional, com real participação das<br />

classes populares”. Contudo, atentando para as distorções que poderão ocorrer no decorrer do<br />

processo, o jurista prevê que “haverá muitas forças interessadas em restringir o debate, em<br />

transformar a Assembléia Constituinte n<strong>um</strong> lugar de discussão acadêmica, em fazer da nova<br />

Constituição <strong>um</strong> pacto de elites, com presença mínima de voz e d<strong>os</strong> interesses das grandes<br />

maiorias”. Contudo, ressalta que “cabe ao povo, entendido como o conjunto d<strong>os</strong> trabalhadores<br />

e d<strong>os</strong> desp<strong>os</strong>suíd<strong>os</strong>, mobilizar-se para impedir a distorção do processo constituinte”.<br />

Acerca da mobilização popular na Constituinte, Herkenhoff (1986, p. 68) enfatiza que<br />

ela deverá ser feita de variadas formas, ou seja, “através de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> órgã<strong>os</strong> representativ<strong>os</strong> do<br />

povo, desde partid<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> populares e sindicat<strong>os</strong> operári<strong>os</strong>, até associações de moradores,<br />

moviment<strong>os</strong> de defesa de minorias, comunidades eclesiais de base etc.”.<br />

Em livro cujo título – Constituinte: vez e voz do povo? – já representa <strong>um</strong>a crítica ao<br />

processo em andamento, Laurício Ne<strong>um</strong>ann e Oswaldo Dalpiaz apresentam alg<strong>um</strong>as questões<br />

que estavam em debate no período pré-Constituinte. Pode-se perceber, pela leitura da obra,<br />

que se trata de <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> também destinado ao público leigo.<br />

De acordo com Osvaldo Biz, jornalista e professor, responsável pela apresentação da<br />

obra, o livro “é <strong>um</strong>a contribuição [...] para o grande fato político-institucional que acontecerá<br />

em n<strong>os</strong>so País: a elaboração de <strong>um</strong>a nova Constituição”. (Cf. NEUMANN & DALPIAZ,<br />

1986, p. 7).<br />

Na apresentação da obra podem<strong>os</strong> observar <strong>um</strong>a preocupação com o processo eleitoral<br />

que ocorreria em novembro de 1986, tendo em vista que seria o momento de escolha d<strong>os</strong><br />

futur<strong>os</strong> constituintes.<br />

Embora com desagrado de toda a nação, o Congresso decidiu que a<br />

Assembléia Nacional Constituinte deveria ser congressual e não exclusiva,<br />

83


cabe ao povo ocupar bem o espaço que sobra, através d<strong>os</strong> <strong>debates</strong> e da<br />

escolha de constituintes comprometid<strong>os</strong> com ele. A nova Carta Magna<br />

poderá ser moderna, preocupada com a maioria marginalizada do n<strong>os</strong>so<br />

povo; ou conservadora, onde, mais <strong>um</strong>a vez, se firmarão <strong>os</strong> privilégi<strong>os</strong> das<br />

n<strong>os</strong>sas elites. A opção por <strong>um</strong> ou por outro modelo constitucional vai<br />

depender essencialmente do perfil daqueles que forem escolhid<strong>os</strong> no dia 15<br />

de novembro. Os representantes d<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> econômic<strong>os</strong> adentram na<br />

sociedade, protegid<strong>os</strong> por <strong>um</strong>a poder<strong>os</strong>a retaguarda, onde falará mais alto<br />

não a discussão das idéias que deverão nortear a nova Constituição, mas a<br />

força do poder econômico, com o intuito de que nada mude em n<strong>os</strong>so País.<br />

Um grupo menor se apresentará sem nenh<strong>um</strong>a base econômica, movido pela<br />

idéia de que esta será a grande oportunidade de sacramentar <strong>os</strong> ansei<strong>os</strong><br />

populares, traduzid<strong>os</strong> em leis, que consigam realmente ter força de mudança.<br />

O que sobrou para o povo é o seu direito de escolher <strong>os</strong> futur<strong>os</strong><br />

constituintes, de acordo com o perfil de <strong>um</strong> homem novo e de <strong>um</strong>a<br />

sociedade nova. Por isso mesmo, mais do que nunca, o seu voto deverá<br />

ser pensado, pesado, livre de compadrio e da troca de favores. A<strong>os</strong><br />

eleitores cabe a responsabilidade de discutir com <strong>os</strong> candidat<strong>os</strong> suas<br />

p<strong>os</strong>ições perante <strong>os</strong> problemas mais agud<strong>os</strong> de n<strong>os</strong>sa sociedade,<br />

conhecer suas p<strong>os</strong>ições e depois optar, não sem antes cobrar <strong>os</strong><br />

compromiss<strong>os</strong>. Caso contrário, depois tudo será manipulado e <strong>os</strong> eleit<strong>os</strong><br />

serão mer<strong>os</strong> homologadores de <strong>um</strong> texto previamente elaborado pela<br />

comissão de notáveis. O objetivo desta obra é fazer com que o eleitor<br />

perceba que a Constituição tem a ver com a vida de cada <strong>um</strong>. Que<br />

depois de seis constituições outorgadas e votadas, chegou a chance,<br />

única em quatrocent<strong>os</strong> an<strong>os</strong> de história, de dizer que tipo de sociedade<br />

querem<strong>os</strong> e como deverão ser resolvid<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> problemas. [grifo n<strong>os</strong>so]<br />

(Cf. NEUMANN & DALPIAZ, 1986, pp. 7-8).<br />

Podem<strong>os</strong> concluir que, durante o início da década de 80, houve <strong>um</strong>a intensa<br />

mobilização da sociedade brasileira no sentido de convocação e instalação de <strong>um</strong>a<br />

Assembléia Nacional Constituinte. Ressalte-se, ainda, a luta pela participação popular no<br />

processo de elaboração do n<strong>os</strong>so texto constitucional.<br />

Esses fatores demonstram como a Constituinte significava, para a sociedade brasileira<br />

da época, <strong>um</strong> espaço no qual as demandas emergentes do seu interior pudessem ser<br />

transformadas em normas jurídicas. Em outr<strong>os</strong> term<strong>os</strong>, <strong>um</strong> espaço no qual <strong>os</strong> ansei<strong>os</strong> e<br />

expectativas da sociedade pudessem encontrar p<strong>os</strong>sibilidades de normatização.<br />

84


3. O DIREITO DE RESISTÊNCIA NA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTI-<br />

TUINTE DE 1987/1988<br />

O presente tópico será subdividido em duas partes. Na primeira, irem<strong>os</strong> fazer <strong>um</strong>a<br />

biografia daqueles que se manifestaram <strong>acerca</strong> do direito de resistência na Assembléia<br />

Nacional Constituinte de 1987/1988.<br />

Na segunda parte, verificarem<strong>os</strong> – utilizando como doc<strong>um</strong>entação <strong>os</strong> diári<strong>os</strong> da<br />

Assembléia Nacional Constituinte – o teor d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o direito de resistência.<br />

3.1.OS EMISSORES DO DISCURSO<br />

Todo mundo fala em Constituinte. Não é p<strong>os</strong>sível que<br />

todo mundo esteja falando a mesma linguagem,<br />

n<strong>um</strong>a sociedade dividida, onde alguns estocam terra<br />

e outr<strong>os</strong> não têm <strong>um</strong> pedaço de chão onde reclinar a<br />

cabeça, onde pouc<strong>os</strong> vivem n<strong>um</strong> eterno oba-oba e<br />

multidões, nas enc<strong>os</strong>tas d<strong>os</strong> morr<strong>os</strong>, não têm a<br />

tranqüilidade, nem do sono noturno, e podem ser<br />

soterradas pelo rolar de <strong>um</strong>a pedra. Evidentemente,<br />

grup<strong>os</strong> tão antagônic<strong>os</strong>, se acaso falam as mesmas<br />

palavras, dão a elas significad<strong>os</strong> diferentes, por<br />

motiv<strong>os</strong> diferentes e com objetiv<strong>os</strong> diferentes.<br />

(João Baptista Herkenhof)<br />

Durante <strong>os</strong> <strong>debates</strong> da Assembléia Nacional Constituinte, a questão do direito de<br />

resistência foi colocada em discussão. Inicialmente, o referido direito apareceu no Projeto de<br />

Constituição apresentado pela Bancada do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, em 06 de maio de<br />

85


1987. 62 P<strong>os</strong>teriormente, foi debatido alg<strong>um</strong>as vezes durante as reuniões das subcomissões.<br />

Por vezes foi defendido, e, em outr<strong>os</strong> moment<strong>os</strong>, rejeitado. Sendo assim, importa apresentar<br />

aqueles que participaram deste debate, ou seja, <strong>os</strong> emissores do discurso. Ressalte-se que n<strong>os</strong><br />

concentrarem<strong>os</strong> apenas naqueles constituintes ou cidadã<strong>os</strong> que se pronunciaram <strong>sobre</strong> o tema,<br />

e não naqueles que somente manifestaram sua aprovação ou rejeição através do voto.<br />

É importante enfatizarm<strong>os</strong> que, para <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> propósit<strong>os</strong>, é necessária <strong>um</strong>a biografia<br />

que tenha como marco final o período de promulgação da Constituição de 1988. Isso porque<br />

estam<strong>os</strong> interessad<strong>os</strong> em traçar <strong>um</strong> perfil desses atores polític<strong>os</strong> no período da Constituinte e<br />

no período imediatamente anterior à Constituinte, com o objetivo de compreenderm<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

motiv<strong>os</strong> que <strong>os</strong> levaram a proferir <strong>os</strong> seus discurs<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o direito de resistência na ANC.<br />

A biografia pode ser considerada <strong>um</strong>a história da vida de <strong>um</strong> indivíduo 63 . Desta forma,<br />

podem<strong>os</strong> afirmar, em princípio, que ela tem <strong>um</strong> caráter extremamente particularizado e<br />

circunscrito no que diz respeito ao seu objeto de <strong>estudo</strong>. Ademais, utiliza métod<strong>os</strong> de<br />

investigação que diferem daqueles adotad<strong>os</strong> por historiadores que se lançam a análises<br />

quantitativas.<br />

O novo regime de historicidade, iniciado no século XX com a “Escola d<strong>os</strong> Annales” 64 ,<br />

procurou substituir a tradicional narrativa d<strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> por <strong>um</strong>a “história-problema”.<br />

Ademais, propunha <strong>um</strong>a história de todas as atividades h<strong>um</strong>anas – e não apenas <strong>um</strong>a historia<br />

política –, bem como <strong>um</strong>a interdisciplinaridade. Era ainda quantitativa, no que concerne ao<br />

método, e h<strong>os</strong>til (ou pelo men<strong>os</strong> indiferente) em relação a<strong>os</strong> event<strong>os</strong> (BURKE, 1991).<br />

62 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 55. Brasília – DF, 7 de maio de 1987. (ANEXO I)<br />

63 Neste sentido, por exemplo, Levi (1998) e Bourdieu (1998).<br />

64 A utilização da expressão “Escola d<strong>os</strong> Annales” é questionada por divers<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong>. Em primeiro lugar, nem<br />

tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> historiadores ligad<strong>os</strong> à Revista Annales d’histoire économique et sociale, criada em 1929 por Marc<br />

Bloch e Lucien Febvre, pertenceram à “Escola d<strong>os</strong> Annales”. Ademais, a expressão acaba por ignorar as<br />

divergências individuais entre seus membr<strong>os</strong> e seu desenvolvimento no tempo. Burke (1991), por exemplo,<br />

apesar de utilizar tal denominação, admite que talvez seja preferível o epíteto “movimento d<strong>os</strong> Annales”. De<br />

acordo com Burke, somente depois da 2ª Guerra Mundial o movimento se aproxima verdadeiramente de <strong>um</strong>a<br />

“Escola”.<br />

86


Inicialmente, o movimento d<strong>os</strong> Annales empreendeu <strong>um</strong>a luta contra a “história<br />

tradicional” (história política, história d<strong>os</strong> event<strong>os</strong>, história événementielle). P<strong>os</strong>teriormente,<br />

teve sua trajetória marcada pela criação de nov<strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> (estrutura e conjuntura, por<br />

exemplo) e pela utilização de nov<strong>os</strong> métod<strong>os</strong>, especialmente a “historia serial” das mudanças<br />

na longa duração (BURKE, 1991).<br />

De maneira geral, <strong>os</strong> historiadores d<strong>os</strong> Annales adotaram a história quantitativa. A<br />

“revolução quantitativa” foi primeiramente sentida no campo econômico, particularmente na<br />

história d<strong>os</strong> preç<strong>os</strong>. P<strong>os</strong>teriormente, na história social, especialmente no âmbito da história<br />

populacional, da história demográfica. Finalmente, invadiu a história cultural, <strong>sobre</strong>tudo com<br />

a história das mentalidades. (BURKE, 1991).<br />

Em síntese, a história quantitativa – praticada por grande parte d<strong>os</strong> historiadores d<strong>os</strong><br />

Annales – preocupada com a construção de séries e com <strong>os</strong> procediment<strong>os</strong> estatístic<strong>os</strong>,<br />

anulou, de certa forma, o papel do indivíduo, na medida em que procurava se afastar do<br />

regime de historicidade do século XIX. Os indivídu<strong>os</strong>, então, passaram a ser vist<strong>os</strong> como<br />

atores sociais anônim<strong>os</strong>, submetid<strong>os</strong> a<strong>os</strong> mecanism<strong>os</strong> da sociedade. A própria história das<br />

mentalidades foi acusada de pressupor <strong>um</strong>a homogeneidade dentro de <strong>um</strong> grupo. O “retorno<br />

ao individuo” – mas não n<strong>os</strong> moldes do século XIX – partiu da concepção de que <strong>os</strong> atores<br />

fazem escolhas. A micro-historia – que teve em Carlo Ginzburg <strong>um</strong> d<strong>os</strong> seus principais<br />

representantes – foi <strong>um</strong>a das tentativas de restaurar o papel do individuo na história.<br />

Radicalmente diferente da monografia tradicional, a micro-storia pretende<br />

construir, a partir de <strong>um</strong>a situação particular, normal porque excepcional, a<br />

maneira como <strong>os</strong> indivídu<strong>os</strong> produzem o mundo social, por meio de suas<br />

alianças e seus confront<strong>os</strong>, através das dependências que <strong>os</strong> ligam ou d<strong>os</strong><br />

conflit<strong>os</strong> que <strong>os</strong> opõem. O objeto da história, portanto, não são, ou não são<br />

mais, as estruturas e <strong>os</strong> mecanism<strong>os</strong> que regulam fora de qualquer controle<br />

subjetivo, as relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias<br />

acionadas pelas comunidades, as parentelas, as famílias, <strong>os</strong> indivídu<strong>os</strong>. [...]<br />

Habituada a estabelecer hierarquias e a construir coletiv<strong>os</strong> (categorias sócioprofissionais,<br />

classes, grup<strong>os</strong>) a história das sociedades atribuiu-se nov<strong>os</strong><br />

objet<strong>os</strong>, estudad<strong>os</strong> em pequena escala. É o caso da biografia ordinária [...].<br />

87


Assim também a reconstituição d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> dinâmic<strong>os</strong> (negociações,<br />

transações, trocas, conflit<strong>os</strong> etc.) que desenham de maneira móvel, instável,<br />

as relações sociais, ao mesmo tempo em que recortam <strong>os</strong> espaç<strong>os</strong> abert<strong>os</strong> às<br />

estratégias individuais. (CHARTIER, 1994, p. 102)<br />

Em entrevista concedida à Revista Topoi, o historiador Jacques Revel faz <strong>um</strong> relato<br />

bastante interessante <strong>acerca</strong> de sua aproximação com a micro-história, no final da década de<br />

70. Seu depoimento é muito ilustrativo no que diz respeito ao problema das escalas de<br />

observação.<br />

E finaliza:<br />

Foi o momento em que me aproximei da micro-história italiana, porque o<br />

que me interessava era ligar <strong>um</strong>a prática a <strong>um</strong>a situação, a <strong>um</strong> contexto de<br />

ação, a <strong>um</strong> mundo relacional. Mas o que, creio, n<strong>os</strong> era com<strong>um</strong>, era no fundo<br />

a redescoberta da ação e d<strong>os</strong> atores, do que em inglês chama-se agency, que<br />

pode dificilmente ser traduzido para o francês, e que liga o conjunto das<br />

ações, das disp<strong>os</strong>ições para a ação e <strong>um</strong>a experiência social particular. É<br />

nesse sentido que o projeto de <strong>um</strong>a história social assim redefinido passava,<br />

a partir daí, a fazer sentido para nós. [...] O que n<strong>os</strong> propunha a microhistória<br />

era men<strong>os</strong> <strong>um</strong>a fórmula alternativa – ainda que alguns a tenham<br />

concebido desta forma – do que <strong>um</strong>a oportunidade para refletir de maneira<br />

crítica <strong>sobre</strong> as práticas da história social. Em todo caso, foi assim que a<br />

recebi. [...] Porque, até então, a história social tinha sido essencialmente<br />

macro-social – ela o era, para dizer a verdade, sem saber e sem que isso<br />

f<strong>os</strong>se realmente questionado –, ela não havia realmente se interrogado <strong>sobre</strong><br />

as escalas de observação, a não ser do ponto de vista da representação<br />

estatística. [...] A concepção e, se quiserm<strong>os</strong>, a ap<strong>os</strong>ta d<strong>os</strong> microhistoriadores<br />

caminhava exatamente no sentido inverso. Eles partiam da<br />

idéia de que no nível micro não se vê model<strong>os</strong> reduzid<strong>os</strong> de realidades<br />

gerais, mas que pode-se, antes de mais nada, perceber agenciament<strong>os</strong><br />

particulares da realidade social. [...] Mas o que me parece mais importante<br />

do que essa alternativa é o princípio da variação da escala, ou seja, o<br />

inventário, forç<strong>os</strong>amente empírico, e a exploração d<strong>os</strong> níveis de organização<br />

do social entre o micro e o macro, o que n<strong>os</strong> permitirá o acesso à apreensão<br />

mais complexa das configurações sociais. (REVEL, 2001 apud DAHER,<br />

2001, pp. 209, 211-212, 214)<br />

A última inovação <strong>sobre</strong> a qual g<strong>os</strong>taria de insistir, e que é para mim a mais<br />

importante, é a redescoberta d<strong>os</strong> atores e da ação. Não se trata aqui de <strong>um</strong>a<br />

escolha fil<strong>os</strong>ófica, mas da tomada de consciência do que deveria ser<br />

evidente: assim como nós, <strong>os</strong> atores do passado foram permanentemente<br />

confrontad<strong>os</strong> com escolhas, colocad<strong>os</strong> com <strong>os</strong> seus recurs<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> e<br />

também com as restrições que <strong>os</strong> atores sofriam, n<strong>um</strong> espaço<br />

88


socialmente marcado. A escala micro é a única que permite, ao que me<br />

parece, abordar concretamente essa dimensão de escolha – que não é<br />

sempre explícita, e men<strong>os</strong> ainda explicitada – n<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> cas<strong>os</strong><br />

privilegiad<strong>os</strong> em que se pode tentar reconstruir as coordenadas. [grifo<br />

n<strong>os</strong>so] (REVEL, 2001 apud DAHER, 2001, p. 215)<br />

De acordo com Burke (1991), a preocupação com a liberdade h<strong>um</strong>ana, juntamente<br />

com o interesse pela micro-história, fundamentou o recente renascimento da biografia<br />

histórica. Mas não se trata, segundo o autor, de <strong>um</strong> simples retorno ao passado. A biografia<br />

histórica é praticada por diferentes razões e ass<strong>um</strong>e formas diferentes.<br />

Carlo Ginzburg (1989), criticando o tipo de investigação feita pela história<br />

quantitativa, identifica o aparecimento de <strong>um</strong> maior número de investigações históricas<br />

caracterizadas pela análise de fenômen<strong>os</strong> circunscrit<strong>os</strong>, como <strong>um</strong>a comunidade aldeã, <strong>um</strong><br />

grupo de famílias ou mesmo <strong>um</strong> indivíduo. Ginzburg enfatiza a importância do nome para<br />

abrir nov<strong>os</strong> camp<strong>os</strong> à investigação histórica. Segundo o autor, “as linhas que convergem para<br />

o nome e que dele partem, compondo <strong>um</strong>a espécie de teia de malha fina, dão ao observador a<br />

imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido”. (GINZBURG, 1989, p.<br />

175).<br />

Em outra obra, Ginzburg (1990), trabalhando com a noção de “paradigma galileano”,<br />

refuta a p<strong>os</strong>sibilidade de constituição de <strong>um</strong>a disciplina histórica que seja apenas quantitativa.<br />

Ora, é claro que o grupo de disciplinas que chamam<strong>os</strong> de indiciárias<br />

(incluída aí a medicina) não entra absolutamente n<strong>os</strong> critéri<strong>os</strong> de<br />

cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de<br />

disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto cas<strong>os</strong>, situações e<br />

doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> individuais, enquanto individuais, e justamente por isso<br />

alcançam resultad<strong>os</strong> que têm <strong>um</strong>a margem ineliminável de casualidade [...].<br />

A ciência galileana tinha <strong>um</strong>a natureza totalmente diversa, que poderia<br />

adotar o lema escolástico individu<strong>um</strong> est ineffabile, do que é individual não<br />

se pode falar. O emprego da matemática e o método experimental, de fato,<br />

implicavam respectivamente a quantificação e a repetibilidade d<strong>os</strong><br />

fenômen<strong>os</strong>, enquanto a perspectiva individualizante excluía por definição a<br />

segunda, e admitia a primeira apenas em funções auxiliares. Tudo isso<br />

explica por que a história nunca conseguiu se tornar <strong>um</strong>a ciência galileana.<br />

[...] A história se manteve como <strong>um</strong>a ciência social sui generis,<br />

irremediavelmente ligada ao concreto. Mesmo que o historiador não p<strong>os</strong>sa<br />

89


deixar de se referir, explícita ou implicitamente, a séries de fenômen<strong>os</strong><br />

comparáveis, a sua estratégia cogn<strong>os</strong>citiva assim como <strong>os</strong> seus códig<strong>os</strong><br />

expressiv<strong>os</strong> permanecem intrinsecamente individualizantes (mesmo que o<br />

indivíduo seja talvez <strong>um</strong> grupo social ou <strong>um</strong>a sociedade inteira). Nesse<br />

sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza <strong>os</strong> quadr<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong>ográfic<strong>os</strong> para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do<br />

médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural. [grifo no<br />

original] (GINZBURG, 1990, pp. 156-157).<br />

Entendem<strong>os</strong> que o n<strong>os</strong>so <strong>estudo</strong>, por ter como objetivo fazer <strong>um</strong>a análise do discurso<br />

daqueles que participaram d<strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>acerca</strong> do direito de resistência na Constituinte de<br />

1987/1988, não conta com <strong>um</strong>a representatividade n<strong>um</strong>érica significativa de atores sociais,<br />

tendo em vista o número reduzido de indivídu<strong>os</strong> que se manifestaram <strong>sobre</strong> o tema. Sendo<br />

assim, <strong>os</strong> métod<strong>os</strong> da história quantitativa não têm grande serventia em n<strong>os</strong>sa pesquisa. Pelas<br />

razões exp<strong>os</strong>tas, optam<strong>os</strong> pela ênfase na escala micro. Em outras palavras, colocarem<strong>os</strong> o<br />

foco n<strong>os</strong> indivídu<strong>os</strong>, em suas escolhas, bem como nas redes nas quais <strong>os</strong> mesm<strong>os</strong> estavam<br />

inserid<strong>os</strong>.<br />

Uma pesquisa que engloba <strong>um</strong> número diminuto de indivídu<strong>os</strong> n<strong>os</strong> deixa ainda a<br />

p<strong>os</strong>sibilidade de utilização da biografia. Ressalte-se, portanto, a n<strong>os</strong>sa escolha pelo método<br />

biográfico.<br />

Giovanni Levi, em artigo no qual analisa <strong>os</strong> us<strong>os</strong> da biografia, indaga-se <strong>sobre</strong> a<br />

p<strong>os</strong>sibilidade de se escrever a vida de <strong>um</strong> indivíduo, apontando alg<strong>um</strong>as dificuldades. 65 Em<br />

seguida, no mesmo artigo, Levi estabelece <strong>um</strong>a tipologia das diversas abordagens utilizadas<br />

recentemente pel<strong>os</strong> historiadores no campo biográfico, esclarecendo, contudo, que não se trata<br />

de <strong>um</strong> rol taxativo. 66 Não tem<strong>os</strong> como objetivo a exp<strong>os</strong>ição de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> model<strong>os</strong> apresentad<strong>os</strong><br />

65 Segundo o autor, “em muit<strong>os</strong> cas<strong>os</strong>, as distorções mais gritantes se devem ao fato de que nós, como<br />

historiadores, imaginam<strong>os</strong> que <strong>os</strong> atores históric<strong>os</strong> obedecem a <strong>um</strong> modelo de racionalidade anacrônico e<br />

limitado. Seguindo <strong>um</strong>a tradição biográfica estabelecida e a própria retórica de n<strong>os</strong>sa disciplina, contentamon<strong>os</strong><br />

com model<strong>os</strong> que associam <strong>um</strong>a cronologia ordenada, <strong>um</strong>a personalidade coerente e estável ações sem<br />

inércia e decisões sem incertezas.” [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (LEVI, 1998, p. 169). E acrescenta, mais adiante: “Todavia<br />

as fontes de que dispom<strong>os</strong> não n<strong>os</strong> informam <strong>acerca</strong> d<strong>os</strong> process<strong>os</strong> de tomada de decisões, mas somente <strong>acerca</strong><br />

d<strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> destas, ou seja, <strong>acerca</strong> d<strong>os</strong> at<strong>os</strong>. Essa falta de neutralidade da doc<strong>um</strong>entação leva muitas vezes a<br />

explicações monocausais e lineares.” (LEVI, 1998, pp. 173-174)<br />

66 A tipologia apresentada pelo autor inclui: (1) Pr<strong>os</strong>opografia e biografia modal; (2) Biografia e contexto; (3) A<br />

biografia e <strong>os</strong> cas<strong>os</strong> extrem<strong>os</strong>; (4) Biografia e hermenêutica. (LEVI, 1998)<br />

90


pelo autor. Mencionarem<strong>os</strong> apenas aquele que consideram<strong>os</strong> mais relevante para <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong><br />

propósit<strong>os</strong>. Neste sentido, podem<strong>os</strong> ressaltar a abordagem denominada por Giovanni Levi de<br />

Biografia e contexto.<br />

Nesse segundo tipo de utilização, a biografia conserva sua especificidade.<br />

Todavia a época, o meio e a ambiência também são muito valorizad<strong>os</strong><br />

como fatores capazes de caracterizar <strong>um</strong>a atm<strong>os</strong>fera que explicaria a<br />

singularidade das trajetórias. Mas o contexto remete, na verdade, a duas<br />

perspectivas diferentes. Por <strong>um</strong> lado, a reconstituição do contexto histórico e<br />

social em que se desenrolam <strong>os</strong> aconteciment<strong>os</strong> permite compreender o que<br />

à primeira vista parece inexplicável e desconcertante. [...] Portanto, não se<br />

trata de reduzir as condutas a comportament<strong>os</strong>-tip<strong>os</strong>, mas de interpretar as<br />

vicissitudes biográficas à luz de <strong>um</strong> contexto que as torne p<strong>os</strong>síveis e, logo,<br />

normais. Por outro lado, o contexto serve para preencher as lacunas<br />

doc<strong>um</strong>entais por meio de comparações com outras pessoas cuja vida<br />

apresenta alg<strong>um</strong>a analogia, por esse ou aquele motivo, com a do personagem<br />

estudado. [...] Essa utilização da biografia repousa <strong>sobre</strong> <strong>um</strong>a hipótese<br />

implícita que pode ser assim formulada: qualquer que seja a sua<br />

originalidade aparente, <strong>um</strong>a vida não pode ser compreendida<br />

unicamente através de seus desvi<strong>os</strong> ou singularidades, mas, ao contrário,<br />

m<strong>os</strong>trando-se que cada desvio aparente em relação às normas ocorre em<br />

<strong>um</strong> contexto histórico que o justifica. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (LEVI, 1998, pp.<br />

175-176).<br />

Segundo o autor, com esse modelo é p<strong>os</strong>sível manter o equilíbrio entre a<br />

especificidade da trajetória individual e o sistema social como <strong>um</strong> todo (LEVI, 1998, p. 176).<br />

Levi (1998, p. 179) explica que existem ainda divers<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> problemátic<strong>os</strong> na<br />

utilização da biografia, ressaltando, como problemas particularmente importantes, a relação<br />

entre normas e práticas, entre indivíduo e grupo, entre determinismo e liberdade, ou ainda<br />

entre racionalidade absoluta e racionalidade limitada.<br />

Sobre as relações entre biografia e contexto, ressalte-se a observação do autor:<br />

Parece-me, ao contrário, que deveríam<strong>os</strong> indagar mais <strong>sobre</strong> a verdadeira<br />

amplitude da liberdade de escolha. Decerto essa liberdade não é absoluta:<br />

culturalmente e socialmente determinada, limitada, pacientemente<br />

conquistada, ela continua sendo, no entanto, <strong>um</strong>a liberdade consciente, que<br />

<strong>os</strong> interstíci<strong>os</strong> inerentes a<strong>os</strong> sistemas gerais de normas deixam a<strong>os</strong> atores. Na<br />

verdade nenh<strong>um</strong> sistema normativo é suficientemente estruturado para<br />

eliminar qualquer p<strong>os</strong>sibilidade de escolha consciente, de manipulação ou de<br />

91


interpretação das regras, de negociação. A meu ver a biografia é por isso<br />

mesmo o campo ideal para verificar o caráter intersticial – e, todavia,<br />

importante – da liberdade de que dispõem <strong>os</strong> agentes e para observar como<br />

funcionam concretamente <strong>os</strong> sistemas normativ<strong>os</strong>, que jamais estão isent<strong>os</strong><br />

de contradições. [...] Há <strong>um</strong>a relação permanente e recíproca entre biografia<br />

e contexto: a mudança é precisamente a soma infinita dessas inter-relações.<br />

[...] Talvez seja apenas <strong>um</strong>a nuança, mas me parece que não se pode analisar<br />

a mudança social sem que se reconheça previamente a existência irredutível<br />

de <strong>um</strong>a liberdade vis-à-vis as formas rígidas e as origens da reprodução das<br />

estruturas de dominação. (LEVI, 1998, pp. 179-180)<br />

Também Pierre Bourdieu, em artigo intitulado A ilusão biográfica, aponta as<br />

dificuldades de se contar <strong>um</strong>a “história de vida”.<br />

Produzir <strong>um</strong>a história de vida, tratar a vida como <strong>um</strong>a história, isto é, como o<br />

relato coerente de <strong>um</strong>a seqüência de aconteciment<strong>os</strong> com significado e<br />

direção, talvez seja conformar-se com <strong>um</strong>a ilusão retórica, <strong>um</strong>a<br />

representação com<strong>um</strong> da existência que toda <strong>um</strong>a tradição literária não<br />

deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU, 1998, p. 185)<br />

Bourdieu (1998, p. 189) enfatiza a importância do espaço social para a reconstrução da<br />

história de vida de <strong>um</strong> indivíduo. Neste sentido, o autor define a noção de trajetória como<br />

“série de p<strong>os</strong>ições sucessivamente ocupadas por <strong>um</strong> mesmo agente (ou <strong>um</strong> mesmo grupo)<br />

n<strong>um</strong> espaço que é ele próprio <strong>um</strong> devir, estando sujeito a incessantes transformações”. E<br />

acrescenta logo em seguida:<br />

Tentar compreender <strong>um</strong>a vida como <strong>um</strong>a série única e por si suficiente de<br />

aconteciment<strong>os</strong> sucessiv<strong>os</strong>, sem outro vínculo que não a associação a <strong>um</strong><br />

“sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de <strong>um</strong> nome<br />

próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de <strong>um</strong> trajeto no<br />

metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações<br />

objetivas entre as diferentes estações. Os aconteciment<strong>os</strong> biográfic<strong>os</strong> se<br />

definem como colocações e deslocament<strong>os</strong> no espaço social, isto é, mais<br />

precisamente n<strong>os</strong> diferentes estad<strong>os</strong> sucessiv<strong>os</strong> da estrutura da distribuição<br />

das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado.<br />

[...] O que equivale a dizer que não podem<strong>os</strong> compreender <strong>um</strong>a trajetória<br />

(isto é, o envelhecimento social que, embora o acompanhe de forma<br />

inevitável, é independente do envelhecimento biológico) sem que tenham<strong>os</strong><br />

previamente construído <strong>os</strong> estado sucessiv<strong>os</strong> do campo no qual ela se<br />

desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente<br />

considerado – pelo men<strong>os</strong> em certo número de estado pertinentes – ao<br />

conjunto d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> agentes envolvid<strong>os</strong> no mesmo campo e confrontad<strong>os</strong><br />

92


com o mesmo espaço d<strong>os</strong> p<strong>os</strong>síveis. [grif<strong>os</strong> no original] (BOURDIEU, 1998,<br />

pp. 189-190).<br />

O foco no indivíduo, em suas escolhas e nas redes das quais eles faziam parte permite,<br />

por <strong>um</strong> lado, <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> particularizado daqueles que se manifestaram <strong>sobre</strong> o direito de<br />

resistência na Constituinte de 1987/1988 e, por outro, <strong>um</strong>a abordagem <strong>um</strong> pouco mais<br />

abrangente, que liga estes particulares ao mundo com o qual <strong>os</strong> mesmo estavam diretamente<br />

vinculad<strong>os</strong>: seus partid<strong>os</strong> polític<strong>os</strong>, suas opções políticas, suas atividades, seus contat<strong>os</strong><br />

pessoais.<br />

O método que une biografia e contexto n<strong>os</strong> p<strong>os</strong>sibilita <strong>um</strong> enfoque semelhante ao<br />

descrito acima. Mas também permite <strong>um</strong>a articulação do indivíduo com o contexto mais<br />

amplo do qual ele fazia parte. Dessa forma, entendem<strong>os</strong> que somente terem<strong>os</strong> resp<strong>os</strong>tas<br />

satisfatórias para o n<strong>os</strong>so problema de <strong>estudo</strong> se considerarm<strong>os</strong> o contexto brasileiro no<br />

período da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988, bem como no período<br />

imediatamente anterior à convocação e instalação da mesma.<br />

3.1.1. Os defensores do direito de resistência<br />

3.1.1.1. J<strong>os</strong>é Genoino 67<br />

67 As informações biográficas <strong>acerca</strong> de J<strong>os</strong>é Genoíno foram retiradas das seguintes obras: BRASIL.<br />

CONGRESSO. CÂMARA DOS DEPUTADOS. ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1987.<br />

Repertório biográfico d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte de 1987. 2. ed. Brasília: Câmara<br />

d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>, Centro de Doc<strong>um</strong>entação e Informação, Coordenação de Publicações, 1989. COELHO, João<br />

Gilberto Lucas. OLIVEIRA, Antonio Carl<strong>os</strong> Nantes de. A nova Constituição: avaliação do texto e perfil d<strong>os</strong><br />

constituintes. Rio de Janeiro: Revan, 1989. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na constituinte:<br />

<strong>um</strong>a análise sócio-política d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> e deputad<strong>os</strong>. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. SILVA, Marcelo C<strong>os</strong>ta<br />

da. O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988: <strong>um</strong> perfil sociológico<br />

e biográfico de seus parlamentares. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2000. (Dissertação de Mestrado). As<br />

informações também foram extraídas das seguintes paginas eletrônicas: www.genoino.org (página eletrônica do<br />

Deputado J<strong>os</strong>é Genoino) e www.camara.gov.br (página eletrônica da Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>)<br />

93


Apresenta, em 15 de maio de 1987, perante a Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e<br />

Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> Coletiv<strong>os</strong> e Garantias (Subcomissão Ib), emenda na qual consta o direito de<br />

resistência. Em seguida defende a respectiva emenda.<br />

J<strong>os</strong>é Genoino Neto integrou a Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 como<br />

Deputado Federal (PT-SP). Genoino havia saído vitori<strong>os</strong>o nas eleições ocorridas em 15 de<br />

novembro de 1986, que, conforme vim<strong>os</strong> no tópico anterior, transformou <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> e<br />

senadores eleit<strong>os</strong> em constituintes. O mandato d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> eleit<strong>os</strong> em 1986 teria início em<br />

1987 e terminaria em 1991. Na época da Constituinte, Genoino tinha a profissão de professor.<br />

P<strong>os</strong>suía o curso de Fil<strong>os</strong>ofia incompleto.<br />

Genoino já havia atuado anteriormente como Deputado Federal – também pelo PT de<br />

São Paulo –, no período de 1983-1987. Este era, portanto, o seu segundo mandato<br />

parlamentar. 68<br />

Leôncio Martins Rodrigues, em obra na qual apresenta <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> de <strong>um</strong>a pesquisa<br />

<strong>sobre</strong> <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> federais eleit<strong>os</strong> para a Assembléia Nacional Constituinte em 15 de<br />

novembro de 1986, procura traçar, dentre outras características, o perfil social e as tendências<br />

políticas e ideológicas d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong>. Acerca de J<strong>os</strong>é Genoino, o autor afirma:<br />

J<strong>os</strong>é Genoíno Neto (PT), cearense, 40 an<strong>os</strong>, casado, professor diplomado<br />

pela Universidade Federal do Ceará. É a favor de <strong>um</strong>a economia<br />

totalmente estatizada, mas considera que as empresas estatais<br />

“deveriam ficar sob o controle democrático d<strong>os</strong> trabalhadores”. Quer o<br />

capital estrangeiro fora do País e <strong>um</strong>a reforma agrária radical. Dirigente<br />

68 Mandat<strong>os</strong> eletiv<strong>os</strong>: Deputado Federal, 1983-1987, SP, PT; Deputado Federal (Constituinte), 1987-1991, SP,<br />

PT. Atividade Parlamentar: Titular Comissão de Constituição e Justiça, CD, PT (1983-1987); Suplente<br />

Comissão de Economia, Indústria e Comércio, CD, PT (1983-1987); Suplente Comissão de Minas e Energia,<br />

CD, PT (1984-1987); Suplente Comissão de Transportes, CD, PT (1984-1987); Suplente Comissão de Relações<br />

Exteriores, CD, PT (1986-1987); Titular Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, da<br />

Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, ANC, PT (1987); Suplente Comissão<br />

de Sistematização, ANC, PT (1987-1988)<br />

94


estudantil no final d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 60, lutou na guerrilha do Araguaia, no interior<br />

goiano, como militante do PC do B. Capturado pelo Exército, torturado,<br />

ficou preso de 1972 a 1978. É <strong>um</strong> d<strong>os</strong> fundadores do PT e, dentro dele, o<br />

líder máximo de <strong>um</strong>a “corrente clandestina”, o PRC (Partido Revolucionário<br />

Comunista). C<strong>um</strong>pre seu segundo mandato como deputado federal, desta vez<br />

eleito com 28.054 vot<strong>os</strong>. Definiu-se como de esquerda radical. [grifo n<strong>os</strong>so]<br />

(RODRIGUES, 1987, p. 303).<br />

João Gilberto Lucas Coelho e Antonio Carl<strong>os</strong> Nantes de Oliveira, em livro publicado<br />

no ano seguinte ao da Promulgação da Constituição de 1988, procuram avaliar o novo texto<br />

constitucional, bem como fazer <strong>um</strong> perfil d<strong>os</strong> constituintes que atuaram na elaboração do<br />

texto. A pesquisa feita pel<strong>os</strong> autores aponta que Genoino esteve presente em 96% das<br />

votações gerais e recebeu 534 citações na imprensa nacional. Das 243 emendas que<br />

apresentou, 37 foram aprovadas. Votou contra a pena de morte e o mandato de cinco an<strong>os</strong><br />

para Sarney. Votou a favor do rompimento de relações diplomáticas com países com política<br />

de discriminação racial, da limitação do direito de propriedade privada, do mandado de<br />

segurança coletivo, da legalização do aborto, da estabilidade no emprego, da remuneração<br />

50% superior para o trabalho extra, da jornada semanal de 40 horas, do turno ininterrupto de<br />

seis horas, do aviso prévio proporcional, da pluralidade sindical, da soberania popular, do<br />

voto a<strong>os</strong> 16 an<strong>os</strong>, do presidencialismo, da nacionalização do subsolo, do limite de 12% ao ano<br />

para <strong>os</strong> jur<strong>os</strong> reais, da proibição do comércio de sangue, da limitação d<strong>os</strong> encarg<strong>os</strong> da dívida<br />

externa, da criação de <strong>um</strong> fundo de apoio à reforma agrária, da anistia a<strong>os</strong> micro e pequen<strong>os</strong><br />

empresári<strong>os</strong>, da legalização do jogo do bicho e da desapropriação do sistema financeiro<br />

(COELHO & OLIVEIRA, 1989, p. 432).<br />

Este é o verdadeiro exemplo de “parlamentar operário”, tal a agilidade e<br />

freqüência no plenário, onde, a todo instante, cria obstácul<strong>os</strong> d<strong>os</strong> que tentam<br />

manobras regimentais. É que ele, Genoíno, talvez seja, dentre <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong>,<br />

o melhor conhecedor do Regimento Interno. Sua presença em plenário é<br />

sempre <strong>um</strong>a garantia contra <strong>os</strong> “manobristas”. Seus vot<strong>os</strong>, como de resto <strong>os</strong><br />

do seu partido, refletem a fidelidade com <strong>os</strong> compromiss<strong>os</strong> ass<strong>um</strong>id<strong>os</strong><br />

junto à base eleitoral. No conjunto do partido, nas comissões e no plenário,<br />

durante a elaboração das leis complementares, terá como suas maiores<br />

preocupações: punição à discriminação atentatória d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> e liberdades<br />

95


fundamentais; tipificação da tortura; definição das terras devolutas; processo<br />

de licitação; condições para que qualquer cidadão, partido político,<br />

associação ou sindicato p<strong>os</strong>sam denunciar irregularidades ou ilegalidades<br />

perante o Tribunal de Contas da União; e lei especial definindo <strong>os</strong> crimes de<br />

responsabilidade do presidente da República e as normas de processo e<br />

julgamento. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (COELHO & OLIVEIRA, 1989, pp. 432-433).<br />

Como já foi explicitado, Genoino apresentou, em 15 de maio de 1987, perante a<br />

Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I),<br />

Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Coletiv<strong>os</strong> e Garantias (Subcomissão Ib),<br />

emenda na qual constava o direito de resistência. P<strong>os</strong>teriormente, fez <strong>um</strong>a defesa da<br />

respectiva emenda. Não pretendem<strong>os</strong> fazer aqui <strong>um</strong>a análise do discurso do Deputado <strong>acerca</strong><br />

do direito de resistência, assunto que deixarem<strong>os</strong> para o próximo tópico.<br />

Descrevem<strong>os</strong> acima, em linhas gerais, a atuação do “parlamentar operário” na<br />

Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988. Cabe agora <strong>um</strong> breve relato de sua “história<br />

de vida”, com o objetivo de verificarm<strong>os</strong> até que ponto suas opções na ANC foram<br />

influenciadas pelo seu enquadramento partidário e por sua trajetória de vida.<br />

Filho de Sebastião Genoíno Guimarães e Maria Laiz Nobre Guimarães, J<strong>os</strong>é Genoino<br />

Neto nasceu em 03 de maio de 1946, na cidade de Quixeramobim, no Ceará. 69<br />

Após a seca de 1958, J<strong>os</strong>é Genoino ingressou no grupo escolar do Encantado, pequeno<br />

distrito de Quixeramobim 70 . Para dar continuidade a<strong>os</strong> <strong>estudo</strong>s, Genoino teve que se mudar<br />

69 “Ele era o filho mais velho do agricultor Sebastião Genoino Guimarães e da professora Maria Laís Nobre<br />

Guimarães. Ainda contava a idade n<strong>os</strong> ded<strong>os</strong> de <strong>um</strong>a mão e já sabia usar a enxada para arar a terra na zona rural<br />

do pequeno e pobre Encantado, distrito da cidade cearense de Quixeramobim. A família plantava mandioca, feijão<br />

e arroz. Eram meeir<strong>os</strong>, pois a colheita era dividida com o dono da terra, a "meia". Não viam dinheiro. A labuta<br />

diária rendia aliment<strong>os</strong>, quando o clima do semi-árido permitia. Em temp<strong>os</strong> de seca, Sebastião ouvia o ronco<br />

da barriga vazia d<strong>os</strong> filh<strong>os</strong>. "Dividíam<strong>os</strong> o parco caldo de feijão com farinha ou a farinha com rapadura, que era<br />

barata", lembra o ex-deputado. Nada, porém, havia sido pior do que o ano de 1958. Nem a novena de Laís, que<br />

reuniu a vizinhança para <strong>um</strong>a interminável reza no dia de São J<strong>os</strong>é, evitou a seca. Com apenas 11 an<strong>os</strong>, J<strong>os</strong>é<br />

Genoino seguiu para <strong>um</strong>a frente de trabalho para não ver seus seis irmã<strong>os</strong> sem comida. A barragem de Quixeramobim<br />

tem o seu suor. Ele carregava pedras n<strong>um</strong> carrinho para ajudar na construção. Ao final do dia, ganhava<br />

pont<strong>os</strong> no cartão da frente e assim podia pegar aliment<strong>os</strong> no armazém. Testemunha da vida dura do filho, Laís<br />

insistia na vida escolar.” Da infância pobre à guerrilha. Reportagem feita pela jornalista Cecília Maia para a Revista<br />

Isto é Gente. 28 de julho de 2003. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=728<br />

70 “Genoino aprendeu a escrever o nome e sabia juntar as letras, mas só entrou n<strong>um</strong>a escola após a seca de 1958.<br />

Foi matriculado no grupo escolar do Encantado. O distrito se res<strong>um</strong>ia a <strong>um</strong>a praça, <strong>um</strong>a igreja e <strong>um</strong>a estrada de<br />

terra batida, ladeada por 20 casas. Estranhou no início <strong>os</strong> colegas e a professora, mas estava determinado. "Queria<br />

ler mais e mais para poder ir embora, então comecei a me esforçar para ser o primeiro da classe." Conseguiu.<br />

96


para a cidade de Senador Pompeu (CE) – a maior cidade da região – onde fez o curso<br />

ginasial 71 , transferindo-se, em 1964, para Fortaleza, onde realizou <strong>os</strong> <strong>estudo</strong>s secundári<strong>os</strong> 72 .<br />

Iniciou sua atividade política ainda como estudante secundarista, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 1960. Na segunda<br />

metade da década de 60, ingressou n<strong>os</strong> curs<strong>os</strong> de Direito da Universidade Estadual do Ceará e<br />

de Fil<strong>os</strong>ofia da Universidade Federal do Ceará (UFCE). Na mesma época, trabalhava na IBM,<br />

empresa multinacional do ramo de computação. 73<br />

Pesar<strong>os</strong>a por ver aquele esforço desperdiçado na pobreza, a professora decidiu lhe ensinar <strong>os</strong> ofíci<strong>os</strong> de coroinha.<br />

Assim, ele poderia ajudar padre Salmito, que duas vezes por mês aparecia para rezar missa, fazer casament<strong>os</strong> e<br />

batizad<strong>os</strong>. Dividindo o tempo entre a igreja, a roça e a escola, o menino chegou à quarta série do Ensino Fundamental.<br />

Para continuar <strong>os</strong> <strong>estudo</strong>s, teria de se mudar para Senador Pompeu, a maior cidade da região. Lá, não havia<br />

escola pública, só colégi<strong>os</strong> particulares ligad<strong>os</strong> à Igreja, mas a família não podia pagá-l<strong>os</strong>. Até que <strong>um</strong> dia padre<br />

Salmito, que é amigo de Genoino até hoje, chegou com boas novas: Consegui com as freiras Filhas de Santa<br />

Tereza que o Genoino estude lá sem pagar - disse a Sebastião. - Não, padre. Filho de pobre que nasce na roça<br />

tem que trabalhar é na roça mesmo - respondeu o pai de Genoino.- Mas seu filho é esperto, inteligente, não dá<br />

para perder essa oportunidade - retrucou o padre, diante do olhar arregalado de Genoino, que escutava a conversa<br />

d<strong>os</strong> adult<strong>os</strong> calado, n<strong>um</strong> canto da sala.- Deixe, Sebastião, é melhor para ele ir estudar. Deixe ele ter <strong>um</strong> futuro<br />

melhor do que esse da roça - interveio a mãe. A conversa durou mais de meia hora. Contrariado, Sebastião cedeu.<br />

Genoino vibrou quieto, para não provocar o pai. E sua vida mudou com a ajuda do padre.” Da infância pobre<br />

à guerrilha. Reportagem feita pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 28 de julho de 2003.<br />

Disponível em; http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=728<br />

71 “A<strong>os</strong> 14 an<strong>os</strong>, deixou para trás a enxada, a casinha de tijolo, <strong>os</strong> pais e <strong>os</strong>, àquela altura, oito irmã<strong>os</strong> (no total<br />

são 12) para seguir padre Salmito. Foi morar na casa paroquial, ajudava a rezar as missas, fazia hóstias, cuidava<br />

da administração da casa e do salão da igreja, enquanto ia à escola. Teve que superar dificuldades. ‘Nunca tinha<br />

colocado sapato n<strong>os</strong> pés. Andava torto, mancando’, lembra. Também agüentou calado o incômodo apelido de<br />

‘filho do padre’. A amizade entre o jovem e o religi<strong>os</strong>o cresceu. [...] ‘Conversávam<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> tudo e foi com ele<br />

que comecei a entender a política’, lembra Genoino. Genoino começou a descobrir <strong>um</strong> novo mundo nas pregações<br />

esquerdistas do padre que ajudava trabalhadores a se organizarem em sindicat<strong>os</strong> e cooperativas. Participou<br />

d<strong>os</strong> encontr<strong>os</strong> do Grupo de Estudantes Católic<strong>os</strong> (GEC) em Recife, Maceió e Campina Grande, onde conheceu<br />

Frei Betto, na época, o dirigente nacional do GEC. ‘Passam<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> dias junt<strong>os</strong> discutindo questões sociais. Era<br />

<strong>um</strong> grupo imenso e foi <strong>um</strong> encontro muito produtivo’, relembra Frei Betto.” Da infância pobre à guerrilha. Reportagem<br />

feita pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 28 de julho de 2003.<br />

Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=728<br />

72 “Após concluir o Ensino Fundamental, Senador Pompeu se tornou pequena para as aspirações do rapaz que<br />

pensava em ganhar dinheiro e ajudar a família. Para cursar o Ensino Médio, teria de se mudar para a capital. De<br />

novo, não tinha condições. Padre Salmito o ajudou. Arranjou <strong>um</strong>a família amiga para abrigá-lo em Fortaleza,<br />

onde Genoino chegou meses antes do golpe militar de 1964. Fez exames do MEC e conseguiu terminar em <strong>um</strong><br />

<strong>os</strong> três an<strong>os</strong> do Ensino Médio.” Da infância pobre à guerrilha. Reportagem feita pela jornalista Cecília Maia<br />

para a Revista Isto é Gente. 28 de julho de 2003. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=728<br />

73 “Naquele ano, 1965, a IBM lançou o primeiro concurso em Fortaleza para fazer o cadastramento de terras do<br />

Ibra, Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, o antigo Incra. Genoino passou. Trabalhava no computador 14.01,<br />

de cartão, que ocupava <strong>um</strong>a sala inteira da sede da empresa e mais tarde passou a operar <strong>um</strong> Barra 360, de fita,<br />

que preenchia <strong>um</strong>a parede. [...] Sua vida, porém, não passava imune à efervescência política do Brasil pós golpe<br />

de 1964. As universidades se tornaram centr<strong>os</strong> de <strong>debates</strong> e de decisão política e Genoino não quis ficar de fora.<br />

Fez vestibular. Seu chefe, o superintendente da IBM no Ceará, sugeriu o curso de economia, o que lhe garantiria<br />

<strong>um</strong> futuro na empresa. Mas, já rebelde, fez fil<strong>os</strong>ofia. Passou.” Da clandestinidade à prisão. Reportagem feita<br />

pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 4 de ag<strong>os</strong>to de 2003. Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=729<br />

97


Em 1968, ingressou no PC do B, agremiação que, na época, atuava na ilegalidade.<br />

Presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Fil<strong>os</strong>ofia e do Diretório Central d<strong>os</strong><br />

Estudantes da UFCE, em outubro de 1968, ao participar do XXX Congresso da União<br />

Nacional d<strong>os</strong> Estudantes (UNE), realizado no Município de Ibiúna (SP), foi preso junto com<br />

tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> demais participantes da reunião. Libertado em seguida, foi enquadrado e punido pelo<br />

Decreto 477, que desligava o estudante de seu curso e impedia a sua matrícula em qualquer<br />

Universidade do País durante três an<strong>os</strong>. Em razão disso, não concluiu o curso universitário.<br />

Em 1969, já na clandestinidade, passou a integrar a direção da UNE. 74<br />

Em entrevista concedida ao Jornal Bom Dia, que circula na região de Ribeirão Preto,<br />

no interior de São Paulo, J<strong>os</strong>é Genoino falou <strong>sobre</strong> sua militância política na década de 1960.<br />

Na entrevista – que pertence à série 1968, 40 an<strong>os</strong> depois – Genoino contou <strong>sobre</strong> a organiza-<br />

ção e sua participação em moviment<strong>os</strong> estudantis, que culminou com sua prisão enquanto mi-<br />

litava na Guerrilha do Araguaia.<br />

Perguntado <strong>sobre</strong> como havia sido o período de sua vida entre <strong>os</strong> an<strong>os</strong> de 1964 e 1970,<br />

antes de sua ida para o Araguaia, Genoíno explicou que:<br />

Na época do golpe, eu era estudante secundarista e me identificava com a<br />

política. A partir de 1967 comecei a militar e entrei para a UNE (União Nacional<br />

d<strong>os</strong> Estudantes). No ano seguinte, já era filiado ao PC do B em Fortaleza.<br />

Naqueles dois an<strong>os</strong> participei do 29º Congresso da UNE em Vinhedo e<br />

fui preso no que chamo de abatedouro do movimento estudantil, em 1968 em<br />

Ibiúna. Fiquei detido por dez dias e, depois de minha libertação, no final do<br />

ano, fui ao Araguaia, integrar a luta armada contra a ditadura. 75<br />

74 “Genoino tornou-se conhecido em Fortaleza. G<strong>os</strong>tava de dar opinião nas assembléias lotadas, tinha <strong>um</strong> discurso<br />

coerente de esquerda, por causa de padre Salmito. Por isso, foi natural que na primeira eleição para o Centro<br />

Acadêmico seu nome surgisse como preferido. ‘Resisti durante mais de <strong>um</strong> mês. Sabia que se entrasse nisso, seria<br />

de cabeça.’ De novo o pressentimento. De novo sua vida estava para mudar. Era o ano de 1967. Genoino passou<br />

a freqüentar congress<strong>os</strong> clandestin<strong>os</strong> de estudantes e a organizar passeatas que em geral terminavam em confronto<br />

com a polícia. Acabou tendo sua primeira prisão preventiva decretada. Escondido, faltou a <strong>um</strong>a semana de<br />

trabalho. Tornou-se o maior líder estudantil do Ceará. Em dezembro de 1968, <strong>um</strong> dia após o anúncio do Ato Institucional<br />

número 5, que a<strong>um</strong>entou <strong>os</strong> poderes do presidente e permitiu maior repressão a<strong>os</strong> op<strong>os</strong>itores, Genoino<br />

fez seu último discurso na faculdade. Em seguida, lançou-se na clandestinidade.” Da clandestinidade à prisão.<br />

Reportagem feita pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 4 de ag<strong>os</strong>to de 2003.<br />

Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=729<br />

75 Entrevista concedida ao Jornal Bom Dia por J<strong>os</strong>é Genoino Neto. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=750<br />

98


que:<br />

Acerca de sua mudança para São Paulo, o Deputado informou, na mesma entrevista,<br />

Em dezembro de 1967 eu havia me tornado <strong>um</strong> líder muito conhecido em<br />

Fortaleza e era procurado. Então, aderi ao codinome de Geraldo e mudei<br />

para São Paulo para viver na clandestinidade, onde não era conhecido. Achavam<br />

que era apenas mais <strong>um</strong> nordestino tentando a vida no Sudeste, mas, na<br />

verdade, eu vim para a região para fazer política contra a ditadura. 76<br />

Sobre sua participação na política estudantil em São Paulo, Genoino relatou:<br />

Eu era mantido pelo PC do B e realizava comíci<strong>os</strong>-relâmpag<strong>os</strong> em universidades.<br />

Chegávam<strong>os</strong> sempre escoltad<strong>os</strong> por três ou quatro pessoas, reuníam<strong>os</strong><br />

<strong>um</strong> pequeno grupo, divulgávam<strong>os</strong> n<strong>os</strong>sas idéias e, literalmente, saíam<strong>os</strong> correndo<br />

antes da chegada da polícia. Também fazia viagens pelo Interior, em<br />

cidades onde havia forte organização política, como Campinas, Ribeirão Preto,<br />

Bauru e Botucatu. Nestas cidades, existiam grup<strong>os</strong> de jovens disp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> a<br />

qualquer coisa em prol da democracia. 77<br />

Sobre o Congresso de Ibiúna, que terminou com a prisão d<strong>os</strong> principais líderes da épo-<br />

ca, J<strong>os</strong>é Genoino afirma:<br />

Como disse, o Congresso de Ibiúna foi <strong>um</strong> verdadeiro matadouro estudantil.<br />

Na época havia <strong>um</strong>a divergência quanto à forma que seria realizado o encontro,<br />

se seria aberto ou fechado. Havia muita gente daquela geração que queria<br />

fazer barulho e m<strong>os</strong>trar que as movimentações contra a ditadura eram fortes.<br />

No entanto foi decidido que o congresso seria clandestino. Como estávam<strong>os</strong><br />

em quase mil pessoas, não havia como o encontro passar despercebido<br />

n<strong>um</strong>a cidade como Ibiúna. Foi <strong>um</strong> erro. 78<br />

76 Entrevista concedida ao Jornal Bom Dia por J<strong>os</strong>é Genoino Neto. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=750<br />

77 Entrevista concedida ao Jornal Bom Dia por J<strong>os</strong>é Genoino Neto. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=750<br />

78 Entrevista concedida ao Jornal Bom Dia por J<strong>os</strong>é Genoino Neto. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=750<br />

99


Genoino foi para a clandestinidade n<strong>os</strong> primeir<strong>os</strong> an<strong>os</strong> da ditadura militar. Após<br />

integrar a direção da União Nacional d<strong>os</strong> Estudantes (UNE) e filiar-se ao PC do B em 1968,<br />

aderiu à Guerrilha do Araguaia 79 , em 1970, e acabou sendo preso em abril de 1972.<br />

Genoíno foi para a região do rio Araguaia em julho de 1970, onde o PC do B<br />

preparava a instalação de <strong>um</strong> foco guerrilheiro para combater o regime militar. Lá, viveu na<br />

clandestinidade, como camponês, de 1970 a 1972, enquanto participava d<strong>os</strong> preparativ<strong>os</strong> para<br />

a instalação de <strong>um</strong> foco de guerrilha na região. 80<br />

Segue trecho de reportagem feita pela Revista Isto É Gente, em 2003. 81<br />

Manhã do dia 18 de abril de 1972, <strong>um</strong> d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> de ch<strong>um</strong>bo da ditadura militar.<br />

Como de c<strong>os</strong>t<strong>um</strong>e, o lavrador J<strong>os</strong>é Geraldo andava na mata da região de<br />

Xambioá, no Araguaia. De repente, surgiu a polícia, que estava à procura de<br />

<strong>um</strong> grupo suspeito de organizar <strong>um</strong>a guerrilha para derrubar o governo. Desconfiad<strong>os</strong><br />

do lavrador, o algemaram junto a <strong>um</strong>a árvore. J<strong>os</strong>é Geraldo era, na<br />

verdade, codinome do guerrilheiro J<strong>os</strong>é Genoino Neto. 82<br />

79 Movimento Guerrilheiro instalado na região do rio Araguaia, no sul do Pará e norte de Goiás, a partir de 1970,<br />

por militantes do PC do B. O foco guerrilheiro foi planejado de acordo com o modelo chinês de formação de<br />

colunas guerrilheiras no campo para, a partir daí, chegar a<strong>os</strong> grandes centr<strong>os</strong> urban<strong>os</strong>. Os militantes infiltraramse<br />

nas comunidades camponesas, com <strong>um</strong>a atuação discreta, participando da vida comunitária e ganhando<br />

confiança, porém não conseguindo muit<strong>os</strong> adept<strong>os</strong> para a revolução. Os guerrilheir<strong>os</strong> estavam dividid<strong>os</strong> em três<br />

destacament<strong>os</strong>, cada <strong>um</strong> comp<strong>os</strong>to por aproximadamente 21 homens. As atividades d<strong>os</strong> guerrilheir<strong>os</strong> foram<br />

descobertas pelas forças policiais em 1972. A partir de então seguiu-se violenta repressão ao agrupamento<br />

guerrilheiro e à população que dava cobertura n<strong>os</strong> vilarej<strong>os</strong> da região. Cerca de 10.000 soldad<strong>os</strong> e agentes<br />

policiais participaram da luta (<strong>os</strong> númer<strong>os</strong> oficiais nunca foram divulgad<strong>os</strong>). Os guerrilheir<strong>os</strong>, apesar do pouco<br />

armamento, conseguiram resistir até 1975 (ano da retirada da maior parte do contingente militar). Os combates<br />

eram travad<strong>os</strong> na selva, o que dificultou a ação das forças governamentais.<br />

80 “Mudou-se para São Paulo, onde organizava clandestinamente o movimento estudantil e se preparava para a<br />

guerrilha. Foi à rua J<strong>os</strong>é Paulino, centro do comércio popular da cidade, e comprou três pares de botinas, três<br />

calças jeans e seis camisas de algodão gr<strong>os</strong>so, próprias para o mato. Estava de malas prontas para a guerrilha,<br />

mas esperou o fim a Copa do Mundo de 1970. ‘Era reacionário torcer pelo time. Era como torcer pel<strong>os</strong> generais.<br />

Mas quando o negão Pelé pegava na bola, não tinha ideologia que resistisse’, diverte-se. Assistiu e vibrou com<br />

todas as vitórias. Quando São Paulo parou para ver a chegada d<strong>os</strong> tricampões, Genoino estava na rodoviária, embarcando<br />

r<strong>um</strong>o ao Araguaia, para a luta. No coração do Brasil a vida era rústica, quase igual à de sua infância.<br />

Plantava, fazia comida em fogão de lenha, participava d<strong>os</strong> festej<strong>os</strong> d<strong>os</strong> moradores locais, das rezas, e paralelamente<br />

fazia o treinamento de guerra. Andava quilômetr<strong>os</strong> no meio da mata quase virgem e muitas vezes se perdia.<br />

Chegou a ficar cinco dias vagando no mato. Dormia em rede no alto das árvores coberto por <strong>um</strong> plástico estrategicamente<br />

armado em forma de barraca para evitar a chuva, e se alimentava de caça, que, envolvida em folhas,<br />

enterrava e cobria com carvão e terra para cozinhar durante quase <strong>um</strong>a hora. O arroz, que sempre trazia na<br />

mochila, preparava da mesma forma só que amarrado n<strong>um</strong> pano. [...] Pegou [...] malária, leishmani<strong>os</strong>e e foi obrigado<br />

a arrancar dois dentes com alicate, a seco, sem anestesia.” Da clandestinidade à prisão. Reportagem feita<br />

pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 4 de ag<strong>os</strong>to de 2003. Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=729<br />

81 A reportagem foi dividida em 4 capítul<strong>os</strong>, e publicada em 4 semanas. O primeiro capítulo chegou às bancas no<br />

dia 28 de julho de 2003 e o último no dia 18 de ag<strong>os</strong>to do mesmo ano. Os text<strong>os</strong> foram escrit<strong>os</strong> pela jornalista<br />

Cecília Maia para a editoria Gente Fora de Série. Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria.php<br />

100


Após ser capturado 83 – em abril de 1972 –, foi torturado 84 e condenado a cinco an<strong>os</strong> de<br />

prisão, pena integralmente c<strong>um</strong>prida em unidades carcerárias de São Paulo, Brasília e<br />

Ceará. 8586<br />

Libertado em 1977 – após cinco an<strong>os</strong> de sua prisão –, retomou sua vida em São Paulo,<br />

passando a dar aulas de História em curs<strong>os</strong> pré-vestibulares, e incorporando-se ao movimento<br />

82 Da infância pobre à guerrilha. Reportagem feita pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 28<br />

de julho de 2003. http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=728<br />

83 “Um dia antes ele havia andado 30 quilômetr<strong>os</strong> para avisar a<strong>os</strong> companheir<strong>os</strong> de outro acampamento que a polícia<br />

estava por perto. Encontrou o local abandonado. Dormiu. Pela manhã, quando voltava, cruzou com <strong>um</strong> grupo<br />

de pistoleir<strong>os</strong> e <strong>um</strong> policial da PM de Xambioá, o sargento Marra, que estranhou: - Por que você andou perguntando<br />

pel<strong>os</strong> terroristas? - Eu não sabia, só vim para fazer negócio com eles - respondeu Genoino. Desconfiado,<br />

o policial agarrou e amarrou o rapaz. Os pistoleir<strong>os</strong> alegavam conhecê-lo, Genoino jurava inocência. Não havia<br />

nada para incriminá-lo, a não ser por duas dicas que fizeram o policial ter certeza de que ele era <strong>um</strong> guerrilheiro.”<br />

Da clandestinidade à prisão. Reportagem feita pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 4<br />

de ag<strong>os</strong>to de 2003.<br />

Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=729<br />

84 "Eles começaram com telefone ( tapa n<strong>os</strong> ouvid<strong>os</strong>) e foram alternando com afogamento (no qual a vítima fica<br />

pendurada de cabeça para baixo)", conta. "Depois me puseram de pé, com o calcanhar <strong>sobre</strong> latinhas que tinham<br />

brasa queimando." Genoino não sabia onde estavam <strong>os</strong> guerrilheir<strong>os</strong> daquele acampamento. Por isso apanhava,<br />

mais e mais. À noite, quando tod<strong>os</strong> dormiam, ele se jogou no chão de terra, algemado e com <strong>os</strong> tornozel<strong>os</strong> pres<strong>os</strong><br />

por correntes. [...] Os dias que se seguiram se res<strong>um</strong>iram a sofrimento físico. Genoino só foi identificado cinco<br />

dias mais tarde em Brasília. Encapuzado, enfrentou o pau de arara, levou choques elétric<strong>os</strong> e passou a administrar<br />

a própria vida jogando com o tempo e as informações que ia soltando a<strong>os</strong> pouc<strong>os</strong>. ‘O que falei não prejudicou<br />

a guerrilha e nem atingiu a vida de ninguém’, afirma. ‘Quando identifiquei onde eu morava no Araguaia e as<br />

pessoas que moravam comigo, já tinha dado tempo de eles fugirem, porque se eu não voltasse em cinco dias era<br />

para fugir.’ Até hoje, Genoino é acusado de delator por causa dessas informações. ‘Isso magoa’, diz ele. Com o<br />

semblante triste, afirma: ‘Só me acusa quem não viveu o que eu vivi’. Da tortura à liberdade. Reportagem feita<br />

pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 11 de ag<strong>os</strong>to de 2003. Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=730<br />

85 “Genoino ficou nove meses em Brasília fora da lista oficial de pres<strong>os</strong>. Era como se não existisse, por isso, poderia<br />

ser morto a qualquer momento. Sofria tortura a cada informação nova que o governo obtinha <strong>sobre</strong> a guerrilha<br />

do Araguaia. As agressões só cessaram com o início da formalização de seu processo, em fevereiro de<br />

1973, quando foi transferido para São Paulo. Passou por longo interrogatório no Doi-Codi, foi levado para o<br />

Dops - órgã<strong>os</strong> de repressão da ditadura - e acabou no pavilhão 5 do presídio do Carandiru. ‘Parece ironia, mas<br />

foi lá que minha vida ganhou tranqüilidade’, diz. Na casa de detenção havia <strong>um</strong>a cela para cada dois pres<strong>os</strong>. Durante<br />

o dia eles ficavam n<strong>os</strong> corredores, liam, jogavam futebol e assistiam à tevê. Genoino começou a namorar<br />

sua atual mulher, Rioko Kayano, 54 an<strong>os</strong>, na prisão. Eles se conheciam do movimento estudantil mas eram apenas<br />

amig<strong>os</strong>. Até que dois encontr<strong>os</strong> o marcaram para sempre. O primeiro, em Brasília. Entre sessões de tortura,<br />

Genoino teve que reconhecê-la através do vidro da sala de interrogatório. O segundo, no Doi-Codi em São Paulo,<br />

quando se cruzaram no corredor, amb<strong>os</strong> escoltad<strong>os</strong> por policiais. [...] Com ajuda de carcereir<strong>os</strong>, <strong>os</strong> dois se<br />

corresponderam clandestinamente. Escreviam cartas em maç<strong>os</strong> de cigarro, em papel higiênico e nunca se viam.<br />

Tornaram-se cúmplices. ‘No dia 6 de outubro de 1973 ela me propôs namoro. Eu aceitei’, conta o presidente do<br />

PT. Rioko ganhou liberdade condicional três an<strong>os</strong> antes de Genoino, que c<strong>um</strong>priu cinco de prisão. Seu período<br />

no cárcere terminou no Ceará, sua terra natal, n<strong>um</strong>a transferência que ele não queria. Temendo pela vida, chegou<br />

a assinar <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento para seu então advogado, o hoje deputado federal, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP),<br />

no qual garantia que não se suicidaria. Sua mãe, que vivia a dor de ter <strong>um</strong> filho preso, passou mal quando recebeu<br />

notícias de seu primogênito. Foi visitá-lo na cadeia e não disse <strong>um</strong>a palavra. Chorou apenas. ‘Tentei explicar,<br />

mas ela não entendeu’, recorda. Pelas portas do Instituto Penal Paulo Sarasate, de Fortaleza, Genoino recuperou<br />

a liberdade, na tarde de 18 de abril de 1977. [...] Trech<strong>os</strong> de <strong>um</strong>a carta de Genoino enviada à família da<br />

prisão: ‘Estou preso agora em Fortaleza. Aqui cheguei em novembro de 75. Essa transferência foi forçada e trouxeram-me<br />

contra a minha vontade. Isso foi mais <strong>um</strong>a injustiça. [...] Tudo o que vivi aí continua vivo em minha<br />

101


pela anistia no ano seguinte. Trabalhou como professor de História 87 no colégio Equipe e,<br />

anistiado em 1979, Genoino ajudou a fundar o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores 88 , que estava sendo<br />

formado n<strong>os</strong> sindicat<strong>os</strong> do ABC. 89<br />

Em 1981, rompeu com o PC do B, que ainda se encontrava na ilegalidade, filiando-se<br />

ao PT 90 . Todavia, manteve sua ligação com o Partido Revolucionário Comunista (PRC),<br />

memória, como o sofrimento e a exploração a que estam<strong>os</strong> submetid<strong>os</strong>. Isso é <strong>um</strong>a das razões que me impulsionam<br />

a continuar na luta para acabar com a opressão do n<strong>os</strong>so povo’”. Da tortura à liberdade. Reportagem feita<br />

pela jornalista Cecília Maia para a Revista Isto é Gente. 11 de ag<strong>os</strong>to de 2003.<br />

Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=730<br />

86 Segue trecho de Artigo publicado no Jornal O Globo do dia 26 de setembro de 2003, pela socióloga Maria<br />

Francisca Pinheiro Coelho, intitulado A guerrilha do Araguaia: dores e direit<strong>os</strong>: “A história da guerrilha está<br />

sendo contada em partes e, até agora, apenas <strong>um</strong> d<strong>os</strong> lad<strong>os</strong> falou: o que sofreu a repressão. D<strong>os</strong> 69 militantes do<br />

PCdoB que integravam a guerrilha no início da luta, em 1972, 61 são desaparecid<strong>os</strong>. Na série de reportagens, o<br />

“Correio” divulgou depoiment<strong>os</strong> da prisão de cinco <strong>sobre</strong>viventes, entre <strong>os</strong> quais J<strong>os</strong>é Genoino, ex-deputado federal<br />

e atual presidente do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores. No caso desses depoiment<strong>os</strong>, vale <strong>um</strong> reparo. As folhas às<br />

quais o jornal teve acesso, cópias, fazem parte de long<strong>os</strong> e complex<strong>os</strong> process<strong>os</strong> que estão arquivad<strong>os</strong> no Superior<br />

Tribunal Militar. São doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> secret<strong>os</strong>, vedad<strong>os</strong> ao público, mas não a<strong>os</strong> pres<strong>os</strong> e seus advogad<strong>os</strong> que podem<br />

requerê-l<strong>os</strong> na Justiça. J<strong>os</strong>é Genoino foi condenado à pena máxima de cinco an<strong>os</strong>, juntamente com outr<strong>os</strong><br />

10 militantes do PCdoB, por pertencer a <strong>um</strong>a organização clandestina. Eles não foram julgad<strong>os</strong> como guerrilheir<strong>os</strong>,<br />

pois <strong>os</strong> militares resolveram desconhecer oficialmente o fato, com receio de que houvesse propagação. A<br />

censura proibia a imprensa de divulgar qualquer notícia <strong>sobre</strong> o Araguaia. Esse processo contra o PCdoB envolveu<br />

40 réus, conforme registro d<strong>os</strong> aut<strong>os</strong> de 10.513 folhas em 28 vol<strong>um</strong>es. Sem a prévia compreensão de como<br />

eram montad<strong>os</strong> <strong>os</strong> interrogatóri<strong>os</strong> nem a revelação do conjunto d<strong>os</strong> depoiment<strong>os</strong>, a história d<strong>os</strong> porões da ditadura<br />

é conhecida parcialmente. Os process<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> dividiam-se em duas fases: a fase policial — do inquérito<br />

policial militar — e a fase judicial, da ação penal. Os cas<strong>os</strong> de mortes e desapareciment<strong>os</strong> ocorriam sempre na<br />

primeira fase, quando não havia ainda registro de prisão e <strong>os</strong> detid<strong>os</strong> eram interrogad<strong>os</strong> sob tortura. As informações<br />

obtidas nesse momento compunham as peças judiciais da segunda fase e não passavam de <strong>um</strong>a compilação<br />

arbitrária de falas extraídas nas inúmeras sessões de tortura. Concluída essa fase, que para Genoino demorou 11<br />

meses, d<strong>os</strong> quais nove incomunicável, apresentava-se ao preso esses depoiment<strong>os</strong> para que ele <strong>os</strong> assinasse. Se<br />

recusasse, voltava para o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de<br />

Defesa Interna), a Câmara de Interrogatório considerada o exemplo do terror na época. As chances eram duas:<br />

voltar para a tortura ou ter a prisão legalizada, o que significava deixar de ser <strong>um</strong> pária, <strong>um</strong>a pessoa sem direit<strong>os</strong>,<br />

e passar a ter direito a julgamento. Mesmo com a parcialidade da Justiça Militar, tribunais onde eram julgad<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

pres<strong>os</strong> polític<strong>os</strong>, o registro de prisão significava <strong>um</strong> atestado de vida. Eles aproveitavam o interrogatório na Auditoria<br />

Militar para denunciar as torturas. Mas a maioria calou com medo de retornar às sessões de tortura e de se<br />

prejudicar no julgamento. De acordo com <strong>os</strong> dad<strong>os</strong> do livro ‘Tortura nunca mais’, entre abril de 1964 e março de<br />

1979, de 7.367 pres<strong>os</strong> interrogad<strong>os</strong> em 707 process<strong>os</strong> do Superior Tribunal Militar contra grup<strong>os</strong> de esquerda somente<br />

1.843, o que equivale a 25%, acusaram alg<strong>um</strong> agente de tortura. J<strong>os</strong>é Genoino foi <strong>um</strong> deles. Em seu interrogatório<br />

na Auditoria Militar, negou <strong>os</strong> depoiment<strong>os</strong> anteriores, dizendo ter sido coagido e que por isso não tinham<br />

valor de provas, “pois foram obtid<strong>os</strong> mediante a coação física, moral e psíquica”. No seu julgamento apresentou<br />

<strong>um</strong>a carta-defesa, na qual relatou as torturas, ass<strong>um</strong>iu a guerrilha e a tornou pública, já que <strong>os</strong> militares<br />

ocultavam o fato. Pela sua p<strong>os</strong>tura, ele foi considerado n<strong>os</strong> aut<strong>os</strong> ‘réu perig<strong>os</strong>o e não arrependido’ e sua carta-defesa<br />

chamada ‘carta-confissão’. [...] Mesmo a guerra tem suas leis, apesar das práticas contrárias, como ocorreu<br />

no Araguaia, chamada de ‘guerra suja’ pel<strong>os</strong> militares para justificar at<strong>os</strong> de extermínio. Pelas leis, <strong>os</strong> ferid<strong>os</strong> devem<br />

ser socorrid<strong>os</strong> e <strong>os</strong> corp<strong>os</strong> d<strong>os</strong> adversári<strong>os</strong> mort<strong>os</strong> identificad<strong>os</strong> e recolhid<strong>os</strong>. Nada disso foi feito no Araguaia.<br />

Conhecer a verdade <strong>sobre</strong> a guerrilha hoje faz parte do compromisso da sociedade com a construção da<br />

democracia.” Disponível em: http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=5<br />

87 P<strong>os</strong>sui curso superior de Fil<strong>os</strong>ofia incompleto.<br />

88 Filiou-se ao Partido em 1980.<br />

89 “Paralelamente, voltava à militância política. Ajudou na reconstrução da União Nacional d<strong>os</strong> Estudantes<br />

(UNE), participou d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> pela anistia e n<strong>os</strong> de apoio às primeiras greves d<strong>os</strong> metalúrgic<strong>os</strong>, quando<br />

102


organização clandestina originária de <strong>um</strong>a divisão do PC do B que atuava no interior do PT,<br />

da qual se desligou alg<strong>um</strong> tempo depois.<br />

Em 1982, elegeu-se Deputado Federal pela primeira vez. A partir daí, começou sua<br />

trajetória parlamentar, com cinco mandat<strong>os</strong> consecutiv<strong>os</strong> como Deputado Federal. 91<br />

Iniciou sua carreira parlamentar em novembro de 1982, quando foi eleito Deputado<br />

Federal pelo PT de São Paulo. Participou d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> legislativ<strong>os</strong> como membro titular da<br />

Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e como suplente das Comissões de Economia,<br />

Indústria e Comércio, de Transportes e de Minas e Energia.<br />

Na Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> apresentou 21 projet<strong>os</strong> de lei, dentre eles o que reduzia<br />

para seis horas a jornada de trabalho d<strong>os</strong> motoristas de transporte coletivo, o que obrigava as<br />

empresas com mais de dez empregad<strong>os</strong> a ter instalações para a refeição d<strong>os</strong> trabalhadores e o<br />

que considerava perig<strong>os</strong>a a atividade profissional d<strong>os</strong> eletricistas, assegurando-lhes<br />

ap<strong>os</strong>entadoria especial.<br />

No final de 1983 engajou-se na campanha das Diretas Já. Na sessão da Câmara d<strong>os</strong><br />

Deputad<strong>os</strong> do dia 25 de abril de 1984, votou a favor da emenda Dante de Oliveira, que<br />

propunha o restabelecimento das eleições diretas para presidente da República, já a partir de<br />

novembro do mesmo ano, na escolha do sucessor do presidente da República, General João<br />

Luiz Inácio Lula da Silva começou a despontar como <strong>um</strong>a liderança sindical. ‘Percebem<strong>os</strong> que havia algo de<br />

novo, era <strong>um</strong> começo de esperança’, lembra ele. Entre <strong>os</strong> operári<strong>os</strong> e parte da intelectualidade brasileira ganhava<br />

corpo a discussão <strong>sobre</strong> a criação de <strong>um</strong> novo partido. Tod<strong>os</strong> davam opinião e Genoino também foi ao Sindicato<br />

d<strong>os</strong> Metalúrgic<strong>os</strong> dizer o que pensava. Sentou-se diante de Lula e perguntou:- Esse partido que vocês estão formando<br />

é tático ou estratégico? - Sei lá, nós só estam<strong>os</strong> querendo criar <strong>um</strong> partido de trabalhadores - respondeu o<br />

líder sindical, assustado com a indagação.” Da op<strong>os</strong>ição ao governo. Reportagem feita pela jornalista Cecília<br />

Maia para a Revista Isto é Gente. 18 de ag<strong>os</strong>to de 2003. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=731<br />

90 Em 1981, Genoino teve seu nome indicado para concorrer a deputado federal. Não tinha chance. Sem carro ou<br />

telefone, montou o comitê eleitoral n<strong>um</strong>a das salas do cursinho. Pertencia à esquerda ultra-radical, xiita até mesmo<br />

para <strong>os</strong> integrantes do novo partido. Era a primeira vez que votaria em sua vida, porque só recuperou <strong>os</strong> direit<strong>os</strong><br />

polític<strong>os</strong> com a anistia, em 1979. Votou em seu próprio nome e foi eleito de raspão, como o último deputado<br />

por São Paulo, com a ajuda d<strong>os</strong> alun<strong>os</strong> que conheceu em cinco an<strong>os</strong> de aulas no cursinho. ‘Minha maior votação<br />

foi nas universidades’, lembra ele. Da op<strong>os</strong>ição ao governo. Reportagem feita pela jornalista Cecília Maia<br />

para a Revista Isto é Gente. 18 de ag<strong>os</strong>to de 2003. Disponível em:<br />

http://www.genoino.org/trajetoria_ver.php?idTrajetoria=731<br />

91 Mandat<strong>os</strong> Eletiv<strong>os</strong>: Deputado Federal, 1983-1987, SP, PT. Dt. P<strong>os</strong>se: 01/02/1983; Deputado Federal<br />

(Constituinte), 1987-1991, SP, PT. Dt. P<strong>os</strong>se: 01/02/1987; Deputado Federal, 1991-1995, SP, PT. Dt. P<strong>os</strong>se:<br />

01/02/1991; Deputado Federal, 1995-1999, SP, PT. Dt. P<strong>os</strong>se: 01/02/1995; Deputado Federal, 1999-2003, SP,<br />

PT. Dt. P<strong>os</strong>se: 01/02/1999; Deputado Federal, 2007-2011, SP, PT. Dt. P<strong>os</strong>se: 01/02/2007.<br />

103


Figueiredo. Como a emenda não obteve o número de vot<strong>os</strong> necessári<strong>os</strong> para a sua aprovação,<br />

Genoíno, seguindo a orientação do PT, não participou do Colégio Eleitoral que, em 15 de<br />

janeiro de 1985, deu a vitória ao candidato Tancredo Neves.<br />

Nesta época, Genoíno também foi contrário a que o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores<br />

ass<strong>um</strong>isse a defesa da Convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte, que, segundo<br />

ele, seria apenas <strong>um</strong>a alternativa para que as elites brasileiras legitimassem <strong>um</strong> novo pacto de<br />

dominação para substituir o regime militar. Em 1985, contudo, com a vitória das teses pró-<br />

Constituinte entre <strong>os</strong> petistas, foi indicado representante do partido na comissão<br />

interpartidária formada no Congresso para estudar a remoção do “entulho autoritário”<br />

remanescente do período ditatorial, de modo a garantir <strong>um</strong> ambiente de plena liberdade para a<br />

convocação da ANC. Defendeu, então, mudanças na legislação partidária e eleitoral e a<br />

revogação da Lei de Segurança Nacional.<br />

Em ag<strong>os</strong>to de 1985, denunciou <strong>os</strong> crimes cometid<strong>os</strong> pelo regime militar contra <strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, apresentando, no plenário da Câmara, <strong>um</strong>a lista com 251 nomes – a maioria<br />

de policiais e militares – que tinham participado das torturas de pres<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> ou sido<br />

coniventes com isso. A relação, que fora preparada por entidades defensoras d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong><br />

h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, organism<strong>os</strong> da Igreja e grup<strong>os</strong> de ex-pres<strong>os</strong>, não foi publicada n<strong>os</strong> Anais da Câmara<br />

por determinação de seu presidente, o deputado Ulysses Guimarães.<br />

Reeleito em 1986, integrou a Assembléia Nacional Constituinte. 92 Na época, J<strong>os</strong>é<br />

Genoino já havia publicado a obra intitulada N<strong>os</strong>sas Exigências na Constituinte (1986).<br />

Genoíno ficou conhecido, também, por sua capacidade de abrir polêmicas em plenário,<br />

devido ao profundo conhecimento que tinha do regimento da Câmara e à sua assiduidade às<br />

sessões. A boa performance legislativa contribuiu para a sua eleição para a Assembléia<br />

Nacional Constituinte, em novembro de 1986, tendo recebido 28.054 vot<strong>os</strong>.<br />

92 ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE: Comissão de Sistematização: Suplente; Subcomissão de<br />

Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia<br />

das Instituições: Titular.<br />

104


Na Constituinte, que iniciou seus trabalh<strong>os</strong> em 1º de fevereiro de 1987, foi vice-líder<br />

da bancada do PT, membro titular da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de<br />

sua Segurança, da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, e<br />

suplente da Comissão de Sistematização.<br />

Esteve presente em 96% das votações e, das 243 emendas que apresentou, 37 foram<br />

aprovadas. 93 Na avaliação do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar),<br />

J<strong>os</strong>é Genoíno recebeu nota dez no primeiro e segundo turn<strong>os</strong> das votações, ficando com dez<br />

como média final.<br />

Seguindo a deliberação do Diretório Nacional do PT, em setembro de 1988, J<strong>os</strong>é<br />

Genoino votou contra o texto final da Constituição. Contudo, assinou a nova Carta<br />

Constitucional, promulgada em 5 de outubro.<br />

Casou-se com Rioco Kayano, com quem teve dois filh<strong>os</strong>: Miruna e Ronan.<br />

3.1.1.2. Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro 94<br />

Em 30 de abril de 1987, na 5ª Reunião e 4ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da<br />

Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão da<br />

93 Dentre suas emendas, as três que apresentou ao projeto da Comissão de Sistematização, votadas no primeiro<br />

turno, foram: (1) no capítulo referente a<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Individuais e Coletiv<strong>os</strong>, fixa a necessidade de superação do<br />

preconceito derivado da liberdade de orientação sexual; (2) ainda neste capítulo, assegura a liberdade de opção<br />

por se ter ou não filh<strong>os</strong>, prevendo o direito de interrupção da gravidez; e (3) no capítulo referente à Organização<br />

e Defesa do Estado, fixa para as Forças Armadas a responsabilidade pela defesa do País e pela garantia d<strong>os</strong><br />

poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da ordem constitucional.<br />

94 Biografia extraída das seguintes páginas eletrônicas: www.siqueiracastro.com.br (Escritório de Advocacia do<br />

Professor Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro), www.puc-rio.br (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)<br />

e http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4787617Y1 (Plataforma Lattes/ CNPQ)<br />

105


Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais (Subcomissão Ia), discorre <strong>sobre</strong><br />

“Aspect<strong>os</strong> Intern<strong>os</strong> da Soberania”. Em seu discurso faz menção ao direito de resistência.<br />

A participação do professor Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro na Assembléia Nacional<br />

Constituinte de 1987/1988 foi fruto da p<strong>os</strong>sibilidade, já mencionada no tópico anterior, de<br />

cidadã<strong>os</strong> não-constituintes participarem da elaboração do texto da futura Constituição. Sua<br />

atuação, portanto, deve ser entendida dentro desse contexto.<br />

A obrigatoriedade das audiências públicas foi estabelecida no Artigo 14 do Regimento<br />

Interno da Assembléia Nacional Constituinte, n<strong>os</strong> seguintes term<strong>os</strong>: “As Subcomissões<br />

destinarão de 5 (cinco) a 8 (oito) reuniões para audiências de entidades representativas de<br />

segment<strong>os</strong> da sociedade, devendo, ainda, durante o prazo destinado a<strong>os</strong> seus trabalh<strong>os</strong>,<br />

receber as sugestões encaminhadas à Mesa ou à Comissão”.<br />

da sociedade”,<br />

Segundo Carl<strong>os</strong> Michiles, <strong>acerca</strong> das “audiências públicas ou a vitalidade d<strong>os</strong> sonh<strong>os</strong><br />

As audiências públicas constituíram <strong>um</strong> momento privilegiado no processo<br />

pedagógico de propiciar <strong>um</strong> amplo debate das grandes questões da ordem<br />

política, social, econômica e cultural contemporânea da sociedade brasileira.<br />

Surgiram em decorrência do fato de que <strong>um</strong>a Constituinte para ser soberana,<br />

representando realmente as vontades da maioria e minorias, deveria começar<br />

seus trabalh<strong>os</strong> evitando soluções de cima para baixo, ou, como se dizia, a<br />

partir da formação de <strong>um</strong>a comissão de “notáveis” encarregada de elaborar<br />

<strong>um</strong> anteprojeto de Constituição a ser p<strong>os</strong>teriormente debatido pel<strong>os</strong><br />

constituintes. Estabeleceu-se então, como prioridade, a necessidade de<br />

colocar no lugar de “anteprojet<strong>os</strong>” a vitalidade de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> setores da<br />

sociedade a fim de que dela derivassem diferentes projet<strong>os</strong> e sugestões que,<br />

estes sim, deveriam orientar as discussões da Constituinte. As audiências<br />

públicas constituíram <strong>um</strong> primeiro passo da estrutura global de<br />

funcionamento da Constituinte, onde se dariam as manifestações livres das<br />

prop<strong>os</strong>tas setoriais, específicas de cada segmento da sociedade. (MICHILES,<br />

1989, p. 65)<br />

Nascido no Rio de Janeiro, em 06 de julho de 1949, o professor Carl<strong>os</strong> Roberto<br />

Siqueira Castro iniciou sua trajetória acadêmica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

106


(UERJ), onde cursou a Faculdade de Direito de 1967 a 1971. Alguns an<strong>os</strong> depois, na<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), adquiriu o título de Doutor em Direito<br />

Público (1974-1976), defendendo tese intitulada O princípio da isonomia e a igualdade da<br />

mulher no Direito Constitucional. Em seguida foi para <strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> da América onde,<br />

em 1978, obteve o grau de Mestre (Master of Laws) pela Michigan State University, com a<br />

tese The non-delegation doctrine in the American Constitutional Law.<br />

Em 1976 ingressou como professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de<br />

Janeiro (PUC/RJ), onde ministrou disciplinas na área do Direito Constitucional.<br />

A partir de 1980, passou a integrar o quadro de sóci<strong>os</strong> da Siqueira Castro Advogad<strong>os</strong>.<br />

Antes do período da Assembléia Nacional Constituinte, já havia publicado as<br />

seguintes obras: O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no Direito Constitucional<br />

(1983) e O congresso e as delegações legislativas: limites do poder normativo do executivo<br />

(1986).<br />

Em 30 de abril de 1987, Siqueira Castro participou de audiência pública da Comissão<br />

da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher, Subcomissão da<br />

Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais. Na ocasião, discorreu <strong>sobre</strong><br />

“Aspect<strong>os</strong> Intern<strong>os</strong> da Soberania”, fazendo menção ao direito de resistência.<br />

3.1.1.3. J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias 95<br />

95 A biografia de J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias foi elaborada a partir de informações, relat<strong>os</strong> e doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong><br />

enviad<strong>os</strong> por email por viç<strong>os</strong>enses, a saber, em ordem cronológica de contato: Jacks Andrade (Assessor de<br />

Comunicação da Câmara Municipal de Viç<strong>os</strong>a – MG), J<strong>os</strong>é Mário da Silva Rangel (pesquisador e escritor da<br />

história de Viç<strong>os</strong>a e de suas personalidades políticas e que, inclusive, mantém <strong>um</strong>a página eletrônica <strong>sobre</strong> o<br />

assunto: www.opassadocompassadodevic<strong>os</strong>a.blogspot.com ), J<strong>os</strong>é Dionísio Ladeira (cronista viç<strong>os</strong>ense que já<br />

escreveu <strong>sobre</strong> J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias, professor ap<strong>os</strong>entado pelo Departamento de Letras da<br />

Universidade Federal de Viç<strong>os</strong>a – UFV) e, por fim, com o próprio J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias que também<br />

enviou material <strong>acerca</strong> da atuação do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a na década de 80.<br />

107


Em 27 de abril de 1987, na 9ª Reunião realizada e 3ª Reunião de Audiência Pública, da<br />

Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I),<br />

Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic), é o segundo exp<strong>os</strong>itor<br />

da Audiência, discursando <strong>acerca</strong> d<strong>os</strong> “Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais”. Defende o direito<br />

de resistência.<br />

J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias também atuou da Assembléia Nacional Constituinte de<br />

1987/1988 na condição de cidadão não-constituinte. Isso porque sua participação foi em <strong>um</strong>a<br />

audiência pública, na qual representava o Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a<br />

(CDDH), pois era seu presidente na época.<br />

J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias nasceu em Viç<strong>os</strong>a, no início da década de 40. Fez o<br />

Ensino Fundamental e o Ensino Médio em sua cidade natal. P<strong>os</strong>teriormente, tornou-se<br />

farmacêutico pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Dirigiu, por cerca de 30<br />

an<strong>os</strong>, <strong>um</strong>a farmácia que, anteriormente, fora de seu pai.<br />

Segundo relato de seu amigo J<strong>os</strong>é Dionísio, durante as décadas de 60, 70 e 80 J<strong>os</strong>é<br />

Antônio Rodrigues Dias “foi e fez muitas coisas”: foi Vereador pela ARENA, presidente de<br />

<strong>um</strong> clube de futebol, professor de Ciências, Química e Biologia. Estudou, ainda,<br />

parapsicologia no Centro Latino-Americano de Parapsicologia, em São Paulo.<br />

Sobre sua atuação na Igreja Católica, sabe-se que foi – ainda no período mencionado –<br />

Ministro Extraordinário da Eucaristia, além de ter trabalhado no Movimento de Cursilh<strong>os</strong> e<br />

montado e dirigido curs<strong>os</strong> de Igreja em Viç<strong>os</strong>a e região. Ainda segundo J<strong>os</strong>é Dionísio,<br />

publicou dois “livret<strong>os</strong>”: “A Igreja Vista por <strong>um</strong> Leigo” e “A Igreja: seus Reflex<strong>os</strong> e<br />

Esperanças”. A partir d<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 90, contudo, deixou o catolicismo, fazendo incursões pelo<br />

108


protestantismo. Liderou três Igrejas – Cajuri, São Geraldo e Porto Firme –, mas não na<br />

condição de pastor.<br />

Dirigiu três sucessiv<strong>os</strong> periódic<strong>os</strong> locais: “O Que Acontece”, “Gazeta do Povo” e<br />

“Jornal Barganha”. J<strong>os</strong>é Mário Rangel – amigo e vizinho de J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias por<br />

doze an<strong>os</strong> – acrescenta que ele foi diretor do jornal “Gazeta do Turvo” e do “Jornal<br />

Barganha”, e que amb<strong>os</strong> não mais circulam.<br />

Foi Presidente do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a e representante<br />

de moviment<strong>os</strong> afins n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> de Minas Gerais e Espírito Santo durante alguns an<strong>os</strong>.<br />

Realizou, em Viç<strong>os</strong>a, <strong>um</strong> Encontro Nacional do Movimento de Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, dele<br />

saindo <strong>os</strong> subsídi<strong>os</strong> que apresentou à Comissão de Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais, na<br />

Assembléia Nacional Constituinte.<br />

Segundo relato de J<strong>os</strong>é Mário da Silva Rangel, durante o período em que J<strong>os</strong>é Antônio<br />

atuou como presidente do CDDH, levou para <strong>um</strong>a palestra em Viç<strong>os</strong>a<br />

o "Cavaleiro da Esperança", Luís Carl<strong>os</strong> Prestes. Rangel acredita que tal fato tenha ocorrido<br />

na mesma época da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988. 96<br />

Sobre a atuação de J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias na Câmara de Vereadores de Viç<strong>os</strong>a,<br />

ressalte-se que foi vereador no final da década de 60. Na época – mais especificamente, 1967<br />

a 1970 – a Câmara de Vereadores de Viç<strong>os</strong>a tinha como Presidente Sebastião Ferreira da<br />

Silva. Ademais, J<strong>os</strong>é Antônio exercera seu mandato – sendo, inclusive, presidente interino da<br />

Câmara Municipal – durante o governo do Prefeito Geraldo Lopes de Faria, que tinha como<br />

Vice Carl<strong>os</strong> Raymundo Torres. Na ocasião, atuava como Interventor Federal Abel Jacinto<br />

Ganem Júnior.<br />

Casou-se com a Srª Catarina Pimentel Dias.<br />

96 De acordo com Rangel, o Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a estaria, aparentemente, inativo.<br />

109


Sobre a atuação do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a durante a<br />

década de 80, as informações n<strong>os</strong> foram cedidas pelo próprio J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias.<br />

Consideram<strong>os</strong> conveniente transcrevê-las na íntegra:<br />

Res<strong>um</strong>indo, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 80, <strong>um</strong> grupo de pessoas, preocupadas com a violação<br />

d<strong>os</strong> mais elementares Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, como moradia, alimentação,<br />

cidadania, educação, enfim, o Direito à vida, resolveu criar o Centro de<br />

Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a, a fim de lutar contra as<br />

desigualdades sociais. Para que obtivéssem<strong>os</strong> mais força, n<strong>os</strong> unim<strong>os</strong> a<br />

outras dezenas de entidades afins, espalhadas pelo Brasil, e constituím<strong>os</strong> o<br />

Movimento Nacional de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong><br />

(MNDDH). Dividim<strong>os</strong> o país em diversas regiões. Sob a responsabilidade do<br />

CDDH de Viç<strong>os</strong>a ficou a Regional Leste 2, que abrangia <strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> de<br />

Minas Gerais e Espírito Santo. A sua atuação se dava, em primeiro<br />

lugar, diretamente a quem violava aquele direito reconhecido. Em seguida,<br />

se aquele caso não f<strong>os</strong>se resolvido, a denúncia era feita ao MNDDH que<br />

imediatamente pressionava <strong>os</strong> órgã<strong>os</strong> competentes, e o resultado era<br />

bem satisfatório. 97<br />

Sobre o funcionamento do CDDH de Viç<strong>os</strong>a durante o período da Assembléia<br />

Nacional Constituinte, J<strong>os</strong>é Antônio Dias n<strong>os</strong> informa que:<br />

No período da Constituinte de 1988, discutim<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> temas, entre nós e as<br />

comunidades, que pudessem ser adicionad<strong>os</strong> à nova Constituição, e eu tive a<br />

grata satisfação de ser convidado a apresentá-l<strong>os</strong> na Subcomissão d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais. O resultado foi muito bom. 98<br />

Acrescentou, ainda, que, na região de Viç<strong>os</strong>a, o CDDH teria atuado em várias<br />

comunidades rurais e favelas, “levando projet<strong>os</strong> de cidadania, sempre ao lado d<strong>os</strong> que se<br />

encontravam à margem das decisões sociais”. 99<br />

Em exemplar do Jornal “Folha da Mata”, datado de 02 de junho de 1984, encontra-se<br />

reportagem com o seguinte título: “Presidente do CDDH de Viç<strong>os</strong>a representa Minas no<br />

Conselho Ec<strong>um</strong>ênico Nacional d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>”. No doc<strong>um</strong>ento, encontram<strong>os</strong> a<br />

informação de que, n<strong>os</strong> dias 26 e 27 de maio de 1984, em Belo Horizonte, havia se realizado o<br />

97 J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias através de mensagem eletrônica, via Internet.<br />

98 J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias através de mensagem eletrônica, via Internet.<br />

99 J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias através de mensagem eletrônica, via Internet.<br />

110


II Encontro de Centr<strong>os</strong> de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Minas Gerais, no qual havia<br />

participado o CDDH de Viç<strong>os</strong>a, representado pelo seu presidente J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues<br />

Dias, além de outr<strong>os</strong> membr<strong>os</strong>. O evento fora patrocinado pela Comissão Pastoral de Direit<strong>os</strong><br />

H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Minas Gerais e pelo CDDH de Betim. Segundo relato de J<strong>os</strong>é Antônio<br />

Rodrigues Dias, que consta no doc<strong>um</strong>ento, <strong>os</strong> temas abordad<strong>os</strong> no Encontro foram <strong>os</strong><br />

seguintes: Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> à Luz do Evangelho – com discussões embasadas em<br />

fundament<strong>os</strong> teológic<strong>os</strong>, tratando de pont<strong>os</strong> “que p<strong>os</strong>sam permitir o desencadeamento de <strong>um</strong>a<br />

ampla luta a favor d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>” – Reforma Agrária – onde foram analisadas as<br />

“p<strong>os</strong>sibilidades de serem utilizadas, para tanto, áreas públicas e terras improdutivas e<br />

devolutas da Nação, aproveitando espaç<strong>os</strong> do Estatuto da Terra, ora em vigor e com base em<br />

experiência de Teófilo Otoni, onde se conseguiu <strong>um</strong> amplo avanço neste setor” – Questão da<br />

Cidadania – onde foi prop<strong>os</strong>ta a elaboração de <strong>um</strong>a cartilha “de alcance popular”, a ser<br />

distribuída principalmente n<strong>os</strong> bairr<strong>os</strong> de periferia, com o intuito de conscientizar a população<br />

<strong>sobre</strong> “o abuso da autoridade e da violência, propondo que ela mesma aprenda por si a clamar<br />

por seus direit<strong>os</strong>” – e Perspectivas Política Atuais, onde, para a maioria d<strong>os</strong> participantes do<br />

Encontro “foi aprovada a Emenda Figueiredo-Leitão, propondo diretas em 1988 e, como saída<br />

para se evitar o continuísmo, as op<strong>os</strong>ições lançarão candidato único no Colégio Eleitoral”.<br />

Em 11 de maio de 1985, a “Folha da Mata” trouxe <strong>um</strong>a reportagem <strong>sobre</strong> a cassação<br />

do Frei Leonardo Boff, que ficou proibido de falar por <strong>um</strong> ano. Sobre o tema, J<strong>os</strong>é Antônio<br />

Rodrigues Dias disse em entrevista que “o ponto de partida da proibição foram D. Eugênio<br />

Sales e D. Karl Romer, seu auxiliar, amb<strong>os</strong> da linha ultra-reacionária”. E continua: “Estes<br />

hierarcas já vêm tentando, há muito, impedir o trabalho de teólog<strong>os</strong>, bisp<strong>os</strong> e padres junto às<br />

bases”. E acrescentou, por fim, quando perguntado <strong>sobre</strong> como ficaria a situação de Leonardo<br />

Boff: “Ele sempre foi muito bem recebido pelo povo, o que despertava <strong>um</strong>a espécie de ciúmes<br />

111


na hierarquia local. Mas nós, leig<strong>os</strong>, vam<strong>os</strong> continuar o n<strong>os</strong>so trabalho, inspirad<strong>os</strong> na Teologia<br />

da Libertação, que o Frei Leonardo Boff tão bem elaborou”.<br />

No “Diário de Pernambuco” de 28 de janeiro de 1986 encontra-se matéria <strong>acerca</strong> do<br />

IV Encontro Nacional de Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, realizado entre <strong>os</strong> dias 22 e 26 de janeiro, no<br />

Seminário de Olinda. Na ocasião foi criado o Movimento Nacional de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong><br />

H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> (MNDDH), do qual o CDDH de Viç<strong>os</strong>a fazia parte, conforme relato de J<strong>os</strong>é<br />

Antônio Rodrigues Dias. No Encontro foram discutid<strong>os</strong> <strong>os</strong> principais problemas de violação<br />

a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, tanto no campo quanto na cidade. Noventa e <strong>um</strong>a entidades se<br />

reuniriam para avaliar a real situação d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong> no País, compartilhar experiências<br />

e p<strong>os</strong>icionar-se em relação a diversas questões fundamentais naquele momento. Ao final,<br />

elaboraram <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento contendo as deliberações tomadas, cujo conteúdo foi apresentado à<br />

imprensa no dia 27 de janeiro. As entidades relataram o a<strong>um</strong>ento do índice de violência contra<br />

o trabalhador. “No campo ela decorre d<strong>os</strong> constantes conflit<strong>os</strong> pela p<strong>os</strong>se da terra que geram<br />

<strong>um</strong> r<strong>os</strong>ário de assassinat<strong>os</strong>, destruição de roças, expulsão de famílias, perseguição a líderes<br />

sindicais com a impunidade protegida d<strong>os</strong> autores e mandantes”. Na cidade, segundo o<br />

doc<strong>um</strong>ento apresentado pelas entidades, a situação não era diferente, “e decorre<br />

principalmente do desemprego, do subemprego e da marginalização de milhões de pessoas,<br />

gerando a falta de moradia, a deterioração das condições de vida, saúde, higiene, a falência<br />

d<strong>os</strong> serviç<strong>os</strong> públic<strong>os</strong> e o a<strong>um</strong>ento da violência policial contra a população marginalizada”.<br />

Em outra passagem, falando <strong>sobre</strong> o desrespeito à vontade popular, afirmam as entidades que<br />

“ansei<strong>os</strong> fundamentais como a convocação imediata de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional<br />

Constituinte livre e soberana é adulterada para <strong>um</strong>a Assembléia Congressual, limitada em<br />

seus poderes e competências”. E continuaram: “identicamente, a Reforma Agrária sob o<br />

controle d<strong>os</strong> trabalhadores, necessidade histórica do homem do campo, foi reduzida a mero<br />

arremedo de reforma”. O doc<strong>um</strong>ento ainda falava <strong>sobre</strong> a necessidade de estimular a<br />

112


participação do povo nas organizações populares e sindicais “para conquistar e fazer valer <strong>os</strong><br />

seus direit<strong>os</strong>”, lutando por <strong>um</strong>a “sociedade livre, justa, igualitária, enfim <strong>um</strong>a sociedade sem<br />

classes.” No encontro, foram estabelecidas prop<strong>os</strong>tas de luta nas questões relativas à terra, ao<br />

trabalho e à violência. Nas questões <strong>sobre</strong> a terra, foram previstas, além de outras medidas, a<br />

Reforma Agrária sob o controle d<strong>os</strong> trabalhadores, reforma fundiária urbana, recuperação do<br />

sentido pleno da função social da propriedade e da p<strong>os</strong>se, ampliação do direito ao acesso à<br />

terra individual ou coletivamente, especialmente a improdutiva e a grilada.<br />

O CDDH de Viç<strong>os</strong>a não se limitava a denunciar ofensas a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong><br />

ocorridas no Brasil. Em 28 de maio de 1986, o Jornal “Folha da Mata” trouxe <strong>um</strong>a<br />

reportagem intitulada “Corte Suprema da Bolívia protesta contra intromissão do CDDH de<br />

Viç<strong>os</strong>a”. O protesto foi em razão de telegrama enviado pelo CDDH, no dia 08 de maio<br />

daquele ano, ao Presidente da Corte Suprema de Justiça de La Paz “acusando parcialmente,<br />

por parte da Corte Suprema da Justiça, a prepotência militar e apoio indireto do atual governo,<br />

no Juízo de Responsabilidade que está sendo feito na Bolívia contra <strong>os</strong> militares e outr<strong>os</strong><br />

colaboradores da ‘cruel e sangrenta ditadura do ex-General Luis Garcia Mesa Tejada’”. Na<br />

carta, “o CDDH pede ao magistrado, em nome da justiça e da paz, que interfira no Juízo de<br />

Responsabilidade, para que o ex-ditador e seus colaboradores sejam condenad<strong>os</strong> no crime de<br />

‘lesa h<strong>um</strong>anidade’”. Em resp<strong>os</strong>ta, o presidente da Corte Suprema enviou <strong>um</strong> telegrama ao<br />

CDDH de Viç<strong>os</strong>a que, em seguida escreveu outra carta reafirmando sua disp<strong>os</strong>ição de<br />

continuar lutando contra qualquer tipo de ditadura, em qualquer País.<br />

A biografia de J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias, para <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> propósit<strong>os</strong>, deve levar em<br />

consideração, principalmente, sua atuação como Presidente do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong><br />

H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a.<br />

113


3.1.2. O direito de resistência com alg<strong>um</strong>as ressalvas<br />

3.1.2.1. Antonio Mariz 100<br />

Em 27 de abril de 1987, na 9ª Reunião realizada e 3ª Reunião de Audiência Pública, da<br />

Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I),<br />

Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic), debate com o segundo<br />

exp<strong>os</strong>itor da Audiência, J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias, a questão do Direito de Resistência.<br />

Antonio Marques da Silva Mariz foi eleito Deputado Federal (PMDB/PB) nas eleições<br />

de 1986, tendo passado à condição de Constituinte no ano seguinte. Este era o seu quarto<br />

mandato como Deputado Federal, e o primeiro pelo PMDB. N<strong>os</strong> três primeir<strong>os</strong> mandat<strong>os</strong> fora<br />

Deputado pela ARENA. Antes disso, já havia sido Prefeito do Município de Souza, localizado<br />

100 As informações biográficas <strong>acerca</strong> de Antonio Mariz foram retiradas das seguintes obras: BRASIL.<br />

CONGRESSO. CÂMARA DOS DEPUTADOS. ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1987.<br />

Repertório biográfico d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte de 1987. 2. ed. Brasília: Câmara<br />

d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>, Centro de Doc<strong>um</strong>entação e Informação, Coordenação de Publicações, 1989. COELHO, João<br />

Gilberto Lucas. OLIVEIRA, Antonio Carl<strong>os</strong> Nantes de. A nova Constituição: avaliação do texto e perfil d<strong>os</strong><br />

constituintes. Rio de Janeiro: Revan, 1989. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na constituinte:<br />

<strong>um</strong>a análise sócio-política d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> e deputad<strong>os</strong>. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. As informações também<br />

foram extraídas das seguintes páginas eletrônicas: www.camara.gov.br (Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>) e<br />

www.senado.gov.br (Senado Federal).<br />

114


no Estado da Paraíba, pelo PTB. 101 Na época da Constituinte, era advogado e promotor de<br />

justiça.<br />

Sobre sua atuação na Assembléia Nacional Constituinte, ressalte-se que ele esteve em<br />

86% das votações e obteve 49 citações na imprensa nacional. Das 138 emendas que<br />

apresentou, 34 foram aprovadas. Votou a favor do rompimento de relações diplomáticas com<br />

<strong>os</strong> países com política de discriminação racial, da limitação do direito de propriedade privada,<br />

do mandado de segurança coletivo, da remuneração 50% superior para o trabalho extra, da<br />

jornada semanal de 40 horas, do turno ininterrupto de seis horas, do aviso prévio<br />

proporcional, da unicidade sindical, da soberania popular, do voto a<strong>os</strong> 16 an<strong>os</strong>, da<br />

nacionalização do subsolo, da estatização do sistema financeiro, do limite de 12% ao ano para<br />

<strong>os</strong> jur<strong>os</strong> reais, da proibição do comércio de sangue, da desapropriação da propriedade<br />

produtiva e do aborto. Votou contra a pena de morte, a pluralidade sindical, o<br />

presidencialismo e o mandato de cinco an<strong>os</strong> para Sarney. (COELHO & OLIVEIRA, 1989, pp.<br />

270-271).<br />

Desde <strong>os</strong> temp<strong>os</strong> da ARENA, este deputado paraibano é conhecido por<br />

suas p<strong>os</strong>ições coraj<strong>os</strong>as e independentes, dentro de <strong>um</strong>a linha de<br />

coerência que o faz respeitado por todas as correntes. Seus vot<strong>os</strong> nas<br />

questões mais importantes dão bem a medida do seu comprometimento com<br />

as causas populares. Atuante e assíduo a<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>, deve propor e apoiar<br />

questões como: regras para a gestão democrática do ensino público, estímulo<br />

à empresa que invista em pesquisa e desenvolvimento tecnológico, diretrizes<br />

para <strong>um</strong>a política de desenvolvimento urbano, imp<strong>os</strong>t<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> grandes<br />

fortunas, limites de despesa com pessoal para <strong>os</strong> Poderes Executivo,<br />

101 Mandat<strong>os</strong> Eletiv<strong>os</strong>: Prefeito, 1963-1969, Souza, PB, PTB; Deputado Federal, 1971-1975, PB, ARENA;<br />

Deputado Federal, 1975-1979, PB, ARENA; Deputado Federal, 1979-1983, PB, ARENA; Deputado Federal<br />

(Constituinte), 1987-1991, PB, PMDB. Atividade Parlamentar: Titular Comissão de Justiça, CD, ARENA<br />

(1971-1983); Membro CPI <strong>sobre</strong> o PROTERRA, CD, ARENA (1975-1976); Vice-Líder, CD, PP (1980); Vice-<br />

Líder, CD, PMDB (1981-1982); Presidente Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais, da Comissão da<br />

Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher, ANC, PMDB (1987); Suplente Subcomissão do<br />

Poder Executivo, da Comissão da Organização d<strong>os</strong> Poderes e Sistema de Governo, ANC, PMDB (1987);<br />

Suplente Comissão de Sistematização, ANC, PMDB (1987-1988). Carg<strong>os</strong> Públic<strong>os</strong>: Subchefe da Casa Civil,<br />

PB (1961-1962); Secretário de Estado da Educação e Cultura, PB (1979-1980); Promotor Público, Campina<br />

Grande, PB. Missões no Exterior: Delegado Interparlamentar em Londres (1975). Delegado ao Congresso<br />

Parlamentar Latino-Americano (1977 e 1981). Observador Parlamentar à Assembléia Geral das Nações Unidas<br />

(1980). Outras Informações: Candidato ao governo da Paraíba pelo PMDB (1982). Diretor de<br />

Desenvolvimento Urbano do BNH (1985-1986).<br />

115


Legislativo e Judiciário, regulamentação do direito de greve. [grifo n<strong>os</strong>so]<br />

(COELHO & OLIVEIRA, 1989, p. 272).<br />

Em <strong>estudo</strong> já mencionado, no qual Leôncio Martins Rodrigues procura traçar <strong>um</strong><br />

perfil social e político-ideológico d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> federais eleit<strong>os</strong> em 15 de novembro de 1986,<br />

consta a seguinte observação <strong>sobre</strong> Antonio Mariz:<br />

Antônio Marques da Silva Mariz (PMDB), paraibano, 49 an<strong>os</strong>, casado, duas<br />

filhas. Advogado autônomo formado pela Faculdade Nacional de Direito da<br />

Universidade do Brasil (Rio de Janeiro). Ex-promotor de justiça. Foi prefeito<br />

de Souza (1962-68) pelo PTB, secretário da Educação e Cultura (1969-70),<br />

chefe da Casa Civil do governo do Estado (1981-82) e diretor de<br />

Desenvolvimento Urbano do BNH (1985-86). É a favor de <strong>um</strong> sistema<br />

econômico com predominância d<strong>os</strong> investiment<strong>os</strong> estatais, eliminand<strong>os</strong>e,<br />

na medida do p<strong>os</strong>sível, o capital estrangeiro. Considera necessária<br />

<strong>um</strong>a reforma agrária nas propriedades não produtivas. Esta é sua quarta<br />

legislatura na Câmara Federal, tendo sido, de 1972 a 1982, eleito pela Arena.<br />

Foi também do PTB e do PP antes de se transferir para o PMDB. Nas<br />

últimas eleições, recebeu 106.591 vot<strong>os</strong>. [grifo n<strong>os</strong>so] (RODRIGUES, 1987,<br />

p. 207).<br />

Antônio Marques da Silva Mariz nasceu em 05 de dezembro de 1937, na cidade de<br />

João Pessoa (PB), filho de J<strong>os</strong>é Marques da Silva Mariz e Noemi de Holanda Mariz. Casou-se<br />

com Maria Mabel Dantas Mariz, com quem teve duas filhas: Adriana e Luciana.<br />

Em sua trajetória acadêmica cursou Direito na Faculdade Nacional de Direito<br />

(Universidade do Brasil), no Rio de Janeiro, entre <strong>os</strong> an<strong>os</strong> de 1956 e 1960, e Ciência Política<br />

na Universidade de Nancy (França), em 1961.<br />

Atuou profissionalmente como advogado e Promotor Público (Campina Grande/PB).<br />

Exerceu ainda <strong>os</strong> carg<strong>os</strong> de Secretário da Educação e Cultura do Estado da Paraíba (1979-<br />

1980), Subchefe da Casa Civil do Governo da Paraíba (1961-1962) e Diretor de<br />

Desenvolvimento Urbano do BNH (1985-1986).<br />

116


Antônio Mariz foi filiado ao PTB de 1961 a 1966. Em 1966, filiou-se à ARENA,<br />

permanecendo neste partido até 1979. Em 1980 filiou-se ao PP e, em 1981, ao PMDB. 102<br />

Atuou no Grupo Renovador, de 1975, que propunha a abertura política do regime militar.<br />

Publicou divers<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong>, dentre <strong>os</strong> quais Autonomia Municipal (1971),<br />

Ap<strong>os</strong>entadoria d<strong>os</strong> trabalhadores rurais (1971), Uma apolítica brasileira de proteção a<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> (1973), Nordeste (1977), Sistema político brasileiro (1978) e Constituinte<br />

- Compromisso Democrático (1988).<br />

Na Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988 foi Presidente da Subcomissão<br />

d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais, da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do<br />

Homem e da Mulher, Suplente da Subcomissão do Poder Executivo, da Comissão da<br />

Organização d<strong>os</strong> Poderes e Sistema de Governo e Suplente da Comissão de Sistematização.<br />

Na Constituinte, durante audiência pública, debateu com J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias o tema<br />

do direito de resistência.<br />

3.1.3. O direito de resistência no banco d<strong>os</strong> réus<br />

3.1.3.1. C<strong>os</strong>ta Ferreira 103<br />

102 Atividades Partidárias: Vice-Líder: CD\ PP 1980; Vice-Líder: CD\ PMDB, 1981-1982.<br />

103 As informações biográficas <strong>acerca</strong> de C<strong>os</strong>ta Ferreira foram retiradas das seguintes obras: BRASIL.<br />

CONGRESSO. CÂMARA DOS DEPUTADOS. ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE, 1987.<br />

Repertório biográfico d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte de 1987. 2. ed. Brasília: Câmara<br />

d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong>, Centro de Doc<strong>um</strong>entação e Informação, Coordenação de Publicações, 1989. COELHO, João<br />

Gilberto Lucas. OLIVEIRA, Antonio Carl<strong>os</strong> Nantes de. A nova Constituição: avaliação do texto e perfil d<strong>os</strong><br />

constituintes. Rio de Janeiro: Revan, 1989. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na constituinte:<br />

<strong>um</strong>a análise sócio-política d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> e deputad<strong>os</strong>. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. As informações também<br />

foram extraídas da página eletrônica da Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> (www.camara.gov.br )<br />

117


Em 27 de abril de 1987, na 9ª Reunião realizada e 3ª Reunião de Audiência Pública, da<br />

Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I),<br />

Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic), debate com o segundo<br />

exp<strong>os</strong>itor da Audiência, J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias, a questão do Direito de Resistência.<br />

Antonio da Conceição C<strong>os</strong>ta Ferreira participou da Constituinte após ter sido eleito<br />

Deputado Federal pelo PFL do Maranhão nas eleições de 15 de novembro de 1986. Era o seu<br />

primeiro mandato como Deputado Federal. Antes disso, contudo, já havia sido Vereador de<br />

São Luís, por dois mandat<strong>os</strong> consecutiv<strong>os</strong>: o primeiro, pela ARENA e o segundo, pelo<br />

PDS. 104<br />

C<strong>os</strong>ta Ferreira foi filiado à ARENA no período de 1976 a 1979, ao PDS de 1980 a<br />

1985 e ao PFL entre 1986 e 1992.<br />

Sobre sua atuação na Constituinte, ressalte-se que esteve em 88% das votações e<br />

obteve 12 citações na imprensa. Das 188 emendas que apresentou, 42 foram aprovadas. Votou<br />

a favor do rompimento de relações diplomáticas com países com política de discriminação<br />

racial, do mandado de segurança coletivo, da remuneração 50% superior para o trabalho extra,<br />

da jornada semanal de 40 horas, do aviso prévio proporcional, da soberania popular, do voto<br />

a<strong>os</strong> 16 an<strong>os</strong>, do presidencialismo, da nacionalização do subsolo, da proibição do comércio de<br />

sangue, do mandato de cinco an<strong>os</strong> para Sarney, da criação de <strong>um</strong> fundo de apoio à reforma<br />

agrária e da anistia a<strong>os</strong> micro e pequen<strong>os</strong> empresári<strong>os</strong>. Votou contra a limitação do direito de<br />

propriedade privada, a proteção ao emprego contra despedida sem justa causa, o aborto, o<br />

104 Mandat<strong>os</strong> Eletiv<strong>os</strong>: Vereador, 1977-1983, São Luís, MA, ARENA; Vereador 1983-1987, São Luís, MA,<br />

PDS; Deputado Federal (Constituinte), 1987-1991, MA, PFL. Atividade Parlamentar: Presidente Comissão de<br />

Constituição e Justiça da Câmara Municipal de São Luís, CMSL, ARENA; Líder, CMSL, ARENA; Líder,<br />

CMSL, PFL; Presidente da Comissão de Constituição e Justiça, CMSL; Titular Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e<br />

Garantias Individuais, da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher, ANC, PFL<br />

(1987); Suplente Subcomissão do Poder Executivo, da Comissão da Organização d<strong>os</strong> Poderes e Sistema de<br />

Governo, ANC, PFL (1987).<br />

118


turno ininterrupto de seis horas, a estatização do sistema financeiro, a limitação d<strong>os</strong> encarg<strong>os</strong><br />

da dívida externa, a legalização do jogo do bicho e a desapropriação da propriedade<br />

produtiva. Absteve-se de votar <strong>sobre</strong> a pena de morte, a limitação d<strong>os</strong> jur<strong>os</strong> reais em 12% ao<br />

ano e a unicidade sindical. (COELHO & OLIVEIRA, 1989, pp. 203-204).<br />

Nacionalista, deve propor projet<strong>os</strong> de lei dispondo <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> benefíci<strong>os</strong> à<br />

empresa brasileira de capital nacional e regulamentando a relação da<br />

empresa pública com a sociedade e com o próprio Estado. Apoiará medidas<br />

que visem a reprimir <strong>os</strong> abus<strong>os</strong> do poder econômico. (COELHO &<br />

OLIVEIRA, 1989, p. 204).<br />

Leôncio Martins Rodrigues, em pesquisa <strong>sobre</strong> o perfil social e político-ideológico d<strong>os</strong><br />

Deputad<strong>os</strong> Federais eleit<strong>os</strong> em 1986, explica, <strong>acerca</strong> de C<strong>os</strong>ta Ferreira:<br />

Antônio da Conceição C<strong>os</strong>ta Ferreira (PFL), maranhense, 46 an<strong>os</strong>, casado,<br />

três filh<strong>os</strong>. Advogado, formado pela Universidade Federal do Maranhão. Na<br />

sua opinião o sistema econômico mais adequado para o Brasil deveria<br />

caracterizar-se por <strong>um</strong>a divisão de responsabilidades entre as estatais e<br />

as empresas privadas. Aceita o capital estrangeiro só n<strong>os</strong> setores n<strong>os</strong><br />

quais o capital nacional, privado ou estatal, não tenha p<strong>os</strong>sibilidade de<br />

se instalar. É a favor de <strong>um</strong>a reforma agrária radical. Esta é sua primeira<br />

legislatura na Câmara Federal (28.415 vot<strong>os</strong>). Começou como vereador de<br />

São Luís, leito pela ARENA (1976-82) e pelo PDS (1982-1986).<br />

Candidatou-se <strong>um</strong>a vez a deputado federal sem conseguir eleger-se. Definiu<br />

suas p<strong>os</strong>ições políticas como sendo de centro. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]<br />

(RODRIGUES, 1987, p. 185).<br />

Antonio da Conceição C<strong>os</strong>ta Ferreira nasceu no dia 28 de julho de 1939, na cidade de<br />

Guimarães, Estado do Maranhão. Filho de Messias Ferreira e Maria J<strong>os</strong>é C<strong>os</strong>ta Ferreira,<br />

casou-se com Eline Nogueira Ferreira, tendo como filh<strong>os</strong> Kézia Raquel, En<strong>os</strong> Henrique,<br />

Israel, Célia Zebina, Ana Ruth, Débora Cristina e Davi Kenedy<br />

Graduou-se em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em São<br />

Luís, no período de 1970 a 1975. Em 1975, ingressou no curso de Pedagogia, na mesma<br />

Universidade, não tendo, contudo, concluído o curso. Estudou ainda Ciências Sociais e<br />

119


Introdução à Ciência Política, na Universidade de Brasília (UNB), e Direito Municipal, na<br />

Fundação Faria Lima. 105<br />

Profissionalmente, C<strong>os</strong>ta Ferreira exerceu as atividades de torneiro mecânico,<br />

professor, advogado, inspetor do trabalho e fiscal do trabalho. 106 Na época da Constituinte,<br />

também era pastor protestante.<br />

3.1.3.2. Cândido Mendes 107<br />

Em 24 de abril de 1987, na 8ª Reunião e 2ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da<br />

Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic), foi convidado, pelo Presidente da<br />

Subcomissão, Antonio Mariz, para falar <strong>sobre</strong> “Os nov<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>”. Manifestou-se<br />

contra direito de resistência.<br />

Cândido Antônio J<strong>os</strong>é Francisco Mendes de Almeida participou da Assembléia<br />

Nacional Constituinte de 1987/1988 como cidadão não-constituinte, pois não exercia mandato<br />

federal na época, tendo se manifestado durante audiência pública da Subcomissão de Direit<strong>os</strong><br />

e Garantias Individuais, da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da<br />

Mulher.<br />

105 Condecorações: Escudo de Ouro por serviç<strong>os</strong> prestad<strong>os</strong> à PETROBRÁS. Diploma de honra ao mérito,<br />

Colégio São Luís, MA. Outras Informações: Curso de Introdução à Ciência Política, UNB, e de Direito<br />

Municipal, Fundação Faria Lima. Primeiro-Secretário da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, São Luís, MA.<br />

Presidente da Campanha Evangélica O Semeador. Gideão Internacional. Fiscal do Trabalho, São Luís, MA.<br />

106 Atividades Profissionais e Carg<strong>os</strong> Públic<strong>os</strong>: Professor, Zoé Cerveira, 1973-1986, Pré-Vestibular Rui<br />

Barb<strong>os</strong>a, 1975-1978, e Pré-Vestibular Castro Alves, 1979, São Luís, MA; Advogado, Júris Populares, São Luís,<br />

1979-1981, R<strong>os</strong>ário, 1981-1982, e Santa Rita, 1982-1984, MA; Inspetor do Trabalho, 1977, e Fiscal do<br />

Trabalho, 1986, DRT, São Luís, MA.<br />

107 Biografia extraída da página eletrônica da Academia Brasileira de Letras (www.academia.org.br) e da<br />

Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> (www.camara.gov.br )<br />

120


Foi filiado ao MDB de 1960 a 1980. Na década de 90, filiou-se ao PMDB/RJ. 108<br />

Cândido Antônio J<strong>os</strong>é Francisco Mendes de Almeida nasceu em 03 de junho de 1928,<br />

na cidade do Rio de Janeiro, filho de Cândido Mendes de Almeida Júnior e Emília de Mello<br />

Vieira M. de Almeida.<br />

Cândido Mendes fez seus <strong>estudo</strong>s primári<strong>os</strong>, secundári<strong>os</strong> e superiores no Rio de<br />

Janeiro. Estudou Direito (1945-1950) na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e<br />

Fil<strong>os</strong>ofia (1947-1950), na mesma Universidade. Ademais, doutorou-se em Direito na<br />

Faculdade Nacional de Direito, na Universidade do Brasil (1952).<br />

Atuou como professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na<br />

Fundação Getúlio Vargas, na Faculdade de Ciências políticas e Econômicas do Rio de Janeiro<br />

e no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). 109 Teve ainda extensa<br />

atuação como Professor Visitante (Associate Researcher) em Universidades americanas no<br />

período de 1965 a 1971. 110<br />

Cândido Mendes foi Fundador e Presidente do Conselho Executivo do Instituto<br />

Brasileiro de Estud<strong>os</strong> Afro-Asiátic<strong>os</strong> (1961-1966). Ademais, foi chefe de Assessoria Técnica<br />

do Presidente Jânio Quadr<strong>os</strong>, em 1961.<br />

108 Suplências e Efetivações: Ass<strong>um</strong>iu, como Suplente, o mandato de Deputado Federal para a legislatura 1987-<br />

1991, de 9 de ag<strong>os</strong>to a 29 de novembro de 1990, na vaga do Dep. Jorge Leite. Atividades Sindicais,<br />

Representativas de Classe e Associativas: Presidente, SBI; Vice-Presidente, 1973-1976 e 1976-1979, e<br />

Presidente, 1979-1982, IPSA; Presidente, AMES, Rio de Janeiro, RJ, 1981; Presidente, ABM, 1982; Presidente,<br />

Sindicato d<strong>os</strong> Estabeleciment<strong>os</strong> de Ensino Superior Privado, Rio de Janeiro, RJ, 1982. Missões Oficiais:<br />

Delegado do Brasil e convidado especial em reuniões internacionais. Professor visitante, Associate Researcher,<br />

Universidades americanas: Brown University, New York University, New Mexico University, University of<br />

California, Princeton University, Stanford University, Lincoln University, Col<strong>um</strong>bia University, Harvard<br />

University, Syracuse University, Tufts University, Lousianania State University, University of Texas, e Cornel<br />

University, 1965-1971.<br />

109 Atividades Profissionais e Carg<strong>os</strong> Públic<strong>os</strong>: Professor, Assistente, Titular e Chefe de Departamento, PUC,<br />

Rio de Janeiro, RJ, desde 1951; Professor, Escola Brasileira de Administração Pública, FGV; Professor e<br />

Diretor, 1962, Faculdade de Direito Candido Mendes; Professor e Diretor, 1962, Faculdade de Ciências Políticas<br />

e Econômicas do Rio de Janeiro; Professor e Diretor, 1962, IUPERJ; Chefe de Assessoria Técnica do Presidente<br />

Jânio Quadr<strong>os</strong>, 1961; Fundou o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1969; Membro, Instituto<br />

Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).<br />

110 Brown University, New York University, New Mexico University, University of California (LA), Princeton<br />

University, Stanford University, Lincoln University, Col<strong>um</strong>bia University, Harvard University, Syracuse<br />

University, Tufts University, Louisiana State University, University of Texas, Cornell University.<br />

121


Desempenhou diversas funções e exerceu divers<strong>os</strong> carg<strong>os</strong>, dentre as quais: membro do<br />

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); membro do Conselho de Cooperação<br />

Educacional com a América Latina, do Education and World Affairs (1968); membro da<br />

Comissão Pontifícia Justiça e Paz do Secretariado leigo dedicado ao <strong>estudo</strong> do tema da justiça<br />

do Sínodo Romano (1971); Vice-Presidente da Pax Romana (1971); membro da Comissão<br />

Pontifícia Justiça e Paz e do Comitê de Paz da mesma entidade (1972-1982); Secretário-Geral<br />

da Comissão Justiça e Paz no Brasil (1972-1997); Delegado da Santa Sé à Conferência da<br />

UNCTAD (Conferência das Nações Unidas Sobre Comércio e Desenvolvimento) em<br />

Santiago (1972) e em Nairobi (1976); membro do Conselho Executivo da FIUC (Federação<br />

Internacional de Universidades Católicas), em 1973; Vice-Presidente da IPSA (International<br />

Political Science Association), 1973 a 1976 e 1976 a 1979; Presidente da IPSA (International<br />

Political Science Association), de 1979 a 1982; Secretário-Geral do Grupo de Estud<strong>os</strong><br />

Polític<strong>os</strong> do CLACSO (Conselho); membro do Conselho Diretor do International Institute for<br />

Educational Planning (IIEP), de 1976 a 1985; Presidente do Comitê de Programas do<br />

International Social Science Council (ISSC), em 1974; Primeiro Vice-Presidente do ISSC<br />

(1977); Presidente do ISSC (International Social Science Council), de 1981 a 1992;<br />

Presidente da ABM (Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior Privado), de<br />

1972 a 1982 e Presidente do Sindicato d<strong>os</strong> Estabeleciment<strong>os</strong> de Ensino Superior Privado no<br />

Rio de Janeiro (1982).<br />

Publicou inúmeras obras, dentre as quais se incluem: Perspectiva atual da América<br />

Latina (1959), Nacionalismo e desenvolvimento (1963), Momento d<strong>os</strong> viv<strong>os</strong>: a esquerda<br />

católica no Brasil (1966), Despues del populismo: impugnación social y desarrollo en<br />

America Latina (1974), Crise e mudança social na América Latina (1978), Mudança do<br />

século. Mudança da Igreja (1978), Constestation et developpement en Amerique Latine<br />

(1979), A inconfidência brasileira (1986).<br />

122


3.2. O DISCURSO<br />

Nada de excess<strong>os</strong>. Querem<strong>os</strong> a Constituição, não<br />

querem<strong>os</strong> a revolução.<br />

(Evaristo da Veiga. A Aurora Fl<strong>um</strong>inense, n. 59, de<br />

25 de junho de 1828)<br />

Em moment<strong>os</strong> de crise, surge sempre <strong>um</strong>a voz que<br />

revela o que <strong>os</strong> atores polític<strong>os</strong> escondem, velad<strong>os</strong><br />

na severa fisionomia da ação.<br />

(Raymundo Faoro)<br />

Passarem<strong>os</strong> agora à análise do discurso <strong>acerca</strong> do direito de resistência ocorrido na<br />

Assembléia Nacional Constituinte. Utilizam<strong>os</strong> como doc<strong>um</strong>entação o Diário da Assembléia<br />

Nacional Constituinte – publicação responsável por divulgar as atas das diversas Sessões da<br />

Assembléia Nacional Constituinte – e seus Suplement<strong>os</strong>, que abrangem <strong>os</strong> <strong>debates</strong> ocorrid<strong>os</strong><br />

nas Comissões e Subcomissões e as Audiências Públicas. Utilizarem<strong>os</strong>, mais especificamente,<br />

as seguintes passagens do referido doc<strong>um</strong>ento:<br />

1. Ata da 60º Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, ocorrida em 06 de maio de<br />

1987. Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 55. Brasília – DF, 7<br />

de maio de 1987, pp. 1719-1720.<br />

2. Emenda apresentada em 15 de maio de 1987, perante a Comissão da Soberania e d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong><br />

Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Coletiv<strong>os</strong> e Garantias (Subcomissão Ib), pelo então Constituinte<br />

123


J<strong>os</strong>é Genonio Neto (PT/SP). Doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte.<br />

Comissão I, Subcomissão B, Vol<strong>um</strong>e 75, p. 1.<br />

3. Parecer apresentado pela Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Coletiv<strong>os</strong> e<br />

Garantias, no dia 25 de maio de 1987. Doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> da Assembléia Nacional<br />

Constituinte. Comissão I, Subcomissão B, Vol<strong>um</strong>e 76, p. 23.<br />

4. Ata da 187º Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 26 de janeiro de 1988.<br />

Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano II, nº 171, Suplemento “C”.<br />

Brasília – DF, 27 de janeiro de 1988, pp. 914-915.<br />

5. Ata da 5ª Reunião e 4ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão da<br />

Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais (Subcomissão Ia). Diário<br />

da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27<br />

de maio de 1987, pp. 19-29.<br />

6. 9ª Reunião realizada e 3ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da Soberania e<br />

d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic). Diário da Assembléia Nacional<br />

Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, pp. 81-<br />

90.<br />

7. Ata da 8ª Reunião e 2ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da Soberania e d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong><br />

124


e Garantias Individuais (Subcomissão Ic). Diário da Assembléia Nacional<br />

Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p. 70.<br />

O termo discurso pode ser entendido de diferentes formas e p<strong>os</strong>suir diversas<br />

significações. 111 Para <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> propósit<strong>os</strong>, procurarem<strong>os</strong> compreendê-lo como “o enunciado<br />

visto a partir das condições de produção – lingüísticas e sociais – que o geraram”<br />

(CARDOSO & VAINFAS, 1997, p. 377). Entendem<strong>os</strong> que essa definição se m<strong>os</strong>tra coerente<br />

com <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> objetiv<strong>os</strong> de análise do discurso.<br />

Ressalte-se, inicialmente, que “o pressup<strong>os</strong>to essencial das metodologias prop<strong>os</strong>tas<br />

para a análise de text<strong>os</strong> em pesquisa histórica é o de que <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento é sempre portador de<br />

<strong>um</strong> discurso que, assim considerado, não pode ser visto como algo transparente.” [grif<strong>os</strong><br />

no original] (CARDOSO & VAINFAS, 1997, 377). Todavia, convém lembrar que<br />

[...] considerar o conteúdo histórico do texto dependente de sua forma não<br />

implica, de nenh<strong>um</strong> modo, reduzir a historia ao texto [...] Pelo contrário,<br />

trata-se antes de relacionar texto e contexto: buscar <strong>os</strong> nex<strong>os</strong> entre as idéias<br />

contidas n<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong>, as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto<br />

de determinações extratextuais que presidem a produção, a circulação e o<br />

cons<strong>um</strong>o d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong>. Em <strong>um</strong>a palavra, o historiador deve sempre, sem<br />

negligenciar a forma do discurso, relacioná-lo ao social. Negar a<br />

redutibilidade da história ao texto não significa, por outro lado, admitir que<br />

haja <strong>um</strong>a história independente do texto. A história é sempre texto, ou mais<br />

amplamente, discurso, seja ele escrito, iconográfico, gestual etc., de sorte<br />

que somente através da decifração d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> que exprimem ou contêm a<br />

história poderá o historiador realizar o seu trabalho. [grif<strong>os</strong> no original]<br />

(CARDOSO & VAINFAS, 1997, 378).<br />

Régine Robin, em sua obra História e Lingüística, também aponta <strong>os</strong> inconvenientes<br />

de se enxergar o texto de forma transparente, sem levar em consideração as características<br />

daquele que profere o discurso. Segundo Robin,<br />

111 Pode ser “sinônimo de fala (uso contingente da língua), em op<strong>os</strong>ição à língua (sistema estruturado de sign<strong>os</strong>);<br />

como unidade lingüística maior do que a frase – torna-se então sinônimo de mensagem ou enunciado; como<br />

conjunto de regras de encadeamento das frases ou grup<strong>os</strong> de frases que compõem <strong>um</strong> enunciado;” (CARDOSO<br />

& VAINFAS, 1997, p. 377).<br />

125


Se as palavras dão assim acesso ao “social”, pode-se temer que o historiador,<br />

com repugnância, mas com boa consciência, tome o discurso d<strong>os</strong> homens do<br />

passado, suas justificações, como chave de seus comportament<strong>os</strong> e de suas<br />

maneiras de agir e de pensar. Aqui, ainda, o que está em causa é o p<strong>os</strong>tulado<br />

da transparência das estruturas sociais a<strong>os</strong> agentes que são seus suportes. É<br />

sempre o sujeito cartesiano, sem inconsciente, sem pertencer a <strong>um</strong>a classe,<br />

sem ideologia, que fala, que se fala, e, através dele, se atribui a estrutura<br />

objetiva das relações sociais. (ROBIN, 1977, p. 41)<br />

Régine Robin (1977, pp. 90-91) aponta para a necessidade de se enfatizar, na análise<br />

d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong>, “as condições de produção” do mesmo, o “quadro institucional no qual o<br />

discurso é produzido”, as “relações de força que presidem ao ato ilocucionário”, as<br />

“formações ideológicas que governam este ou aquele tipo de retórica.” E acrescenta: “A<br />

questão pode ser circunscrita esquematicamente da seguinte maneira: <strong>um</strong>a análise do discurso<br />

poderá permanecer intralingüística?” Em outra passagem, a autora afirma:<br />

O discurso é sempre relacionado a suas condições de produção – o que,<br />

aliás, autoriza toda escolha de corpus a analisar. Esta Lingüística do discurso<br />

integra ao seu objeto tudo o que ultrapassa a simples lógica da comunicação<br />

denotativa. Pretende estar atenta ao universo conotativo da linguagem, ao<br />

jogo das implicações e das pressup<strong>os</strong>ições, a tudo enfim que está no campo<br />

da enunciação. Ela assinala igualmente como seu objeto o campo retóricoestilístico,<br />

a estratégia d<strong>os</strong> arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> do discurso, sua estrutura, enfim.<br />

Tod<strong>os</strong> estes tip<strong>os</strong> de <strong>estudo</strong>, d<strong>os</strong> quais alguns estão mal esboçad<strong>os</strong>, devem<br />

permitir ultrapassar a análise de enunciad<strong>os</strong> e fazer estourar o espartilho que<br />

apertava o objeto lingüístico. [grifo n<strong>os</strong>so] (ROBIN, 1977, p. 88).<br />

Na análise que se segue procuram<strong>os</strong> enfatizar as condições de produção d<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong>.<br />

E aqui n<strong>os</strong> referim<strong>os</strong> tanto às condições “externas” – ou seja, relacionadas ao contexto<br />

político e social do período da Assembléia Nacional Constituinte – quanto às condições<br />

“internas”: contexto no qual a Constituinte foi instalada; perfil político, social, econômico e<br />

ideológico d<strong>os</strong> parlamentares.<br />

Se antes enfatizávam<strong>os</strong> <strong>um</strong>a abordagem que relacionava biografia e contexto, agora<br />

optam<strong>os</strong> por <strong>um</strong>a metodologia que relacione texto e contexto, ou ainda, biografia e texto.<br />

Enfim, trata-se de enfatizar tanto o discurso, em seus aspect<strong>os</strong> intern<strong>os</strong> e extern<strong>os</strong> (texto e<br />

126


contexto), quanto <strong>os</strong> emissores do discurso (biografia), assim como relacionar estes três<br />

element<strong>os</strong>: indivíduo, texto e contexto.<br />

Pelo fato de ter o direito de resistência constado no Projeto de Constituição<br />

apresentado pelo Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, irem<strong>os</strong>, em <strong>um</strong> primeiro momento, verificar<br />

como era a atuação do PT na década de 80. Nesse sentido, farem<strong>os</strong> <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>sobre</strong> o<br />

surgimento do Partido e <strong>sobre</strong> a sua atuação na Constituinte.<br />

P<strong>os</strong>teriormente, farem<strong>os</strong> <strong>um</strong>a análise da defesa do direito de resistência feita pelo<br />

Deputado Federal J<strong>os</strong>é Genoíno (PT/SP) na Constituinte. Neste ponto, procurarem<strong>os</strong> trabalhar<br />

o discurso relacionando-o com a trajetória pessoal do parlamentar e com o seu<br />

comportamento e atuação enquanto elemento da bancada petista.<br />

Por fim, estudarem<strong>os</strong> as audiências públicas nas quais o direito de resistência é<br />

debatido. O tema aparece em três audiências, envolvendo três exp<strong>os</strong>itores e dois constituintes<br />

n<strong>os</strong> <strong>debates</strong>. Contudo, optam<strong>os</strong> por dividir o <strong>estudo</strong> em dois eix<strong>os</strong> temátic<strong>os</strong>. Dessa forma,<br />

abordarem<strong>os</strong>, inicialmente, o discurso proferido por Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro e, em<br />

seguida, <strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> pronunciad<strong>os</strong> por J<strong>os</strong>é Antonio Rodrigues Dias e por Cândido Mendes.<br />

No primeiro caso, a ênfase recai em aspect<strong>os</strong> constitucionais, bem como em referências ao<br />

período autoritário precedente. No segundo, o debate <strong>sobre</strong> a resistência se volta para a<br />

questão da terra. E aqui surgem alusões às invasões de terra, ao MST, ao direito de<br />

propriedade.<br />

3.2.1. O direito de resistência no Projeto de Constituição do PT 112<br />

112 As informações <strong>acerca</strong> do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores que constam neste item foram extraídas das seguintes<br />

obras: FLEISCHER, David. “Perfil sócio-econômico e político da Constituinte”. In: GURAN, Milton<br />

(Coordenação Editorial). O Processo Constituinte: 1987-1988: doc<strong>um</strong>entação fotográfica a nova constituição.<br />

127


No presente tópico tem<strong>os</strong> como objetivo principal explicar a trajetória do Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores até a Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988. Nesse sentido,<br />

procurarem<strong>os</strong> abordar: as origens do PT, seus principais doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> de criação, <strong>os</strong> princípi<strong>os</strong><br />

que nortearam a formação do Partido, a participação do PT na luta pela instalação de <strong>um</strong>a<br />

Constituinte.<br />

Esse <strong>estudo</strong> se justifica em razão de ter sido o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores o único<br />

Partido com representação na Constituinte a defender a inclusão do direito de resistência no<br />

texto constitucional, tendo inclusive o referido direito constado em seu Projeto de<br />

Constituição apresentado diante da Assembléia.<br />

Acreditam<strong>os</strong> que, a partir da trajetória do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, poderem<strong>os</strong><br />

compreender <strong>os</strong> motiv<strong>os</strong> que levaram o Diretório Nacional do Partido a incluir o direito de<br />

resistência em seu Projeto constitucional. Mais do que isso. Entendem<strong>os</strong> que a história do PT<br />

é fundamental para compreenderm<strong>os</strong> por que razão o direito de resistência foi rejeitado após o<br />

discurso do constituinte petista J<strong>os</strong>é Genoino em sua defesa. Dessa forma, o tópico em <strong>estudo</strong><br />

interessa, <strong>sobre</strong>tudo, para <strong>um</strong>a análise do próximo item, qual seja, o direito de resistência no<br />

discurso do “constituinte socialista”.<br />

Brasília: AGIL-UnB, 1988, pp. 29-40. GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Pra que PT: origem, projeto<br />

e consolidação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores. São Paulo: Cortez, 1989. GURGEL, Cláudio. Estrelas e<br />

borboletas: origens e questões de <strong>um</strong> partido a caminho do poder. Rio de Janeiro: Papagaio, 1989. KECK,<br />

Margaret E. PT a lógica da diferença: o partido d<strong>os</strong> trabalhadores na construção da democracia brasileira. Trad.<br />

Maria Lucia Montes e Isa Mara Lando. São Paulo: Ática, 1991. MENEGUELLO, Rachel. PT: a formação de<br />

<strong>um</strong> partido (1979-1982). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. MOISÉS, J<strong>os</strong>é Álvaro. “Partido de massas:<br />

democrático e socialista”. In: SADER, Emir (org). E agora, PT? Caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense,<br />

[1986?], pp. 177-189. OLIVEIRA, Francisco de. “Qual é a do PT?”. In: SADER, Emir (org). E agora, PT?<br />

Caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense, [1986?], pp. 9-34. PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo:<br />

CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2). RODRIGUES, Leôncio Martins.<br />

Quem é quem na constituinte: <strong>um</strong>a análise sócio-política d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> e deputad<strong>os</strong>. São Paulo: Oesp-<br />

Maltese, 1987. SADER, Emir. “O que é que está escrito na estrela?”. In: SADER, Emir (org). E agora, PT?<br />

Caráter e identidade. São Paulo: Brasiliense, [1986?], pp. 153-176. SILVA, Marcelo C<strong>os</strong>ta da. O Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988: <strong>um</strong> perfil sociológico e biográfico de<br />

seus parlamentares. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA, 2000. (Dissertação de Mestrado).<br />

128


A formação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores vinha se dando desde 1978, quando<br />

ocorreram as greves operárias do ABCD – Santo André, São Bernardo, São Caetano e<br />

Diadema –, a região das grandes metalúrgicas e montadoras de São Paulo. Durante a maior<br />

parte do ano de 1978, e também no início de 1979, discutiu-se, n<strong>os</strong> sindicat<strong>os</strong> de São<br />

Bernardo do Campo, Santo André, Osasco, Sant<strong>os</strong>, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Campinas<br />

e Porto Alegre, a p<strong>os</strong>sibilidade de lançamento de <strong>um</strong> partido político.<br />

A idéia de criação de <strong>um</strong> novo partido apareceu na Conferência d<strong>os</strong> Petroleir<strong>os</strong>,<br />

realizada na Bahia, em 1978, e foi oficialmente lançada no IX Congresso d<strong>os</strong> Metalúrgic<strong>os</strong>,<br />

Mecânic<strong>os</strong> e Eletricitári<strong>os</strong> do Estado de São Paulo, em 24 de janeiro de 1979, na cidade de<br />

Lins (SP). Também foi importante para o surgimento do PT o Congresso Nacional d<strong>os</strong><br />

Metalúrgic<strong>os</strong>, ocorrido em junho de 1979, em Poç<strong>os</strong> de Caldas.<br />

Portanto, as transformações ocorridas no movimento sindical no final da década de 70<br />

exerceram <strong>um</strong>a influência fundamental no debate <strong>acerca</strong> da criação de <strong>um</strong> partido de base<br />

popular. Ressalte-se, ainda, como elemento significativo, o surgimento de líderes operári<strong>os</strong><br />

reconhecid<strong>os</strong> pela opinião pública, como o presidente do sindicato de São Bernardo, Luís<br />

Inácio da Silva (Lula).<br />

Em 1º de maio de 1979, já havia sido lançada <strong>um</strong>a “Carta de Princípi<strong>os</strong>”, assinada pela<br />

Comissão Nacional Provisória do Movimento pelo PT. A Carta apresentava <strong>os</strong> principais<br />

element<strong>os</strong> constitutiv<strong>os</strong> do futuro Manifesto de fundação e do futuro Programa. Nesta data,<br />

segundo Moacir Gadotti e Otaviano Pereira (1989, p. 30), “o PT já estava nas ruas”, e por isso<br />

ela pode ser considerada como “o ponto de partida público, extramur<strong>os</strong>” do movimento pró-<br />

formação do PT.<br />

Na “Carta de Princípi<strong>os</strong>” o PT anuncia o compromisso com o socialismo, sem defini-<br />

lo, mas utilizando expressões clássicas tais quais “exploração do homem pelo homem” e<br />

“vanguarda de toda a população”, referindo-se ao operariado.<br />

129


Em 13 de outubro de 1979 foi oficialmente lançado o Movimento Pró-PT, em<br />

encontro que reuniu cerca de 130 pessoas em São Bernardo do Campo. Na ocasião, <strong>os</strong><br />

presentes aprovaram <strong>um</strong>a “Declaração Política” – com as conclusões da reunião –, <strong>um</strong>a<br />

“Plataforma Política” – que apresentava as reivindicações que o Movimento pelo PT deveria<br />

levar imediatamente –, as “Normas transitórias de funcionamento” – com sugestões básicas<br />

para a organização do PT em tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> níveis – e <strong>um</strong>a “Nota contra a reforma partidária”, que<br />

indicava a p<strong>os</strong>ição do Movimento diante da reforma partidária do regime.<br />

O Movimento pelo PT apresentou sua “Declaração Política”, que, ao contrário da<br />

Carta, não se limitou a<strong>os</strong> princípi<strong>os</strong>, mas trouxe também as prop<strong>os</strong>tas políticas do partido.<br />

É na “Plataforma Política” que o PT vai lançar suas prop<strong>os</strong>tas mais ousadas: o<br />

Governo d<strong>os</strong> Trabalhadores, a socialização da medicina, a erradicação d<strong>os</strong> latifúndi<strong>os</strong> e o<br />

controle popular d<strong>os</strong> fund<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>. Aqui também são colocad<strong>os</strong> como objetiv<strong>os</strong> a<br />

estatização d<strong>os</strong> serviç<strong>os</strong> básic<strong>os</strong>, a estatização das grandes empresas e banc<strong>os</strong>, da indústria<br />

extrativa e da infra-estrutura, além da nacionalização e estatização de todas as empresas<br />

estrangeiras. P<strong>os</strong>teriormente, no “Programa do PT”, essa feição estatizante foi abandonada.<br />

Constituinte.<br />

Na Plataforma também consta a prop<strong>os</strong>ta de convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional<br />

Em 10 de fevereiro de 1980 – no Colégio Sion, em São Paulo – a Comissão Provisória<br />

Nacional do PT aprovou o “Manifesto do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores”. 113 No mesmo dia foram<br />

apresentad<strong>os</strong> <strong>os</strong> “Pont<strong>os</strong> para Elaboração do Programa”, que tinha como objetivo sistematizar<br />

<strong>os</strong> pass<strong>os</strong> e <strong>os</strong> temas que levariam ao Programa do Partido. O PT já estava no caminho para<br />

sua legalização. Em 1º de junho de 1980, em reunião nacional de fundação do Partido, o PT<br />

aprovou o seu Programa e o Estatuto do Partido, além de referendar o manifesto de<br />

lançamento. Também elegeu a Comissão Diretora Nacional Provisória. Formal e legalmente,<br />

113 Contudo, o Manifesto somente seria dado a público em 22 de março, com alg<strong>um</strong>as correções.<br />

130


o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores foi fundado neste mês de junho, conforme a ata de fundação, que<br />

registra as datas de 31 de maio e 1º de junho de 1980. Em 22 de outubro de 1980, o Partido<br />

d<strong>os</strong> Trabalhadores entrou com o requerimento de seu registro provisório junto ao Tribunal<br />

Superior Eleitoral.<br />

Os Encontr<strong>os</strong> Nacionais que se seguiram – de 1980 até dezembro de 1987 – não<br />

trouxeram mudanças significativas para a estrutura política do PT. Contudo, o V Encontro<br />

Nacional, ocorrido n<strong>os</strong> dias 4, 5 e 6 de dezembro de 1987, aprovou resoluções políticas de<br />

forte impacto para o Partido, como a política de alianças táticas, na qual o PT definiu <strong>os</strong> seus<br />

principais aliad<strong>os</strong>.<br />

No primeiro semestre de 1985, a direção nacional do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores<br />

solicitou ao jurista Fábio Konder Comparato (1986, p. 7) a redação de <strong>um</strong> anteprojeto de<br />

Constituição, “para servir de base às discussões internas e a <strong>um</strong>a ulterior tomada de p<strong>os</strong>ição<br />

política”. Concluída a elaboração do anteprojeto, seu texto – juntamente com sua explicação<br />

geral – foi entregue, oficialmente, à Comissão Executiva Nacional do Partido, em 24 de<br />

fevereiro de 1986.<br />

O Projeto final apresentado pelo Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores na Constituinte suprimiu,<br />

acrescentou e modificou diversas partes do anteprojeto do professor Fábio Comparato,<br />

embora o tenha tomado como base. O Projeto foi aprovado pelo Diretório Nacional do PT em<br />

reunião extraordinária, realizada em Cajamar/SP, n<strong>os</strong> dias 11 e 12 de abril de 1987.<br />

No anteprojeto apresentado por Comparato (1986, p. 77), a primeira parte – intitulada<br />

“A soberania” – continha artigo <strong>acerca</strong> da “origem e finalidade do poder”, cuja redação era a<br />

seguinte: “Art. 1º. Todo poder emana do povo e em seu nome e proveito deve ser exercido. A<br />

organização de poderes tem por fim assegurar, a tod<strong>os</strong>, condições de vida digna e feliz”. O<br />

Projeto aprovado pelo PT – e que seria apresentado, p<strong>os</strong>teriormente, na Constituinte –<br />

manteve o princípio da soberania popular, introduzindo, ainda, dois outr<strong>os</strong> princípi<strong>os</strong>: o<br />

131


direito do povo de se insurgir contra at<strong>os</strong> de autoridade que violem <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> consagrad<strong>os</strong> na<br />

Constituição e a definição de mecanism<strong>os</strong> que garantam a participação popular por meio de<br />

conselh<strong>os</strong> populares.<br />

Em 06 de maio de 1987, na 60º Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, a<br />

Bancada do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores apresentou o Projeto de Constituição no qual consta o<br />

direito de resistência. O Projeto é apresentado no período de “Comunicação de Lideranças”,<br />

pelo então líder do Partido, o constituinte Luiz Inácio Lula da Silva (PT/SP), que passa a ler a<br />

exp<strong>os</strong>ição de motiv<strong>os</strong> do PT:<br />

132<br />

O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores apresenta à Assembléia Nacional Constituinte e<br />

à sociedade seu Projeto de Constituição. Trata-se de <strong>um</strong> conjunto articulado<br />

de princípi<strong>os</strong> polític<strong>os</strong> e prop<strong>os</strong>tas pragmáticas que devem nortear e<br />

caracterizar a sociedade brasileira. [...] Na disputa global <strong>acerca</strong> das opções<br />

que se colocam para a população, o PT procura colocar-se a partir d<strong>os</strong><br />

interesses que representa, formulando <strong>um</strong>a prop<strong>os</strong>ta para o conjunto da<br />

sociedade com base n<strong>os</strong> ansei<strong>os</strong> e reivindicações oriundas daqueles que<br />

constituem a razão de ser do n<strong>os</strong>so Partido: <strong>os</strong> trabalhadores da cidade<br />

e do campo. [...] A prop<strong>os</strong>ta de Constituição para a República Federativa<br />

Democrática do Brasil que o PT oferece ao País está edificada a partir de<br />

dois pilares fundamentais. De <strong>um</strong> lado, a perspectiva de instauração d<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> e garantias, individuais e coletiv<strong>os</strong>, de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> seres h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>.<br />

De outro, a preocupação com o afloramento de <strong>um</strong> conjunto de<br />

instituições, princípi<strong>os</strong> e diretrizes constitucionais que propiciem<br />

condições efetivas de controle popular <strong>sobre</strong> o Poder Público e o<br />

funcionamento da sociedade como <strong>um</strong> todo. O momento que vivem<strong>os</strong> é<br />

singular na vida política nacional. O PT não poderia omitir-se n<strong>os</strong> embates<br />

do presente. Ao invés de n<strong>os</strong> limitarm<strong>os</strong> meramente à enunciação de <strong>um</strong> rol<br />

de teses e princípi<strong>os</strong>, encaram<strong>os</strong> o desafio de elaborar <strong>um</strong> projeto completo<br />

de Constituição. Ousam<strong>os</strong> tomar <strong>um</strong>a iniciativa que julgam<strong>os</strong> inédita.<br />

Acreditam<strong>os</strong> ser a primeira vez na história das Constituintes brasileiras que<br />

<strong>um</strong> partido político apresenta formalmente <strong>um</strong> projeto de Constituição global<br />

e articulado. [...] O Projeto do PT é fruto do memorável trabalho do jurista<br />

Fábio Konder Comparato que, atendendo solicitação da Comissão Executiva<br />

Nacional do Partido, formulou e apresentou, em fevereiro de 1986, <strong>um</strong>a<br />

inovadora prop<strong>os</strong>ta constitucional para o País, intitulada “Muda Brasil”.<br />

Com base nesse trabalho e em prop<strong>os</strong>ta encaminhadas por organism<strong>os</strong><br />

partidári<strong>os</strong> e entidades da sociedade, o Diretório Nacional do PT, sua<br />

Comissão Executiva e a Bancada constituinte petista construíram <strong>um</strong><br />

conjunto de princípi<strong>os</strong> e prop<strong>os</strong>tas que foram sistematizadas pel<strong>os</strong><br />

advogad<strong>os</strong> Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari e J<strong>os</strong>é Eduardo Martins<br />

Card<strong>os</strong>o, coordenad<strong>os</strong> pelo cientista político Marco Aurélio Garcia, da


Comissão Constitucional do Partido, e que se consubstanciam no Projeto que<br />

ora se apresentará. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 114<br />

No discurso acima, três pont<strong>os</strong> merecem ser destacad<strong>os</strong>. Em primeiro lugar, o esforço<br />

no sentido de caracterizar o PT como <strong>um</strong> partido que representa <strong>os</strong> trabalhadores da cidade e<br />

do campo. Ademais, a ênfase conferida a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> individuais e coletiv<strong>os</strong>. Por fim, a idéia de<br />

controle popular <strong>sobre</strong> o Poder Público. Esse último aspecto relaciona-se diretamente com a<br />

noção de direito de resistência.<br />

É importante ressaltarm<strong>os</strong>, primeiramente, como foi a participação do Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores na luta pela instalação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte. Conforme<br />

vim<strong>os</strong>, n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> que antecederam a instalação da ANC existia <strong>um</strong> grande anseio por parte de<br />

sociedade brasileira por <strong>um</strong>a Constituinte que se caracterizasse pela liberdade, democracia,<br />

representatividade e participação popular. Para o PT, <strong>um</strong>a Constituinte livre e soberana<br />

somente seria p<strong>os</strong>sível com a participação efetiva d<strong>os</strong> trabalhadores.<br />

Para que a Assembléia não f<strong>os</strong>se apenas <strong>um</strong>a “Constituinte formal”, isto é,<br />

puramente jurídica, mas fundamentalmente política, o PT lutou para que dela<br />

não participassem apenas <strong>os</strong> “polític<strong>os</strong> de profissão”, mas <strong>os</strong> legítim<strong>os</strong><br />

representantes d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais combativ<strong>os</strong>. Não era hora de<br />

discussões formais e abstratas <strong>sobre</strong> a natureza e finalidade do Parlamento.<br />

O Parlamento, naquela circunstância e etapa histórica da Constituinte, era<br />

<strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento jurídico-político importante para legitimar pelo men<strong>os</strong> <strong>um</strong><br />

mínimo avanço popular. Por isso o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, sentindo a<br />

necessidade de consolidar ainda mais a mobilização popular em torno de<br />

seus interesses, conferindo-lhe legalidade, sugeriu e lutou combativamente<br />

pela proporcionalidade direta entre o número de eleitores e o direito à<br />

participação de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> partid<strong>os</strong>. Exemplo dessa luta foi a criação de<br />

conselh<strong>os</strong> consultiv<strong>os</strong> municipais de caráter deliberativo. [...] O PT quis<br />

ampliar ao máximo p<strong>os</strong>sível a discussão entre <strong>os</strong> trabalhadores, para que esta<br />

tivesse <strong>um</strong>a representatividade autêntica e majoritária quando da elaboração<br />

da Nova Carta, tendo em vista as p<strong>os</strong>sibilidades reais de intervenção d<strong>os</strong><br />

trabalhadores no processo, a fim de que se modificassem situações concretas<br />

que afligem diretamente o trabalhador em seu dia-a-dia (GADOTTI &<br />

PEREIRA, 1989, p. 93).<br />

114 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 55. Brasília – DF, 7 de maio de 1987, pp. 1719-1720.<br />

(ANEXO I)<br />

133


A necessidade de dar início a<strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>sobre</strong> a questão da Constituinte já era sentida<br />

desde o início da formação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, tendo o tema constado no programa<br />

elaborado pela Comissão Nacional Provisória do Movimento Pró-PT, assinado em 10 de<br />

fevereiro de 1980. 115 Em novembro de 1983, o tema foi mencionado em doc<strong>um</strong>ento intitulado<br />

“Projeto Político do PT”, lançado pela Comissão Executiva Nacional a fim de ser discutido<br />

pelas instâncias internas do Partido tendo em vista a Convenção Nacional de 1984. Após a<br />

derrota das “Diretas Já”, em abril de 1984, o debate <strong>sobre</strong> a convocação da Assembléia<br />

Nacional Constituinte se instalou definitivamente no interior do PT.<br />

A maior parte do Partido se p<strong>os</strong>icionava favoravelmente à convocação imediata de<br />

<strong>um</strong>a Assembléia Nacional Constituinte. Alguns membr<strong>os</strong>, todavia, eram contrári<strong>os</strong> a essa<br />

idéia, por considerarem-na apenas <strong>um</strong>a alternativa para que as elites brasileiras legitimassem<br />

<strong>um</strong> novo pacto de dominação para substituir o regime militar.<br />

Em janeiro de 1985, em <strong>um</strong>a reunião do Diretório nacional, o grupo pró-Constituinte<br />

sai vitori<strong>os</strong>o, e o PT decide pela convocação imediata de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional<br />

Constituinte livre, democrática e soberana. A resolução aprovada orientava todas as instâncias<br />

do Partido a organizarem plan<strong>os</strong> de ação com a finalidade de promover o lançamento de<br />

campanhas através de comíci<strong>os</strong>, panfletagem, propagandas, <strong>debates</strong>, material de educação<br />

política e esclarecimento <strong>sobre</strong> o que é <strong>um</strong>a Constituinte, seu caráter e a prop<strong>os</strong>ta do PT.<br />

O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores não aprovava a convocação de <strong>um</strong>a Assembléia Nacional<br />

Constituinte da forma como ela foi feita, com a eleição de <strong>um</strong> Congresso Constituinte, em<br />

novembro de 1986, juntamente com as eleições para <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> estaduais. Em 1985, o PT<br />

115 No doc<strong>um</strong>ento, são distinguidas quatro partes de <strong>um</strong> programa, que não significam etapas, mas níveis<br />

distint<strong>os</strong>: <strong>um</strong> programa para a democracia; <strong>um</strong> programa para a sociedade; <strong>um</strong> programa para a conjuntura e <strong>os</strong><br />

interesses imediat<strong>os</strong> d<strong>os</strong> trabalhadores; <strong>um</strong> programa de ação para o partido. Em “Um programa para a<br />

democracia” encontram<strong>os</strong> a afirmação de que “o programa de luta d<strong>os</strong> militantes do PT pela democracia terá,<br />

obrigatoriamente, que reivindicar pelo men<strong>os</strong> <strong>os</strong> seguintes pont<strong>os</strong>: [...] Convocação de <strong>um</strong>a Assembléia<br />

Nacional Constituinte, livre, democrática e soberana”. [grifo n<strong>os</strong>so] – “Comissão Nacional Provisória do<br />

Movimento Pró-PT”, assinado em São Paulo, em 10 de fevereiro de 1980. Cf. PEDROSA, Mário. Sobre o PT.<br />

São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), pp. 94-95.<br />

134


encaminhou, através do Deputado Federal Djalma Bom (PT/SP), <strong>um</strong>a emenda à Constituição,<br />

na qual propunha eleições para a Assembléia Nacional Constituinte – que seria unicameral,<br />

específica e exclusiva – em 1º de março de 1986. Além disso, a emenda defendia que tod<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

cidadã<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong>, maiores de 18 an<strong>os</strong>, poderiam alistar-se como eleitores. Também apoiava<br />

a constituição de Comissões Consultivas Municipais, encarregadas de formular sugestões para<br />

a elaboração da Constituinte.<br />

No IV Encontro Nacional do PT, realizado n<strong>os</strong> dias 30 de maio e 1º de junho de 1986,<br />

foi aprovada a resolução “Constituinte”, que propôs que o Diretório Nacional ass<strong>um</strong>isse como<br />

prioridade este tema, bem como que criasse <strong>um</strong> Comitê Constituinte Coordenador, em nível<br />

nacional, e Comitês Constituintes em tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> Diretóri<strong>os</strong> Regionais, Municipais, Distritais e<br />

núcle<strong>os</strong>. No Encontro também foi sugerida a realização, em fevereiro de 1987, de <strong>um</strong><br />

encontro extraordinário para a decisão <strong>acerca</strong> do texto final do Projeto de Constituição do<br />

Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores.<br />

Em 1985, o sucesso obtido pelo PT nas eleições para prefeito nas capitais, bem como a<br />

participação do Partido nas discussões <strong>sobre</strong> a forma que deveria tomar a futura Constituinte,<br />

a<strong>um</strong>entaram a consciência d<strong>os</strong> líderes petistas para a necessidade de <strong>um</strong>a estratégia política<br />

mais ampla, que não se limitasse ao fortalecimento d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais e das instituições<br />

da sociedade civil.<br />

A campanha eleitoral do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores em 1986 adotou <strong>um</strong>a imagem<br />

partidária ampliada. O PT paulista procurou viabilizar sua prop<strong>os</strong>ta política enfatizando o<br />

papel institucional do Partido na Constituinte. A estratégia englobava também <strong>um</strong> quadro de<br />

candidat<strong>os</strong> bastante distinto daquele existente em 1982. Muit<strong>os</strong> líderes petistas se<br />

candidataram ao Congresso em 1986, devido à compreensão da importância dessa legislatura,<br />

que deveria funcionar também como Assembléia Nacional Constituinte.<br />

135


Nas eleições de novembro de 1986, o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores elegeu 16 deputad<strong>os</strong><br />

federais – dobrando sua representação no legislativo federal – e 39 deputad<strong>os</strong> estaduais, <strong>um</strong><br />

a<strong>um</strong>ento significativo em relação às eleições de 1982, quando conseguiu eleger apenas 12<br />

deputad<strong>os</strong> estaduais. No Senado, todavia, o PT permaneceu sem representação. Como vim<strong>os</strong>,<br />

a bancada eleita em 1986 era muito diferente da anterior. Lula foi eleito para a Câmara d<strong>os</strong><br />

Deputad<strong>os</strong> – tendo sido o candidato que obteve mais vot<strong>os</strong> em todo o País – e tornou-se líder<br />

da bancada petista. Dentre <strong>os</strong> 16 deputad<strong>os</strong> eleit<strong>os</strong>, incluía-se o presidente do Partido, Olívio<br />

Dutra, e vári<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> líderes importantes. 116<br />

Os constituintes petistas foram muito ativ<strong>os</strong> na ANC. Apresentaram artig<strong>os</strong> e<br />

emendas, negociaram apoio com constituintes de outr<strong>os</strong> partid<strong>os</strong>. Deram especial atenção a<br />

116 Os 16 deputad<strong>os</strong> federais do PT representavam 3,3% d<strong>os</strong> 487 parlamentares eleit<strong>os</strong> para a Câmara d<strong>os</strong><br />

Deputad<strong>os</strong> nas eleições de novembro de 1986. A bancada do PT na Constituinte era formada exclusivamente por<br />

deputad<strong>os</strong> federais. Sobre o perfil sócio-econômico e político do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores na Constituinte,<br />

podem<strong>os</strong> fazer alg<strong>um</strong>as observações. Quanto ao perfil regional, o Partido elegeu deputad<strong>os</strong> em cinco unidades<br />

da federação, situadas exclusivamente nas regiões Sudeste (14 deputad<strong>os</strong>) e Sul (2 deputad<strong>os</strong>): 3 em Minas<br />

Gerais, 1 no Espírito Santo, 2 no Rio de Janeiro, 8 em São Paulo e 2 no Rio Grande do Sul. No que tange à<br />

genealogia partidária, a maior parte da bancada petista era formada por pessoas jovens e desvinculadas com <strong>os</strong><br />

períod<strong>os</strong> anteriores. Apenas <strong>um</strong> parlamentar teve filiação partidária no período do pluripartidarismo – antes do<br />

Ato Institucional nº 2, em 1965 –, o deputado Plínio de Arruda Sampaio, que foi filiado ao Partido Democrata<br />

Cristão (PDC). Durante o período do bipartidarismo (1965-1979), o fenômeno se repete: apenas a paulista Irma<br />

Passoni foi filiada a <strong>um</strong> partido político – o MDB – nesta época. De tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> partid<strong>os</strong> que conseguiram<br />

representação na Assembléia Nacional Constituinte, o PT foi o que apresentou a maior taxa de renovação de<br />

parlamentares, 81,3%, o que se explica em razão de ter quase triplicado a sua pequena bancada, passando de 6<br />

para 16 deputad<strong>os</strong>. A renovação é definida aqui em term<strong>os</strong> de constituintes “calour<strong>os</strong>”, que chegaram à ANC<br />

sem nenh<strong>um</strong>a experiência prévia no Congresso Nacional. Em relação à idade, a bancada petista apresentou a<br />

segunda menor média (43,73 an<strong>os</strong>), ficando atrás apenas da bancada do PC do B (33,81 an<strong>os</strong>). No que diz<br />

respeito à antiguidade, o PT apresentou a terceira menor média em tempo de experiência parlamentar prévia: 2<br />

an<strong>os</strong>. A bancada do PT na Constituinte apresenta, portanto, <strong>um</strong>a renovação alta, com gente jovem e de pouca<br />

experiência. Dentre <strong>os</strong> 16 parlamentares petistas, encontram<strong>os</strong> 2 mulheres e 2 negr<strong>os</strong>, índices que, embora<br />

baix<strong>os</strong>, superam a proporção total de mulheres e negr<strong>os</strong> eleit<strong>os</strong> para a Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> neste pleito.<br />

Embora com <strong>um</strong> percentual alto em relação ao perfil educacional da população brasileira, o PT apresentou o<br />

índice mais baixo de parlamentares com nível superior: 81,3%, ou seja, 13 d<strong>os</strong> 16 parlamentares. O PT também<br />

apresentou o percentual mais baixo em relação ao número de deputad<strong>os</strong> que estudaram em Instituições de Ensino<br />

Superior (IES) públicas: 38,5%. Quanto às profissões d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> petistas eleit<strong>os</strong> em novembro de 1986,<br />

encontram<strong>os</strong> 5 professores, 2 metalúrgic<strong>os</strong>, 2 bancári<strong>os</strong>, 2 economistas, 2 médic<strong>os</strong>, 1 advogado, 1 assistente<br />

social, 1 topógrafo. A maior parte da bancada é formada por profissionais liberais e professores (três do ensino<br />

secundário e dois do ensino superior). A proporção de ex-dirigentes sindicais na bancada do PT é grande: d<strong>os</strong> 16<br />

deputad<strong>os</strong>, 7 eram sindicalistas (três do setor fabril e quatro white collar). O PT apresentou ainda a maior média<br />

de trabalhadores manuais na Constituinte: 18,8%. Quanto às atividades econômicas, segundo David Fleischer<br />

(1988, p. 32), o PT foi <strong>um</strong> d<strong>os</strong> três partid<strong>os</strong> – ao lado do PSB e do PC do B – que não elegeu nenh<strong>um</strong><br />

“capitalista”. O autor utiliza esse termo para definir aqueles que “recebem a maior parte de sua renda<br />

proveniente do capital (investiment<strong>os</strong> e propriedades)”. Fleischer localiza o perfil do PT na “faixa classe<br />

média/operária”. Dentre <strong>os</strong> 16 integrantes da bancada petista na Constituinte, nenh<strong>um</strong> deles pertencia à classe<br />

proprietária.<br />

136


determinadas matérias, como <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> trabalhadores e a reforma agrária. Mas também<br />

foram atuantes em outras áreas.<br />

Durante o ano de 1987, a participação do PT na Constituinte foi, proporcionalmente, a<br />

mais ativa de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> partid<strong>os</strong>, com constante presença e atuação. O Partido apresentou<br />

inúmeras emendas, inicialmente n<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> das comissões temáticas e, em seguida, ao<br />

primeiro Projeto da Comissão de Sistematização, discutido e votado em dezembro. Sobre este<br />

Projeto, o PT apresentou 61 emendas. 117<br />

Rachel Meneguello (1989, p. 201), <strong>sobre</strong> a atuação petista na Constituinte, explica que<br />

o PT “revelou-se efetivamente <strong>um</strong>a das agremiações de perfil ideológico mais coerente,<br />

embasando de forma coesa as discussões em torno das principais transformações político-<br />

institucionais e econômico-sociais da nova Carta”, quais sejam, “<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> sociais d<strong>os</strong><br />

trabalhadores, a reforma agrária e a democratização do Estado”. Para Keck (1991, p. 256), “a<br />

coerência da bancada do PT contrastou-se ao que ocorria n<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> na Assembléia<br />

Constituinte”. Isso porque a maioria d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> na ANC não seguia <strong>um</strong>a disciplina<br />

partidária das votações. Esse fator obrigou o PT a fazer alianças em torno de cada questão,<br />

negociando individualmente com <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong>.<br />

O PT foi <strong>um</strong> elemento importante na coalizão que, através de <strong>um</strong>a alteração das regras<br />

internas da Constituinte, permitiu as emendas populares, abrindo o processo de elaboração<br />

constitucional às iniciativas populares.<br />

Sobre a atuação petista na Constituinte, destaque-se que 14 d<strong>os</strong> 16 deputad<strong>os</strong> (87,5%<br />

da bancada) compareceram a mais de 90% das votações gerais da Constituinte. A média geral<br />

da freqüência da bancada petista foi bastante alta: 94%. O membro da bancada do PT que teve<br />

o menor índice de freqüência foi o Deputado Luiz Gushiken, que compareceu a 81% das<br />

117 Das 61 emendas encaminhadas pela bancada petista, 14 versavam <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> trabalhadores, 9 <strong>sobre</strong><br />

a ordem social, 9 <strong>sobre</strong> a organização d<strong>os</strong> poderes, 8 <strong>sobre</strong> a ordem econômica, 7 <strong>sobre</strong> a organização e defesa<br />

do Estado, 6 <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> individuais e coletiv<strong>os</strong>, 5 <strong>sobre</strong> a Previdência Social e 3 <strong>sobre</strong> as disp<strong>os</strong>ições<br />

transitórias. Embora <strong>os</strong> constituintes tivessem o direito de apresentar até quatro emendas, três deputad<strong>os</strong> petistas<br />

encaminharam apenas três.<br />

137


votações. Ainda assim, o menor índice de presença do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores foi maior<br />

que média de freqüência de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> constituintes, que foi de 72%.<br />

Quanto à apresentação e aprovação de emendas, <strong>os</strong> constituintes petistas apresentaram<br />

<strong>um</strong>a média de 129 emendas – em contraste com <strong>um</strong>a média de 119 emendas apresentadas<br />

pelo conjunto d<strong>os</strong> constituintes – e conseguiram aprovar <strong>um</strong>a média de 36 emendas – ao<br />

passo que o total de constituintes teve <strong>um</strong>a média de 32 emendas aprovadas – obtendo,<br />

portanto, <strong>um</strong>a média de 28,53% de aprovação. 118<br />

O DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) avaliou a atuação d<strong>os</strong><br />

constituintes do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores na Assembléia Nacional Constituinte,<br />

especificamente nas matérias relativas a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> d<strong>os</strong> trabalhadores. A entidade deu nota<br />

máxima para 81,3% da bancada do PT, ou seja, para 13 d<strong>os</strong> 16 deputad<strong>os</strong>. 119 Os constituintes<br />

petistas ficaram, na média geral, com a nota 9,9.<br />

Conforme vim<strong>os</strong>, quando da apresentação do Projeto de Constituição pelo Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores, foi explicitado, na exp<strong>os</strong>ição de motiv<strong>os</strong>, que a prop<strong>os</strong>ta formulada tinha por<br />

base <strong>os</strong> ansei<strong>os</strong> e reivindicações originári<strong>os</strong> daqueles que constituíam “a razão de ser” do<br />

Partido, quais sejam, <strong>os</strong> trabalhadores da cidade e do campo.<br />

O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, desde sua origem, procurou se caracterizar como <strong>um</strong><br />

partido oriundo d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> trabalhadores. Mário Pedr<strong>os</strong>a (1980, p. 17), militante operário<br />

desde 1925, explica que “o partido d<strong>os</strong> trabalhadores tem como primeira virtude a de ter<br />

nascido d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> trabalhadores. Eis aí <strong>um</strong>a idéia que veio realmente do seio d<strong>os</strong><br />

trabalhadores brasileir<strong>os</strong>.”<br />

Na “Carta de Princípi<strong>os</strong>” assinada pela Comissão Nacional Provisória em 1º de maio<br />

de 1979, essa relação com as classes trabalhadoras fica bastante evidente. A passagem abaixo<br />

118 Destacaram-se nesse processo <strong>os</strong> seguintes constituintes petistas: Eduardo Jorge (258 emendas apresentadas e<br />

83 aprovadas), João Paulo (249 emendas apresentadas e 75 aprovadas), J<strong>os</strong>é Genoíno (243 emendas<br />

apresentadas e 37 aprovadas), e Irma Passoni (226 apresentadas e 71 aprovadas).<br />

119 Apenas Vítor Buaiz (9,5), Virgílio Guimarães (9,0) e Luiz Gushiken (9,5) tiveram média abaixo de 10,0.<br />

138


demonstra o empenho do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, no momento de sua gestação, em se<br />

caracterizar como o instr<strong>um</strong>ento a partir do qual a participação d<strong>os</strong> trabalhadores na vida<br />

política do País seria p<strong>os</strong>sível.<br />

O povo brasileiro está pobre, doente e nunca chegou a ter acesso às decisões<br />

<strong>sobre</strong> <strong>os</strong> r<strong>um</strong><strong>os</strong> do país. E não acreditam<strong>os</strong> que esse povo venha a<br />

conhecer justiça e democracia sem o concurso decisivo e organizado d<strong>os</strong><br />

trabalhadores, que são as verdadeiras classes produtoras do país. É por<br />

isso que não acreditam<strong>os</strong> que partid<strong>os</strong> e govern<strong>os</strong> criad<strong>os</strong> e dirigid<strong>os</strong> pel<strong>os</strong><br />

patrões e pelas elites políticas, ainda que <strong>os</strong>tentem fachadas democráticas,<br />

p<strong>os</strong>sam propiciar o acesso às conquistas da civilização e à plena participação<br />

política para o n<strong>os</strong>so povo. Os males profund<strong>os</strong> que se abatem <strong>sobre</strong> a<br />

sociedade brasileira não poderão ser superad<strong>os</strong> senão por <strong>um</strong>a<br />

participação decisiva d<strong>os</strong> trabalhadores na vida da nação. O<br />

instr<strong>um</strong>ento capaz de propiciar essa participação é o Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores. Iniciem<strong>os</strong>, pois, desde já, a c<strong>um</strong>prir essa tarefa histórica,<br />

organizando por toda a parte <strong>os</strong> núcle<strong>os</strong> elementares desse partido. [grif<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 120<br />

Em outra passagem, o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores ass<strong>um</strong>e o compromisso de, nas<br />

atividades parlamentares, estimular e aprofundar a “organização das massas exploradas”,<br />

acrescentando, mais adiante que o seu objetivo é “organizar politicamente <strong>os</strong> trabalhadores<br />

urban<strong>os</strong> e <strong>os</strong> trabalhadores rurais”. Ao conceito de “massas exploradas” corresponde a idéia<br />

de “trabalhadores urban<strong>os</strong> e trabalhadores rurais” que, por sua vez, remete para a expressão<br />

“camadas assalariadas”.<br />

O PT entende também que, se o regime autoritário for substituído por <strong>um</strong>a<br />

democracia formal e parlamentar, fruto de <strong>um</strong> acordo entre elites dominantes<br />

que exclua a participação organizada do povo (como se deu entre 1945 e<br />

1964), tal regime nascerá débil e descomprometido com a resolução d<strong>os</strong><br />

problemas que afligem o n<strong>os</strong>so povo, e pronto será derrubado e substituído<br />

por novas formas autoritárias de dominação – tão comuns na história<br />

brasileira. Por isso, o PT proclama que a única força capaz de ser fiadora<br />

de <strong>um</strong>a democracia efetivamente estável são as massas exploradas do<br />

campo e das cidades. O PT entende, por outro lado, que sua existência<br />

responde à necessidade que <strong>os</strong> trabalhadores sentem de <strong>um</strong> partido que se<br />

construa intimamente ligado com o processo de organização popular, n<strong>os</strong><br />

120 “Carta de Princípi<strong>os</strong>” assinada pela Comissão Nacional Provisória, em 1º de maio de 1979. Cf. PEDROSA,<br />

Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p.<br />

54.<br />

139


locais de trabalho e de moradia. Nesse sentido, o PT proclama que sua<br />

participação em eleições e suas atividades parlamentares se<br />

subordinarão a seu objetivo maior que é o de estimular e aprofundar a<br />

organização das massas exploradas. [...] Ao anunciar que seu objetivo é<br />

organizar politicamente <strong>os</strong> trabalhadores urban<strong>os</strong> e <strong>os</strong> trabalhadores<br />

rurais, o PT se declara aberto à participação de todas as camadas<br />

assalariadas do país. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 121<br />

Comparando a passagem acima com a exp<strong>os</strong>ição de motiv<strong>os</strong> do Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores no momento de apresentação do Projeto de Constituição podem<strong>os</strong> observar que<br />

o discurso é perfeitamente coerente no que diz respeito à opção pel<strong>os</strong> trabalhadores da cidade<br />

e do campo. De fato, conforme “prometido” na Carta de Princípi<strong>os</strong>, o Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores, no momento de sua atuação parlamentar na Constituinte, continuou mantendo<br />

o seu discurso em prol das classes trabalhadoras.<br />

É importante ressaltarm<strong>os</strong> que, embora tendo origem operária, o PT procurou se<br />

definir como <strong>um</strong> partido de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> trabalhadores, <strong>um</strong> partido de massas, <strong>um</strong> partido das<br />

bases. É nesse sentido que Mário Pedr<strong>os</strong>a (1980) compreende que<br />

O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores é o povo organizado. [...] O Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores não é <strong>um</strong> partido como <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, pois é no fundo <strong>um</strong> produto<br />

intrínseco da história do Brasil contemporâneo. Não é por outra razão que<br />

sua missão é mais do que política, é civilizadora. Não é por outra razão<br />

também que ele não vai nascer como <strong>os</strong> outr<strong>os</strong>, de natureza parlamentar, já<br />

de botinas. É <strong>um</strong> partido que tem de alcançar <strong>os</strong> eleitores de pés no chão e<br />

obter deles o consentimento que necessita para fazê-lo vingar. (PEDROSA,<br />

1980, p. 34).<br />

Cláudio Gurgel (1989) explica que o nascimento do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores está, de<br />

fato, associado às lutas sindicais do ABC paulista, onde se localizaria “a origem da<br />

comp<strong>os</strong>ição operária do PT e seu forte traço de classe”. Contudo, o autor acrescenta que<br />

[...] não foi apenas desta massa política que se formou o PT. Ele formou-se<br />

com o batismo sindical, mas também com a enorme contribuição do<br />

121 “Carta de Princípi<strong>os</strong>” assinada pela Comissão Nacional Provisória, em 1º de maio de 1979. Cf. PEDROSA,<br />

Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), pp.<br />

59-60.<br />

140


enascimento político do Brasil – promovido nas lutas pela terra, contra a<br />

censura, pela anistia, contra a tortura, pelo índio, contra a discriminação<br />

racial, sexual etc... Nesta contribuição, incluídas a nova ação pastoral das<br />

igrejas e as organizações de esquerda, <strong>sobre</strong>viventes às chacinas d<strong>os</strong> an<strong>os</strong><br />

setenta e outr<strong>os</strong> projet<strong>os</strong> partidári<strong>os</strong> que optaram por <strong>um</strong>a passagem tática<br />

pelo PT. [...] Vale dizer mais ainda: não é sua formação de origem, sua pedra<br />

fundamental, que lhe dá continuidade. Uma combinação muito mais<br />

complexa – de forças, de concepções, de práticas e de segment<strong>os</strong>, categorias<br />

e subclasses – constitui hoje o PT. (GURGEL, 1989, pp. 59-60)<br />

O partido procurou se relacionar com as bases de forma ampla e organizada,<br />

envolvendo divers<strong>os</strong> setores, desde aqueles relacionad<strong>os</strong> com a política urbana, agrária,<br />

administrativa, financeira, habitacional, de transporte, educação, saúde, até <strong>os</strong> sem-terra,<br />

camponeses, operári<strong>os</strong>, sindicat<strong>os</strong>, donas de casa, empregadas domésticas, mulheres, negr<strong>os</strong>,<br />

menores, carcerári<strong>os</strong>, hom<strong>os</strong>sexuais, professores, estudantes, jovens, desempregad<strong>os</strong> etc.<br />

(GADOTTI & PEREIRA, 1989, p. 279)<br />

Seu caráter ampliado fica claro n<strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> que geraram o Partido, como a<br />

“Declaração Política” assinada em São Bernardo do Campo, em 13 de outubro de 1979.<br />

A idéia do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores surgiu com o avanço e o<br />

fortalecimento desse novo e amplo movimento social que, hoje, se estende,<br />

das fábricas a<strong>os</strong> bairr<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> sindicat<strong>os</strong> às Comunidades Eclesiais de Base;<br />

d<strong>os</strong> Moviment<strong>os</strong> contra a Carestia às associações de moradores; do<br />

Movimento Estudantil e de Intelectuais às Associações Profissionais; do<br />

Movimento d<strong>os</strong> Negr<strong>os</strong> ao Movimento das Mulheres, e ainda outr<strong>os</strong>, como<br />

<strong>os</strong> que lutam pel<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> das populações indígenas. 122<br />

No “Manifesto do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores”, aprovado no dia 10 de fevereiro de<br />

1980, em São Paulo, foi ressaltado o fato de o PT estar “nascendo das lutas sociais”. Nesse<br />

sentido, o doc<strong>um</strong>ento informa que “o PT nasce da decisão d<strong>os</strong> explorad<strong>os</strong> de lutar contra <strong>um</strong><br />

sistema econômico e político que não pode resolver <strong>os</strong> seus problemas, pois só existe para<br />

beneficiar <strong>um</strong>a minoria de privilegiad<strong>os</strong>.” 123<br />

122 “Declaração Política” do Encontro de São Bernardo, 13 de outubro de 1979. Cf. PEDROSA, Mário. Sobre o<br />

PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p. 64.<br />

123 “Manifesto do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores”, aprovado na reunião nacional do dia 10/02/1980, em São Paulo.<br />

141


Em seguida, o “Manifesto” clama “por <strong>um</strong> partido de massas”, enfatizando a luta por<br />

“emancipação das massas populares”.<br />

O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores nasce da vontade de independência política d<strong>os</strong><br />

trabalhadores, já cansado de servir de massa de manobra para <strong>os</strong> polític<strong>os</strong> e<br />

<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> comprometid<strong>os</strong> com a manutenção da atual ordem econômica,<br />

social e política. Nasce, portanto, da vontade de emancipação das massas<br />

populares. Os trabalhadores já sabem que a liberdade nunca foi nem será<br />

dada de presente, mas, será obra do seu próprio esforço coletivo. Por isto,<br />

protestam, quando, <strong>um</strong>a vez mais, na história brasileira, vêem <strong>os</strong> partid<strong>os</strong><br />

sendo formad<strong>os</strong> de cima para baixo, do Estado para a sociedade, d<strong>os</strong><br />

exploradores para <strong>os</strong> explorad<strong>os</strong>. Os trabalhadores querem se organizar<br />

como força política autônoma. O PT pretende ser <strong>um</strong>a real expressão<br />

política de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> explorad<strong>os</strong> pelo sistema capitalista. Som<strong>os</strong> <strong>um</strong><br />

Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, não <strong>um</strong> partido para iludir <strong>os</strong> trabalhadores.<br />

Querem<strong>os</strong> a política como atividade própria das massas que desejam<br />

participar legal e legitimamente. O PT quer atuar não apenas n<strong>os</strong><br />

moment<strong>os</strong> das eleições, mas, principalmente, no dia-a-dia de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

trabalhadores, pois só assim será p<strong>os</strong>sível construir <strong>um</strong>a nova forma de<br />

democracia, cujas raízes estejam nas organizações de base da sociedade, e<br />

cujas decisões sejam tomadas pelas maiorias. Querem<strong>os</strong>, por isso mesmo,<br />

<strong>um</strong> partido amplo e aberto a tod<strong>os</strong> aqueles comprometid<strong>os</strong> com a causa<br />

d<strong>os</strong> trabalhadores e com o seu programa. Em conseqüência, querem<strong>os</strong><br />

construir <strong>um</strong>a estrutura interna democrática, apoiada em decisões coletivas e<br />

colegiadas, e cuja direção e programa sejam decidid<strong>os</strong> em suas bases. [grif<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 124<br />

O Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores optou, conforme vim<strong>os</strong>, por <strong>um</strong> engajamento n<strong>os</strong><br />

moviment<strong>os</strong> sociais e no movimento sindical, com a prop<strong>os</strong>ta de construção de <strong>um</strong> projeto<br />

político de “massas” e “de baixo para cima”, por vontade d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> trabalhadores.<br />

O surgimento do PT pode ser compreendido a partir de sua interação com o ambiente<br />

político da transição. 125 Outro elemento chave na formação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores foi<br />

Cf. PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série<br />

doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p. 78.<br />

124 “Manifesto do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores”, aprovado na reunião nacional do dia 10/02/1980, em São Paulo.<br />

Cf. PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série<br />

doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), pp. 78-79.<br />

125 A passagem que se segue, extraída da “Carta de Princípi<strong>os</strong>” assinada pela Comissão Nacional Provisória em<br />

1º de maio de 1979, demonstra que o PT estava consciente da necessidade de se engajar no processo de<br />

transição: “Contudo, a par d<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> auspici<strong>os</strong><strong>os</strong> da conjuntura política, coexistem também perig<strong>os</strong><strong>os</strong> risc<strong>os</strong> que<br />

podem levar as lutas populares a novas e fragor<strong>os</strong>as derrotas. Aqui, cabe destacar que o processo chamado de<br />

‘abertura política’ está sendo promovido pel<strong>os</strong> mesm<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> que sustentaram e defenderam o regime hoje em<br />

crise. Com a evidente exaustão de ampl<strong>os</strong> setores sociais com o regime vigente no país, e com a crise econômica<br />

que abalou a estabilidade d<strong>os</strong> grup<strong>os</strong> dominantes que controlam o aparelho de Estado, <strong>os</strong> detentores do poder<br />

procuram agora, e até este momento com relativo êxito, reformar o regime de cima para baixo. Vale dizer,<br />

pretendem reformar alguns aspect<strong>os</strong> do regime mantendo o controle do Estado, a fim de evitar alterações no<br />

142


sua relação com o movimento operário. Entretanto, além d<strong>os</strong> trabalhadores, outr<strong>os</strong> element<strong>os</strong><br />

constituíram a base inicial do partido: a esquerda organizada, ativistas católic<strong>os</strong>, polític<strong>os</strong><br />

progressistas, intelectuais e representantes de outr<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> de moviment<strong>os</strong> sociais.<br />

Não obstante, Margaret Keck compreende que:<br />

foram <strong>os</strong> víncul<strong>os</strong> com <strong>um</strong> movimento cada vez mais autônomo e poder<strong>os</strong>o<br />

d<strong>os</strong> sindicat<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong> em prol de mudanças substantivas que favoreceram<br />

a legitimidade inicial do PT, bem como sua capacidade de <strong>sobre</strong>vivência,<br />

apesar de <strong>um</strong>a conjuntura política adversa. (KECK, 1991, p. 17)<br />

Falando <strong>sobre</strong> a “novidade” representada pelo PT, J<strong>os</strong>é Álvaro Moisés (1986, p. 183)<br />

ressalta a relevância de ter o Partido surgido (1) “como fruto da luta de resistência d<strong>os</strong><br />

trabalhadores à ditadura”; (2) “como resultado de <strong>um</strong> amplo movimento de massas que, não<br />

só envolveu a milhões de trabalhadores, como se defrontou abertamente com a política das<br />

classes dominantes expressas no Estado”; (3) “como iniciativa de <strong>um</strong> conjunto de lideranças<br />

que, a partir da sua prática sindical, reconheceu as insuficiências dessa prática para<br />

transformar a sociedade e admitiu claramente a necessidade de articular <strong>um</strong>a organização<br />

política nacional”. Moisés acrescenta que foram essas características que fizeram do PT “<strong>um</strong>a<br />

prop<strong>os</strong>ta de partido aberto, amplo, democrático e de lutas” e, ao mesmo tempo, <strong>um</strong> partido<br />

“colado a<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais” [grifo no original]<br />

Desde o início de sua organização, o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores vem sendo encarado<br />

por grande parte d<strong>os</strong> estudi<strong>os</strong><strong>os</strong> como <strong>um</strong>a grande novidade política na história do Brasil. 126 O<br />

modelo de desenvolvimento econômico que só a eles interessa e que se baseia <strong>sobre</strong>tudo na super-exploração das<br />

massas trabalhadoras, através do modelo econômico de onde <strong>sobre</strong>ssai o arrocho salarial. [...] Em poucas<br />

palavras, pretendem promover <strong>um</strong>a conciliação entre <strong>os</strong> ‘de cima’, incluindo a cúpula do MDB, para impedir a<br />

expressão política d<strong>os</strong> ‘de baixo’, as massas trabalhadoras do campo e da cidade.” Cf. PEDROSA, Mário. Sobre<br />

o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), pp. 55-56.<br />

126 Neste sentido, J<strong>os</strong>é Álvaro Moisés (1986), Emir Sader (1986), Rachel Meneguello (1989), Moacir Gadotti &<br />

Otaviano Pereira (1989), Margaret E. Keck (1991). Esta última inicia sua obra <strong>sobre</strong> o PT com a afirmação de<br />

que se trata de <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> de <strong>um</strong>a “anomalia”. E acrescenta: “Desde o início, tanto <strong>os</strong> que apoiavam quanto <strong>os</strong><br />

que atacavam o PT reconheceram que o partido representava <strong>um</strong>a nova experiência na história política brasileira.<br />

A esquerda do espectro político legal no Brasil fora tradicionalmente ocupada por partid<strong>os</strong> populistas dirigid<strong>os</strong><br />

pelas elites ou pelo Partido Comunista, durante o seu breve período de legalidade, em mead<strong>os</strong> da década de 40.<br />

Até então não havia surgido nenh<strong>um</strong> partido a partir das bases, contando com <strong>um</strong> forte apoio da classe operária e<br />

tendo <strong>um</strong>a parte considerável de sua liderança originária do movimento operário.” (KECK, 1991, p. 14)<br />

143


PT se distinguiria por ter sido criado “de baixo para cima”, por ter saído das classes<br />

trabalhadoras, e não d<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> parlamentares, das classes proprietárias ou do Estado. Alguns<br />

autores, todavia, rejeitam a idéia de ineditismo quando estudam o PT. 127<br />

Outra questão polêmica se refere à ausência de <strong>um</strong>a definição do projeto de socialismo<br />

defendido pelo Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores. Falarem<strong>os</strong> brevemente <strong>sobre</strong> este tema no próximo<br />

tópico.<br />

O contexto no qual surgiu o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores – transição democrática, greves<br />

do final da década de 70 –, bem como <strong>os</strong> princípi<strong>os</strong> e prop<strong>os</strong>tas políticas defendidas em seus<br />

doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> – <strong>um</strong> partido de massas, d<strong>os</strong> trabalhadores, “de baixo para cima” – explicam por<br />

que razão é neste Partido que o tema do direito de resistência aparece. Independentemente do<br />

fato de ser ou não o PT <strong>um</strong>a “novidade” política, a questão é que, naquele momento histórico,<br />

ele procurava se afirmar como <strong>um</strong> partido – ou até mesmo “o” Partido – que estava do lado do<br />

povo, das “massas”. É nesse sentido que a idéia de resistir ou, mais precisamente, de se<br />

insurgir, aparece no Projeto de Constituição em artigo que versa <strong>acerca</strong> da soberania popular.<br />

Podem<strong>os</strong> observar que a idéia de controle popular <strong>sobre</strong> o Poder Público aparece<br />

inclusive na exp<strong>os</strong>ição de motiv<strong>os</strong> feita pelo Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores no momento de<br />

apresentação do seu Projeto de Constituição.<br />

Ademais, a constante busca do PT por sua caracterização como <strong>um</strong> partido de lutas –<br />

inclusive com <strong>um</strong>a atuação ligada a<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais – justifica a sua opção por <strong>um</strong>a<br />

“radicalidade” 128 no plano normativo. Muito embora o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores tenha<br />

optado, inicialmente, por <strong>um</strong>a prop<strong>os</strong>ta de atuação mais prática – no plano da ação, da atuação<br />

127 Neste sentido, por exemplo, Francisco Oliveira (1986) e Cláudio Gurgel (1989).<br />

128 “O programa do PT não deve procurar competir em aparente radicalismo com <strong>os</strong> programas d<strong>os</strong> outr<strong>os</strong><br />

partid<strong>os</strong>; onde ele deve ser radical é na prop<strong>os</strong>ição de <strong>um</strong> programa que revele o grau de articulação entre sua<br />

prop<strong>os</strong>ta e as reivindicações-prop<strong>os</strong>tas que emanam das classes sociais que pretende representar e que<br />

despontam n<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais. Essa é sua radicalidade. Certamente há <strong>um</strong>a tensão que é real e<br />

também ideológica entre a visão de futuro que <strong>um</strong> partido necessariamente tem e o realismo que expresse sua<br />

objetiva articulação com <strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais que busca representar.” [grif<strong>os</strong> no original] “Comissão Nacional<br />

Provisória do Movimento Pró-PT”, assinado em São Paulo, em 10 de fevereiro de 1980. Cf. PEDROSA, Mário.<br />

Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p. 89.<br />

144


–, seu radicalismo, como verem<strong>os</strong> adiante, acabou por se estender para o âmbito parlamentar,<br />

para a esfera da construção normativa.<br />

3.2.2. O direito de resistência no discurso do “constituinte socialista”<br />

Moacir Gadotti e Otaviano Pereira (1989, p. 297), dissertando <strong>sobre</strong> a atuação do PT<br />

na Constituinte, partem da seguinte questão: “Como pode comportar-se <strong>um</strong> parlamentar que<br />

representa <strong>os</strong> interesses das classes trabalhadoras no interior de <strong>um</strong> Parlamento que representa<br />

majoritariamente <strong>os</strong> interesses das classes dominantes?” Aqui já podem<strong>os</strong> verificar <strong>um</strong><br />

antagonismo entre dois grup<strong>os</strong>: classes trabalhadoras versus classes dominantes. Os autores<br />

explicam que:<br />

O Parlamento não se constitui para o PT o eixo central da luta pelo<br />

socialismo, mas apenas <strong>um</strong>a das formas de luta. Contudo, o PT não é<br />

antiparlamentarista, pelo men<strong>os</strong> majoritariamente. Pelo contrário, desde suas<br />

origens, tem-se utilizado dessa instituição burguesa para denunciar as<br />

manobras, a prepotência, o cinismo, <strong>os</strong> casuísm<strong>os</strong> e o caráter legitimador das<br />

práticas autoritárias do governo, do arbítrio, da corrupção, da violência das<br />

classes dominantes e do regime militar em particular. O PT não caiu na<br />

ilusão de alguns op<strong>os</strong>icionistas, que pretendiam e ainda pretendem<br />

transformar a sociedade através de reformas parlamentares. Não confundiu a<br />

luta política com a simples ação parlamentar. O PT constantemente está<br />

chamando às ruas o povo, <strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais, sindicais e populares,<br />

privilegiando este local, sem o qual a ação parlamentar é inócua. [grif<strong>os</strong> no<br />

original] (GADOTTI & PEREIRA, 1989, pp. 297-298).<br />

E acrescentam, em seguida, <strong>acerca</strong> da participação do PT na Assembléia Nacional<br />

Constituinte que, “c<strong>um</strong>pria, então, em 1986, entrar na regra do jogo, sem diluir-se nele,<br />

reconhecendo inclusive as limitações da Constituinte frente ao projeto mais amplo de<br />

145


construção do socialismo, que o partido apregoa por princípio” (GADOTTI & PEREIRA,<br />

1989, pp. 298-299).<br />

Em op<strong>os</strong>ição a essa idéia, J<strong>os</strong>é Álvaro Moisés (1986, pp. 183-184) fala de <strong>um</strong>a<br />

“esquizofrenia entre o social e o político” no âmbito do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, com isso<br />

fazendo referência à separação que, às vezes, se faz no Partido entre a luta social e a chamada<br />

luta institucional, “como se a luta de classes não penetrasse em todas as dimensões da<br />

realidade”. Um exemplo apontado pelo professor é a separação que geralmente aparece entre<br />

a luta sindical e a luta parlamentar ou “entre a luta do movimento popular (creche, transporte,<br />

etc.) e a necessidade de o partido formular <strong>um</strong> elenco claro de prop<strong>os</strong>tas a serem trabalhadas<br />

no parlamento e fora deste, para forçar <strong>os</strong> govern<strong>os</strong> a resolver esses problemas”.<br />

Em 15 de maio de 1987, o Constituinte J<strong>os</strong>é Genonio Neto (PT/SP) apresenta emenda<br />

relativa ao direito de resistência perante a Comissão da Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias<br />

do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong><br />

Coletiv<strong>os</strong> e Garantias (Subcomissão Ib).<br />

Acrescentar ao artigo 3º: É assegurado a qualquer pessoa o direito de se<br />

insurgir contra at<strong>os</strong> de autoridade pública que violem <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> universais<br />

da pessoa h<strong>um</strong>ana. JUSTIFICATIVA: A prop<strong>os</strong>ta parte do princípio da<br />

soberania popular e de que o povo deve se constituir no principal sujeito<br />

político n<strong>os</strong> assunt<strong>os</strong> público. Dentro desta idéia de que todo o poder deve<br />

ser expressão do povo, define <strong>os</strong> dois mecanism<strong>os</strong> básic<strong>os</strong> para o seu<br />

exercício: a delegação democrática e a participação popular direta. E<br />

estabelece as finalidades sociais e de realização h<strong>um</strong>ana em função das quais<br />

o poder deve se organizar. Com base nisso, reconhece, em seguida, a<strong>os</strong><br />

cidadã<strong>os</strong> o direito de se insurgir contra at<strong>os</strong> do poder ilegítimo e opressor,<br />

consagrando <strong>um</strong>a prerrogativa universal d<strong>os</strong> pov<strong>os</strong>, assegurada, por<br />

exemplo, na Constituição Norte-Americana. 129<br />

Em seguida, no dia 25 de maio de 1987, a Subcomissão d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Polític<strong>os</strong>, d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> Coletiv<strong>os</strong> e Garantias apresenta parecer contrário à emenda.<br />

129 Doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte. Comissão I, Subcomissão B, Vol<strong>um</strong>e 75, p. 1. (ANEXO<br />

II)<br />

146


Pretende a Emenda do nobre Deputado J<strong>os</strong>é Genoino Neto que a<br />

Constituição assegure “a qualquer pessoa o direito de se insurgir contra at<strong>os</strong><br />

de autoridade pública que violem <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> universais da pessoas h<strong>um</strong>ana”.<br />

O dicionário AURÉLIO define o verbo insurgir como sublevar,<br />

revolucionar, rebelar, insurrecionar. N<strong>os</strong>so Anteprojeto vai ao encontro da<br />

preocupação do ilustre de forma abrangente, ao dispor em seu artigo 3º que<br />

“qualquer cidadão” é parte legítima para argüir a inconstitucionalidade de lei<br />

ou ato que fira seus direit<strong>os</strong>; também atenta para a incol<strong>um</strong>idade da pessoa<br />

h<strong>um</strong>ana no artigo 45 e seus parágraf<strong>os</strong>, referentes à tortura. Já o golpismo<br />

contra a Constituição e <strong>os</strong> preceit<strong>os</strong> democrátic<strong>os</strong> pode ser repelido, a nível<br />

institucional, pela aplicação plenamente p<strong>os</strong>sível do artigo 2º do<br />

Anteprojeto, onde se dispõe que a soberania no Brasil pertence ao povo e só<br />

por <strong>um</strong>a das formas de manifestação de sua vontade, previstas na<br />

Constituição, é lícito ass<strong>um</strong>ir, organizar e exercer o poder. Assim,<br />

consideram<strong>os</strong> que a insurgência alvitrada na Emenda em exame não pode<br />

pr<strong>os</strong>perar por autorização constitucional. E como tem<strong>os</strong> a arma,<br />

constitucional, para a defesa d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> universais da pessoa h<strong>um</strong>ana,<br />

considero prejudicada a Emenda. 130<br />

Na 187º Sessão da Assembléia Nacional Constituinte, em 26 de janeiro de 1988,<br />

ocorre a votação do Destaque nº 521, requerido pelo Constituinte J<strong>os</strong>é Genoíno, referente à<br />

Emenda nº 6.646. Antes da votação, Genoino defende a referida Emenda, que versa <strong>sobre</strong> o<br />

direito de resistência.<br />

Na parte da manhã, quando subi à tribuna para defender esta emenda, vári<strong>os</strong><br />

constituintes expressaram <strong>um</strong>a estranheza quando o Presidente da Comissão<br />

de sistematização anunciou o conteúdo, que era exatamente o direito à<br />

desobediência civil. Não é o direito à revolução, porque a revolução não é<br />

<strong>um</strong> direito, ela se institui enquanto direito, mas é o direito à desobediência<br />

civil, quando at<strong>os</strong> de tirania e de opressão contrariam <strong>os</strong> valores<br />

fundamentais estabelecid<strong>os</strong> da Declaração d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong>. Esses constituintes<br />

estranharam e talvez <strong>um</strong> observador desta constituinte estranhasse que<br />

<strong>um</strong> Constituinte socialista viesse à tribuna defender <strong>os</strong> valores de duas<br />

Constituições que representaram na história do capitalismo, o<br />

verdadeiro esteio para a elaboração da fam<strong>os</strong>a democracia burguesa.<br />

Eu me refiro, Sr. Presidente, à Declaração de Independência d<strong>os</strong><br />

Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong> [...] E é novamente <strong>um</strong>a Declaração de Direit<strong>os</strong> de 1793,<br />

no seu art. 35, que instituiu a República burguesa francesa [...] Não<br />

trouxe aqui a Constituição soviética, não trouxe aqui a Constituição<br />

cubana, nem a nicaragüense, trouxe exatamente a Constituição<br />

americana e a Declaração da Constituição francesa. [...] Se <strong>os</strong> princípi<strong>os</strong><br />

fundamentais da n<strong>os</strong>sa Constituição consagram a soberania d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong><br />

individuais e coletiv<strong>os</strong>, se consagram a soberania da participação popular,<br />

pergunto a<strong>os</strong> Srs.: no momento em que essa soberania for violada, cabe ou<br />

não a quem tem aquele direito se rebelar para garantir <strong>um</strong> direito maior? O<br />

130 Doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte. Comissão I, Subcomissão B, Vol<strong>um</strong>e 76, p. 23. (ANEXO<br />

III)<br />

147


problema central é o seguinte: qual é o valor maior? O valor maior é o<br />

princípio da soberania popular ou o valor maior é o princípio da opressão?<br />

Se o valor maior é o princípio da soberania popular, em nome da soberania<br />

popular e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> Fundamentais da Pessoa H<strong>um</strong>ana, grup<strong>os</strong> de cidadã<strong>os</strong><br />

podem rebelar-se contra a tirania e a opressão quando esses direit<strong>os</strong><br />

estiverem violad<strong>os</strong> [...].[grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 131<br />

Após o discurso do Constituinte J<strong>os</strong>é Genoino, procedeu-se à votação da Emenda, que<br />

foi rejeitada. Do total de 75 vot<strong>os</strong>, 25 Constituintes votaram a favor e 50 Constituintes<br />

votaram contra.<br />

<strong>Farem<strong>os</strong></strong>, inicialmente, alg<strong>um</strong>as observações de ordem metodológica. Ressalte-se a<br />

advertência feita por Carl<strong>os</strong> Guilherme Mota <strong>acerca</strong> d<strong>os</strong> <strong>estudo</strong>s de “tomada de consciência”:<br />

Do ponto de vista metodológico, a grande dificuldade para <strong>estudo</strong>s de<br />

tomada de consciência deriva do simples fato de que tais fenômen<strong>os</strong> não são<br />

mensuráveis. Como medir <strong>um</strong>a tomada de consciência? Como medir<br />

consciências revolucionária, reformista ou conservadora? [grifo no original]<br />

(MOTA, 1979, p. 17).<br />

Essa dificuldade fica bastante evidente quando n<strong>os</strong> defrontam<strong>os</strong> com <strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>acerca</strong><br />

do direito de resistência ocorrid<strong>os</strong> na Constituinte. Como verem<strong>os</strong>, nem sempre o discurso<br />

proferido pelo locutor é coerente com a sua trajetória de vida e com as características do seu<br />

partido. Isso fica bastante claro no discurso de Genoino.<br />

Para Règine Robin (1977, p. 47), no discurso, o locutor “se dá tal como quer aparecer,<br />

ou tal como se vê em função de seu sistema de representações, e não diretamente tal como sua<br />

prática política e como a significação, a função social de sua prática política o define”. A<br />

autora, trabalhando com <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> formulad<strong>os</strong> por J. B. Marcellesi em sua obra Problèmes<br />

de socio-linguistique: le congrès de Tours (1970), explica que:<br />

pela simulação, o locutor toma de empréstimo o vocabulário de <strong>um</strong> grupo<br />

que não é o seu para sustentar <strong>um</strong> discurso de seu grupo, fazendo-o aparecer<br />

131 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano II, nº 171, Suplemento “C”. Brasília – DF, 27 de janeiro de<br />

1988, pp. 914-915. (ANEXO IV)<br />

148


como o discurso de outrem. Pelo mascaramento, o locutor faz desaparecer<br />

de seu discurso as unidades que o designam como de <strong>um</strong> grupo. Pela<br />

conivência, o locutor utiliza <strong>um</strong> vocabulário que o faria classificar-se como<br />

de <strong>um</strong> grupo, se <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> destinatári<strong>os</strong> não soubessem que ele não<br />

pertence a este grupo e, por este motivo, este vocabulário aparece como<br />

rejeitado, embora empregado. [grif<strong>os</strong> no original] (MARCELLESI, 1970, p.<br />

69 apud ROBIN, 1977, pp. 45-46)<br />

Podem<strong>os</strong> compreender o discurso de J<strong>os</strong>é Genoino a partir das definições acima<br />

estabelecidas. De fato, observam<strong>os</strong> que, ao defender o direito de resistência, o constituinte fez<br />

<strong>um</strong> discurso que ass<strong>um</strong>iu a forma pela qual ele queria ser visto pel<strong>os</strong> receptores da mensagem.<br />

Essa estratégia fica clara em divers<strong>os</strong> moment<strong>os</strong>: na op<strong>os</strong>ição entre desobediência civil e<br />

revolução, optando pela primeira, mais branda; na referência às idéias liberais; na rejeição das<br />

idéias socialistas.<br />

Ora, <strong>os</strong> destinatári<strong>os</strong> da mensagem tinham conhecimento da filiação partidária de J<strong>os</strong>é<br />

Genoino e, muito provavelmente, tod<strong>os</strong> conheciam sua trajetória de vida. Sendo assim, foram<br />

necessári<strong>os</strong> divers<strong>os</strong> “subterfúgi<strong>os</strong>” por parte do deputado no momento de defesa da emenda<br />

prop<strong>os</strong>ta.<br />

De maneira simplista, e utilizando term<strong>os</strong> recorrentes no vocabulário petista,<br />

poderíam<strong>os</strong> enquadrar J<strong>os</strong>é Genoino dentro do grupo de “esquerda”, ou “socialista” ou “d<strong>os</strong><br />

trabalhadores”. Na biografia do deputado, feita anteriormente, observam<strong>os</strong> que, na época da<br />

Constituinte, ele se auto-definia politicamente como sendo de esquerda radical.<br />

David Fleischer (1988), baseando-se n<strong>os</strong> perfis sócio-econômico, político e ideológico<br />

d<strong>os</strong> constituintes, concluiu que a Assembléia Nacional Constituinte estava dividida em três<br />

grandes agrupament<strong>os</strong> de tamanh<strong>os</strong> mais ou men<strong>os</strong> iguais: (1) Progressista/ Esquerda; (2) <strong>um</strong><br />

Centro bastante amorfo e desconhecido; (3) Conservador/ Direita, mas com <strong>um</strong>a tendência do<br />

Centro ser <strong>um</strong> pouco maior do que <strong>os</strong> dois extrem<strong>os</strong>.<br />

Levando-se em consideração que Genoino não tinha a necessidade de convencer <strong>os</strong><br />

seus “pares”, seu discurso objetivava persuadir, especificamente, aqueles que pertenciam a<strong>os</strong><br />

149


grup<strong>os</strong> “Centro” e “Direita”. Entendem<strong>os</strong>, portanto, que estes últim<strong>os</strong> são <strong>os</strong> reais<br />

destinatári<strong>os</strong>/receptores da mensagem do constituinte.<br />

Utilizando as definições acima – simulação, mascaramento e conivência –, podem<strong>os</strong><br />

analisar o discurso de J<strong>os</strong>é Genoino. O constituinte, tal qual na estratégia de simulação, utiliza<br />

<strong>um</strong> vocabulário de <strong>um</strong> grupo que não é o seu – capitalismo, democracia burguesa – para<br />

sustentar o discurso de seu grupo de “esquerda”.<br />

Através do mascaramento, o deputado exclui de sua mensagem expressões que<br />

poderiam designá-lo como <strong>um</strong> “socialista”. Percebe-se que, embora Genoino procure se<br />

caracterizar como <strong>um</strong> “constituinte socialista”, faz menção às Constituições soviética, cubana<br />

e nicaragüense apenas de forma “negativa”, ou seja, para explicitar aquilo que não pertence ao<br />

seu discurso. Ressalte-se, portanto, que o locutor não esconde sua condição de socialista, mas<br />

enfatiza, através de seus arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, que a prop<strong>os</strong>ta defendida não p<strong>os</strong>sui caráter socialista e<br />

que, portanto, merece ser acolhida pel<strong>os</strong> ouvintes.<br />

Trata-se, em última instância, de <strong>um</strong>a estratégia de conivência, tendo em vista que o<br />

constituinte utiliza <strong>um</strong> vocabulário – <strong>um</strong> discurso, mais propriamente – que o classificaria<br />

como <strong>um</strong> “não-socialista”, <strong>um</strong> “liberal”, <strong>um</strong> “não pertencente ao grupo de esquerda”.<br />

Contudo, <strong>os</strong> receptores do discurso sabem que, embora tal vocabulário esteja sendo<br />

empregado pelo emissor, isso não o caracteriza como <strong>um</strong> d<strong>os</strong> “seus”. Portanto, o discurso é<br />

rejeitado.<br />

Irem<strong>os</strong> demonstrar de que forma o discurso de J<strong>os</strong>é Genoino se m<strong>os</strong>tra incoerente com<br />

a sua prática política, sua trajetória de vida, sua filiação partidária. Assim, procurarem<strong>os</strong><br />

compreender porque o discurso foi rejeitado, apesar da tentativa do deputado de adequar a sua<br />

fala a<strong>os</strong> receptores da mensagem.<br />

Em primeiro lugar, podem<strong>os</strong> verificar que o socialismo era <strong>um</strong>a característica<br />

marcante do PT, partido ao qual o constituinte estava vinculado. A partir d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong><br />

150


doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> que deram origem ao Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, já é p<strong>os</strong>sível identificarm<strong>os</strong><br />

element<strong>os</strong> que remetem a <strong>um</strong> socialismo não muito bem definido. A passagem abaixo,<br />

retirada da “Carta de Princípi<strong>os</strong>”, primeiro doc<strong>um</strong>ento oficial do PT, ilustra bem esta questão.<br />

O PT não pretende criar <strong>um</strong> organismo político qualquer. O Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores define-se programaticamente como <strong>um</strong> partido que tem como<br />

objetivo acabar com a relação de exploração do homem pelo homem. O<br />

PT define-se também como partido das massas populares, unindo ao lado<br />

d<strong>os</strong> operári<strong>os</strong>, vanguarda de toda população explorada, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> outr<strong>os</strong><br />

trabalhadores – bancári<strong>os</strong>, professores, funcionári<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>, comerciári<strong>os</strong>,<br />

bóias-frias, profissionais liberais, estudantes, etc – que lutam por melhores<br />

condições de vida, por efetivas liberdades democráticas, e por participação<br />

política. O PT afirma seu compromisso com a democracia plena exercida<br />

diretamente pelas massas, pois não há socialismo sem democracia, e nem<br />

democracia sem socialismo. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 132<br />

Na “Carta” encontram<strong>os</strong> a afirmação de que “o Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores entende que<br />

a emancipação d<strong>os</strong> trabalhadores é obra d<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> trabalhadores”. 133 Trata-se de <strong>um</strong>a frase<br />

de Karl Marx. A idéia de “relação de exploração do homem pelo homem”, por sua vez,<br />

constitui <strong>um</strong>a formulação marxista bastante utilizada. Se unirm<strong>os</strong> a essas frases o conceito de<br />

operário como “vanguarda de toda população explorada” e a defesa de que “não há socialismo<br />

sem democracia, e nem democracia sem socialismo” tem<strong>os</strong>, em <strong>um</strong>a breve passagem do<br />

doc<strong>um</strong>ento, referências a Marx e a<strong>os</strong> seus discípul<strong>os</strong>, bem como <strong>um</strong>a defesa contundente do<br />

socialismo. 134 Em seguida, encontram<strong>os</strong> a seguinte passagem:<br />

132 “Carta de Princípi<strong>os</strong>” assinada pela Comissão Nacional Provisória, em 1º de maio de 1979. Cf. PEDROSA,<br />

Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p.<br />

61.<br />

133 “Carta de Princípi<strong>os</strong>” assinada pela Comissão Nacional Provisória, em 1º de maio de 1979. Cf. PEDROSA,<br />

Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p.<br />

59.<br />

134 A questão do marxismo no PT é debatida em livro que publica as comunicações daqueles que participaram da<br />

Mesa-Redonda nacional “O PT e o Marxismo”, realizada em São Paulo n<strong>os</strong> dias 2, 3 e 4 de ag<strong>os</strong>to de 1991, em<br />

preparação ao 1 º Congresso do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores. Na apresentação da obra já encontram<strong>os</strong> a afirmação<br />

de que a p<strong>os</strong>tura pluralista que orientou a organização da mesa-redonda e, conseqüentemente, da publicação,<br />

decorre da compreensão de que o PT é <strong>um</strong> partido “laico”, sem fil<strong>os</strong>ofia “oficial”. Marco Aurélio Garcia (1991,<br />

p. 82) aponta para o fato de que o marxismo não é a única “ideologia” presente no interior do PT: “Para o debate<br />

congressual do PT <strong>um</strong>a preocupação fundamentalista com o marxismo apresenta <strong>um</strong> duplo inconveniente. A<br />

busca do ‘verdadeiro’ marxismo, distinto do ‘falso’, obrigaria o partido a definir que instância resolveria esta<br />

questão. A segunda dificuldade decorre do fato de o PT não ser <strong>um</strong> partido marxista. No seu interior convivem<br />

marxism<strong>os</strong> junto com outras ideologias ou com militantes que não reivindicam nenh<strong>um</strong>a filiação ideológica<br />

151


O PT declara-se comprometido e empenhado com a tarefa de colocar <strong>os</strong><br />

interesses populares na cena política, e de superar a atomização e dispersão<br />

das correntes classistas e d<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais. Para esse fim, o Partido<br />

d<strong>os</strong> Trabalhadores pretende implantar seus núcle<strong>os</strong> de militantes em tod<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

locais de trabalho, em sindicat<strong>os</strong>, bairr<strong>os</strong>, municípi<strong>os</strong> e regiões. O PT<br />

manifesta em alto e bom som sua intensa solidariedade com todas as<br />

massas oprimidas do mundo. [grifo n<strong>os</strong>so]. 135<br />

A solidariedade com as massas oprimidas do mundo, proclamada exatamente na<br />

última frase do doc<strong>um</strong>ento, parece combinar-se com a clássica afirmação do Manifesto<br />

Comunista: “Proletariad<strong>os</strong> de todo o mundo: uni-v<strong>os</strong>”, também proclamada no final do texto.<br />

específica. O PT é resultado de <strong>um</strong>a dinâmica social e não de <strong>um</strong> projeto intelectual, ainda que <strong>os</strong> intelectuais<br />

tenham estado presentes nele desde a sua fundação e ele produzido <strong>um</strong>a reflexão não desprezível <strong>sobre</strong> a<br />

realidade brasileira. Assim, as campanhas ‘em defesa do marxismo’ se chocam com <strong>um</strong>a inevitável pergunta:<br />

qual marxismo?” [grifo no original]. Jorge de Almeida (1991, p. 103), membro da Executiva Nacional do<br />

Partido, explica que “o PT nasceu como <strong>um</strong> partido laico. Mantê-lo assim foi e é correto por <strong>um</strong>a necessidade<br />

política. O PT nasceu plural n<strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> fil<strong>os</strong>ófico, político e do ponto de vista de classe. O PT não é <strong>um</strong><br />

partido monoclassista, exclusivamente do proletariado. Por diversas circunstâncias históricas, o PT se constituiu<br />

como <strong>um</strong> partido de classes e setores populares: do operariado industrial a pequen<strong>os</strong> proprietári<strong>os</strong> rurais e<br />

urban<strong>os</strong>, passando por diversas categorias proletárias não industriais, autônom<strong>os</strong>, assalariad<strong>os</strong>, intelectuais e <strong>um</strong><br />

conjunto de setores oprimid<strong>os</strong>. Entre estas circunstâncias históricas, destacam<strong>os</strong> a inexistência de <strong>um</strong> partido<br />

camponês no Brasil; a ausência de <strong>um</strong> partido operário reformista com efetiva base de massas; e <strong>os</strong> equívoc<strong>os</strong> da<br />

esquerda revolucionária n<strong>os</strong> an<strong>os</strong> 60 e 70. O PT avançou, assim, congregando correntes reformistas e<br />

revolucionárias diversas, marxistas ou não, manifestando-se mais recentemente correntes abertamente<br />

anticomunistas. Mas o partido sempre trabalhou com <strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> marxistas. Basta ver doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, resoluções,<br />

materiais de formação política e o interesse da n<strong>os</strong>sa militância mais ativa em debater o tema. Concretamente,<br />

apesar de nunca ter-se autodefinido marxista, o PT foi o partido ‘mais revolucionário’ e ‘mais marxista’ – se é<br />

que podem<strong>os</strong> falar assim – da década de 80 em n<strong>os</strong>so país. Mais que aqueles que se afirmam marxistas e<br />

comunistas. Porque, apesar d<strong>os</strong> err<strong>os</strong> cometid<strong>os</strong>, nós compreendem<strong>os</strong> melhor a realidade nacional e internacional<br />

e agim<strong>os</strong> melhor <strong>sobre</strong> ela. Portanto, dizer-se marxista, por si só, não significa muita coisa na política real. Mas<br />

deixar de sê-lo ou passar a ser antimarxista tem tido <strong>um</strong> significado histórico muito importante”. É interessante<br />

observarm<strong>os</strong> que amb<strong>os</strong> enfatizam o aspecto “prático” de atuação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, muito mais do<br />

que seu aspecto “teórico”, e sua definição ou não como partido marxista.<br />

135 “Carta de Princípi<strong>os</strong>” assinada pela Comissão Nacional Provisória, em 1º de maio de 1979. Cf. PEDROSA,<br />

Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p.<br />

62.<br />

152


As referências ao marxismo, especificamente, e ao socialismo, de forma geral,<br />

aparecem em outr<strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>. 136 Contudo, bastam esses exempl<strong>os</strong> para term<strong>os</strong> <strong>um</strong>a noção<br />

do tema.<br />

Cláudio Gurgel (1989, p. 121) constata que “por toda sua existência o PT vem<br />

convivendo com o que parece ser <strong>um</strong>a deliberada indefinição do seu conceito de socialismo”.<br />

Após apontar divers<strong>os</strong> element<strong>os</strong> e expressões contid<strong>os</strong> n<strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> de criação do PT que<br />

o identificariam como <strong>um</strong> partido socialista, Gurgel (1989, p. 122) constata que, n<strong>os</strong> mesm<strong>os</strong><br />

doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, “o Partido introduz conceit<strong>os</strong> e se propõe a atitudes pouco típicas d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong><br />

comunistas, referências tradicionais do socialismo científico.” Gurgel conclui que “estas<br />

ambigüidades, encontradas no conjunto d<strong>os</strong> text<strong>os</strong> básic<strong>os</strong> do PT, alimentaram por quase <strong>um</strong>a<br />

década a suspeição interna e externa de que, na melhor das hipóteses, estava-se diante de <strong>um</strong><br />

partido de caráter indefinido.” E acrescenta:<br />

O PT, na verdade, movimentou-se de modo cambiante, no equilíbrio<br />

precário de suas tendências ideológicas. Encaminhou-se, entretanto, sempre<br />

tangido pel<strong>os</strong> moviment<strong>os</strong> sociais, que de fato constituíram seu conteúdo e<br />

seu ritmo. Ademais, por maiores e muito variadas que f<strong>os</strong>sem suas correntes,<br />

tod<strong>os</strong> estavam à esquerda. No seu “saco de gat<strong>os</strong>”, tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> gat<strong>os</strong> são<br />

matizes do vermelho. De certo modo é p<strong>os</strong>sível dizer que houve<br />

constantemente mais pont<strong>os</strong> comuns do que distâncias entre <strong>os</strong> “xiitas” e <strong>os</strong><br />

“ligths”, denominações simplistas, de amplo uso externo, com que se passou<br />

a designar a “esquerda” e a “direita” do PT. (GURGEL, 1989, p. 125)<br />

Além d<strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> oficiais do Partido, durante a década de 80 divers<strong>os</strong> polític<strong>os</strong><br />

petistas e intelectuais – geralmente também partidári<strong>os</strong> do PT – debateram o caráter socialista<br />

do Partido. Um ponto bastante discutido se refere a qual o socialismo defendido pelo PT, já<br />

136 Por exemplo, no “Manifesto do PT”, no “Pont<strong>os</strong> para a Elaboração do Programa” e no “Programa do PT”. No<br />

doc<strong>um</strong>ento da “Comissão Nacional Provisória do Movimento Pró-PT” – assinado em São Paulo, em 10 de<br />

fevereiro de 1980 – em <strong>um</strong> tópico “<strong>sobre</strong> a concepção de programa do PT”, encontram<strong>os</strong> o seguinte texto: “Em<br />

primeiro lugar, o PT nem pode nem deve ter em seu programa algo que se assemelhe a <strong>um</strong> programa de<br />

governo para quando o partido chegue ao poder. Precisamente porque a prop<strong>os</strong>ta do PT não é administrar o<br />

capitalismo e suas crises sup<strong>os</strong>tamente em nome da classe trabalhadora. O PT sabe – seus militantes sabem e as<br />

bases sociais que lhe dão apoio sabem – que na atual correlação de forças não chegará ao poder; e quem chegue<br />

ao poder nesse contexto terá a tarefa de tentar perpetuar o regime de dominação de classes.” [grif<strong>os</strong> no original].<br />

Cf. PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série<br />

doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p. 87.<br />

153


que <strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> não são clar<strong>os</strong> a respeito desse assunto. Os <strong>debates</strong> acadêmic<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o<br />

Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, portanto, ajudaram a associá-lo à imagem de <strong>um</strong> partido socialista,<br />

ainda que não houvesse <strong>um</strong> consenso <strong>sobre</strong> “qual o socialismo” do PT. 137<br />

Os autores que debateram o socialismo do PT geralmente conduziram suas discussões<br />

para a indagação <strong>acerca</strong> de qual seria o caráter da revolução brasileira. Para Francisco Weffort<br />

(1989) o pensamento de esquerda geralmente parte da noção de que a sociedade capitalista é<br />

<strong>um</strong>a sociedade em movimento e que, este movimento, levaria a alg<strong>um</strong> estágio diferente do<br />

atual. O autor questiona se este estágio diferente seria a modernização do sistema capitalista<br />

ou a sua superação. Utilizando outr<strong>os</strong> term<strong>os</strong>, indaga-se <strong>sobre</strong> se seria <strong>um</strong>a mudança gradual<br />

do capitalismo, “para eliminar algo do seu caráter selvagem”, ou a sua ruptura, para conduzir<br />

a <strong>um</strong>a sociedade socialista. Para o autor,<br />

Ao contrário do que pensam uns tant<strong>os</strong> esquerdistas ingênu<strong>os</strong> (e outr<strong>os</strong><br />

tant<strong>os</strong> reacionári<strong>os</strong> impenitentes), <strong>um</strong>a indagação <strong>sobre</strong> o caráter da<br />

revolução não significa (pelo men<strong>os</strong> não necessariamente) que aquele que a<br />

faz esteja pensando em pegar em armas. Trata-se de <strong>um</strong>a indagação <strong>sobre</strong> o<br />

movimento real da sociedade. E, também, <strong>sobre</strong> as perspectivas que se<br />

abrem a<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> de esquerda, a<strong>os</strong> sindicat<strong>os</strong> e ao movimento popular em<br />

geral para impulsionar a sociedade r<strong>um</strong>o a transformações de caráter mais<br />

democrático e mais progressista. É esta a questão geral a respeito de saber se<br />

<strong>os</strong> trabalhadores estão preparad<strong>os</strong> para dirigir a sociedade. (WEFFORT,<br />

1989, pp. 65-66)<br />

As discussões <strong>sobre</strong> o caráter da revolução brasileira e <strong>sobre</strong> as reais p<strong>os</strong>sibilidades de<br />

implantação do socialismo no Brasil levaram ao questionamento <strong>acerca</strong> de qual seria o ideal:<br />

<strong>um</strong>a reforma ou <strong>um</strong>a revolução.<br />

Para Francisco Weffort (1989, p. 68), “som<strong>os</strong> <strong>um</strong> país tão conservador que, aqui, <strong>um</strong>a<br />

política de reformas só será viável se vier pela mão d<strong>os</strong> revolucionári<strong>os</strong>”. E acrescenta, em<br />

seguida, que essa afirmação tem como conseqüência a seguinte indagação: “como combinar<br />

137 Acerca desse debate <strong>sobre</strong> qual seria o socialismo do PT, ver artigo de Plínio de Arruda Sampaio (1986). O<br />

autor faz, inclusive, <strong>um</strong>a prop<strong>os</strong>ta <strong>sobre</strong> as características do socialismo que poderia ser implantado na sociedade<br />

brasileira.<br />

154


as exigências de <strong>um</strong>a revolução democrática com <strong>os</strong> pass<strong>os</strong> no sentido da construção de <strong>um</strong>a<br />

sociedade socialista que o PT define como o seu objetivo maior?”. Weffort (1989, p. 73)<br />

defende a implantação de “reformas sociais de caráter democrático”, o que poderia incluir,<br />

por exemplo, a reforma agrária, o seguro-desemprego e <strong>um</strong>a política de distribuição de renda<br />

que beneficiasse <strong>os</strong> assalariad<strong>os</strong> e <strong>os</strong> setores mais pobres da população. O autor sustenta que,<br />

ao contrário do que geralmente afirma o pensamento da esquerda brasileira, as reformas não<br />

são fáceis, mas também não são imp<strong>os</strong>síveis. Por fim, afirma que é necessário revisar a noção<br />

clássica de revolução.<br />

Partindo da noção de que “considerar como válida ainda hoje a estratégia<br />

revolucionária prop<strong>os</strong>ta no Manifesto é, no mínimo, prova de agudo anacronismo”, Carl<strong>os</strong><br />

Nelson Coutinho (1989) clama “por <strong>um</strong> reformismo revolucionário”. Coutinho (1989, p. 11)<br />

defende que “a complexidade das sociedades modernas, entre as quais se inclui a brasileira,<br />

impõe <strong>um</strong>a concepção ‘processual’ de revolução”, ou seja, o autor compreende que “a<br />

‘mudança política radical’ pode e deve ser obtida através de <strong>um</strong> conjunto sistemático de<br />

reformas de estrutura, n<strong>um</strong>a estratégia que poderia ser definida como ‘reformismo<br />

revolucionário’”.<br />

Plínio de Arruda Sampaio (1986, p. 128), estudando a “controvertida questão da<br />

passagem para o socialismo”, afirma que é necessário encarar como <strong>um</strong>a das p<strong>os</strong>sibilidades a<br />

necessidade do emprego da violência. Todavia, explica que, aceitar a p<strong>os</strong>sibilidade de ruptura<br />

e violência, não exclui a p<strong>os</strong>sibilidade de alternativas de passagem que não envolvam<br />

necessariamente o emprego da força física, da luta armada e da repressão. O autor considera<br />

pouco provável que o processo de construção do socialismo no Brasil venha a seguir <strong>um</strong>a<br />

trajetória similar ao da Rússia e ao da China. Sampaio (1986, p. 130) explica que a prop<strong>os</strong>ta<br />

de socialismo do PT “não recusa o momento da rebeldia popular e da violência, mas não está<br />

obsessionado por ele”, e que o trabalho político do Partido “nesta etapa do processo histórico<br />

155


nacional, orienta-se fundamentalmente ao fortalecimento do povo”. Acrescenta, ainda, que<br />

“na busca desse objetivo admite todas as formas de luta política que se m<strong>os</strong>trarem aptas para<br />

conseguir o fim desejado”, e que, “<strong>um</strong>a vez fortalecido o setor popular, a própria realidade<br />

indicará o caminho adequado para derrubar a ordem burguesa e instaurar <strong>um</strong> regime de<br />

governo da maioria, ou seja, <strong>um</strong>a democracia socialista”. Por fim, o autor – na época, suplente<br />

de Deputado Federal pelo PT/SP – apresenta <strong>um</strong> plano de reformas estruturais para a<br />

introdução de modificações na ordem capitalista.<br />

Enfim, o debate <strong>sobre</strong> o tema é amplo, e não pretendem<strong>os</strong> n<strong>os</strong> estender na questão,<br />

tendo em vista que isso escapa às n<strong>os</strong>sas pretensões no presente trabalho. 138 Pretendem<strong>os</strong><br />

apenas enfatizar como era forte o debate <strong>acerca</strong> do socialismo petista na década de 80.<br />

Existiu ainda <strong>um</strong> outro fator que, embora isolado, foi de forte repercussão para a<br />

identificação do PT com o socialismo e, mais especificamente, com a idéia de revolução<br />

socialista. N<strong>os</strong> referim<strong>os</strong> ao “assalto ao Banco do Brasil”, ocorrido em Salvador, Bahia, em<br />

abril de 1986. O ato foi praticado por <strong>um</strong> grupo de guerrilheir<strong>os</strong> do PCRB, que se declaravam<br />

membr<strong>os</strong> do PT. O grupo alegou que estava recolhendo fund<strong>os</strong> para a revolução ou, de acordo<br />

com alguns relat<strong>os</strong>, para ajudar na revolução nicaragüense. O Partido reagiu imediatamente ao<br />

incidente, expulsando as pessoas nele envolvidas 139 . Contudo, segundo Margaret Keck (1991,<br />

p. 138), o assunto “fez a festa d<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de comunicação de massa de todo o País”. Neste<br />

mesmo sentido, Gadotti e Pereira apontam para a repercussão do fato <strong>sobre</strong> a imagem do<br />

Partido.<br />

138 Para <strong>um</strong> maior aprofundamento <strong>acerca</strong> do debate <strong>sobre</strong> qual seria preferível ou mais viável dentre a<br />

“reforma” ou a “revolução”, ver, por exemplo, COUTINHO, Carl<strong>os</strong> Nelson. “Democracia e socialismo”. In:<br />

CARVALHO, Apolônio de (Org.). PT: <strong>um</strong> projeto para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989, pp. 9-31.<br />

OLIVEIRA, Francisco de. “Qual é a do PT?”. In: SADER, Emir (org). E agora, PT? Caráter e identidade. São<br />

Paulo: Brasiliense, [1986?], pp. 9-34. WEFFORT, Francisco. “Perspectivas políticas para <strong>um</strong> governo d<strong>os</strong><br />

trabalhadores”. In: CARVALHO, Apolônio de (Org.). PT: <strong>um</strong> projeto para o Brasil. São Paulo: Brasiliense,<br />

1989, pp. 59-82.<br />

139 Resolução da Comissão Política da Comissão Executiva Nacional, 14 de abril de 1986. Publicada no “PT<br />

Boletim Nacional” em 18 de maio de 1986.<br />

156


Quando, em 1986, aconteceu o assalto ao Banco do Brasil em Salvador,<br />

Bahia, pel<strong>os</strong> “il<strong>um</strong>inad<strong>os</strong>” guerrilheir<strong>os</strong> do PCBR visando conseguir<br />

dinheiro para “financiar a revolução”, novamente a burguesia deitou e rolou<br />

<strong>sobre</strong> o PT, circulando a imagem de “partido irresponsável, perig<strong>os</strong>o, de<br />

louc<strong>os</strong>, sem direção” etc. A direção do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores<br />

deliberadamente expulsou de seus quadr<strong>os</strong> <strong>os</strong> “bandoleir<strong>os</strong> do Leste” e a<br />

imprensa apenas esperou “esfriar” a ênfase dada anteriormente ao fato,<br />

restando na memória do povo apenas o fato isolado e, mais <strong>um</strong>a vez,<br />

casuístico: o assalto ao banco. (GADOTTI & PEREIRA, 1989, p. 78)<br />

Marilena Chauí (1986, p. 64) fala <strong>sobre</strong> “o episódio obscuro de Salvador”, ressaltando<br />

que o acontecimento explicita o problema da “clandestinidade de petistas no e para o PT”.<br />

Não obstante <strong>os</strong> aspect<strong>os</strong> contraditóri<strong>os</strong> desse incidente nunca tivessem sido<br />

suficientemente esclarecid<strong>os</strong>, a identificação d<strong>os</strong> responsáveis como petistas prejudicou o<br />

partido, apesar da condenação do ato pela liderança do PT.<br />

Marilena Chauí, em 1986, explicitava bem a situação <strong>acerca</strong> da “desconfiança” em<br />

relação ao caráter ideológico do PT.<br />

Periodicamente, o PT é convocado para dizer se é ou não bolchevique,<br />

foquista, social-democrata, eurocomunista e se pretende ou não dar início à<br />

insurreição armada que conduzirá do capitalismo ao comunismo. É<br />

cansativo. Mas não é acidental. De fato, a sociedade e a opinião pública<br />

brasileiras estão sob o fogo de duas baterias ideológicas (e estam<strong>os</strong> tomando<br />

a palavra ideologia em seu sentido clássico de ocultamento da realidade<br />

social): a da direita anticomunista, liberal conservadora e liberal progressista,<br />

e a da esquerda comunista (com tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> matizes: leninista, trotskista,<br />

maoísta, guevarista). Ora, nesse campo ideológico, <strong>um</strong>a identificação é<br />

nuclear: a d<strong>os</strong> trabalhadores, enquanto proletariado urbano e rural, e o<br />

comunismo. Donde a convocação periódica e contínua do PT para que diga<br />

se é ou não comunista. (CHAUÍ, 1986, p. 74).<br />

Emir Sader (1986) faz <strong>um</strong> depoimento bastante esclarecedor <strong>acerca</strong> dessa<br />

desconfiança em relação ao caráter ideológico do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores. O autor<br />

demonstra, na passagem abaixo, que o problema não se encontrava na definição de “qual”<br />

seria a ideologia do PT. Na verdade, a crítica recaia <strong>sobre</strong> o próprio fato de o Partido ter <strong>um</strong>a<br />

157


ideologia, como se f<strong>os</strong>se p<strong>os</strong>sível <strong>um</strong> partido político – ou <strong>um</strong> político, do ponto de vista<br />

individual – não ter ideologia.<br />

O PT foi rapidamente guindado à condição de “único partido ideológico”,<br />

como se <strong>os</strong> outr<strong>os</strong> não se orientassem por princípi<strong>os</strong> ideológic<strong>os</strong>, por não<br />

terem consciência deles, não enunciá-l<strong>os</strong> ou comportar-se<br />

contraditoriamente diante da ideologia que <strong>os</strong> orienta. O que é real é que o<br />

PT se transformou rapidamente na única força política não comprometida<br />

com o sistema de dominação vigente. Não pelo fato de não deter – ou apenas<br />

como exceção – p<strong>os</strong>t<strong>os</strong> de governo, mas sim por apoiar sistematicamente a<br />

luta d<strong>os</strong> setores populares contra o sistema social que, no seu conjunto, <strong>os</strong><br />

explora e oprime, ancorado no sistema político dominante. (SADER, 1986,<br />

p. 173)<br />

Dessa forma, ainda que J<strong>os</strong>é Genoíno quisesse retirar do seu discurso element<strong>os</strong> que<br />

pudessem caracterizar sua prop<strong>os</strong>ta como socialista, a sua mera filiação partidária já<br />

denunciaria <strong>os</strong> seus propósit<strong>os</strong>.<br />

Um outro aspecto importante se refere à tentativa de Genoíno de associar o conceito<br />

de direito de resistência à desobediência civil, procurando desvincular a primeira expressão da<br />

idéia de revolução. Não é necessário <strong>um</strong> grande aprofundamento teórico <strong>sobre</strong> o tema para<br />

constatarm<strong>os</strong> que o a noção de desobediência civil é bem mais branda que a de Revolução. 140<br />

Conforme se verificará a seguir, as declarações do PT seguiam o caminho inverso, razão pela<br />

qual, provavelmente, o discurso do constituinte soava, para <strong>os</strong> receptores do discurso, como<br />

<strong>um</strong>a incitação à luta armada. E aqui recorrerem<strong>os</strong>, novamente, a <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento oficial do<br />

Partido.<br />

No “Projeto Político do PT”, doc<strong>um</strong>ento lançado pela Comissão Executiva Nacional,<br />

em 20 de novembro de 1983, como suplemento especial do Boletim Nacional nº 2, consta<br />

140 O conceito de revolução remete à idéia de <strong>um</strong>a transformação radical na estrutura política, econômica ou<br />

social. Ou em todas essas esferas simultaneamente. Por vezes, a palavra aparece como sinônimo de rebelião,<br />

sublevação, insurreição. Aqui, tem<strong>os</strong> a idéia de <strong>um</strong>a mudança brusca e, geralmente, através de mei<strong>os</strong> violent<strong>os</strong>.<br />

Já a expressão desobediência civil não implica <strong>um</strong>a ruptura com a ordem estabelecida, e nem a utilização de<br />

mei<strong>os</strong> violent<strong>os</strong>. Ver, em relação ao tema, o capitulo anterior <strong>sobre</strong> a recepção das teorias <strong>sobre</strong> o direito de<br />

resistência na dogmática jurídica brasileira pré-Constituinte. Para <strong>um</strong> maior aprofundamento <strong>sobre</strong> a questão, ver<br />

as obras de Hannah Arendt (1990) – <strong>sobre</strong> a Revolução – e de Henry David Thoreau (2005), <strong>sobre</strong> a<br />

desobediência civil. Sobre este último tema, ver ainda a obra de Evaldo Vieira (1983), na qual o autor afirma que<br />

a desobediência civil é resistência desarmada.<br />

158


item intitulado “Resistência e luta”. No doc<strong>um</strong>ento, o termo resistência é associado à luta “por<br />

<strong>um</strong>a alternativa à crise econômica, social e política das classes dominantes”. Ademais,<br />

diversas formas de lutas são inventariadas no tópico <strong>sobre</strong> resistência: luta pela terra, greves<br />

de trabalhadores no campo e na cidade, ações d<strong>os</strong> desempregad<strong>os</strong>, ocupação de espaç<strong>os</strong><br />

físic<strong>os</strong>, comíci<strong>os</strong>, at<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>, passeatas, <strong>debates</strong>, dentre outras. No caso da ocupação de<br />

espaç<strong>os</strong> físic<strong>os</strong>, o doc<strong>um</strong>ento deixa claro que a ação pode ser feita por meio pacífico ou<br />

mediante violência, “verificando-se, inclusive, formas de resistência e enfrentamento contra a<br />

repressão policial”. 141<br />

141 “Projeto Político do PT”, 20 de novembro de 1983, lançado pela Comissão Executiva Nacional como<br />

suplemento especial do Boletim Nacional nº 2. Transcrevem<strong>os</strong> a seguir alg<strong>um</strong>as passagens do doc<strong>um</strong>ento: “[...] o<br />

movimento popular ativo e combativo (do qual faz parte, com preponderância, o movimento sindical<br />

combativo), apesar de incipiente, vem tentando opor alg<strong>um</strong>as formas concretas e diretas de resistência à<br />

exploração econômica e social crescente e à opressão política. Essa linha de resistência do movimento popular e<br />

combativo constituiu assim – à falta de <strong>um</strong> projeto mais articulado – a forma real que esse movimento encontra,<br />

no momento, de lutar por <strong>um</strong>a alternativa à crise econômica, social e política das classes dominantes. [...] A<br />

primeira dessas formas de luta é representada, por exemplo, pelas ações d<strong>os</strong> desempregad<strong>os</strong> da Zona Sul de São<br />

Paulo [...] em começ<strong>os</strong> de abril [...] com a ocorrência esporádica e eventual de depredações e saques. Antes e<br />

depois desse episódio, em n<strong>um</strong>er<strong>os</strong><strong>os</strong> pont<strong>os</strong> do País – como no Rio e no interior do Nordeste – têm ocorrido<br />

manifestações semelhantes, de pessoas empregadas ou desempregadas, que praticam depredações, saques e, em<br />

alguns cas<strong>os</strong>, chegam a enfrentament<strong>os</strong> com a polícia. [...] A partir de <strong>um</strong> mínimo de organização e preparação<br />

da deflagração do movimento – levada a efeito por setores populares e polític<strong>os</strong> –, as fases p<strong>os</strong>teriores do seu<br />

desenvolvimento vão ocorrendo de maneira improvisada e casual, dependendo da presença maior ou menor da<br />

repressão para minguar ou se alastrar, sem direção e objetiv<strong>os</strong> claramente definid<strong>os</strong> e explícit<strong>os</strong>. [...] A segunda<br />

forma de luta popular que vem ocorrendo com freqüência ultimamente em vári<strong>os</strong> pont<strong>os</strong> do País é a ocupação de<br />

espaç<strong>os</strong> físic<strong>os</strong>. Em alguns cas<strong>os</strong>, essa ocupação é pacífica. Em outr<strong>os</strong>, é feita com violência, verificando-se,<br />

inclusive, formas de resistência e enfrentamento contra a repressão policial. Também, em alguns cas<strong>os</strong>, essa<br />

forma de luta significa <strong>um</strong>a real e efetiva ocupação do espaço físico, com variação do tempo de permanência d<strong>os</strong><br />

ocupantes no local ocupado. Em outr<strong>os</strong>, a ocupação do espaço físico é <strong>um</strong>a representação apenas simbólica de<br />

ocupação de espaço político. [...] A terceira forma de luta popular, que não é nova mas se tem intensificado, é a<br />

luta pela terra, que ocorre no meio rural de quase tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> estad<strong>os</strong> do País, do Norte ao Sul. Nessa forma de luta<br />

há <strong>um</strong>a clara preponderância da organização <strong>sobre</strong> o espontaneísmo. O elemento diferenciador dessa forma de<br />

luta é que, freqüentemente, ela se dá com o emprego de violência tanto do lado da repressão quanto d<strong>os</strong><br />

trabalhadores combatentes. É <strong>um</strong>a luta que se dirige tanto contra o senhor de terras e seus capangas, quanto<br />

contra o Estado e suas múltiplas formas institucionais, que procura ‘resolver’ <strong>os</strong> conflit<strong>os</strong> de propriedade e p<strong>os</strong>se<br />

de terra, n<strong>um</strong>a tentativa oficial (que até agora tem tido êxito) de evitar <strong>um</strong>a reforma agrária sob controle d<strong>os</strong><br />

trabalhadores. Uma quarta forma de luta, que tem reunido principalmente element<strong>os</strong> de setores urban<strong>os</strong> de<br />

classes médias, continua sendo usada, em cicl<strong>os</strong> de maior e menor representatividade, principalmente nas<br />

capitais e em alguns grandes centr<strong>os</strong> urban<strong>os</strong>: comíci<strong>os</strong>, at<strong>os</strong> públic<strong>os</strong>, passeatas, <strong>debates</strong>, reuniões,<br />

concentrações, realização de congress<strong>os</strong> etc... Essas manifestações têm se limitado à denúncia e à apresentação<br />

de reivindicações. Mas sua principal característica é a preponderância da preparação, organização e direção<br />

<strong>sobre</strong> a improvisação e o espontaneísmo. E, finalmente, <strong>um</strong>a última e quinta forma de luta, que recentemente tem<br />

ass<strong>um</strong>ido papel cada vez mais importante no quadro nacional, é a representada pelas greves de trabalhadores, no<br />

campo e na cidade, preparadas, organizadas e dirigidas por lideranças sindicais, muitas delas de op<strong>os</strong>ição<br />

sindical”. ( “Projeto Político do PT”, 20 de novembro de 1983, lançado pela Comissão Executiva Nacional como<br />

suplemento especial do Boletim Nacional nº 2. Cf. GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Pra que PT:<br />

origem, projeto e consolidação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores. São Paulo: Cortez, 1989, pp. 112-113)<br />

159


Ressalte-se, ainda, que, no Projeto de Constituição do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores,<br />

assim como na emenda apresentada pelo deputado Genoíno, o verbo utilizado é “insurgir”,<br />

palavra que remete muito mais à noção de revolução do que de desobediência. Sendo assim,<br />

fica claro por que motivo <strong>os</strong> ouvintes do discurso associaram a prop<strong>os</strong>ta do constituinte à<br />

idéia de luta armada, não obstante o parlamentar tenha tentado apresentar <strong>um</strong>a visão<br />

“moderada” do direito de resistência em sua fala.<br />

Por fim, acreditam<strong>os</strong> que a própria biografia de J<strong>os</strong>é Genoino até o período da<br />

Constituinte – que, certamente, a maior parte d<strong>os</strong> receptores do discurso conhecia, ainda que<br />

de maneira superficial – explica a rejeição de seu discurso. Na verdade não só a rejeição, mas<br />

a própria incoerência da fala do parlamentar com a sua trajetória de vida. Ora, é evidente que,<br />

tendo participado ativamente do movimento estudantil durante muit<strong>os</strong> an<strong>os</strong> e, p<strong>os</strong>teriormente,<br />

na Guerrilha do Araguaia, na década de 70, J<strong>os</strong>é Genoino era visto pel<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da ANC<br />

como <strong>um</strong> parlamentar de esquerda, e, mais especificamente, como <strong>um</strong> “constituinte<br />

socialista”. Dessa forma, apesar da tentativa feita por Genoino de ofuscar esse “rótulo” em<br />

seu discurso, tal estratégia não obteve êxito.<br />

3.2.3. O direito de resistência no discurso do “guardião da Constituição”<br />

Além da prop<strong>os</strong>ta de inclusão do direito de resistência na Constituição por parte da<br />

bancada do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores, e da defesa do referido direito pelo Constituinte J<strong>os</strong>é<br />

Genoino (PT/SP), o tema da resistência apareceu na ANC em outras ocasiões.<br />

Em Audiência Pública realizada no dia 30 de abril de 1987, perante a Comissão da<br />

Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão da<br />

160


Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais (Subcomissão A), o Professor<br />

Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro sugeriu a inclusão de alguns artig<strong>os</strong> na Constituição:<br />

Apresentei ao Presidente Roberto D’Ávila, alg<strong>um</strong>as semanas atrás, <strong>um</strong>a<br />

modesta sugestão, já de todo articulada, <strong>sobre</strong> o que poderia ser esse capítulo<br />

inaugural da Constituição brasileira acompanhado de <strong>um</strong>a justificativa. S.<br />

Exª, após agregar subsídi<strong>os</strong> própri<strong>os</strong> e muit<strong>os</strong> dout<strong>os</strong>, honrou-me por<br />

encampar a prop<strong>os</strong>ição, que será o tema da minha exp<strong>os</strong>ição. 142<br />

A partir daí, o professor passa a expor <strong>os</strong> divers<strong>os</strong> artig<strong>os</strong> sugerid<strong>os</strong>, dentre <strong>os</strong> quais<br />

menciona o direito de resistência.<br />

O discurso de Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro foi proferido na Subcomissão da<br />

Soberania, da Nacionalidade e das Relações Internacionais. Na ocasião, o jurista discorreu<br />

<strong>sobre</strong> <strong>os</strong> “aspect<strong>os</strong> intern<strong>os</strong> da soberania”. Procurarem<strong>os</strong> compreender a defesa da inclusão do<br />

direito de resistência na Constituição por parte de Siqueira Castro a partir da defesa de outr<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> feita pelo professor na mesma audiência pública.<br />

Em seu discurso 143 , Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro constantemente faz referência à<br />

história constitucional brasileira para justificar seus arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>. Ademais, a palavra<br />

“Constituição”, bem como <strong>os</strong> term<strong>os</strong> dela derivad<strong>os</strong>, aparecem demasiadamente no decorrer<br />

da explanação.<br />

Como o discurso proferido versa <strong>sobre</strong> o tema da soberania interna, o jurista adverte,<br />

logo de início que “não é da tradição constitucional brasileira a preparação, em matriz<br />

constitucional, de <strong>um</strong> capítulo inaugural, exaustivo e suficientemente abrangente, d<strong>os</strong><br />

princípi<strong>os</strong> respeitantes à soberania e a<strong>os</strong> fundament<strong>os</strong> da organização nacional.” 144<br />

Em seguida, Siqueira Castro afirma que a Assembléia Nacional Constituinte seria <strong>um</strong>a<br />

oportunidade de “[...] repensar esta tradição constitucional brasileira tomando até mesmo, não<br />

142 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

19. (ANEXO V)<br />

143 A íntegra do discurso consta no Anexo V.<br />

144 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

19. (ANEXO V)<br />

161


por modelo, mas por referências, constituições sociais e democráticas <strong>sobre</strong>tudo da Europa,<br />

editadas por países que tiveram, política e historicamente, <strong>um</strong>a experiência semelhante à do<br />

Brasil.” 145 E aqui o professor se refere especificamente às experiências de Portugal e Espanha.<br />

O exp<strong>os</strong>itor passa então ao momento de sugestão de artig<strong>os</strong> que poderiam constar na<br />

futura Carta constitucional. Propõe <strong>um</strong> primeiro artigo com a seguinte redação: “O Brasil é<br />

<strong>um</strong>a República Federativa livre e independente, constituída sob o regime representativo em<br />

<strong>um</strong> Estado social e democrático”. 146 Explicando o disp<strong>os</strong>itivo, o professor fala <strong>sobre</strong> as<br />

diversas Constituições brasileiras. Sobre a noção de soberania, afirma que o conceito mais<br />

moderno de soberania não é o institucional, o clássico, proclamado por Jean Boudin, e que<br />

não caberia mais falar em soberania, mas na teoria de dependência e da independência.<br />

Arg<strong>um</strong>entando em favor do conceito de “Estado social e democrático”, Siqueira<br />

Castro faz <strong>um</strong>a crítica ao conceito de Estado de Direito. Segundo o jurista, “a idéia de <strong>um</strong><br />

Estado de Direito é, até certo ponto, reacionária. Eu explico por quê. Porque prega tão-<br />

somente a submissão do Estado a <strong>um</strong>a ordem jurídica, cria a ordem jurídica e se submete a<br />

essa própria ordem”. Em outr<strong>os</strong> term<strong>os</strong>, “é a teoria de que o Estado cria, edita a ordem<br />

jurídica e se submete a ela. Ora, a ditadura pode ser <strong>um</strong> Estado de Direito, como foi no<br />

Brasil”. E acrescenta: “Por esta razão é que as Constituições contemporâneas, comprometidas<br />

sinceramente com <strong>um</strong>a social democracia, preconizam a idéia da enunciação de <strong>um</strong> Estado<br />

social e democrático de direito [...]”. 147<br />

No parágrafo único do art. 1º o Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro sugere a seguinte<br />

redação: “A organização nacional fundamenta-se na supremacia da Constituição, na<br />

liberdade, na igualdade, no trabalho, na justiça social, na dignidade da pessoa h<strong>um</strong>ana, no<br />

pluralismo democrático, na legitimidade do poder, na legalidade democrática e na<br />

145 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

19. (ANEXO V)<br />

146 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

19. (ANEXO V)<br />

147 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

20. (ANEXO V)<br />

162


descentralização governamental”. 148 O professor explica que no parágrafo procurou “ajuntar <strong>os</strong><br />

princípi<strong>os</strong> que me pareceram de superlativa importância para n<strong>os</strong>sa ordem constitucional, a<br />

começar pelo princípio da supremacia da Constituição.” 149<br />

É interessante notar que Siqueira Castro fala muito pouco <strong>acerca</strong> da liberdade, da<br />

igualdade, do trabalho e da justiça social. Seu foco é a “Constituição” e a “ordem<br />

constitucional”. Sendo assim, dentre <strong>os</strong> princípi<strong>os</strong> acima explicitad<strong>os</strong>, dará mais ênfase, em<br />

sua fala, àqueles que podem ser debatid<strong>os</strong> por intermédio de conceit<strong>os</strong> da teoria<br />

constitucional. Não é por acaso que o primeiro princípio é o da supremacia da Constituição.<br />

No âmbito da supremacia constitucional, Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro explica que<br />

“o Brasil nunca adotou formalmente a tese de que a n<strong>os</strong>sa Constituição é dotada de<br />

superlegalidade em face da legislação infraconstitucional”. Em seguida, fala <strong>sobre</strong> a “garantia<br />

da constituição” e, p<strong>os</strong>teriormente, <strong>sobre</strong> “Corte Constitucional” e, inclusive <strong>sobre</strong> a sua<br />

existência em outr<strong>os</strong> Países, sugerindo que este tema “deve, também, merecer a atenção d<strong>os</strong><br />

Constituintes”. Por fim, disserta <strong>sobre</strong> o “processo de revisão da Constituição”. 150<br />

Para Siqueira Castro, “é preciso que se crie <strong>um</strong> profundo sentimento constitucional em<br />

n<strong>os</strong>so País”. O professor constata que, no Brasil, “a Constituição é pouco aplicada e lida”.<br />

Mas justifica esse comportamento: “O próprio autoritarismo cíclico da vida brasileira não<br />

permitiu que o brasileiro f<strong>os</strong>se o grande guardião da sua Constituição”. 151<br />

Em seguida, conforme relatam<strong>os</strong> acima, o jurista fala muito superficialmente <strong>sobre</strong> a<br />

liberdade, a igualdade, o trabalho, a justiça social. Passa então para o tema da dignidade da<br />

pessoa h<strong>um</strong>ana. Aqui, o professor procura se concentrar na questão da torturas ocorridas no<br />

período da ditadura, inclusive relatando que este era <strong>um</strong> tema que constava no Projeto Afonso<br />

148 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

20. (ANEXO V)<br />

149 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

20. (ANEXO V)<br />

150 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

20. (ANEXO V)<br />

151 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

20. (ANEXO V)<br />

163


Arin<strong>os</strong>, criado pela Comissão Provisória de Estud<strong>os</strong> Constitucionais, “da qual tive a honra de<br />

ser assessor especial”. 152<br />

Fala rapidamente <strong>sobre</strong> o pluralismo democrático. Sobre a legitimidade do poder e a<br />

legalidade democrática se reporta à distinção “importantíssima na teoria constitucional<br />

moderna” entre legitimidade e legalidade. 153<br />

Sobre a descentralização governamental, faz <strong>um</strong>a explanação <strong>sobre</strong> a descentralização<br />

de poder a nível federativo e <strong>sobre</strong> a organização d<strong>os</strong> poderes do Estado. Neste ponto, faz<br />

referência ao constitucionalismo norte-americano. Falando <strong>sobre</strong> a concentração de poder<br />

como <strong>um</strong> caminho para tirania, se reporta à “experiência recente brasileira”. Ademais, critica<br />

a utilização do decreto-lei no Brasil. Segundo Siqueira Castro, a descentralização<br />

governamental servirá como “advertência contra o centralismo que desserve a democracia”. 154<br />

O art. 2º consiste na clássica formulação da soberania popular: “Todo poder emana do<br />

povo e em seu nome é exercido”. O primeiro parágrafo, contudo, específica que: “Nenh<strong>um</strong><br />

indivíduo, grupo, órgão ou instituição pode atribuir-se o exercício da soberania nacional, que<br />

pertence ao povo brasileiro e é exercido através de seus representantes, de referendo, de<br />

iniciativa popular das leis e da participação e controle d<strong>os</strong> at<strong>os</strong> do Estado.” 155 A explicação de<br />

Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro vem em seguida.<br />

É para que nenh<strong>um</strong> grupo, como aconteceu no Brasil recentemente, no caso<br />

as Forças Armadas, p<strong>os</strong>sa arvorar-se em ter <strong>um</strong> estado de cidadania, <strong>um</strong><br />

estado de brasilidade superior a<strong>os</strong> demais brasileir<strong>os</strong> e, considerando-se<br />

titular da soberania, querer tutelar a ordem nacional, a pretexto dessa<br />

titularidade privilegiada. [...] Esta norma serve, ou servirá, a meu juízo,<br />

como advertência contra esse tipo de usurpação da soberania nacional. 156<br />

152 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

21. (ANEXO V)<br />

153 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

21. (ANEXO V)<br />

154 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

21. (ANEXO V)<br />

155 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

21. (ANEXO V)<br />

156 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

21. (ANEXO V)<br />

164


Para Siqueira Castro, a soberania popular deve ser exercida através d<strong>os</strong> representantes<br />

do povo – <strong>os</strong> parlamentares –, eleit<strong>os</strong> através de sufrágio universal direto. Mas também<br />

através de referendo, de iniciativa popular das leis e da participação e do controle d<strong>os</strong> at<strong>os</strong> do<br />

Estado.<br />

Considero que determinadas matérias, determinad<strong>os</strong> assunt<strong>os</strong>, projet<strong>os</strong><br />

públic<strong>os</strong>, pela sua magnitude, pela sua transcendência social ou pelo grau de<br />

comprometimento do Tesouro Nacional, devem ser decidid<strong>os</strong> não apenas<br />

pel<strong>os</strong> representantes do povo reunid<strong>os</strong>, mas pelo povo mesmo, como se faz<br />

na Europa de modo geral. Na Europa se fazem referend<strong>os</strong> para decisão das<br />

grandes questões nacionais. [...] se no Brasil o povo tivesse tido a<br />

oportunidade de deliberar <strong>sobre</strong> determinad<strong>os</strong> projet<strong>os</strong> megalôman<strong>os</strong>, como<br />

a construção de oito usinas nucleares de Angra d<strong>os</strong> Reis, como a inundação<br />

de Tucuruí e outr<strong>os</strong> mais, e o próprio endividamento externo, se o povo<br />

brasileiro não tivesse sido o grande ausente desse banquete faust<strong>os</strong>o e<br />

despudorado que foram esses vinte an<strong>os</strong> de centralismo tecnocrático, militar,<br />

não teríam<strong>os</strong> chegado a <strong>um</strong> resultado tão catastrófico. 157<br />

Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro propõe também a iniciativa popular das leis, “como<br />

faz o Projeto Afonso Arin<strong>os</strong> e a maioria das Constituições européias.” 158<br />

citada abaixo.<br />

O segundo parágrafo do art. 2º versa <strong>sobre</strong> o direito de resistência, conforme passagem<br />

Por fim, o § 2º desse art. 2º estabelece o seguinte – e essa, realmente, é <strong>um</strong>a<br />

norma que g<strong>os</strong>taria que merecesse a especial atenção de V. Exª: “Tod<strong>os</strong> têm<br />

direito de garantir o c<strong>um</strong>primento da Constituição e de resistir a<strong>os</strong> at<strong>os</strong><br />

de violação da ordem constitucional democrática”. Em outras palavras, é<br />

o chamado direito político de resistência ou de desobediência civil. Esse é o<br />

tipo de direito que normalmente as Constituições não explicitam, mas<br />

que é autorizado pela teoria constitucional democrática. As constituições<br />

socialistas, de modo geral, adotam essa formulação. A Constituição<br />

portuguesa de 1976, <strong>um</strong>a constituição moderna, adotou expressamente essa<br />

disp<strong>os</strong>ição [...] A velha Constituição francesa de 1793, a chamada<br />

Constituição do Ano II, promulgada logo depois da Revolução Francesa,<br />

também estabelecia o direito de resistência da sociedade contra a opressão.<br />

Considero que esta previsão constitucional, quando men<strong>os</strong> servirá de<br />

157 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987,<br />

pp. 21-22. (ANEXO V)<br />

158 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

22. (ANEXO V)<br />

165


advertência às autoridades constituídas e a<strong>os</strong> usurpadores de<br />

competências institucionais no sentido de que <strong>os</strong> deslizes e desmand<strong>os</strong><br />

quanto ao c<strong>um</strong>primento da Constituição poderão legitimar a reação e a<br />

intolerância do povo, único titular originário da soberania. Servirá,<br />

realmente, como <strong>um</strong> grande sinal vermelho da Constituição contra o<br />

desmando governamental. Toda vez que a autoridade pública em n<strong>os</strong>so País<br />

deslizar, descurar do seu compromisso de c<strong>um</strong>primento à Constituição, o<br />

homem com<strong>um</strong>, o homem da fila do INPS, o homem do guichê de <strong>um</strong>a<br />

repartição pública, sem falar do contribuinte, do cidadão que participa da<br />

vida política do Estado, poderá resistir a esse tipo de desmando, poderá<br />

desautorizar a autoridade pública fazendo valer o seu direito. Quando o<br />

desmando for de nível nacional – <strong>um</strong> golpe político, como aconteceu<br />

recentemente em n<strong>os</strong>so País, por exemplo – e se pretender, estabelecer a<br />

ruptura da ordem constitucional, d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> e garantias fundamentais do<br />

homem e do cidadão, esse disp<strong>os</strong>itivo dará a toda a sociedade política<br />

brasileira o direito, senão o dever, de opor a sua resistência, a sua gl<strong>os</strong>a, o<br />

seu basta a essas tentativas de usurpação da soberania popular. [grif<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 159<br />

Podem<strong>os</strong> observar que a fala de Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro se caracteriza pela<br />

referência constante às palavras “Constituição” e “constitucional”. Nessa pequena passagem<br />

destacada, <strong>os</strong> term<strong>os</strong>, somad<strong>os</strong>, são mencionad<strong>os</strong> 14 vezes. Ora, isso é perfeitamente<br />

compatível com a trajetória acadêmica de Siqueira Castro até o momento da Assembléia<br />

Nacional Constituinte, que se caracterizou por <strong>estudo</strong>s, tanto em nível de mestrado quanto<br />

doutorado, no âmbito do Direito Constitucional. Ademais, as duas únicas publicações do<br />

jurista anteriores ao período da Constituinte podem ser enquadradas como obras de Direito<br />

Constitucional, Teoria da Constituição e Teoria do Estado. 160<br />

É interessante notar que, além da utilização constante de expressões relativas à<br />

Constituição, existe <strong>um</strong>a preocupação em fazer <strong>um</strong>a abordagem histórico-comparativa, por<br />

meio de referências às Constituições brasileiras anteriores.<br />

Também estão presentes na fala de Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro citações de<br />

institut<strong>os</strong> jurídic<strong>os</strong> existentes em Constituições de outr<strong>os</strong> países. O recurso ao direito<br />

comparado se estende principalmente ao direito norte-americano e ao europeu. O próprio<br />

159 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

22. (ANEXO V)<br />

160 As obras são as seguintes; O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no Direito Constitucional (1983)<br />

e O congresso e as delegações legislativas: limites do poder normativo do executivo (1986).<br />

166


jurista justifica essa atitude em <strong>um</strong> determinado momento de sua fala, quando explica a<strong>os</strong> seus<br />

ouvintes que <strong>estudo</strong>u e lecionou n<strong>os</strong> Estad<strong>os</strong> Unid<strong>os</strong>. Ademais, o professor demonstra ter<br />

grande conhecimento <strong>acerca</strong> das doutrinas e juristas da Europa e da América do Norte. Isso<br />

compatível com o seu passado de <strong>estudo</strong> no exterior. Ademais, ainda que tivesse realizado<br />

toda sua trajetória acadêmica no Brasil, teria que ter necessariamente contato com teorias<br />

européias e norte-americanas, tendo em vista que, ainda hoje, servem de base para <strong>os</strong><br />

estudi<strong>os</strong><strong>os</strong> da área de Teoria do Estado, Teoria da Constituição e Direito Constitucional.<br />

Um outro ponto que chama a atenção no discurso do jurista é sua constante referência<br />

ao passado recente do País. Conforme vim<strong>os</strong>, a Assembléia Nacional Constituinte foi<br />

instalada em <strong>um</strong> contexto remoção do “entulho autoritário”. A própria convocação da<br />

Assembléia fazia parte de <strong>um</strong> projeto maior de “abertura democrática” ou de “transição<br />

política”. Assim sendo, existia <strong>um</strong> grande anseio por parte da população brasileira para que a<br />

nova Carta constitucional f<strong>os</strong>se capaz de restaurar a democracia no País. Nesta conjuntura,<br />

justifica-se a preocupação do professor em defender <strong>os</strong> seus arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> por meio de <strong>um</strong>a<br />

crítica ao período ditatorial do qual o Brasil havia recém saído.<br />

Não pretendem<strong>os</strong> aqui, a partir do discurso de Siqueira Castro, enquadrá-lo em alg<strong>um</strong><br />

grupo – “esquerda”, “direita”, “liberal”, “socialista”, “social-democrata” – tendo em vista que<br />

as informações recolhidas em sua explanação, bem como em sua biografia, não n<strong>os</strong> permitem<br />

chegar a qualquer conclusão <strong>sobre</strong> isso. Embora o professor utilize divers<strong>os</strong> conceit<strong>os</strong> liberais<br />

– Revolução Francesa, direit<strong>os</strong> e garantias fundamentais do homem e do cidadão – não<br />

podem<strong>os</strong> taxá-lo de liberal por esse motivo, tendo em vista que o seu objetivo parece ser o de<br />

permanecer mais no âmbito teórico-acadêmico, o que explica a utilização de conceit<strong>os</strong><br />

elaborad<strong>os</strong> na teoria constitucional moderna em seu discurso.<br />

Contudo, podem<strong>os</strong> verificar que, em sua defesa do direito de resistência, o jurista não<br />

procura especificar de que forma esse direito poderia ser exercido, nem as suas implicações.<br />

167


Por ser <strong>um</strong>a explanação na qual o aspecto mais relevante é a “garantia da Constituição”, o<br />

direito de resistência é apresentado de forma vaga. Fala-se, aqui, da “desobediência civil”, que<br />

seria <strong>um</strong>a forma mais branda de resistência.<br />

Ressalte-se que Carl<strong>os</strong> Roberto Siqueira Castro denomina o fenômeno jurídico da<br />

resistência como “direito político de resistência”. Ademais, fala que a sua previsão na<br />

constituição, quando men<strong>os</strong> servirá de advertência às autoridades. Podem<strong>os</strong> observar, se<br />

retornarm<strong>os</strong> ao capítulo <strong>acerca</strong> do direito de resistência na dogmática jurídica brasileira pré-<br />

Constituinte, que tanto a idéia de direito político de resistência, quanto a sugestão de utilizar o<br />

referido direito como advertência são pont<strong>os</strong> presentes na obra de Arthur Machado Paupério.<br />

Considerando que pouc<strong>os</strong> juristas se aventuraram a trabalhar esse tema no período anterior à<br />

Assembléia Nacional Constituinte, e que muitas obras não são facilmente encontradas,<br />

acreditam<strong>os</strong> que Paupério p<strong>os</strong>sa ter servido de base teórica para Siqueira Castro.<br />

O exp<strong>os</strong>itor sugere ainda a inclusão de mais três artig<strong>os</strong> na Constituição, além d<strong>os</strong><br />

mencionad<strong>os</strong>. Contudo, eles não são fundamentais para o n<strong>os</strong>so debate. 161<br />

O tema do direito de resistência parece ter sido <strong>um</strong> tema marginal no discurso de<br />

Siqueira Castro, pois, embora divers<strong>os</strong> constituintes tenham participado do debate ocorrido na<br />

Audiência Pública que o jurista participou, nenh<strong>um</strong> parlamentar debateu o direito de<br />

resistência. Os <strong>debates</strong> versaram <strong>sobre</strong> inúmer<strong>os</strong> e variad<strong>os</strong> temas – criação de <strong>um</strong>a Corte<br />

Constitucional, controle de constitucionalidade, ação popular, recepção das normas<br />

internacionais no direito interno, dentre outr<strong>os</strong> –, mas sem qualquer referência ao direito de<br />

resistência.<br />

161 Em síntese, o art. 3º versa <strong>sobre</strong> a imunidade de jurisdição no Brasil, e o discurso fica no âmbito do direito<br />

internacional. O art. 4º diz respeito a<strong>os</strong> símbol<strong>os</strong> nacionais: a Bandeira, o Hino nacional, o Escudo e as Armas da<br />

República em vigor na data da promulgação desta Constituição. E, finalmente, o art. 5º especifica que o<br />

português é a língua nacional do Brasil.<br />

168


3.2.4. O direito de resistência e a questão da terra<br />

Em Audiência Pública realizada em 27 de abril de 1987, perante a Comissão da<br />

Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão C), o Presidente do Centro de Defesa d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a-MG, J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias, defendeu o direito de<br />

resistência.<br />

de invasões”.<br />

Podem<strong>os</strong> observar que, logo no início, o discurso faz menção “a<strong>os</strong> grandes conflit<strong>os</strong><br />

Primeiro, chamaria a atenção para o item 3 do n<strong>os</strong>so doc<strong>um</strong>ento, que<br />

reputam<strong>os</strong> ser de grande valia, e de grande importância, que poderá –<br />

quem sabe – por fim a<strong>os</strong> grandes conflit<strong>os</strong> de invasões: “Tod<strong>os</strong> têm o<br />

direito de resistir a qualquer ordem que ofenda <strong>os</strong> direit<strong>os</strong>, liberdades e<br />

garantias e de repelir qualquer agressão, inclusive quando proveniente<br />

de autoridade pública”. Estam<strong>os</strong> verificando, no dia a dia, constante<br />

violação de alguns direit<strong>os</strong>, por exemplo, o direito à moradia, à<br />

habitação. Basta ligar a televisão ou ler <strong>os</strong> jornais para ouvir e ver pessoas<br />

dizendo que g<strong>os</strong>tariam de morar no Mor<strong>um</strong>bi. Mas, como vão fazê-lo se o<br />

aluguel de <strong>um</strong> barraco, que era de <strong>um</strong> mil e quinhent<strong>os</strong> cruzad<strong>os</strong>, foi para<br />

três mil cruzad<strong>os</strong> e o salário delas é de mil, mil e duzent<strong>os</strong> ou mil e trezent<strong>os</strong><br />

cruzad<strong>os</strong>? Se forem morar embaixo da ponte, a polícia não deixa, se forem<br />

morar aqui ou ali, não podem. Então elas têm mais é que invadir, segundo<br />

a palavra dessas mesmas pessoas. São dad<strong>os</strong> que colocam<strong>os</strong> aqui e que<br />

poderão servir de orientação, para que a própria população p<strong>os</strong>sa reivindicar<br />

seus direit<strong>os</strong> na Constituinte. E isso está entrelaçado com o item 5, que diz:<br />

“A dignidade h<strong>um</strong>ana é inviolável e a ela são inerentes <strong>os</strong> seguintes<br />

direit<strong>os</strong>: habitação, trabalho, alimentação, saúde, educação, transporte e<br />

lazer.” E, todas as vezes em que a dignidade h<strong>um</strong>ana for violada, diz o item<br />

6: “O Estado e demais entidades públicas têm a responsabilidade civil, de<br />

forma solidária com seus agentes, por ações e omissões praticadas no<br />

exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, que resultem na<br />

violação da dignidade h<strong>um</strong>ana.” O item 7 diz: “Consideram-se penalmente<br />

responsáveis <strong>os</strong> agentes do Estado que venham cometer violações de<br />

Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las,<br />

inclusive no item anterior.” Nesses quatro itens, procuram<strong>os</strong> exatamente<br />

dar às próprias pessoas a faculdade de resistir, de teimar de lutar por<br />

aquilo a que tod<strong>os</strong> têm direito. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 162<br />

162 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987,<br />

pp. 81-82. (ANEXO VI)<br />

169


Um aspecto que chama atenção no discurso é a constante referência a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong><br />

sociais. Aqui, aparece <strong>um</strong>a noção de resistência que se diferencia da perspectiva liberal-<br />

contratualista, na qual a op<strong>os</strong>ição do indivíduo ao Estado se justifica a partir da lesão a <strong>um</strong><br />

direito individual. Em torno da noção de direito de resistência defendida por J<strong>os</strong>é Dias<br />

gravitam direit<strong>os</strong> sociais: habitação, moradia, trabalho, alimentação, saúde, educação,<br />

transporte e lazer. O foco, aqui, é a coletividade – não o indivíduo –, bem como <strong>os</strong> direit<strong>os</strong><br />

relacionad<strong>os</strong> a <strong>um</strong> bem-estar econômico mínimo.<br />

É importante ressaltarm<strong>os</strong> que, embora o discurso tenha sido proferido por J<strong>os</strong>é<br />

Antonio Rodrigues Dias, o próprio locutor esclarece a<strong>os</strong> ouvintes que está “falando em nome<br />

do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a e como membro do Movimento<br />

Nacional de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>”. Dessa forma, a análise do discurso levará em<br />

consideração não apenas a trajetória individual de J<strong>os</strong>é Dias, mas também a atuação do Centro<br />

de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a.<br />

Conforme observam<strong>os</strong> anteriormente, a criação do CDDH de Viç<strong>os</strong>a se deu n<strong>os</strong> an<strong>os</strong><br />

80 a partir de “<strong>um</strong> grupo de pessoas, preocupadas com a violação d<strong>os</strong> mais elementares<br />

Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, como moradia, alimentação, cidadania, educação, enfim, o direito à vida”.<br />

O Centro se constituiu, portanto, com o fim “de lutar contra as desigualdades sociais”. 163<br />

Ademais, ainda segundo relato de J<strong>os</strong>é Antonio Rodrigues Dias, na região de Viç<strong>os</strong>a, o<br />

CDDH teria atuado em várias comunidades rurais e favelas, “levando projet<strong>os</strong> de cidadania,<br />

sempre ao lado d<strong>os</strong> que se encontravam à margem das decisões sociais”. 164<br />

Podem<strong>os</strong> observar que o discurso proferido na Constituinte por J<strong>os</strong>é Dias é bastante<br />

coerente com a atuação e <strong>os</strong> propósit<strong>os</strong> do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a.<br />

163 J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias através de mensagem eletrônica, via Internet.<br />

164 J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias através de mensagem eletrônica, via Internet.<br />

170


A luta pel<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> sociais estava presente na trajetória pessoal do exp<strong>os</strong>itor, e também no<br />

órgão que ele representava na ocasião.<br />

É interessante notar que, falando <strong>sobre</strong> as pessoas que não são “beneficiárias” do<br />

direito de moradia, o locutor se expressa no sentido de “então elas têm mais é que invadir”,<br />

procurando, logo em seguida, amenizar com a afirmação: “segundo a palavra dessas mesmas<br />

pessoas”. Provavelmente, tratava-se de <strong>um</strong>a estratégia do emissor para que o seu discurso não<br />

ficasse vinculado à defesa das invasões urbanas, o que poderia prejudicar a aceitação do<br />

direito de resistência, que estava sendo defendido no momento.<br />

Além desses itens, consta ainda no doc<strong>um</strong>ento apresentado por J<strong>os</strong>é Antônio<br />

Rodrigues Dias a defesa de que “não haverá pena de morte, prisão perpétua, nem banimento”.<br />

Em outro item, defende a obrigação do Estado de prestar assistência judiciária gratuita. Outr<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> defendid<strong>os</strong> no discurso foram <strong>os</strong> seguintes: “direito de tomar conhecimento do que<br />

consta n<strong>os</strong> registr<strong>os</strong> governamentais a seu respeito e do fim a que se destinam as informações”<br />

– com a ressalva de que “<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> obtid<strong>os</strong> não poderão ser utilizad<strong>os</strong> para fins de repressão<br />

política” –, direito de impetrar habeas corpus, inexistência de Estado de Sítio ou quaisquer<br />

outras medidas de emergência ou salvaguardas que suspendam <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong> e suas<br />

garantias, inexistência de foro privilegiado e tribunais de exceção. 165 Ressalte-se que o<br />

exp<strong>os</strong>itor, durante o discurso, leu apenas alguns itens do doc<strong>um</strong>ento.<br />

Quanto à questão da propriedade, no doc<strong>um</strong>ento apresentado por J<strong>os</strong>é Antonio consta<br />

a seguinte passagem:<br />

Existe outro nível que eu queria destacar, que se relaciona com o item 20.<br />

Entendem<strong>os</strong> que cada cidadão tem direito a <strong>um</strong>a propriedade que lhe dê<br />

garantia. É <strong>um</strong> ponto pacífico que defendem<strong>os</strong>. Exatamente para que cada<br />

pessoa p<strong>os</strong>sa ter <strong>um</strong>a propriedade, defendem<strong>os</strong> esse estímulo de parte do<br />

Governo. “O Estado deve estimular e apoiar a propriedade coletiva d<strong>os</strong><br />

principais mei<strong>os</strong> e fatores de produção. A lei definirá, nesse caso, <strong>os</strong><br />

benefíci<strong>os</strong> fiscais e financeir<strong>os</strong>, bem como o favorecimento ao crédito e<br />

165 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

82. (ANEXO VI)<br />

171


auxílio técnico, além de suas relações econômicas, que se destinarão<br />

exclusivamente ao bem-estar social”. Logo a seguir, diz o item 23: “As<br />

propriedades privadas d<strong>os</strong> mei<strong>os</strong> de produção, salvo as micr<strong>os</strong> e pequenas<br />

empresas, não receberão nenh<strong>um</strong> estímulo do Estado e terão efetivo controle<br />

nas relações econômicas nacionais e internacionais, na remessa de lucr<strong>os</strong> e<br />

dividend<strong>os</strong> para o exterior e em qualquer forma de abuso de poder<br />

econômico.” Estão ressalvadas as micr<strong>os</strong> e pequenas empresas porque elas<br />

representam <strong>um</strong>a propriedade familiar e são de grande importância para a<br />

economia brasileira, com <strong>um</strong>a geração enorme de empreg<strong>os</strong>. [grif<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 166<br />

O presidente da sessão, Antonio Mariz, lê <strong>um</strong>a indagação de <strong>um</strong> participante não<br />

Constituinte – o Administrador de Empresas e Técnico de Planejamento da Companhia<br />

Siderúrgica Paulista, Sr. Otávio César da Silva – <strong>acerca</strong> do item 3 do doc<strong>um</strong>ento, que versa<br />

<strong>sobre</strong> o direit<strong>os</strong> de resistência. A pergunta é a seguinte:<br />

[...] com referência a esse item, repito, com o qual concordo plenamente,<br />

quais seriam <strong>os</strong> mei<strong>os</strong> que manteriam o seu c<strong>um</strong>primento e quem julgaria<br />

esse direito? Por exemplo, o Poder Judiciário dá direito à reintegração de<br />

p<strong>os</strong>se de <strong>um</strong>a área invadida. Os companheir<strong>os</strong> que estão na área resistem.<br />

Quem lhes garante o direito de resistir e quem julgará se têm direito ou<br />

não? 167<br />

Em resp<strong>os</strong>ta, J<strong>os</strong>é Antonio Rodrigues Dias profere as seguintes palavras:<br />

É evidente que o que apresentam<strong>os</strong> aqui tem muitas contradições com o que<br />

se vê hoje na prática. A n<strong>os</strong>so ver, <strong>um</strong>a opção tem de ser feita. Com<br />

relação ao direito de reintegração de p<strong>os</strong>se, isso carece de <strong>um</strong><br />

aprofundamento, de <strong>um</strong>a discussão maior. O que é a p<strong>os</strong>se, o que ela<br />

produz em term<strong>os</strong> de bem-estar social? O que tem<strong>os</strong> em vista, por<br />

exemplo, é a questão muito atual das invasões de terra, principalmente<br />

em São Paulo. Dei aquele exemplo onde <strong>um</strong> favelado – vam<strong>os</strong> chamar<br />

assim, <strong>um</strong>a pessoa dessas cuja dignidade está sendo violentada<br />

tremendamente cujo direito de habitação está sendo violado, não tendo<br />

recurs<strong>os</strong> para poder pagar o seu aluguel, invade <strong>um</strong>a propriedade. Além<br />

disso, vai a polícia, por exemplo – tivem<strong>os</strong> cas<strong>os</strong> no jornal, vim<strong>os</strong> isso à<br />

vontade – invade, quebra e ainda mata o cidadão. E vem depois <strong>um</strong>a<br />

senhora, a viúva de <strong>um</strong> deles, e diz: “O senhor está pensando que não<br />

querem<strong>os</strong> morar no Mor<strong>um</strong>bi? Claro que querem<strong>os</strong> morar no Mor<strong>um</strong>bi. Só<br />

que não cabe a gente”. Então, fica <strong>um</strong> problema realmente contraditório<br />

166 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

82. (ANEXO VI)<br />

167 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

84. (ANEXO VI)<br />

172


entre o que existe atualmente e o que se pretende com a nova<br />

Constituição. Dentro desse esquema, é preciso fazer a opção, que, penso,<br />

deva ser a opção fundamental, por aqueles que estão desp<strong>os</strong>suíd<strong>os</strong> de<br />

tudo. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 168<br />

Podem<strong>os</strong> observar que, em todo momento, o discurso de J<strong>os</strong>é Dias e de seus<br />

interlocutores passa pela questão da p<strong>os</strong>se, da propriedade, das invasões. Na passagem acima,<br />

outro aspecto a ser considerado se refere à defesa de que “<strong>um</strong>a opção tem de ser feita”. Aqui,<br />

o locutor já demonstra o seu entendimento de que o ato de legislar exige <strong>um</strong>a tomada de<br />

p<strong>os</strong>ição, <strong>um</strong>a opção por parte d<strong>os</strong> legisladores. O presidente do CDDH de Viç<strong>os</strong>a coloca em<br />

questão as próprias pretensões d<strong>os</strong> constituintes em relação à “nova Constituição”, e deixa<br />

claro o seu p<strong>os</strong>icionamento em prol d<strong>os</strong> “desp<strong>os</strong>suíd<strong>os</strong> de tudo”. A declaração parece<br />

incomodar alguns presentes.<br />

Antonio Mariz (PMDB/PB), que preside a sessão, faz <strong>um</strong>a intervenção:<br />

[...] Esse direito de resistência, que é, de fato, <strong>um</strong> direito inovador no Direito<br />

Constitucional, deve ser visto com muita prudência, porque, evidentemente,<br />

é <strong>um</strong> direito que cabe a tod<strong>os</strong>. E, da mesma forma que o invasor de <strong>um</strong><br />

terreno, <strong>um</strong>a propriedade privada definida poderia reagir a <strong>um</strong>a ordem, à<br />

ordem do proprietário, por exemplo, o proprietário poderia resistir à invasão,<br />

sem recurs<strong>os</strong> à autoridade pública. Então, é <strong>um</strong> direito que deve ser definido<br />

com muito cuidado e prudência, sob pena de produzir efeit<strong>os</strong> contrári<strong>os</strong> ao<br />

que se objetiva. Já a lei civil vigente, o Código Civil, permite a proteção do<br />

direito até com desforço físico, em certas circunstâncias. Quer dizer, o<br />

Código Penal admite a legítima defesa e o estado de necessidade que seriam<br />

versões desse direito de resistência. Na medida em que o direito é de tod<strong>os</strong>,<br />

receio que, na forma prop<strong>os</strong>ta, ele f<strong>os</strong>se também utilizado pel<strong>os</strong> proprietári<strong>os</strong><br />

dessas áreas invadidas, que resistissem, sem recurso à autoridade pública, ao<br />

que seria, na sua ótica, <strong>um</strong>a violação d<strong>os</strong> seus direit<strong>os</strong>, d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> de<br />

propriedade. Esta é <strong>um</strong>a matéria que me parece deva ser de fato aprofundada<br />

na Subcomissão, se se inclinar pela adoção do direito de resistência, que,<br />

sendo inovador, e refletindo p<strong>os</strong>ição avançada na visão do legislador<br />

português, tem evidentemente, <strong>um</strong>a intenção de justiça social, mas que, se<br />

não formulado em term<strong>os</strong> adequad<strong>os</strong>, poderá reverter-se n<strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento de<br />

arbítrio e de violência, justamente d<strong>os</strong> mais fortes contra <strong>os</strong> mais frac<strong>os</strong>. 169<br />

168 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987,<br />

pp. 84-85. (ANEXO VI)<br />

169 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

85. (ANEXO VI)<br />

173


O constituinte C<strong>os</strong>ta Ferreira (PFL/MA) continua o debate, conduzindo o tema para o<br />

direito de defesa da propriedade privada. O constituinte não aprova a resistência tendo em<br />

vista que esta criaria <strong>um</strong>a situação “<strong>um</strong> tanto melindr<strong>os</strong>a”. Por outro lado, o parlamentar<br />

aprova o “direito à legítima defesa da propriedade”, comparando-o, inclusive, com a legitima<br />

defesa no âmbito penal, arg<strong>um</strong>entando “que se <strong>um</strong>a pessoa vem matar alguém, e essa outra<br />

pessoa a mata primeiro”, estaria amparada pelo instituto.<br />

Sr. Presidente, V. EXª aborda justamente aquilo que também está previsto no<br />

Código Civil – o direito à legítima defesa da propriedade – no caso, não<br />

resistindo ao Poder Público. Por exemplo, se alguém chega para invadir a<br />

sua propriedade, desde que tome a providência imediatamente, ele terá o<br />

amparo legal [...]. De modo que, essa parte, principalmente no que<br />

concerne à resistência, inclusive quando a ordem vier de autoridade<br />

pública, parece que cria <strong>um</strong>a situação <strong>um</strong> tanto melindr<strong>os</strong>a. Talvez vá<br />

descambar para <strong>um</strong>a violência muito grande, porque, se a pessoa que<br />

está n<strong>um</strong>a invasão resiste a <strong>um</strong>a ordem judicial que venha legalmente,<br />

aí a situação vai ficar delicada. Para quem ela poderá recorrer, pedindo<br />

a garantia d<strong>os</strong> seus direit<strong>os</strong>? Aí a autoridade do Poder Público é o<br />

máximo. Ela vai reagir e fica <strong>um</strong> pouco difícil. Eu acharia de bom<br />

alvitre que f<strong>os</strong>se realmente usado aquele mesmo diploma legal do<br />

Código Civil, que se poderia adaptar para cá, em term<strong>os</strong> de legítima<br />

defesa, de a pessoa no momento exato reagir. Assim como o direito à<br />

vida; se <strong>um</strong>a pessoa vem matar alguém, e essa outra pessoa a mata primeiro,<br />

estará amparada pelo instituto da legítima defesa. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>so]. 170<br />

É no mínimo estranho que Ferreira desaprove a resistência alegando que esta levaria a<br />

<strong>um</strong>a situação de violência, mas defenda a “legítima defesa da propriedade”. Ora, esta última<br />

nunca se constitui de forma pacífica.<br />

O discurso de C<strong>os</strong>ta Ferreira fica mais claro na medida em que relembram<strong>os</strong> que o<br />

constituinte votou contra a limitação do direito de propriedade privada e a desapropriação da<br />

propriedade produtiva. Contudo, ironicamente – ou oportunamente – em pesquisa feita por<br />

Leôncio Martins Rodrigues antes do período das votações, declarou-se favorável a <strong>um</strong>a<br />

reforma agrária radical. Além disso, definiu sua p<strong>os</strong>ição política como de “Centro”, apesar de<br />

pertencer a <strong>um</strong> partido de direita – o PFL – e tomar alg<strong>um</strong>as p<strong>os</strong>ições mais conservadoras no<br />

170 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

85. (ANEXO V)<br />

174


momento das votações, por exemplo, votando contra a proteção ao emprego contra despedida<br />

sem justa causa e o turno ininterrupto de seis horas.<br />

J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias toma a palavra novamente:<br />

G<strong>os</strong>taria de fazer <strong>um</strong>a consideração <strong>sobre</strong> alguns aspect<strong>os</strong>. Primeiro, quando<br />

se propõe <strong>um</strong> item como esse, não se tem em mente apenas o problema<br />

da invasão de terra. Evidentemente, existem outras formas de agressão que<br />

não somente essas. Devem<strong>os</strong> ater-n<strong>os</strong> a <strong>um</strong> problema de opção por quem<br />

está sendo oprimido naquele momento. Diria assim: se <strong>um</strong> indivíduo chega<br />

a invadir <strong>um</strong>a terra, é porque, antes, evidentemente, nada conseguiu. Já<br />

foi oprimido pela própria sociedade. Quer dizer, a sociedade já o<br />

violentou de tal forma que ele não teve outra alternativa, a não ser<br />

aquela. Não se trata, aqui, de ferir o direito de propriedade, absolutamente,<br />

mas, sim, de ter <strong>um</strong>a visão diferente, a partir daquele que ali está, que não<br />

tem casa para morar. É esse tipo de gente que consideram<strong>os</strong>. E isso<br />

realmente cria <strong>um</strong> impasse, não o negam<strong>os</strong>. Agora, a opção é que tem de<br />

ser clara: por quem eu quero legislar, por exemplo – desculpem-me<br />

penetrar assim no problema. É nesse tipo de situação que tem<strong>os</strong> de<br />

verificar <strong>os</strong> fat<strong>os</strong> que realmente estão ocorrendo, porque é evidente o direito<br />

de propriedade. Qual é o direito que tem o outro, que nada p<strong>os</strong>sui e que é<br />

também <strong>um</strong> cidadão, <strong>um</strong> ser h<strong>um</strong>ano? [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 171<br />

A indagação feita por J<strong>os</strong>é Dias – “Por quem eu quero legislar?” – provavelmente<br />

soou como <strong>um</strong>a afronta a<strong>os</strong> interlocutores do debate. Podem<strong>os</strong> perceber que este foi o<br />

arg<strong>um</strong>ento crucial para que <strong>os</strong> verdadeir<strong>os</strong> interesses em jogo começassem a aparecer.<br />

Antonio Mariz continua o debate, alegando que favorece a idéia do direito de<br />

resistência, com a ressalva de que este deve ser redigido de tal forma que não se preste a<br />

equívoc<strong>os</strong>. E acrescenta:<br />

No segundo texto prop<strong>os</strong>to, a resistência poderia ser feita inclusive quando<br />

proveniente de autoridade pública. Ora, da mesma forma em que há <strong>um</strong>a<br />

ordem de despejo de <strong>um</strong>a terra invadida, poderá haver <strong>um</strong>a ordem de<br />

manutenção de p<strong>os</strong>se em favor d<strong>os</strong> invasores. Nesse caso, o proprietário da<br />

terra estaria no direito de resistir à ordem, ou seja, a ordem judicial de<br />

manutenção de p<strong>os</strong>se d<strong>os</strong> invasores poderia ser desafiada pelo proprietário<br />

da terra. Então, com o mesmo direito de resistência que consignássem<strong>os</strong> na<br />

Constituição, estaríam<strong>os</strong> legislando contra <strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong> objetiv<strong>os</strong>. É esse o<br />

aspecto que g<strong>os</strong>taria de salientar. É p<strong>os</strong>sível dizer que as leis, na ordem<br />

171 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

85. (ANEXO VI)<br />

175


capitalista, são sempre a expressão da classe dominante, que elas<br />

consubstanciam sempre <strong>os</strong> interesses da classe dominante. É <strong>um</strong> ponto<br />

de vista perfeitamente defensável doutrinariamente. No entanto, nada<br />

disso tem a ver com a formulação do chamado direito de resistência.<br />

Essa formulação, se não for p<strong>os</strong>ta de forma extremamente clara e precisa,<br />

poderá reverter contra <strong>os</strong> interesses da parte mais fraca, exatamente <strong>os</strong><br />

destituíd<strong>os</strong> de direit<strong>os</strong>, <strong>os</strong> desp<strong>os</strong>suíd<strong>os</strong> de direit<strong>os</strong> na sociedade em que<br />

vivem<strong>os</strong>. Esse é <strong>um</strong> ponto que peço que me seja permitido assinalar nessa<br />

discussão, a par da questão levantada pelo Constituinte C<strong>os</strong>ta Ferreira, de<br />

que, no momento em que se questiona a ordem proveniente de<br />

autoridade legítima, na verdade, questiona-se todo o ordenamento<br />

jurídico. Mesmo com as ressalvas p<strong>os</strong>síveis que acabei de mencionar, de<br />

que as leis pudessem ser leis de classe, leis de privilégio, ainda assim, o<br />

ca<strong>os</strong>, a ausência, a inexistência de <strong>um</strong>a ordem jurídica, longe de<br />

favorecer a liberdade, a prejudicariam. Isso dentro da moldura de <strong>um</strong><br />

Estado de direito democrático, evidentemente, que é o que estam<strong>os</strong> buscando<br />

aqui, com a votação, a elaboração de <strong>um</strong> novo texto constitucional. [grif<strong>os</strong><br />

n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 172<br />

Conforme vim<strong>os</strong>, quando da biografia de Antonio Mariz, “desde <strong>os</strong> temp<strong>os</strong> da<br />

ARENA, este deputado paraibano é conhecido por suas p<strong>os</strong>ições coraj<strong>os</strong>as e independentes,<br />

dentro de <strong>um</strong>a linha de coerência que o faz respeitado por todas as correntes”. (COELHO &<br />

OLIVEIRA, 1989, p. 272). A partir desse relato, percebe-se que o constituinte tem <strong>um</strong>a<br />

p<strong>os</strong>tura de “Centro”. Mesmo se considerarm<strong>os</strong> sua atuação no momento das votações – votou<br />

a favor da limitação do direito de propriedade privada e da desapropriação da propriedade<br />

produtiva –, não poderíam<strong>os</strong> enquadrá-lo como <strong>um</strong>a parlamentar “conservador” ou de<br />

“extrema direita”.<br />

Em todo caso, o discurso moderado de Mariz fica prejudicado ao final do seu relato,<br />

quando ele defende que, ainda que as leis expressem <strong>os</strong> interesses das classes dominantes,<br />

elas seriam preferíveis à ausência de <strong>um</strong>a ordem jurídica. Trata-se de <strong>um</strong>a defesa da<br />

legalidade a qualquer custo, ainda que privilegiando <strong>um</strong>a parcela da população. O exp<strong>os</strong>itor,<br />

que vinha adotando <strong>um</strong> perfil ponderado em seu discurso, radicaliza ao final de sua fala. E<br />

radicaliza em favor das classes privilegiadas.<br />

172 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

85. (ANEXO VI)<br />

176


Em questionamento elaborado por Márcia Miranda – teóloga, agente de Pastoral,<br />

pertencente ao Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Petrópolis –, <strong>um</strong>a participante não-<br />

Constituinte, o direito de resistência novamente é relacionado com a questão do solo, agrário<br />

e urbano.<br />

Dr. J<strong>os</strong>é Antônio, g<strong>os</strong>taria de perguntar <strong>sobre</strong> a questão do direito de<br />

resistência abordado nesse debate. Não acha V.S.ª que muitas das questões<br />

levantadas aqui teriam melhor encaminhamento de solução se<br />

considerássem<strong>os</strong> <strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong> dentro de <strong>um</strong>a dimensão econômica e<br />

política, onde a reforma agrária e a questão do solo urbano têm, por isso,<br />

papel e função essencial na questão d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> individuais tratad<strong>os</strong> no seu<br />

doc<strong>um</strong>ento? 173<br />

Ao qual responde J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias: “Perfeitamente. Acho que a própria<br />

pergunta, em si, já é <strong>um</strong>a resp<strong>os</strong>ta. É por aí”. 174<br />

Retomando a trajetória do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a na<br />

década de 80, a partir d<strong>os</strong> fragment<strong>os</strong> do Jornal “Folha da Mata” e do “Diário de<br />

Pernambuco”, mencionad<strong>os</strong> na biografia de J<strong>os</strong>é Antonio Rodrigues Dias, podem<strong>os</strong> observar<br />

alg<strong>um</strong>as características que n<strong>os</strong> interessam, especificamente. Em primeiro lugar, havia <strong>um</strong>a<br />

defesa da reforma agrária, o que fica se verifica ao consultarm<strong>os</strong> a pauta de reivindicações d<strong>os</strong><br />

Encontr<strong>os</strong> n<strong>os</strong> quais o CDDH participava. Na realidade, n<strong>os</strong> Encontr<strong>os</strong> existia <strong>um</strong>a<br />

preocupação maior com as violações a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong> realizadas no campo –<br />

principalmente em decorrência d<strong>os</strong> conflit<strong>os</strong> pela p<strong>os</strong>se da terra – e na cidade, que teria<br />

divers<strong>os</strong> problemas, desde o desemprego e a falta de moradia até o a<strong>um</strong>ento da violência<br />

policial contra a população marginalizada. Ademais, na ocasião da cassação de Leonardo<br />

Boff, J<strong>os</strong>é Antonio Rodrigues Dias, falando como Presidente do Centro de Defesa d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a, ressaltou que o trabalho feito pel<strong>os</strong> “leig<strong>os</strong>” era inspirado na<br />

173 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

88. (ANEXO VI)<br />

174 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

88. (ANEXO VI)<br />

177


Teologia da Libertação. Tod<strong>os</strong> esses fatores n<strong>os</strong> levam a concluir que o CDDH de Viç<strong>os</strong>a –<br />

assim como seu presidente – fazia <strong>um</strong>a opção pel<strong>os</strong> excluíd<strong>os</strong>.<br />

Podem<strong>os</strong> afirmar, portanto, que a defesa feita por J<strong>os</strong>é Dias foi bastante coerente com<br />

a sua atuação enquanto presidente do Centro de Defesa d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de Viç<strong>os</strong>a.<br />

Questões <strong>sobre</strong> a terra, a propriedade privada e a reforma agrária apareceram durante<br />

toda audiência pública em que J<strong>os</strong>é Antonio Rodrigues Dias foi exp<strong>os</strong>itor. E isso não somente<br />

quando a discussão versava <strong>sobre</strong> o direito de resistência, mas também em outr<strong>os</strong> moment<strong>os</strong>.<br />

David Fleischer (1988), em <strong>estudo</strong> no qual traça <strong>um</strong> perfil das atividades econômicas<br />

d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da ANC, afirma que 37,7% d<strong>os</strong> constituintes recebem a maior parte da sua<br />

renda proveniente do capital (investiment<strong>os</strong> e propriedades). Os “capitalistas” estariam<br />

representad<strong>os</strong> na seguinte proporção no interior d<strong>os</strong> diferentes partid<strong>os</strong>: PDC (100%), PL<br />

(57,1%), PDS (50%), PCB (42,9%), PTB (42,1%), PMDB (38,9%), PFL (37,6%) e PDT<br />

(19,2%). Três partid<strong>os</strong> – PT, PSB, PC do B – não elegeram nenh<strong>um</strong> “capitalista”.<br />

Fleischer (1988) também investiga a classe proprietária, procurando saber de onde ela<br />

viria e em quais setores da economia ela atuaria. De acordo com o autor, d<strong>os</strong> 211<br />

“constituintes-capitalistas”, 91 atuariam no setor agrário (54 do PMDB e 18 do PFL), 48 no<br />

setor finanças-banc<strong>os</strong>-empresas (26 do PMDB e 11 do PFL), e 23 no setor de comércio-<br />

segur<strong>os</strong>-serviç<strong>os</strong> (15 do PMDB e 11 do PFL). Ao todo, 55% destes capitalistas são do PMDB<br />

e 23,7% são do PFL.<br />

Quanto ao setor agrícola, ressalte-se que tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> 91 constituintes cuja atividade<br />

econômica principal é no setor agrário são proprietári<strong>os</strong>. Ademais, considerando-se a<br />

segunda, terceira e quarta atividades, a classe proprietária rural chega a 133 constituintes, ou<br />

seja, 23,8% da Assembléia Nacional Constituinte.<br />

178<br />

Diante destes dad<strong>os</strong>, fica evidente por que questões como a reforma agrária,<br />

a função social da propriedade e as relações capital-trabalho foram tão


arduamente disputadas na Constituinte, sem muita perspectiva de mudanças<br />

estruturais significativas nestas áreas. (FLEISCHER, 1988, p. 33)<br />

Podem<strong>os</strong> observar que quase 80% d<strong>os</strong> “constituintes capitalistas” pertenciam ao<br />

PMDB e ao PFL. Mesmo considerando a heterogeneidade do PMDB na época da<br />

Constituinte, o que não n<strong>os</strong> permitiria retirar conclusões <strong>sobre</strong> o perfil do Partido na ANC, é<br />

relevante o fato de que <strong>os</strong> dois partid<strong>os</strong> “capitalistas” mencionad<strong>os</strong> acima são,<br />

respectivamente, <strong>os</strong> partid<strong>os</strong> de Antonio Mariz e C<strong>os</strong>ta Ferreira, <strong>os</strong> debatedores de J<strong>os</strong>é<br />

Antônio Rodrigues Dias.<br />

Em <strong>estudo</strong> que apresenta <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> de <strong>um</strong>a pesquisa <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> federais<br />

eleit<strong>os</strong> para a Assembléia Nacional Constituinte, Leôncio Martins Rodrigues (1987) também<br />

obtém alg<strong>um</strong>as conclusões <strong>sobre</strong> o perfil ideológico e político da Constituinte. Ressalte-se,<br />

todavia, que <strong>os</strong> dad<strong>os</strong> se referem apenas a<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> federais, e não a<strong>os</strong> senadores.<br />

Contudo, a pesquisa tem grande relevância na medida em que aqueles representavam a<br />

maioria da Constituinte. Ao todo, foram entrevistad<strong>os</strong> 451 deputad<strong>os</strong>, o que corresponde a<br />

93% do número total de deputad<strong>os</strong> federais (487) da ANC.<br />

Rodrigues (1987, p. 77-78) constatou que 32% d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> federais entrevistad<strong>os</strong><br />

eram “empresári<strong>os</strong>” ou, “de modo esquemático, e <strong>um</strong> pouco caricato”, o grupo da<br />

“burguesia”. Neste grupo, o autor localiza aqueles deputad<strong>os</strong> cuja fonte básica de rendimento<br />

não vem do exercício de <strong>um</strong>a profissão, mas sim da utilização e valorização da propriedade<br />

ou do capital econômico. Aqui, também se localizam parlamentares com nível elevado de<br />

escolaridade. Contudo, é a propriedade que constitui a fonte básica de renda, poder e status.<br />

Esse grupo compreende “tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> que tiveram (ou têm) atividades de tipo<br />

empresarial ligadas à economia de mercado no meio urbano ou rural”. Mais concretamente,<br />

“trata-se do grupo d<strong>os</strong> proprietári<strong>os</strong> ou das profissões e ocupações que estão em função do<br />

capital econômico como, por exemplo, executiv<strong>os</strong> e administradores de empresas que, embora<br />

179


não proprietári<strong>os</strong>, ocupam p<strong>os</strong>ição de mando relativamente elevada”, como diretores e<br />

gerentes. Foram incluíd<strong>os</strong> neste grupo: industriais, banqueir<strong>os</strong>, comerciantes, consultores de<br />

empresas privadas, fazendeir<strong>os</strong>, pecuaristas etc., “independentemente do montante do capital<br />

ou das dimensões do empreendimento ou da propriedade”. O autor ressalta que embora não<br />

se tenham obtido informações mais precisas <strong>sobre</strong> este último aspecto, <strong>os</strong> dad<strong>os</strong> disponíveis<br />

indicam que o grupo abrange, principalmente, médi<strong>os</strong> e grandes proprietári<strong>os</strong> ou executiv<strong>os</strong><br />

de alto nível.<br />

No interior do grupo d<strong>os</strong> “empresári<strong>os</strong>”, encontram<strong>os</strong> a seguinte proporção em relação<br />

ao total de deputad<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong>: 21% d<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong> são empresári<strong>os</strong> urban<strong>os</strong>, 9% são<br />

empresári<strong>os</strong> rurais e 2% são empresári<strong>os</strong> com atividade diversificada ou não identificada.<br />

Em term<strong>os</strong> partidári<strong>os</strong>, Leôncio Martins Rodrigues (1987) constata que a presença de<br />

“empresári<strong>os</strong>” diminui quando se passa d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> de direita para <strong>os</strong> partid<strong>os</strong> de esquerda.<br />

No PDS, 58% d<strong>os</strong> parlamentares fazem parte deste grupo. No PFL, 36%. No PMDB também<br />

há <strong>um</strong>a representação do grupo da “burguesia” relativamente importante: 29%.<br />

Os empresári<strong>os</strong>, como vim<strong>os</strong>, têm forte presença no PDS, onde mais da metade d<strong>os</strong><br />

seus representantes na Câmara d<strong>os</strong> Deputad<strong>os</strong> são industriais, comerciantes, fazendeir<strong>os</strong> ou<br />

pecuaristas. Porém, a maior proporção de empresári<strong>os</strong> está no PL/PDC: 64% d<strong>os</strong> seus<br />

deputad<strong>os</strong>. A minúscula bancada do PDC é comp<strong>os</strong>ta, em sua maioria, por empresári<strong>os</strong> do<br />

setor rural. (RODRIGUES, 1987)<br />

Leôncio Martins Rodrigues (1987), estudando as “tendências políticas e ideologias”<br />

d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong>, investigou como estes se auto-definem politicamente. O resultado foi o<br />

seguinte: “Direita radical” (nenh<strong>um</strong> deputado), “Direita moderada ou centro-direita” (6%),<br />

“Centro” (37%), “Esquerda moderada ou centro-esquerda” (52%) e “Esquerda radical” (5%).<br />

No total, 428 deputad<strong>os</strong> responderam a esta questão. Ressalte-se que se trata de <strong>um</strong>a auto-<br />

definicão política.<br />

180


P<strong>os</strong>teriormente, Rodrigues (1989, pp. 106-107) procurou correlacionar as resp<strong>os</strong>tas<br />

acima com “três questões que, explícita ou implicitamente, estarão subjacentes n<strong>os</strong> <strong>debates</strong> a<br />

serem travad<strong>os</strong> quando da elaboração da Constituição e que são cruciais para as classificações<br />

ideológicas”. A primeira questão diz respeito à economia de mercado e à intervenção estatal<br />

na economia. 175 A segunda versa <strong>sobre</strong> o papel do capital estrangeiro no Brasil. 176 A última<br />

questão trata da reforma agrária.<br />

No caso da reforma agrária, foi constatado que apenas 4% d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong><br />

eram totalmente contrári<strong>os</strong> a ela. Outr<strong>os</strong> 66% defendiam <strong>um</strong>a reforma agrária apenas em<br />

terras improdutivas. Os deputad<strong>os</strong> que eram a favor de <strong>um</strong>a reforma agrária radical<br />

representavam 30% d<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong>.<br />

Conjugando as auto-definicões políticas com a opinião <strong>sobre</strong> a reforma agrária, tem<strong>os</strong><br />

que na “Direita moderada ou centro-direita” 13% d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> eram totalmente contrári<strong>os</strong> a<br />

<strong>um</strong>a reforma agrária, 78% concordavam com a reforma apenas nas terras não produtivas e 9%<br />

eram favoráveis a <strong>um</strong>a reforma agrária radical. No “Centro”, 8% eram contrári<strong>os</strong>, 85% eram<br />

favoráveis apenas em terras improdutivas e 7% defendiam <strong>um</strong>a reforma radical. Na “Esquerda<br />

moderada ou centro-esquerda” 1% era contra a reforma agrária, 58% admitiam apenas nas<br />

terras improdutivas e 41% concordavam com <strong>um</strong>a reforma agrária radical. Por fim, na<br />

“Esquerda radical”, nenh<strong>um</strong> parlamentar foi contrário à idéia de <strong>um</strong>a reforma agrária.<br />

Ademais, apenas 5% eram favoráveis a que a reforma se restringisse às terras improdutivas e<br />

95% eram favoráveis a <strong>um</strong>a reforma agrária radical.<br />

Observe-se, todavia, que a pesquisa foi realizada tendo como base apenas as opiniões<br />

manifestadas pel<strong>os</strong> parlamentares entrevistad<strong>os</strong>, portanto, fora de qualquer contexto político<br />

concreto.<br />

175 O resultado foi o seguinte: “liberalismo econômico” (40%), “economia mista” (39%), “economia socialista”<br />

(21%). Neste último caso, estão englobadas as p<strong>os</strong>ições “socialistas moderadas” (15%) – com <strong>um</strong> amplo<br />

controle do Estado <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> principais setores econômic<strong>os</strong> – e “socialistas extremadas” (6%), que achavam que o<br />

capital privado deveria ser totalmente eliminado.<br />

176 Sobre este tema, 15% d<strong>os</strong> deputad<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong> aceitavam o capital estrangeiro, 62% aceitavam com<br />

limitações e 23% rejeitavam totalmente.<br />

181


Em pesquisa de opinião <strong>sobre</strong> a Reforma Agrária realizada pelo Departamento de<br />

Sociologia da UNB, n<strong>os</strong> meses de maio a dezembro de 1987, visando auxiliar o Ministério da<br />

Reforma e do Desenvolvimento Agrário nas negociações relativas à tramitação da questão<br />

agrária na Assembléia Nacional Constituinte, foram entrevistad<strong>os</strong> 162 constituintes, dentre <strong>os</strong><br />

quais se incluíam 20 senadores (27,7% do total) e 142 deputad<strong>os</strong> federais (29% do total). 177<br />

Embora <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> obtid<strong>os</strong> não n<strong>os</strong> propiciem informações <strong>acerca</strong> de todo o corpo<br />

Constituinte – tendo em vista que o <strong>estudo</strong> englobou apenas <strong>um</strong>a parcela d<strong>os</strong> parlamentares –,<br />

podem<strong>os</strong> retirar alg<strong>um</strong>as informações relevantes da pesquisa.<br />

O objetivo principal da pesquisa era fazer <strong>um</strong>a análise da opinião d<strong>os</strong> constituintes<br />

<strong>sobre</strong> a Reforma Agrária, bem como <strong>acerca</strong> de questões relacionadas ao desenvolvimento<br />

agrícola nacional. A opinião d<strong>os</strong> parlamentares <strong>sobre</strong> o direito de propriedade e, mais<br />

especificamente, <strong>sobre</strong> a propriedade rural, também foi verificada, dentre outr<strong>os</strong> temas<br />

correlacionad<strong>os</strong>.<br />

Sobre a “alteração da estrutura fundiária”, quase tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> constituintes entrevistad<strong>os</strong><br />

(93,2%) concordaram que a atual estrutura fundiária do País deveria ser alterada. Contudo,<br />

Quando comparad<strong>os</strong> com o resultado das votações na ANC a respeito de<br />

outr<strong>os</strong> temas relativ<strong>os</strong> à R.A., quando p<strong>os</strong>ições que levaram à não alteração<br />

da estrutura fundiária venceram, esses alt<strong>os</strong> percentuais pró-alteração<br />

revelam apenas o c<strong>os</strong>t<strong>um</strong>eiro mecanismo de defesa daqueles que não querem<br />

ser rotulad<strong>os</strong> como anti R.A. ou reacionári<strong>os</strong> e que, n<strong>um</strong> primeiro momento,<br />

aceitam a necessidade da alteração, mas revelam sua p<strong>os</strong>ição conservadora<br />

quando instad<strong>os</strong> a responderem questões mais específicas relativas ao tema.<br />

Ao responderem p<strong>os</strong>itivamente, <strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong> que, na verdade, são<br />

contrári<strong>os</strong> a qualquer transformação substancial da estrutura fundiária, se<br />

preparam para justificar suas idéias anti-progresso rural nas minudências das<br />

questões. (FERREIRA & TEIXEIRA, 1989, p. 21)<br />

Quando indagad<strong>os</strong> <strong>acerca</strong> da necessidade de <strong>um</strong>a reforma agrária no País, <strong>os</strong><br />

constituintes – de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> partid<strong>os</strong> – também se p<strong>os</strong>icionaram p<strong>os</strong>itivamente. Em tod<strong>os</strong> <strong>os</strong><br />

177 Para a definição da am<strong>os</strong>tra, foram utilizadas duas variáveis: pertencimento a cada <strong>um</strong> d<strong>os</strong> partid<strong>os</strong> polític<strong>os</strong><br />

representad<strong>os</strong> na Constituinte e a cada <strong>um</strong>a das macro-regiões, conforme definidas pelo IBGE.<br />

182


partid<strong>os</strong>, com exceção do PDS, as manifestações favoráveis à reforma agrária ultrapassaram<br />

94%. Do total de entrevistad<strong>os</strong>, apenas dois parlamentares (<strong>um</strong> do PMDB e outro do PDS) se<br />

manifestaram contra. Ressalte-se, portanto, a “extrema favorabilidade a <strong>um</strong>a política que mais<br />

tarde não chegou a se consubstanciar em preceit<strong>os</strong> constitucionais”. (FERREIRA &<br />

TEIXEIRA, 1989, p. 22)<br />

Questionad<strong>os</strong> <strong>acerca</strong> da reforma agrária enquanto “mecanismo adequado para iniciar<br />

transformações de vulto na sociedade brasileira”, a<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong> foram apresentadas<br />

diversas opções, sendo admitidas múltiplas resp<strong>os</strong>tas. As resp<strong>os</strong>tas que obtiveram <strong>um</strong><br />

percentual mais alto foram aquelas que defenderam a reforma agrária enquanto opção<br />

adequada “para promover a justiça social” (20%), “para a<strong>um</strong>entar a produção de aliment<strong>os</strong>”<br />

(18%), para “redistribuir riquezas” (15,6%) e para “acabar com conflit<strong>os</strong>/violência” (15,4%).<br />

Observe-se, entretanto, que houve <strong>um</strong> índice alto de constituintes que não responderam a essa<br />

questão (28,4%). Brancolina Ferreira e João Gabriel Teixeira (1989, pp. 22-23), a partir deste<br />

último dado, apontam para “<strong>um</strong> alto grau de evasivas convenientes ou de ausência de<br />

conhecimento especifico <strong>sobre</strong> o que estava sendo discutido”. Para <strong>os</strong> pesquisadores, isso<br />

demonstra “a crucialidade da questão agrária e a volubilidade d<strong>os</strong> parlamentares <strong>sobre</strong><br />

questões relevantes do processo constituinte naquele momento”.<br />

Os constituintes também foram perguntad<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> suas “modalidades preferenciais de<br />

reforma agrária”. Aqui, diversas alternativas foram oferecidas a<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong>. A partir do<br />

cruzamento d<strong>os</strong> dad<strong>os</strong> coletad<strong>os</strong>, foi constatado <strong>um</strong> total de quase 47% de resp<strong>os</strong>tas<br />

favoráveis à expropriação de terras privadas oci<strong>os</strong>as ou que estejam inadequadamente<br />

exploradas. Este p<strong>os</strong>icionamento favorável, entretanto, não veio a se confirmar na votação<br />

final, tendo em vista que as grandes propriedades privadas improdutivas foram consideradas<br />

não passíveis de desapropriação. Cabe destacar, ainda, que, neste tema, houve <strong>um</strong> grau ainda<br />

183


mais elevado de evasivas: 48% d<strong>os</strong> entrevistad<strong>os</strong> não responderam a questão. (FERREIRA &<br />

TEIXEIRA, 1989).<br />

Quando indagad<strong>os</strong> <strong>acerca</strong> d<strong>os</strong> “instr<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> eficazes para mudar a estrutura<br />

fundiária”, a opção mais indicada foi a desapropriação (35,5%), seguida da tributação <strong>sobre</strong> as<br />

terras oci<strong>os</strong>as (27,6%). Também houve opção pela colonização (18,4%) e pela regularização<br />

fundiária (mais de 10%). 178 Ressalte-se, ainda, que 5,4% das resp<strong>os</strong>tas optaram pel<strong>os</strong><br />

mecanism<strong>os</strong> da perda s<strong>um</strong>ária e do confisco, instr<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> que sequer foram incluíd<strong>os</strong>,<br />

p<strong>os</strong>teriormente, entre <strong>os</strong> temas pertinentes nas votações. Essa questão também obteve <strong>um</strong> alto<br />

índice de não resp<strong>os</strong>tas. Ferreira e Teixeira (1989, p. 24) concluíram que “<strong>os</strong> parlamentares<br />

m<strong>os</strong>traram-se mais progressistas nas entrevistas em relação a<strong>os</strong> instr<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> de alteração<br />

fundiária do que as votações demonstraram n<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> constituintes”.<br />

A maioria d<strong>os</strong> constituintes entrevistad<strong>os</strong> considerava necessária a criação de <strong>um</strong>a<br />

Justiça Agrária (66,7%). Dentre estes, a maior parte achava que a sua atribuição principal<br />

deveria ser a de resolver <strong>os</strong> conflit<strong>os</strong> agrári<strong>os</strong> (49,3% das resp<strong>os</strong>tas). Foram indicadas, ainda,<br />

como atribuições a serem exercidas por <strong>um</strong>a Justiça Agrária no Brasil as seguintes: julgar as<br />

questões relativas à propriedade, p<strong>os</strong>se e uso da terra; resolver <strong>os</strong> problemas de imissão de<br />

p<strong>os</strong>se; agilizar <strong>os</strong> process<strong>os</strong>; garantir as desapropriações. Ressalte-se que apenas 1,4%<br />

indicaram como atribuição da Justiça Agrária tratar especificamente as questões fundiárias ou<br />

julgar <strong>os</strong> crimes cometid<strong>os</strong> por latifundiári<strong>os</strong> contra p<strong>os</strong>seir<strong>os</strong>.<br />

Brancolina Ferreira e João Gabriel Teixeira (1989), comparando <strong>os</strong> dad<strong>os</strong> coletad<strong>os</strong> na<br />

pesquisa com <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Assembléia Nacional Constituinte, concluem<br />

que, apesar de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> parlamentares se declararem, em princípio, a favor da reforma agrária<br />

ou de alterações na estrutura fundiária do País, as matérias legislativas relativas ao tema nunca<br />

conseguiram <strong>um</strong> apoio massivo e inequívoco necessário à sua aprovação e implementação.<br />

Ferreira e Teixeira explicam que <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> obtid<strong>os</strong> na Constituinte representam <strong>um</strong><br />

178 Foram admitidas múltiplas resp<strong>os</strong>tas.<br />

184


etrocesso frente ao Estatuto da Terra. Para <strong>os</strong> autores, foi a cisão interna do PMDB que<br />

permitiu, no final d<strong>os</strong> vot<strong>os</strong>, que tal retrocesso acontecesse, ao fornecer grande parcela d<strong>os</strong><br />

constituintes que aderiram às p<strong>os</strong>ições conservadoras do “Centrão”, orquestradas pela UDR.<br />

Estimam<strong>os</strong> que o vigor da questão agrária atinge tal crucialidade e<br />

veemência porque põe em jogo o princípio do direito de propriedade,<br />

exercido nas bases que sempre nortearam o desenvolvimento brasileiro,<br />

desde a ocupação colonial até a modernização contemporânea, onde o fator<br />

novo de relevância foi o grau de organicidade na articulação do discurso,<br />

interesses e representantes d<strong>os</strong> proprietári<strong>os</strong> rurais no Congresso Nacional.<br />

Mais <strong>um</strong>a vez tudo se passou como se afinal de contas tudo não passasse de<br />

<strong>um</strong>a “questão de p<strong>os</strong>se” e nenh<strong>um</strong>a demanda [...]. (FERREIRA &<br />

TEIXEIRA, 1989, p. 38).<br />

Cesar Caldeira (1987) identifica <strong>um</strong> perfil liberal conservador no Congresso<br />

Constituinte eleito em 1986. Segundo Caldeira (1987, p. 3), “avaliações eleitorais iniciais<br />

afirmam que a Constituinte eleita é majoritariamente comp<strong>os</strong>ta de congressistas de orientação<br />

política ideológica liberal-conservadora”. Contudo, o autor adverte para o fato de que<br />

Como <strong>os</strong> resultad<strong>os</strong> eleitorais não foram, neste início de janeiro de 1987,<br />

analisad<strong>os</strong> ainda com a profundidade necessária [...] a constatação já feita é<br />

insuficiente para avançar qualquer previsão mais detalhada <strong>sobre</strong> o conteúdo<br />

da próxima Carta. Por <strong>um</strong> lado, interesses liberais-conservadores devem ser<br />

predominantemente assegurad<strong>os</strong> no texto final porque bastam <strong>os</strong> vot<strong>os</strong> de<br />

metade mais <strong>um</strong> d<strong>os</strong> 559 constituintes (487 deputad<strong>os</strong> federais e 72<br />

senadores, inclusive <strong>os</strong> 23 senadores eleit<strong>os</strong> em 1982) express<strong>os</strong> em dois<br />

turn<strong>os</strong> de discussão e votação. Mas, por outro lado, o processo de redação,<br />

discussão e votação das normas constitucionais é bastante complexo e está<br />

sujeito a pressões e contrapressões exercidas <strong>sobre</strong> as lideranças partidárias,<br />

relatores das comissões e congressistas por facções ou tendências d<strong>os</strong><br />

partid<strong>os</strong> e grup<strong>os</strong> organizad<strong>os</strong> (“lobbies”, em particular). Assim, a<br />

comp<strong>os</strong>ição da Constituinte permanece <strong>um</strong> importante fator condicionante<br />

para seu desempenho. Mas não é o único. O nível de crise econômica e<br />

política existente durante a feitura da Constituição e as oportunidades de<br />

participação popular que sejam criadas também influirão na agenda d<strong>os</strong><br />

<strong>debates</strong> e no sentido das decisões da Constituinte. (CALDEIRA, 1987, p. 3)<br />

Por fim, cabe mencionar o discurso de Cândido Mendes <strong>sobre</strong> o direito de resistência.<br />

Em 24 de abril de 1987, na 8ª Reunião e 2ª Reunião de Audiência Pública, da Comissão da<br />

185


Soberania e d<strong>os</strong> Direit<strong>os</strong> e Garantias do Homem e da Mulher (Comissão I), Subcomissão d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais (Subcomissão Ic), foi convidado, pelo Presidente da<br />

Subcomissão, Antonio Mariz, para falar <strong>sobre</strong> “Os nov<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>”.<br />

O tema surge a partir de <strong>um</strong> questionamento feito pelo Constituinte Luiz Alberto<br />

Maguito Vilela (PMDB/GO) <strong>acerca</strong> do linchamento. Em resp<strong>os</strong>ta, Cândido Mendes afirma:<br />

No que se refere ao linchamento, o que n<strong>os</strong> parece é que a matéria<br />

dificilmente irá, nesta colocação, encontrar <strong>um</strong> tratamento técnico dentro d<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> individuais. Enfrentam<strong>os</strong> o problema na Comissão Afonso Arin<strong>os</strong>,<br />

quando discutim<strong>os</strong> <strong>um</strong> direito que está na Constituição portuguesa, e que<br />

certamente <strong>os</strong> Srs. Constituintes terão diante de si, que é o chamado direito<br />

de resistência. Quer dizer, que capacidade tem a sociedade de fazer justiça<br />

com as próprias mã<strong>os</strong>? Esse é outro aspecto dessa colocação. Só <strong>um</strong>a<br />

Constituição moderna chegou, depois do período de ditadura, a esse<br />

ponto do direito de resistência, que inclusive é <strong>um</strong>a outra grave<br />

responsabilidade desta Comissão. Ele será o constitutivo da defesa, por<br />

exemplo, d<strong>os</strong> sem terra. Pergunta-se: o direito de resistência, permitindo a<br />

imediação de determinadas relações de integridade física ou até de inserção<br />

n<strong>um</strong> espaço jurídico, pode, de fato, ser compatibilizado com o Estado de<br />

Direito? [...] Não vejo como se pode tratar dessa definição dentro d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> e Garantias Individuais. Qual seria o direito contra o linchamento?<br />

É difícil articulá-lo dentro do ponto de vista jurídico. Qual seria o direito ao<br />

linchamento? Esse direito não existe, mas o mais próximo dele, e, no<br />

caso, o contrário do que se está aqui querendo defender, seria o direito<br />

de resistência ou de imediação, já colocado dentro dessa linha. Eu<br />

entendo, portanto, a importância da sua colocação, mas dentro desse outro<br />

aspecto. Não vejo o linchamento dentro de <strong>um</strong> tratamento constitucional.<br />

Como problema de defesa incontinente de determinad<strong>os</strong> tip<strong>os</strong> de<br />

manifestação da pessoa, ele tem que ser defendido dentro do quadro do<br />

direito de resistência. Aliás, espero que esta Subcomissão tenha a coragem –<br />

a Comissão Afonso Arin<strong>os</strong> não chegou a isto – de estudar de fato esse direito<br />

e, talvez, ver como ele foi aprovado na Constituição portuguesa que veio da<br />

Revolução d<strong>os</strong> Crav<strong>os</strong>. De maneira que veio de <strong>um</strong> outro quadro. Acho que<br />

amanhã terem<strong>os</strong> problemas, por exemplo, como a invasão de terras,<br />

como <strong>os</strong> que caracterizam <strong>um</strong>a das mais dramáticas e impressionantes<br />

fotografias que já vi na minha vida, ligada ao problema de justiça e paz,<br />

estampada em “O Globo” de hoje – não sei se V. Exa. Já tiveram<br />

oportunidade de ver – m<strong>os</strong>trando <strong>os</strong> sabres desembainhad<strong>os</strong> da cavalhada<br />

policial investindo contra p<strong>os</strong>seir<strong>os</strong>. É <strong>um</strong>a fotografia que deve fazer com<br />

que reflitam<strong>os</strong>. E tenho a impressão de que é <strong>um</strong>a das vinhetas do que ainda<br />

é <strong>um</strong> problema dramático: direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>. Parece <strong>um</strong>a fotografia do<br />

Encouraçado Potenquim, parece <strong>um</strong>a fotografia ligada ao período czarista.<br />

[grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]. 179<br />

179 Diário da Assembléia Nacional Constituinte. Ano I, nº 66, Suplemento. Brasília – DF, 27 de maio de 1987, p.<br />

70. (ANEXO VII)<br />

186


O discurso de Cândido Mendes demonstra claramente seu desprezo pelo direito de<br />

resistência. Contudo, seus arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> são de difícil compreensão, por alguns motiv<strong>os</strong>.<br />

Em primeiro lugar, o exp<strong>os</strong>itor compara o direito de resistência a <strong>um</strong> sup<strong>os</strong>to “direito<br />

de linchamento”. Ora, a resistência não se confunde com o linchamento. Este último termo se<br />

relaciona com <strong>um</strong>a atitude violenta, no sentido de fazer justiça com as próprias mã<strong>os</strong> e contra<br />

qualquer pessoa. A resistência, como vim<strong>os</strong>, comporta <strong>um</strong>a série de variações, não<br />

necessariamente de caráter violento. Ademais, se volta contra as arbitrariedades do poder<br />

político.<br />

Por outro lado, embora seja <strong>um</strong> defensor d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>, o que fica claro,<br />

inclusive, na sua biografia e na sua bibliografia, seu p<strong>os</strong>icionamento <strong>acerca</strong> das invasões de<br />

terra é contraditório. Em <strong>um</strong> primeiro momento, critica o MST. Ao final do seu discurso,<br />

parece criticar a investida d<strong>os</strong> policiais contra p<strong>os</strong>seir<strong>os</strong>. E dizem<strong>os</strong> que parece porque,<br />

quando Mendes utiliza a metáfora do Encouraçado Potenquim, não fica claro se ele se opõe,<br />

de fato, a investida d<strong>os</strong> policiais contra <strong>os</strong> p<strong>os</strong>seir<strong>os</strong> ou à atitude de desobediência/resistência<br />

ocorrida no episódio do Encouraçado. A metáfora se torna de difícil compreensão na medida<br />

em que, inicialmente, sua estratégia é de repúdio a<strong>os</strong> Sem-Terra.<br />

Para compreenderm<strong>os</strong> a questão d<strong>os</strong> Sem-Terra na segunda metade da década de 80,<br />

apresentarem<strong>os</strong>, a título exemplificativo, <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento contemporâneo ao período da<br />

Constituinte. Nele, a Secretara Nacional do MST explica o que é o Movimento d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores Rurais Sem-Terra.<br />

187<br />

O Movimento d<strong>os</strong> Sem-Terra é <strong>um</strong>a forma d<strong>os</strong> trabalhadores rurais sem terra<br />

se organizarem na base, dentro do sindicalismo para conquistarem seus<br />

direit<strong>os</strong> específic<strong>os</strong> de terra para trabalhar. As origens do movimento estão<br />

nas lutas pela conquista da terra que começaram a surgir no final da década<br />

de 70 em toda a região Sul [...]. N<strong>um</strong> primeiro momento, houve <strong>um</strong>a<br />

aproximação das várias lutas, com troca de experiências e de idéias. Desse<br />

processo de troca de experiências o amadurecimento das formas de se<br />

organizarem, a partir da luta concreta d<strong>os</strong> trabalhadores, é que foi surgindo o<br />

jeito do movimento se organizar em todo Sul, e depois se ampliar para vári<strong>os</strong>


Estad<strong>os</strong>. O princípio básico do Movimento é de que <strong>os</strong> própri<strong>os</strong> sem-terra é<br />

que devem-se organizar para poderem conquistar a terra. [...] O Movimento<br />

passou a se caracterizar como <strong>um</strong>a articulação nacional, basicamente a partir<br />

do Primeiro Congresso Nacional realizado em Curitiba (janeiro de 1985),<br />

embora as articulações regionais já vinham desde 1983. E atualmente quinze<br />

Estad<strong>os</strong> estão organizando <strong>os</strong> trabalhadores sem-terra, na base, e estão<br />

articulad<strong>os</strong> Durante estes an<strong>os</strong> tod<strong>os</strong>, as principais formas de pressão e de<br />

luta variaram de acordo com as realidades locais e regionais, mas <strong>os</strong><br />

trabalhadores rurais experimentaram, desde fazer cartas às autoridades<br />

estaduais e federais e audiências, até passeatas, concentrações, “Romarias da<br />

Terra”, culminando com o último recurso da luta, que tem sido <strong>os</strong><br />

acampament<strong>os</strong> nas beiras de estradas e fazendas e as ocupações de terras<br />

improdutivas. Nesse período já foram conquistadas mais de oitenta fazendas,<br />

que ultrapassam a 150 mil hectares, n<strong>os</strong> doze Estad<strong>os</strong> onde o movimento<br />

está organizado há mais tempo. E existem atualmente cerca de sessenta e três<br />

acampament<strong>os</strong> de sem-terra, em seis Estad<strong>os</strong>, que reúnem mais de 15 mil<br />

famílias, as quais apesar de todo sofrimento e penúria, resistem a todo tipo<br />

de provocação e repressão, por parte d<strong>os</strong> latifundiári<strong>os</strong> e d<strong>os</strong> govern<strong>os</strong><br />

estaduais, n<strong>um</strong>a última forma desesperadora de exigir que o governo c<strong>um</strong>pra<br />

com a legislação, c<strong>um</strong>pra com suas promessas demagógicas, feitas no Plano<br />

Nacional de Reforma Agrária, de assentar durante 1986 a 150 mil famílias,<br />

sendo que atualmente conseguiu assentar provisoriamente a apenas 5 mil<br />

famílias. [...] Desta forma esperam<strong>os</strong> contribuir para conscientizar e<br />

organizar o maior número p<strong>os</strong>sível de trabalhadores sem terra, e,<br />

organizad<strong>os</strong>, lutar pela realização de <strong>um</strong>a ampla Reforma Agrária, que<br />

represente justiça social no campo e, <strong>sobre</strong>tudo, soluções para muit<strong>os</strong><br />

problemas de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> trabalhadores brasileir<strong>os</strong>, como a fome, o<br />

desemprego, o êxodo rural e a marginalidade. E para isso dizem<strong>os</strong>: “Terra<br />

não se ganha, se conquista!” [grifo no original] 180<br />

O doc<strong>um</strong>ento supracitado demonstra como, no período da Constituinte, o MST estava<br />

adquirindo <strong>um</strong>a maior força organizacional e se expandindo pelo País, envolvendo <strong>um</strong><br />

número cada vez maior de pessoas. A noção de que <strong>os</strong> Sem-Terra “resistem” e a defesa de<br />

que “terra não se ganha, se conquista” – ambas presentes na passagem acima – contribuíram,<br />

certamente, para a rejeição da noção de direito de resistência, bem como para a sua vinculação<br />

à idéia de luta, em especial à luta pela terra.<br />

A partir da totalidade do discurso proferido em audiência pública por Cândido<br />

Mendes, não é p<strong>os</strong>sível fazerm<strong>os</strong> <strong>um</strong>a análise de sua manifestação <strong>sobre</strong> o tema específico do<br />

direito de resistência. Dessa forma, procurarem<strong>os</strong> compreender alg<strong>um</strong>as questões levantadas<br />

180 Doc<strong>um</strong>ento da Secretaria Nacional do MST - Movimento d<strong>os</strong> Trabalhadores Rurais Sem-Terra, intitulado “O<br />

que é o Movimento d<strong>os</strong> Trabalhadores Rurais Sem-Terra?”. Cf. CENTRO ECUMÊNICO DE<br />

DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO. D<strong>os</strong>siê Constituinte II. As grandes questões nacionais e as<br />

prop<strong>os</strong>tas populares. São Paulo: CEDI, 1987, p. 95.<br />

188


pelo exp<strong>os</strong>itor na passagem acima a partir de sua obra intitulada A Inconfidência Brasileira: a<br />

nova cidadania interpela a Constituinte, datada de 1986. Nessa obra, o autor tem como<br />

objetivo “refletir” <strong>sobre</strong> o empenho da Comissão Provisória de Estud<strong>os</strong> Constitucionais – a<br />

Comissão Afonso Arin<strong>os</strong> – em analisar as expectativas da sociedade brasileira, com o fim de<br />

incorporá-las ao projeto de Constituição. Percebe-se que Cândido Mendes tem, aqui, <strong>um</strong>a<br />

visão bastante p<strong>os</strong>itiva do trabalho da “Comissão de Notáveis”, entendendo que ela estaria, de<br />

fato, sendo sensível às exigências da sociedade brasileira.<br />

Contudo, se, por <strong>um</strong> lado, Mendes (1986, pp. II-III) compreende que “por detrás d<strong>os</strong><br />

intelectuais, ai estão as pegadas de <strong>um</strong> questionamento popular sem precedentes”, mais<br />

adiante dá <strong>um</strong>a declaração que sugere <strong>um</strong>a organização da sociedade pelo alto: “não<br />

tínham<strong>os</strong>, ainda, na n<strong>os</strong>sa cultura política, esse cenário novo a preparar a reflexão<br />

constitucional: o de <strong>um</strong>a inteligência à busca de <strong>um</strong> modelo ideal que defina, na sua<br />

coerência, o que pode ser <strong>um</strong>a nova Carta Magna”.<br />

Em seu livro, Cândido Mendes enfatiza especialmente o tema d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>.<br />

Constantemente, faz menção às constituições européias e à constituição norte-americana.<br />

Ademais, realiza diversas incursões no campo do direito internacional. Embora o tema d<strong>os</strong><br />

direit<strong>os</strong> sociais também seja abordado na obra, o autor demonstra <strong>um</strong>a clara preferência por<br />

trabalhar com a questão d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> individuais, que prevalece em todo o seu texto.<br />

Um ponto a ser considerado no discurso de Cândido Mendes é a crítica ao direito de<br />

resistência com o arg<strong>um</strong>ento de que este serviria de defesa para as ações d<strong>os</strong> sem-terra. O<br />

exp<strong>os</strong>itor procura ressaltar o problema das invasões de terra. Aparentemente, o locutor da<br />

mensagem não aprova “manifestações de resistência”. Todavia, esse p<strong>os</strong>icionamento não se<br />

combina com a declaração feita na Inconfidência Brasileira, na qual Mendes critica a<br />

passividade existente na cultura brasileira. Ressalte-se, novamente, que o texto é<br />

contemporâneo ao período da Constituinte.<br />

189


Não fazem parte da cultura cívica brasileira o grande protesto público, a<br />

penetração da greve, a vigilância <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> mandat<strong>os</strong> populares, o vigor da<br />

reação ao abuso quotidiano em que o Estado se impõe à sociedade e a<br />

burocracia à maquina pública. Não está na vinheta do n<strong>os</strong>so passado este<br />

perfil clássico das sociedades democráticas, à flor da sua vida urbana: o<br />

protesto nas calçadas norte-americanas contra o abuso das lojas, de<br />

preço ou de lesão de qualidade, ou contra a dispensa injusta de<br />

empregad<strong>os</strong>. Toda esta resistência, artesanal e imediata nas suas faixas,<br />

assobi<strong>os</strong> e megafones, planta na rua a pronta reação da cidadania ao que vê<br />

como agravo a seus direit<strong>os</strong>. É de agora o n<strong>os</strong>so mesmo acordar, do piquete<br />

tímido à grande praça das “diretas já” manifestando a reivindicação coletiva<br />

e imediata, por <strong>sobre</strong> todo o interesse polarizado. E tal reivindicação se<br />

estende da defesa do cons<strong>um</strong>idor à do meio ambiente e da paisagem natural<br />

ou histórica. Mas, para chegar a esse nível de refinamento e combatividade<br />

públic<strong>os</strong>, há que atentar, de saída, a como estam<strong>os</strong> ainda nas precondições<br />

para tal desempenho. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (MENDES, 1986, pp. X)<br />

A partir da passagem acima, e correlacionando-a com o discurso proferido pelo<br />

professor na Constituinte, podem<strong>os</strong> n<strong>os</strong> indagar se a “resistência” que Cândido Mendes<br />

defende em seu livro seria apenas aquela que beneficiaria <strong>os</strong> cons<strong>um</strong>idores lesad<strong>os</strong>. Ou seja,<br />

<strong>um</strong>a resistência que só poderia ser exercida pel<strong>os</strong> p<strong>os</strong>suidores, e não pel<strong>os</strong> desp<strong>os</strong>suíd<strong>os</strong>.<br />

Cândido Mendes (1986, p. X) ainda observa que “mantemo-n<strong>os</strong> pres<strong>os</strong> a este círculo<br />

de giz imaginário, de que é preciso regulamentar primeiro para exigir depois”. Nesta<br />

declaração, parece que Mendes concorda com a luta por direit<strong>os</strong> ainda não institucionalizad<strong>os</strong>.<br />

Continua-se a temer a reunião em praça pública. Ao mesmo tempo, não<br />

se dá a devida amplitude ao direito de greve, reconhecendo-se o seu<br />

exercício como auto-responsabilidade já de verdadeiras classes sociais<br />

emergentes no país. A Constituição guarda ainda a cautela obsoleta de<br />

que o povo só se p<strong>os</strong>sa reunir “sem armas”. Não passou ao texto ainda o<br />

peso da presença popular gigantesca de 1984, municiada nas praças tão-só<br />

do espetáculo da mobilização ordeira e disciplinada. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]<br />

(MENDES, 1986, p. XI).<br />

Na passagem acima Mendes ironiza o “medo” em relação às reuniões em praça<br />

pública. A ironia se estende, inclusive, à norma constitucional que dispõe no sentido de que<br />

somente é p<strong>os</strong>sível a reunião pacífica, “sem armas”. Ora, as declarações acima são totalmente<br />

190


contraditórias com o discurso do professor na Constituinte, no qual ele condena as invasões<br />

de terra em razão da sup<strong>os</strong>ta violência a que esta levaria.<br />

Falando <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> “primeir<strong>os</strong> socorr<strong>os</strong> a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong>”, Cândido Mendes (1986,<br />

pp. XII-XIII) fala <strong>sobre</strong> a importância das garantias individuais, relacionando-as com a<br />

expressão “espaço da pessoa”.<br />

Deparam<strong>os</strong> com <strong>um</strong>a verdadeira tarefa de primeir<strong>os</strong> socorr<strong>os</strong> metodológic<strong>os</strong><br />

à Declaração de Direit<strong>os</strong> e com a necessidade de arr<strong>um</strong>ar a casa, nesse<br />

discurso, a partir do que é primordial, d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> fundamentais, aqueles que<br />

radicam da manifestação imediata da pessoa em seus quatro pont<strong>os</strong><br />

cardeais proclamad<strong>os</strong> pelo povo nas ruas durante a Revolução Francesa: a<br />

vida, a liberdade, a associação e a propriedade. Não se precisaria ir, hoje,<br />

a<strong>os</strong> model<strong>os</strong> socialistas, para reconhecer o quanto aquela última prerrogativa<br />

já se vê intrinsecamente ligada à sua função social. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>]<br />

(MENDES, 1986, p. XIII)<br />

Conforme já foi dito, Cândido Mendes atribui enorme importância a<strong>os</strong> direit<strong>os</strong><br />

individuais. Em tópico que trata especificamente <strong>sobre</strong> o tema, faz referencia à Constituição<br />

Norte-Americana, às declarações básicas e subseqüentes à Revolução Francesa – em especial<br />

às de 1791 e de 1793 – e às Declarações de Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong> de 1948 e de 1966. O autor<br />

sugere <strong>um</strong> rol extenso de direit<strong>os</strong> individuais, que se enquadrariam em quatro grandes temas:<br />

(1) dignidade e preservação da vida; (2) liberdade; (3) “vida de relação” e (4) direit<strong>os</strong> de<br />

propriedade. Pode-se perceber que a propriedade constitui <strong>um</strong> eixo fundamental na prop<strong>os</strong>ta<br />

do professor. Embora ele faça menção à função social da propriedade em sua obra, o tema não<br />

recebe <strong>um</strong> tratamento adequado, embora f<strong>os</strong>se <strong>um</strong> assunto em pauta no contexto no qual o<br />

livro foi escrito. Além da superficialidade, é p<strong>os</strong>sível observarm<strong>os</strong> <strong>um</strong>a certa trivialidade no<br />

tratamento do tema. Mendes parte da noção de que a função social já seria <strong>um</strong> pressup<strong>os</strong>to<br />

implícito na idéia de propriedade. Ora, tratar da função social da propriedade como <strong>um</strong>a coisa<br />

óbvia, longe de ser <strong>um</strong>a defesa desse principio, constitui apenas <strong>um</strong>a justificativa para não<br />

aprofundar o debate <strong>sobre</strong> essa questão. Na verdade, trata-se de <strong>um</strong>a evasiva.<br />

191


Podem<strong>os</strong> observar, enfim, que tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> apresentad<strong>os</strong> no presente tópico se<br />

aproximam em relação a questões como o direito de propriedade, a reforma agrária, as<br />

invasões urbanas e rurais e o movimento d<strong>os</strong> sem-terra.<br />

A partir das informações levantadas n<strong>os</strong> discurs<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o direito de resistência na<br />

Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988, elaborarem<strong>os</strong> alg<strong>um</strong>as hipótese que servirão<br />

de base para <strong>um</strong> trabalho futuro.<br />

CONCLUSÃO OU DE LIBERAL A SOCIAL: ALGUMAS HIPÓTESES<br />

Obedecer cegamente n<strong>os</strong> torna ceg<strong>os</strong>. Crescem<strong>os</strong><br />

somente na ousadia.<br />

(Mario Benedetti)<br />

192


O direito de resistência pode ser caracterizado como <strong>um</strong> direito liberal, fruto do<br />

pensamento moderno e contemporâneo às Revoluções Burguesas do século XVIII. Mesmo<br />

em n<strong>os</strong>so País, podem<strong>os</strong> observar que <strong>os</strong> pouc<strong>os</strong> autores que trabalharam com o tema<br />

reproduziram as teorias liberais contratualistas.<br />

Os discurs<strong>os</strong> <strong>sobre</strong> o direito de resistência na Assembléia Nacional Constituinte de<br />

1987/1988, contudo, n<strong>os</strong> chamam atenção em virtude de alg<strong>um</strong>as peculiaridades. Em primeiro<br />

lugar, pelo fato de ter sido o referido direito apresentado no Projeto de Constituição de <strong>um</strong><br />

partido de esquerda, tendo sido defendido por meio de arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> de cunho liberal. Ademais,<br />

durante <strong>os</strong> <strong>debates</strong> da Assembléia, o direito de resistência <strong>os</strong>cilou entre <strong>um</strong>a perspectiva<br />

liberal e <strong>um</strong>a perspectiva social. Nesta última visão, o enfoque recaiu na questão das<br />

“invasões” de terras.<br />

A partir dessas constatações, podem<strong>os</strong> levantar alg<strong>um</strong>as hipóteses. O período no qual a<br />

Assembléia Nacional Constituinte se reuniu pode ser caracterizado por <strong>um</strong>a demanda social –<br />

invasões de terra – bem como <strong>um</strong>a demanda normativa – promessa de <strong>um</strong>a Constituição<br />

“social” – em favor da reforma agrária. A partir desses fatores, podem<strong>os</strong> tentar compreender a<br />

razão pela qual o direito de resistência <strong>os</strong>cilou entre, por <strong>um</strong> lado, <strong>um</strong>a visão liberal e, por<br />

outro, <strong>um</strong>a ótica social, se concentrando, neste último caso, na questão da luta pela terra.<br />

O <strong>estudo</strong> pode partir de dois pont<strong>os</strong> de vistas distint<strong>os</strong>: o daqueles que foram a favor e<br />

o daqueles que foram contra a inclusão do direito de resistência na Constituição. Para <strong>os</strong> que<br />

defenderam, talvez se tratasse de <strong>um</strong>a estratégia normativa, no sentido de tentar encontrar<br />

alg<strong>um</strong>a brecha para que a questão das reformas agrária e urbana entrasse na Constituição de<br />

1988. Por outro lado, aqueles que rejeitaram a resistência poderiam estar tentando impedir<br />

qualquer norma que pudesse, de alg<strong>um</strong>a forma, garantir tais reformas.<br />

Ressalte-se que a questão da terra (urbana e rural) não constituiu o n<strong>os</strong>so objeto de<br />

<strong>estudo</strong> no presente trabalho. Portanto, qualquer formulação a esse respeito ficará apenas no<br />

193


campo hipotético, podendo servir somente de orientação para <strong>um</strong> futuro trabalho. Contudo,<br />

alguns doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> e obras da década de 80 demonstram como este era <strong>um</strong> assunto crucial<br />

naquele momento.<br />

Em texto datado de 1986, ou seja, localizado em período imediatamente anterior ao de<br />

instalação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988, Marilena Chauí aborda o tema<br />

da luta pela terra, a partir de <strong>um</strong>a perspectiva de luta armada.<br />

Fala-se em luta armada no Brasil. Existe efetivamente <strong>um</strong>a luta armada,<br />

secreta, infindável, no Brasil: a luta pela terra, forçando <strong>os</strong> sem-terra, <strong>os</strong><br />

p<strong>os</strong>seir<strong>os</strong> e <strong>os</strong> bóias-frias a responder pelas armas ao ataque armado de<br />

latifundiári<strong>os</strong> que contratam mercenári<strong>os</strong> para tocaiar, torturar e assassinar<br />

lideranças rurais; famílias inteiras e a violação cotidiana d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong><br />

h<strong>um</strong>an<strong>os</strong> – fome, desemprego, mortalidade, analfabetismo, ausência de<br />

moradia, de assistência à saúde – e d<strong>os</strong> direit<strong>os</strong> civis – legislação trabalhista<br />

de estilo fascista, censura, Lei de Segurança Nacional, Justiça Militar, tortura<br />

de pres<strong>os</strong> comuns, encarceramento e tortura de crianças – violação que é<br />

expressão institucionalizada da luta de classes n<strong>um</strong>a sociedade autoritária<br />

como a brasileira. O mais grave é que essa luta armada, cuja iniciativa<br />

parte d<strong>os</strong> dominantes, é apresentada perante a opinião pública como<br />

iniciativa das classes populares, que são, assim, criminalizadas e<br />

estigmatizadas como violentas. A conseqüência dessa situação é dupla: por<br />

<strong>um</strong> lado, leva a supor que a política é esfera reservada à classe dominante<br />

para resolver seus conflit<strong>os</strong> intern<strong>os</strong>, excluindo dessa esfera as classes<br />

populares, destinadas ao puro uso da força; por outro lado, permite a<strong>os</strong><br />

dominantes definir <strong>os</strong> trabalhadores, em geral, e as classes populares, no seu<br />

todo, como imatur<strong>os</strong> incapazes de prática política, reduzindo-lhes a<br />

cidadania à representação indireta por meio de partid<strong>os</strong> polític<strong>os</strong><br />

clientelístic<strong>os</strong> ou populistas. [grif<strong>os</strong> n<strong>os</strong>s<strong>os</strong>] (CHAUÍ, 1986, pp. 64-65).<br />

Na passagem acima podem<strong>os</strong> verificar que a luta pela terra é trabalhada sob a ótica da<br />

luta de classes, na qual estariam em op<strong>os</strong>ição a “classe dominante” e as “classes populares”.<br />

Em doc<strong>um</strong>ento já mencionado anteriormente, assinado em 10 de fevereiro de 1980<br />

pela Comissão Nacional Provisória do Movimento Pró-PT, foi sugerido pelo Partido <strong>um</strong><br />

“programa para a sociedade”, que foi dividido em seis partes intituladas da seguinte forma: a<br />

questão econômica, a questão do Estado, a questão nacional, a questão agrária, a questão<br />

social e a questão internacional. Podem<strong>os</strong> perceber que a questão agrária – tema que n<strong>os</strong><br />

interessa mais especificamente – já estava presente na pauta de discussão do Partido d<strong>os</strong><br />

194


Trabalhadores desde o seu nascimento. 181 P<strong>os</strong>teriormente, no “Programa do Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores”, aprovado em junho de 1980, também foi feita a defesa de <strong>um</strong>a política<br />

agrária. 182 No “Plano de Ação do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores” – parte integrante deste último<br />

doc<strong>um</strong>ento – consta, inclusive, <strong>um</strong> tópico intitulado “a questão agrária”. 183<br />

Sendo a questão agrária <strong>um</strong> tema constate n<strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> do Partido d<strong>os</strong><br />

Trabalhadores, é p<strong>os</strong>sível compreenderm<strong>os</strong> a rejeição da prop<strong>os</strong>ta do PT de inclusão do<br />

direito de resistência no texto constitucional também a partir deste aspecto. Embora no<br />

discurso de J<strong>os</strong>é Genoino a questão da terra não tenha aparecido, <strong>os</strong> doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> do PT <strong>sobre</strong><br />

o tema, além do p<strong>os</strong>icionamento do constituinte petista em favor de <strong>um</strong>a reforma agrária<br />

radical – conforme consta em sua biografia –, denunciavam a opinião do Partido e de seu<br />

181 No doc<strong>um</strong>ento consta a seguinte orientação: “Como n<strong>os</strong> demais pont<strong>os</strong> do programa, deve-se levar em conta<br />

as lutas e aspirações concretas d<strong>os</strong> trabalhadores do campo, sejam eles assalariad<strong>os</strong> ou pequen<strong>os</strong> produtores. O<br />

programa do PT deve firmar o compromisso de apoiar as lutas imediatas, bem como o de lutar pelo direito de<br />

organização e expressão, tanto sindical quanto política, d<strong>os</strong> trabalhadores rurais. Ao mesmo tempo, deve-se<br />

deixar clara a identidade de interesses (a não apenas ‘aliança’) entre trabalhadores urban<strong>os</strong> e rurais. Deve<br />

deixar claro que o PT combaterá todas as políticas de discriminação que se fazem contra <strong>os</strong> trabalhadores rurais<br />

a pretexto de combater o ‘êxodo rural’. Os itens que se seguem são apenas sugestões para o debate inicial”.<br />

[grifo no original] As medidas específicas defendidas pelo Partido englobam: “[...] – apoio a<strong>os</strong> p<strong>os</strong>seir<strong>os</strong> contra<br />

toda e qualquer tentativa de desalojá-l<strong>os</strong>; – combate à especulação com terras; condicionamento do direito de<br />

p<strong>os</strong>se à exploração efetiva; – proibição de cessão de terras públicas, a título gratuito ou por preço simbólico, às<br />

grandes empresas agro-pecuárias; – controle social d<strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> públic<strong>os</strong> utilizad<strong>os</strong> na agropecuária de forma a<br />

evitar que eles continuem a servir apenas para sustentar lucr<strong>os</strong> parasitári<strong>os</strong> das grandes empresas; – controle<br />

social de crédito rural, para garantir sua destinação social; – controle da atuação das empresas que comercializam<br />

equipament<strong>os</strong> e ins<strong>um</strong><strong>os</strong> agrícolas”. Doc<strong>um</strong>ento da “Comissão Nacional Provisória do Movimento Pró-PT”,<br />

assinado em São Paulo, em 10 de fevereiro de 1980. Cf. PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED,<br />

1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), pp. 98-99.<br />

182 “O PT defenderá <strong>um</strong>a política agrária que objetive o fim da atual estrutura fundiária. Esta estrutura é pautada<br />

na grande empresa capitalista e n<strong>os</strong> latifúndi<strong>os</strong>, que mantém as terras improdutivas que servem à especulação<br />

imobiliária. Combaterá também o fim da expropriação das terras pelas grandes empresas nacionais e estrangeiras<br />

e incrementará a luta pela nacionalização da terra, permitindo, assim, o aproveitamento d<strong>os</strong> recurs<strong>os</strong> h<strong>um</strong>an<strong>os</strong> e<br />

das potencialidades econômicas existentes no solo e no sub-solo, segundo <strong>os</strong> interesses d<strong>os</strong> trabalhadores rurais e<br />

do conjunto da sociedade brasileira. O PT defenderá ainda a exploração imediata de toda terra disponível,<br />

inclusive a que é de responsabilidade do Estado – as terras devolutas, as terras do INCRA e as terras da faixa de<br />

fronteira – que deverão ser usadas pel<strong>os</strong> trabalhadores sem terra, ocupando-as permanentemente, de maneira a<br />

que sejam atendid<strong>os</strong> <strong>os</strong> seus interesses e as suas necessidades. Mas para o PT não basta a simples distribuição da<br />

terra. Como exigência fundamental para o êxito dessa nova política agrária p<strong>os</strong>tula a criação de instr<strong>um</strong>ent<strong>os</strong><br />

econômic<strong>os</strong> e financeir<strong>os</strong> como forma de apoio indispensável à exploração da terra, segundo as peculiaridades<br />

geográficas e h<strong>um</strong>anas regionais”. – “Programa do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores”, aprovado no Congresso de Junho<br />

de 1980. Cf. PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11.<br />

Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), p. 110.<br />

183 O “Plano de Ação” incluía, dentre outras medidas: “Reforma agrária ampla, massiva e sob o controle d<strong>os</strong><br />

trabalhadores. – Luta pela p<strong>os</strong>se da terra a quem nela trabalha ou a quem dela foi expulso. – Apoio às lutas d<strong>os</strong><br />

assalariad<strong>os</strong> rurais, em especial d<strong>os</strong> trabalhadores temporári<strong>os</strong>. – Igualdade de direit<strong>os</strong> a tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> trabalhadores<br />

rurais, sem distinção de sexo e idade. – Garantia de renda mínima justa para <strong>os</strong> pequen<strong>os</strong> produtores.” –<br />

“Programa do Partido d<strong>os</strong> Trabalhadores”, aprovado no Congresso de Junho de 1980. Cf. PEDROSA, Mário.<br />

Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980. (Coleção Polêmicas Operárias, nº 11. Série doc<strong>um</strong>ent<strong>os</strong>, nº 2), pp. 115-<br />

116.<br />

195


parlamentar. Se correlacionarm<strong>os</strong> esse fator com a derrota da reforma agrária na Constituinte,<br />

e com o perfil d<strong>os</strong> membr<strong>os</strong> da ANC, podem<strong>os</strong> crer que a questão da terra foi <strong>um</strong> d<strong>os</strong> motiv<strong>os</strong><br />

que levaram <strong>os</strong> constituintes a rechaçarem o discurso de Genoíno <strong>sobre</strong> a resistência.<br />

No capítulo anterior, observam<strong>os</strong> que, embora a maioria d<strong>os</strong> parlamentares tenha se<br />

auto-definido como sendo de “centro”, suas opções <strong>acerca</strong> de temas pontuais demonstram o<br />

seu perfil mais “conservador”, ou mais à “direita”. No caso mais específico da reforma<br />

agrária, ressalte-se que ela não obteve êxito ao final d<strong>os</strong> trabalh<strong>os</strong> da Assembléia, não<br />

obstante sua grande aceitação pel<strong>os</strong> constituintes, em princípio.<br />

Esse comportamento contraditório fica bastante claro na passagem abaixo, na qual<br />

Alfredo B<strong>os</strong>i fala <strong>sobre</strong> o conservadorismo da burguesia agrária no Brasil.<br />

O resultado dessa extensão foi, e tem sido, a notória guinada conservadora<br />

que as burguesias agrárias operam sempre que alg<strong>um</strong>a sombra de ameaça se<br />

divisa no seu horizonte. Tem<strong>os</strong> exempl<strong>os</strong> bastantes de <strong>um</strong> discurso<br />

ultraliberal de direita para não estranharm<strong>os</strong> essa química. Ainda neste 1988,<br />

<strong>um</strong> líder do chamado “centrão” junto à Assembléia Nacional Constituinte<br />

jactava-se de ser reacionário em política, mas anárquico em economia:<br />

abaixo a interferência do Estado, tudo para a iniciativa privada! [grifo no<br />

original] (BOSI, 1992, p. 211).<br />

Em obra na qual J<strong>os</strong>é Gomes da Silva (1989, p. 14) “procura reunir as observações<br />

que acompanharam o dia-a-dia d<strong>os</strong> <strong>debates</strong> em torno da Reforma Agrária na Assembléia<br />

Nacional Constituinte” e que, segundo o autor, “pretende oferecer <strong>um</strong> retrato evolutivo de<br />

mais esta luta pela modificação do regime de p<strong>os</strong>se e uso da terra agrícola no Brasil”, a<br />

importância de <strong>um</strong>a legislação <strong>sobre</strong> a reforma agrária é enfatizada. 184<br />

184 Nas palavras do autor: “a Reforma Agrária (RA), pelas modificações que determina na estrutura da sociedade,<br />

exige respaldo legal no mais alto nível da ordenação jurídica do país onde é realizada. Essa a razão pela qual as<br />

constituições precisam ser devidamente adaptadas como <strong>um</strong> primeiro passo no desencadeamento do processo.<br />

Abrem, assim, o caminho para que leis complementares e ordinárias, decret<strong>os</strong>, portarias, instruções e toda a<br />

seqüência de disp<strong>os</strong>itiv<strong>os</strong> reguladores disponham <strong>sobre</strong> <strong>os</strong> detalhes que o processo agro-reformista deve<br />

obedecer.” (SILVA, 1989, p. 13)<br />

196


O autor, ao justificar a relevância de <strong>um</strong> <strong>estudo</strong> <strong>acerca</strong> da reforma agrária na<br />

Constituinte, n<strong>os</strong> fornece dad<strong>os</strong> que permitem concluir que se tratava de <strong>um</strong> assunto<br />

fundamental naquele momento.<br />

A iniciativa encontra plena justificativa não apenas na procedência jurídica<br />

das regras constitucionais, indispensáveis para permitir a realização de <strong>um</strong>a<br />

Reforma Agrária de verdade, como já dissem<strong>os</strong>, mas também pelo interesse<br />

que o tema despertou durante a Constituinte de 1987/88. Dois outr<strong>os</strong> fat<strong>os</strong><br />

m<strong>os</strong>tram a necessidade de trazer <strong>os</strong> detalhes desses aconteciment<strong>os</strong> até o<br />

grande público. Em primeiro lugar, foi o debate <strong>sobre</strong> Reforma Agrária o<br />

que despertou <strong>os</strong> mais séri<strong>os</strong> incidentes dentro e fora do recinto da ANC,<br />

envolvendo [...] escaramuças, pugilat<strong>os</strong>, ameaças, sopap<strong>os</strong> e manifestações<br />

de massa, além de ter apresentado o maior número de assinaturas na fase de<br />

Emenda Popular, cerca de <strong>um</strong> milhão e duzentas mil; ademais, em pesquisa<br />

realizada pelo Ibope e publicada pelo Jornal do Brasil (JB) em 13 de<br />

setembro de 1987, a respeito d<strong>os</strong> 15 temas que deveriam merecer maior<br />

importância na Constituição, caso o entrevistado pudesse ajudar a prepará-la,<br />

a RA figurou em terceiro lugar, com 38% de preferências, logo depois do<br />

ensino gratuito (46%) e da distribuição de renda (40%). (SILVA, 1989, p.<br />

14)<br />

Podem<strong>os</strong> perceber a dimensão que o problema da terra ass<strong>um</strong>iu durante o período da<br />

Constituinte. Isso explica por que o tema do direito de resistência foi debatido a partir dessa<br />

ótica.<br />

Em capítulo no qual analisa o resultado final d<strong>os</strong> tópic<strong>os</strong> referentes à questão agrária<br />

na Assembléia Nacional Constituinte, J<strong>os</strong>é Gomes da Silva demonstra o retrocesso ocorrido<br />

em 1988.<br />

197<br />

[...] a nova CF não diminuiu o terrível f<strong>os</strong>so que separa o sem-terra<br />

acampado debaixo de <strong>um</strong>a lona do seu algoz da UDR. Pelo contrário, a Carta<br />

de 1988 aprofundou o buraco da desigualdade, impedindo, definitivamente,<br />

que a questão agrária brasileira pudesse ser resolvida por via pacífica. Ao<br />

manter no segundo turno praticamente tudo o que foi aprovado na primeira<br />

rodada de votações, inclusive o malfadado inciso que isenta de<br />

desapropriação a chamada “propriedade produtiva”, a ANC retrocedeu a<strong>os</strong><br />

id<strong>os</strong> de 1946, renunciou às conquistas da EC n.º 10 de 10 de novembro de<br />

1964 e do ET e desdourou-se quando comparada à Carta outorgada pel<strong>os</strong><br />

três ministr<strong>os</strong> militares em 17 de outubro de 1969. (SILVA, 1989, p. 199)


O autor fala em “armadilha legal e tática latifundiária” ao fazer <strong>um</strong> balanço das<br />

modificações implementadas pela Constituição de 1988 no que diz respeito à questão da terra.<br />

Na prática, se terras produtivas não podem ser desapropriadas, restarão<br />

apenas, para essa finalidade, as terras improdutivas. E se, eventualmente, <strong>os</strong><br />

tribunais se fixarem no conceito de fertilidade (mais preciso), ficarão para a<br />

Reforma Agrária apenas <strong>os</strong> carrascais, charc<strong>os</strong>, areiões, piçarras e<br />

pirambeiras. E isso, é claro, nem <strong>os</strong> trabalhadores nem a racionalidade<br />

aceitarão... (SILVA, 1989, p. 202)<br />

João Baptista Herkenhoff (1986, pp 31-32), nas vésperas da instalação da Constituinte,<br />

já traçava <strong>um</strong> diagnóstico de <strong>um</strong>a situação que de fato se verificou. Falando <strong>sobre</strong> o<br />

“empenho das classes conservadoras na Constituinte”, o jurista enfatizava que “as forças<br />

conservadoras vão colocar todo seu poder para que a Constituinte avance o mínimo que for<br />

p<strong>os</strong>sível, em matéria de conquistas populares”. Por outro lado, Herkenhoff percebia que a<br />

Constituinte “deve ser a oportunidade, conquistada pelo povo, para o amplo debate das<br />

questões nacionais, ainda que não p<strong>os</strong>sibilite a realização, na dimensão desejada, das reformas<br />

estruturais reclamadas pelo país.” E acrescentava, neste mesmo sentido, que “o espaço obtido<br />

pela luta popular, neste momento da vida brasileira, deve ser aproveitado, vigor<strong>os</strong>amente,<br />

pelas classes populares e por tod<strong>os</strong> aqueles que estejam comprometid<strong>os</strong> com seu projeto<br />

histórico”.<br />

Podem<strong>os</strong> observar, portanto, que a questão da terra – e, mais especificamente, das<br />

ocupações de terra e da reforma agrária – foi <strong>um</strong> ponto amplamente debatido no contexto da<br />

Constituinte. Isso explica o motivo pelo qual <strong>os</strong> <strong>debates</strong> <strong>sobre</strong> o direito de resistência foram<br />

conduzid<strong>os</strong> para este tema.<br />

Conforme vim<strong>os</strong> no segundo capítulo, <strong>os</strong> juristas que trabalharam com o direito de<br />

resistência no Brasil pré-Constituinte de 1987/1988 reproduziram teorias estrangeiras,<br />

198


<strong>sobre</strong>tudo, européias. Dessa forma, foi p<strong>os</strong>sível constatarm<strong>os</strong> a existência de <strong>um</strong> “direito de<br />

resistência liberal” na dogmática jurídica brasileira.<br />

Todavia, no momento em que a questão da resistência tornou-se tema de debate<br />

parlamentar, tendo como objetivo a construção normativa em sua expressão mais ampla, ou<br />

seja, a criação de normas constitucionais, outr<strong>os</strong> componentes tiveram que ser adicionad<strong>os</strong> ao<br />

discurso. Aqui ficou claro que não era p<strong>os</strong>sível apenas <strong>um</strong> debate teórico <strong>sobre</strong> a resistência e<br />

a revolução. Divers<strong>os</strong> interesses estavam em jogo, e <strong>os</strong> arg<strong>um</strong>ent<strong>os</strong> foram ampliad<strong>os</strong>.<br />

Aparece, então, ao lado do “direito de resistência liberal”, <strong>um</strong> “direito de resistência social”.<br />

Na realidade, a rejeição foi feita tendo em vista esta segunda perspectiva.<br />

Em outras palavras, o “discurso teórico” <strong>sobre</strong> a resistência não foi capaz de dar conta<br />

de tod<strong>os</strong> <strong>os</strong> impasses que surgiram no momento do “discurso prático” <strong>sobre</strong> o tema.<br />

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[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 29 de<br />

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DIAS, J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias. Material para tese [mensagem pessoal]. Mensagens<br />

recebidas por em 1° de março de 2008.<br />

RANGEL, J<strong>os</strong>é Mário da Silva. Informações <strong>sobre</strong> J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias<br />

[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 27 de<br />

fevereiro de 2008.<br />

LADEIRA, J<strong>os</strong>é Dionísio. Informações <strong>sobre</strong> J<strong>os</strong>é Antônio Rodrigues Dias [mensagem<br />

pessoal]. Mensagens recebidas por em 28 e 29 de<br />

fevereiro de 2008.<br />

Jornais<br />

CAMPANHAS contra violência serão iniciadas no Recife. Diário de Pernambuco, Recife,<br />

28 de janeiro de 1986.<br />

CORTE Suprema da Bolívia protesta contra intromissão do CDHH de Viç<strong>os</strong>a. Folha da<br />

Mata, Viç<strong>os</strong>a, Ano XXIII, n° 897, 28 de maio de 1986.<br />

PRESIDENTE do CDDH de Viç<strong>os</strong>a representa Minas no Conselho Ec<strong>um</strong>ênico Nacional d<strong>os</strong><br />

Direit<strong>os</strong> H<strong>um</strong>an<strong>os</strong>. Folha da Mata, Viç<strong>os</strong>a, Ano XXI, n° 746, 02 de junho de 1984.<br />

PRESIDENTE do CDDH opina <strong>sobre</strong> a cassação de Boff. Folha da Mata, Viç<strong>os</strong>a, Ano<br />

XXII, n. 795, 11 de maio de 1985.<br />

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www.opassadocompassadodevic<strong>os</strong>a.blogspot.com<br />

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www.siqueiracastro.com.br<br />

208

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