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Carnaúba dos Dantas Portalegre Entrevista - Fundação Jose Augusto

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Chico Preá (Poeta)<br />

Ilustração: Flávio Freitas<br />

u não gosto de você, Papai Noel/<br />

“Enem deste seu papel/de vender<br />

ilusões à burguesia”. Era assim que<br />

começava um poema ouvido na infância,<br />

de cujo resto e autoria nem lembro<br />

mais. Contava a história de um garoto,<br />

cujo pai, trabalhador de uma fábrica de<br />

brinque<strong>dos</strong>, fora preso na noite de natal,<br />

por ter roubado um trem de plástico<br />

para presentear o filho. A polícia levou o<br />

trem e o pai preso. Naquela noite, Papai<br />

Noel morreu.<br />

Agora me lembro disso. Exatamente<br />

na noite de natal, sem uma pataca para<br />

comprar o brinquedo de Chiquinho,<br />

que foi dormir esperando a visita do<br />

velho de barbas brancas. Eu e Albertina<br />

procuramos uma solução. “Só se você<br />

fizer umas balas com resina de cumaru”.<br />

“Mas eu fiz isso no ano passado”. Era<br />

verdade. “Vou dizer que Papai Noel<br />

atrasou e chegará no fim de janeiro”.<br />

Albertina lembrou: “Essa foi a desculpa<br />

que você deu no ano atrasado”. Fora<br />

mesmo.<br />

Entramos pela noite, com muita idéia e<br />

pouca solução. “Tem de haver um jeito”.<br />

Ouvimos um barulho vindo da rua.<br />

Albertina assustou-se. “O que é isso?” Não<br />

era nada. Apenas o movimento do Festival<br />

de Gastronomia que estava ocupando<br />

a cidade. Expliquei para Albertina que<br />

eram os restaurantes chiques da Capital<br />

desloca<strong>dos</strong> para nossa cidade. “Pra vender<br />

a quem”? Ela quis saber. “Os fregueses<br />

deles também vêm. Nós só oferecemos o<br />

chão da praça. E se quisermos encher a<br />

pança vamos à lingüiça de Rita Baliza ou<br />

ao cachorro-quente de Tomé Borrego, na<br />

travessa que vai para a Casa de Cultura<br />

Popular. Na praça, mesmo, não pode ficar<br />

pé-rapado não”.<br />

Foi aí que Albertina fez uma observação<br />

que me encafifou: “Essa história de<br />

Festival de Gastronomia, numa região<br />

que tem muita gente passando fome,<br />

parece muito com os brioches de Maria<br />

Antonieta. Aquela Rainha que perdeu<br />

a cabeça depois de perguntar por que<br />

o povo não comia bolo, já que estava<br />

faltando pão”.<br />

Madrugada adentro. Reflexão e a decisão<br />

tomada por Albertina, que me convenceu.<br />

E veja que não sou manicaca. Mas<br />

Albertina sempre tem razão. “Já decidi<br />

qual vai ser o presente de Chiquinho. Ele<br />

está próximo <strong>dos</strong> seis anos e merece este<br />

presente”. Eu quis saber do que se tratava<br />

e Albertina respondeu: “O presente de<br />

Chiquinho será a verdade. Essa história<br />

de Papai Noel, cheio de neve, no sertão<br />

onde a única coisa parecida com neve era<br />

o algodão, que o bicudo acabou, não tem<br />

por que fazermos parte dessa mentira. A<br />

verdade será o presente de Chiquinho”.<br />

C o n t o d e n a t a l<br />

Théo G. Alves (Contista e poeta)<br />

Ilustração: Andréia Mangabeira<br />

Foi ontem, eu me lembro muito bem:<br />

os corpos amontoa<strong>dos</strong> na calçada,<br />

já um tanto escuros e levemente féti<strong>dos</strong>,<br />

caí<strong>dos</strong> como papel de bala entre os pés<br />

do povo. Eram em um número qualquer,<br />

algo entre três e sete, um número que até<br />

agora não entendo e que, por isso mesmo,<br />

não posso precisar. As crianças brincando<br />

em volta <strong>dos</strong> corpos que, lentamente<br />

iam perdendo ainda mais a cor de gente<br />

viva, e as viúvas passando sisudas por<br />

cima deles com todo o cuidado para não<br />

sujarem os pés, eu lembro-me muito<br />

bem. Eles não estavam lá, pensei, e pude<br />

ir para o trabalho. Amanhã, saí de casa<br />

e eles ainda estavam lá. Os mesmos, o<br />

mesmo número. Um cachorro aquecia<br />

um deles, deitado por cima do corpo,<br />

como uma criança embalada. Talvez<br />

fosse seu dono. O cheiro ficava mais forte<br />

e atrapalhava visivelmente o perfume de<br />

pães frescos que vinha da padaria do<br />

outro lado da rua. As crianças maiores<br />

cutucavam com varas os três ou sete<br />

corpos estendi<strong>dos</strong> na calçada. O dono<br />

da casa olhava com reprovação para<br />

os mortos, que se sentiam claramente<br />

encabula<strong>dos</strong>. Sentei na calçada da padaria<br />

e vi-os como quem assiste a um Otelo<br />

mal interpretado. Não havia prazer:<br />

havia interesse, não sei exatamente em<br />

quê, mas interesse, eu confesso. Pensei<br />

em tirá-los dali constantemente, mas<br />

perdia-me sempre nos ombros brancos<br />

de umas mocinhas que passavam sempre<br />

muito bonitas pela calçada e tinha-me<br />

por esquecido das últimas decisões. Os<br />

corpos continuavam sobre a calçada.<br />

Gente apressada que passava sem vêlos,<br />

operários consterna<strong>dos</strong> demais com<br />

a vida para estarem preocupa<strong>dos</strong> com<br />

a morte alheia, donas de casa com seus<br />

mari<strong>dos</strong> na barra da saia, preocupadas<br />

Os homens na calçada<br />

com a escola <strong>dos</strong> filhos e filhos brincando<br />

demais para saberem da morte. Ninguém<br />

disse nada. Ninguém fez nada: nem eu,<br />

que apenas assistia armado de toda a<br />

inutilidade do mundo. Até que depois<br />

de amanhã, uma senhora de pele muito<br />

alva e dedo de pianista aproximou-se<br />

<strong>dos</strong> três corpos e do cão, que deixou a<br />

cena lentamente. Olhou-os e os tirou da<br />

calçada, levando-os até o meio da rua,<br />

um por um, com muita dificuldade. Eu<br />

poderia ajudá-la, era minha obrigação<br />

fazê-lo. Trouxemos juntos os últimos<br />

e os deixamos lá, descansa<strong>dos</strong> no meio<br />

da rua. A senhora, um tanto trêmula<br />

devido ao esforço, olhou-me sorridente e<br />

agradeceu, explicando que eles já estavam<br />

enfeando a frente de sua casa.<br />

52 Dezembro 2004 Dezembro 2004<br />

53

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