SEGUNDA PARTE Minas Indígena - Instituto ANTROPOS
SEGUNDA PARTE Minas Indígena - Instituto ANTROPOS
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CENTRO EVANGÉLICO DE MISSÕES<br />
ESCOLA DE MISSÕES TRANSCULTURAIS<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MISSIOLOGIA<br />
MINAS INDÍGENA<br />
Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens<br />
Missionárias nos Grupos <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais<br />
Por<br />
CÁCIO EVANGELISTA DA SILVA<br />
VIÇOSA – MG<br />
Outubro de 2002
MINAS INDÍGENA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens<br />
Missionárias nos Grupos <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais<br />
Por<br />
CÁCIO EVANGELISTA DA SILVA<br />
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-<br />
Graduação em Missiologia da Escola de Missões<br />
Transculturais do Centro Evangélico de Missões,<br />
como requisito parcial para obtenção do título de<br />
Mestre em Missiologia.<br />
Orientador: Ronaldo Almeida Lidório (Ph.D)<br />
VIÇOSA – MG<br />
Outubro de 2002<br />
ii
PÁGINA DE APROVAÇÃO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
A Dissertação MINAS INDÍGENA – Levantamento Sociocultural e<br />
Possibilidades de Abordagens Missionárias nos<br />
Grupos <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais<br />
De Autoria de CÁCIO EVANGELISTA DA SILVA<br />
Aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo<br />
Curso de Mestrado em Missiologia como requisito parcial à obtenção do<br />
título de<br />
Viçosa, 28 de Outubro de 2002.<br />
MESTRE EM MISSIOLOGIA<br />
Banca Examinadora<br />
Dr. Ronaldo Almeida Lidório (Ph.D) - RLU<br />
Dr. Sebastião Lúcio Guimarães (Th.D) – CEM<br />
Profa. Antônia Leonora van der Meer (MT) – CEM<br />
iii
DEDICATÓRIA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
À Elisângela, minha amada esposa, fiel e doce companheira, minha principal<br />
incentivadora e parceira ministerial.<br />
Aos missionários Harold e Frances Popovich, Ronaldo e Kátia Lima, Adair e Zilene<br />
Gomes, Marlene Martins, João Maria Silva, Agustinho e Nelice Cipriano, e todos os<br />
demais fieis servos do Senhor que no anonimato ministerial dedicaram ou dedicam suas<br />
vidas para que o reino de Deus seja expandido na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>.<br />
iv
AGRADECIMENTOS<br />
Ao Deus trino, Senhor da seara e dos obreiros, criador e redentor das nações.<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
À Elisângela, minha fiel e amada esposa, por sua constante presença, incansável apoio,<br />
encorajamento, participação nas pesquisas de campo e imensa compreensão ao privar-se às<br />
vezes da minha companhia.<br />
Ao Rev. Ronaldo Lidório, pela atenciosa orientação, incentivo, e principalmente pelo<br />
exemplo de vida, desafiando-me a um ministério onde o caráter transpõe a habilidade, e a<br />
piedade precede a erudição.<br />
Ao Rev. Carlos Ribeiro Caldas Filho, por ter me desafiado a escrever sobre indígenas.<br />
Ao Pr. Alcir Almeida, pela revisão e valiosas sugestões.<br />
Ao Pr. Sebastião Lúcio Guimarães, pelas críticas e sugestões.<br />
A Francisco e Rose, pela amizade, prestatividade e “auxílios mecanográficos”.<br />
À Oitava Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, pelo sustento, apoio, encorajamento e<br />
incansável desejo de alcançar os povos com o evangelho.<br />
À Comunidade Presbiteriana de Viçosa, por ter se tornado nossa família, encorajando, em<br />
tudo apoiando e nos dando o privilégio de servir.<br />
Ao Centro Evangélico de Missões, por ser um exemplo de paixão pelos povos.<br />
A todos os missionários e líderes indígenas, que me receberam nas várias viagens de<br />
pesquisa, fornecendo informações preciosas nas entrevistas, sem as quais este texto não<br />
estaria completo.<br />
A José e Maria Silva, meus queridos pais, pelo exemplo de vida, formação de caráter e<br />
constantes orações.<br />
A Elviro e Maria das Dores de Oliveira, meus queridos sogros, pelo incentivo e também<br />
constantes orações.<br />
A todos os nossos intercessores, que tem nos apoiado em oração.<br />
v
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
SILVA, Cácio Evangelista da. <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> – Levantamento Sociocultural e<br />
Possibilidades de Abordagens Missionárias nos Grupos <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais.<br />
Viçosa: Centro Evangélico de Missões, 2002.<br />
RESUMO<br />
Dentro das perspectivas histórica, sociocultural e missiológica, os oito grupos indígenas de<br />
<strong>Minas</strong> Gerais são aqui apresentados, numa tentativa de apontar a sua real e atual situação<br />
enquanto grupos sociais etnicamente distintos, as causas que os levaram a esta situação, o<br />
que já foi feito em termos missionários, e o que pode ser feito a partir desta mesma<br />
realidade. Durante séculos estes grupos sofreram uma forte ação exterminadora por parte<br />
dos conquistadores do território mineiro, iniciada com os primeiros bandeirantes paulistas<br />
que vieram para estas regiões à procura de tesouros minerais, sucedidos pelos militares que<br />
a partir dos quartéis praticavam o genocídio exterminando ou militarizando indígenas, e<br />
pelos religiosos católicos que nos aldeamentos cometiam o etnocídio ao proibirem a língua<br />
materna e tradições religiosas de cada tribo, bem como, ao fomentarem o casamento de<br />
indígenas com negros. O resultado foi a redução dos mais de cem grupos indígenas aqui<br />
presentes no século XVI a apenas oito grupos que hoje lutam pela reafirmação étnica. Com<br />
uma população aproximada de nove mil pessoas, que preservaram três línguas indígenas,<br />
estes grupos vivem uma realidade cultural de grande descaracterização; uma realidade<br />
religiosa de forte sincretismo animista-católico romano; apresentam um quadro étnico de<br />
acentuada miscigenação; e um quadro social de marginalização. Três principais<br />
abordagens missionárias com diferentes frentes de atuação foram constatadas em quatro<br />
dos oito grupos – lingüística, kerygmática e sócio-assistencial – restando assim, ainda<br />
quatro grupos sem qualquer presença evangélica. Entretanto, pelo menos sete destes<br />
grupos carecem com urgência de um trabalho missionário relevante.<br />
vi
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
SILVA, Cácio Evangelista da. <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> – Levantamiento Sociocultural y<br />
Possibilidades de Aproximaciónes Misioneras en los Grupos <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais.<br />
Centro Evangélico de Missões, 2002.<br />
RESUMEN<br />
Dentro de las perspectivas histórica, socio-cultural y misiológicas, los ocho grupos<br />
indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais son presentados aquí, en una tentativa de apuntar a su real<br />
situación en cuanto grupos sociales etnicamente diferentes, las causas que los llevaran a<br />
esta situación, lo que ya fue echo en términos misioneros, y lo que se puede hacer a partir<br />
de esta misma realidad. Durante siglos estos grupos sufrieron una fuerte acción<br />
exterminadora por parte de los conquistadores del territorio minero, iniciado con los<br />
primeros conquistadores paulistas que vinieron para estas regiones en busca de tesoros<br />
minerales, seguidos por los militares que de los cuarteles praticaban el genocidio<br />
exterminando o militarizando los indígenas, y también por los religiosos católicos que en<br />
los aldeamentos cometían el etnocidio al prohibirles su lengua materna y tradiciones<br />
religiosas de cada tribu, como también, al fomentar el casamiento de indígenas con negros.<br />
El resultado fue la reducción de los mas de cien grupos indígenas aquí presentes en lo siglo<br />
XVI, a solamente ocho grupos que hoy luchan por la reafirmación étnica. Con una<br />
populación aproximadamente de nueve mil personas, que preservaron tres lenguas<br />
indígenas, estos grupos viven una realidad cultural de grande pedida de características; una<br />
realidad religiosa de fuerte sincretismo animista-católico romano; presentan un cuadro<br />
étnico de acentuada miscegenación; y un cuadro social de marginalización. Tres<br />
principales aproximaciones misioneras con diferentes frentes de actuaciones fueron<br />
constatadas en cuatro de los ocho grupos – lingüística, kerigmática y socio-asistencial –<br />
quedando así, todavía cuatro grupos sin presencia evangélica. Sin embargo, por lo menos<br />
siete de estos grupos necesitan con urgencia de un trabajo misionero relevante.<br />
vii
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> viii<br />
SILVA, Cácio Evangelista da. Indian <strong>Minas</strong> – Socio-cultural Survey and the Possibilities<br />
of Missionary Approximation with the Indigenous Groups of <strong>Minas</strong> Gerais. Viçosa:<br />
Centro Evangélico de Missões, 2002.<br />
ABSTRACT<br />
Within historical, social, cultural and missiological perspectives the eight indigenous<br />
groups of the State of <strong>Minas</strong> Gerais are presented here in an attempt to point out their<br />
actual situation as distinct social groups, the reasons which led them to be in this situation,<br />
what has been done in missionary outreach and what can be done in the face of this reality.<br />
For many centuries these groups have been almost exterminated by those who conquered<br />
these regions, starting with the first explorers from the State of São Paulo who came to this<br />
region in search of precious minerals, followed by the military who from their bases<br />
committed genocide exterminating or militarizing Indians and also by the Catholic priests<br />
who in the villages committed ethnocide by prohibiting the use of their mother tongue and<br />
the religious traditions of each tribe, as for example forcing the marriage of Indians with<br />
the Negroes. The result was a reduction of more than a hundred indigenous groups present<br />
here in the sixteenth century to only eight groups, whose today are struggling for their<br />
ethnic identity. With a population of about nine thousand persons, who preserved three<br />
indigenous languages, these groups live a cultural reality of losing their identity; a religious<br />
reality of a strong Roman Catholic and animist syncretism; they present an ethnic picture<br />
of accentuated miscegenation and a social situation of being marginalized. Three principal<br />
missionary approaches with different fronts of action were discovered in four of the eight<br />
groups – linguistic, kerygmatic and social assistance, leaving the other remaining groups<br />
without any evangelical presence. However at least seven of these groups need urgently to<br />
receive a relevant missionary thrust.
SIGLAS E ABREVIATURAS<br />
ABA – Associação Brasileira de Antropólogos<br />
AD – Assembléias de Deus<br />
AIS – Agente <strong>Indígena</strong> de Saúde<br />
AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileiras<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
APOINME – Associação dos Povos <strong>Indígena</strong>s do Nordeste, <strong>Minas</strong> Gerais e Espírito Santo<br />
CEDEFES – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva<br />
CESE – Coordenação Ecumênica de Serviços<br />
CIMI – Conselho Indigenista Missionário<br />
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil<br />
CPT – Comissão Pastoral de Terras<br />
FUNAI – Fundação Nacional do Índio<br />
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde<br />
GRIN – Guarda Rural <strong>Indígena</strong><br />
GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico<br />
IEF – <strong>Instituto</strong> Estadual de Florestas<br />
IEPHA – <strong>Instituto</strong> Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico<br />
ISA – <strong>Instituto</strong> Socioambiental<br />
MEC – Ministério de Educação e Cultura<br />
MNTB – Missão Novas Tribos do Brasil<br />
ONG – Organização Não-Governamental<br />
PDIA – Projeto de Desenvolvimento, Integração e Assimilação<br />
SEE/MG – Secretaria de Estado da Educação de <strong>Minas</strong> Gerais<br />
SIL – Sociedade Internacional de Lingüística<br />
SPI – Serviço de Proteção ao Índio<br />
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora<br />
UFMG – Universidade Federal de <strong>Minas</strong> Gerais<br />
UHITUP – Curso de Formação de Professores <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais<br />
ix
CONTEÚDO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
PÁGINA DE APROVAÇÃO............................................................................................. ii<br />
DEDICATÓRIA.................................................................................................................<br />
iii<br />
AGRADECIMENTOS....................................................................................................... iv<br />
RESUMO..............................................................................................................................<br />
v<br />
RESUMEN.......................................................................................................................... vi<br />
ABSTRACT....................................................................................................................... vii<br />
SIGLAS E ABREVIATURAS.........................................................................................<br />
viii<br />
CONTEÚDO....................................................................................................................... ix<br />
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 1<br />
PRIMEIRA <strong>PARTE</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>: Uma Perspectiva Histórica<br />
1. ORIGEM DOS AMERÍNDIOS................................................................................... 4<br />
1.1. O Povoamento das Américas<br />
1.2. O Povoamento do Brasil<br />
2. MINAS INDÍGENA NO PERÍODO PRE-COLONIAL........................................... 7<br />
2.1. Civilizações dos Abrigos (Cavernas)<br />
2.2. Civilizações das Aldeias<br />
2.3. Civilizações da Época do Contato<br />
3. MINAS INDÍGENA NO PERÍODO COLONIAL................................................... 11<br />
3.1. O Contato Com os Grupos do Norte<br />
3.2. O Contato Com os Grupos do Leste<br />
4. MINAS INDÍGENA NO PERÍODO IMPERIAL.................................................. 17<br />
x
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
4.1. Declarada a “Guerra Justa”<br />
4.2. A Política da “Boa Vizinhança”<br />
4.3. As Frentes de Expansão Territorial<br />
4.3. O Aldeamento de Itambacuri<br />
5. MINAS INDÍGENA NA REPÚBLICA................................................................... 23<br />
5.1. SPI – Serviço de Proteção ao Índio<br />
5.2. GRIN – Guarda Rural <strong>Indígena</strong><br />
5.1. FUNAI – Fundação Nacional do Índio<br />
5.2. Desfecho Histórico dos Grupos Mineiros<br />
5.3. O Processo de Migração<br />
5.4. O Processo de Emergência<br />
<strong>SEGUNDA</strong> <strong>PARTE</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>: Uma Perspectiva Sociocultural<br />
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES...................................................................... 37<br />
1.1. Troncos Lingüísticos<br />
1.2. Classificação da Origem Étno-Geográfica<br />
1.3. O Mito do “Índio Puro”<br />
1.4. Programas Assistenciais<br />
2. OS XACRIABÁ............................................................................................................. 45<br />
2.1. Situação Sociocultural<br />
2.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
3. OS MAXAKALI............................................................................................................ 61<br />
3.1. Situação Sociocultural<br />
3.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
4. OS KRENAK................................................................................................................. 77<br />
4.1. Situação Sociocultural<br />
4.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
5. OS PATAXÓ.................................................................................................................. 93<br />
5.1. Situação Sociocultural<br />
5.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
6. OS PANKARARU....................................................................................................... 108<br />
6.1. Situação Sociocultural<br />
6.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
7. OS XUKURU-KARIRI............................................................................................... 120<br />
7.1. Situação Sociocultural<br />
7.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
8. OS KAXIXÓ................................................................................................................ 132<br />
8.1. Situação Sociocultural<br />
8.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
xi
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
9. OS ARANÃ.................................................................................................................. 147<br />
9.1. Situação Sociocultural<br />
9.2. Possibilidades de Abordagens Missionárias<br />
TERCEIRA <strong>PARTE</strong><br />
Uma Análise Missiológica das Abordagens<br />
Missionárias na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
1. ABORDAGENS MISSIONÁRIAS.......................................................................... 161<br />
2. ABORDAGEM LINGÜÍSTICA.............................................................................. 162<br />
2.1. Áreas de Atuação<br />
2.2. Efeitos Positivos<br />
2.3. Efeitos Negativos<br />
2.4. Algumas Sugestões<br />
3. ABORDAGEM KERYGMÁTICA............................................................................ 169<br />
3.1. Áreas de Atuação<br />
3.3. Efeitos Positivos<br />
3.4. Efeitos Negativos<br />
3.5. Algumas Sugestões<br />
4. ABORDAGEM SOCIO-ASSISTENCIAL................................................................<br />
179<br />
4.1. Efeitos Positivos<br />
5.5. Pontos Negativos<br />
5.6. Algumas Sugestões<br />
5. AS TRADIÇÕES MISSIONÁRIAS.......................................................................... 183<br />
5.1.Tradição Católica<br />
5.2.Tradição Ecumênica<br />
5.3.Tradição Evangelical<br />
5.4.Tradição Pentecostal<br />
CONCLUSÃO................................................................................................................. 185<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................... 192<br />
ANEXO 01: Mitos e Lendas da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>.......................................................... 201<br />
ANEXO 02: Mapa da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>.......................................................................... 209<br />
ANEXO 03: Quadro de Visualização da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>........................................... 210<br />
ANEXO 04: Carta Régia de 13/05/1808 – Declaração de “Guerra Justa”................ 212<br />
ANEXO 05: Álbum da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>........................................................................ 215<br />
xii
INTRODUÇÃO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Apenas um dos oito grupos indígenas de <strong>Minas</strong> tem sido alvo de projetos<br />
missionários. Três deles têm sido abordados por igrejas locais de cidades próximas, porém<br />
sem um direcionamento missiológico, com objetivos e métodos pouco definidos. Quatro<br />
permanecem no esquecimento sem qualquer trabalho de evangelização ou plantio de<br />
igrejas. Qual a real situação destes grupos? Quais abordagens missionárias já foram<br />
adotadas entre eles? Quais abordagens seriam mais relevantes? Este trabalho é uma<br />
tentativa de dar respostas a estas perguntas, objetivando disponibilizar material de pesquisa<br />
e informações suficientes para a elaboração de futuras abordagens missionárias<br />
direcionadas a estes grupos.<br />
Para tanto, foi realizada uma criteriosa e extensa pesquisa bibliográfica 1 em<br />
literatura específica sobre os grupos indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais, em literatura especializada<br />
de antropologia cultural, social e etnologia, bem como, em literatura missiológica<br />
relacionada ao tema, valendo ressaltar que esta última é bastante escassa. Foi também<br />
realizada pesquisa de campo – in locu – em todos os oito grupos em foco, envolvendo<br />
observação e entrevistas com líderes indígenas, missionários que trabalham e já<br />
trabalharam com eles, comunidades vizinhas e entidades relacionadas. Foi ainda realizado<br />
um curso sobre a história indígena de <strong>Minas</strong>, oferecido pelo CEDEFES – Centro de<br />
Documentação Eloy Ferreira da Silva.<br />
Esta é a primeira pesquisa de cunho missiológico e caráter multi-étnico realizada<br />
junto aos indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais, e por isto se reveste de certa relevância,<br />
principalmente para a crescente pesquisa missiológica de povos não-alcançados, mas<br />
também para a igreja mineira e brasileira na sua prática missionária, por duas razões<br />
principais: primeiro, devido a inexistência de dados precisos sobre estes grupos indígenas,<br />
o que contribui para a omissão dos mesmos no movimento de expansão da igreja; e<br />
segundo, por analisar e sugerir abordagens missionárias para grupos indígenas, pois ainda é<br />
ínfimo o material missiológico disponível sobre esta questão.<br />
1 A lista bibliográfica do final deste relatório, trata apenas das fontes efetivamente citadas no mesmo.<br />
1
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
No primeiro capítulo procura-se apresentar uma perspectiva histórica da <strong>Minas</strong><br />
<strong>Indígena</strong>, começando com algumas considerações sobre o surgimento dos ameríndios e<br />
prosseguindo com os já convencionados períodos da história geral do Brasil – pré-colonial,<br />
colonial, imperial e república – cobrindo cerca de quinhentos anos de história, até a<br />
presente data. Assim sendo, fica claro se tratar apenas de um ensaio histórico, visando<br />
apontar as principais causas da situação atual, como base para a pauta do próximo capítulo.<br />
Uma perspectiva sociocultural da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> é apresentada no segundo<br />
capítulo, onde são registrados os principais resultados das pesquisas de campo e<br />
bibliográfica. Após algumas breves considerações sobre assuntos bem genéricos, mas<br />
importantes, cada grupo é descrito com dados precisos como localização, população,<br />
etnicidade, religiosidade e problemas sociais, seguidos de algumas sugestões de<br />
abordagens missionárias com base nos dados anteriores.<br />
O terceiro capítulo apresenta uma perspectiva missiológica das diversas abordagens<br />
missionárias que já foram e estão sendo adotadas na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>. Após uma breve<br />
descrição de cada uma com suas respectivas ênfases e frentes de atuação, é feita uma<br />
análise da relevância das mesmas, procurando apontar os principais efeitos positivos e<br />
negativos. Por fim, é tecido um rápido comentário destas abordagens sob a ótica das<br />
“tradições” missionárias, apontando as evidências das principais tendências teológicas aqui<br />
presentes.<br />
2
PRIMEIRA <strong>PARTE</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>: Uma Perspectiva Histórica<br />
3
1. ORIGEM DOS AMERÍNDIOS<br />
1.1. O POVOAMENTO DAS AMÉRICAS<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Teorias arqueológicas afirmam que o povoamento das Américas teria ocorrido há<br />
cerca de 12 mil anos AP 2 , no final da chamada Era Glacial, através de povos oriundos da<br />
Ásia – mongolóides – que seguindo a caça de grande porte teriam atravessado o Estreito de<br />
Bering, que nessa época estaria congelado, formando uma passagem terrestre que existiu<br />
entre a Sibéria Oriental e o Alasca – a Beríngia – chegando assim ao atual Estado do<br />
Alasca (E.U.A.). Assentaram-se primeiramente nos planaltos norte-americanos, em torno<br />
de 11.500 anos AP, e continuaram em direção ao sul, através da América Central até<br />
chegar aos Andes por volta de 10.500 anos AP. A colonização completa até o extremo da<br />
América do Sul teria se dado por volta de 10 mil anos AP. Devido a questões climáticas e à<br />
caça excessiva, os animais de grande porte foram diminuindo e forçando a migração destes<br />
povos caçadores. Esta é a chamada Teoria da Migração Clovis (Roosevelt, 1999.35).<br />
Tal teoria foi, entretanto, questionada por antropólogos que criam na possibilidade<br />
de “caçadores-coletores generalizados com instrumentos menos sofisticados e um modo de<br />
subsistência baseado na coleta de plantas, na caça de animais menores e na pesca”<br />
(Roosevelt, 1999.37) terem chegado e se espalhado pelas Américas antes dos caçadores<br />
especializados em animais de grande porte. Esta teoria pré-Clovis foi comprovada por<br />
várias descobertas arqueológicas, sendo hoje hipótese altamente aceitável no meio<br />
arqueológico a povoação das Américas em pelo menos 40 mil anos AP. Tal conclusão se<br />
reveste de maiores evidências se considerarmos que é geologicamente comprovado um<br />
grande resfriamento no planeta por volta de 50 mil anos AP, no chamado Período Glacial,<br />
forçando a migração dos animais e caçadores do Velho para o Novo Mundo.<br />
2 AP significa Antes do Presente (ou em inglês BP – Before Present) e é uma expressão usada para a datação<br />
de períodos arqueológicos, tendo convencionado como data inicial para o início do Presente o ano de 1950. A<br />
indicação a.C. (Antes de Cristo) continua a ser utilizada, porém em datações de cunho histórico-documental.<br />
4
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Foi questionado também o Estreito de Bering como único canal de migração destes<br />
povos pré-coloniais, pois evidências apontam a migração de grupos menores através das<br />
ilhas do Pacífico. Apesar desta hipótese não ser tão bem comprovada como a teoria pré-<br />
Clovis, hoje é também aceitável, pois a mesma não lança por terra a teoria de migração<br />
pelo Estreito de Bering, ou seja, é possível que o povoamento das Américas tenha se dado<br />
por mais de um canal.<br />
A teoria das primeiras levas migratórias terem sido de mongolóides – raças da Ásia<br />
– também foi questionada. Abundantes descobertas arqueológicas evidenciaram a presença<br />
de negróides – raças da África e Pacífico Sul – em períodos bem remotos aqui nas<br />
Américas. Uma das principais descobertas foi nas escavações de Lagoa Santa, nas<br />
proximidades de Belo Horizonte, em <strong>Minas</strong> Gerais. Nas décadas de 1950 e 70, mais de<br />
cinqüenta esqueletos foram escavados nesta região, revelando a existência da “raça de<br />
Lagoa Santa”, sobre a qual, o pesquisador André Prous 3 (1999.102), da UFMG, que<br />
inclusive participou de algumas destas escavações, dá as seguintes informações:<br />
Trata-se de uma população muito homogênea, com feições bastantes peculiares, e<br />
que se parecia muito menos com os asiáticos do que com os índios americanos<br />
atuais ou com os grupos pré-históricos documentados arqueologicamente nos<br />
últimos oito milênios. Segundo a teoria recente de alguns antropólogos, seriam<br />
aparentados aos ancestrais das populações australianas, que teriam habitado a Ásia<br />
continental e migrado tanto para o norte (Beríngia e América) quanto para o sul<br />
(Austrália), antes de serem substituídos na Ásia pelas atuais raças amarelas.<br />
Tal descoberta se reveste de maior importância, quando considerado o fato desta<br />
“raça de Lagoa Santa” ser tipicamente de pintores, deixando uma quantidade enorme de<br />
pinturas rupestres espalhadas pela região, e os aborígenes da Austrália são até hoje<br />
conhecidos como “pintores das paredes”. A pesquisadora Roosevelt (1999.42), comenta:<br />
As importantes coleções de esqueletos da Lagoa Santa, em <strong>Minas</strong> Gerais, foram<br />
datadas pelo carbono 14 e também analisadas por antropólogos físicos. Os<br />
resultados revelam que há 10 mil anos AP teria existido na região uma população<br />
de asiáticos não mongolóides generalizados (...) diferentes dos ameríndios<br />
mongolóides posteriores.<br />
A esta “raça” pertence o crânio encontrado em Lagoa Santa em 1998, pelo<br />
antropólogo Walter Neves. Datado de pelo menos 12 mil anos AP, se tornou famoso em<br />
todo o mundo e recebeu o nome de Luzia, pois se trata do crânio de uma mulher. Nele foi<br />
3 O cientista André Prous, participou, em 1971, da Emperaire - Missão Arqueológica chefiada por A.<br />
Lamaing – encarregada de reconstruir o paleoambiente de Lagoa Santa, obtendo datações muito antigas e<br />
descobrindo grandes animais extintos. Em 1976, foi convidado para montar a primeira equipe profissional do<br />
Estado e logo iniciou pesquisas na Serra do Cipó e no norte de <strong>Minas</strong>. Foi responsável pelo Setor de<br />
Arqueologia da UFMG e pela Mission Archéologique de <strong>Minas</strong> Gerais. Certamente é uma das maiores<br />
autoridades na arqueologia mineira.<br />
5
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
realizado um sério trabalho de reconstituição fisionômica na Alemanha, concluindo<br />
terminantemente que o mesmo pertencia à família dos negróides (Prezia 4 , 2000.24).<br />
1.2. O POVOAMENTO DO BRASIL<br />
As pesquisas interdisciplinares realizadas em várias regiões do Brasil,<br />
especialmente no campo da arqueologia, paleontologia, antropologia e espeleologia, têm<br />
revelado a existência de variadas civilizações, bem como diversificadas culturas, em<br />
períodos bastante remotos no território do nosso país. Interessante é que as civilizações que<br />
habitaram o solo brasileiro, assim como de basicamente toda América do Sul, deixaram<br />
evidentes indícios de não serem descendentes das civilizações norte-americanas. Na<br />
floresta amazônica, por exemplo, isto é claro, pois “as pinturas, as pontas de lança bifaciais<br />
triangulares e as ferramentas unifaciais, encontradas nos sítios, indicam uma cultura<br />
distinta das culturas norte-americanas” (Roosevelt, 1999.47). Enquanto os paleoíndios<br />
norte-americanos eram tipicamente caçadores de grande porte, os do Brasil eram caçadores<br />
de pequenos animais, pescadores e coletores. Na Amazônia, nozes, frutas e pequenos<br />
peixes eram os alimentos mais comuns, de acordo com o estudo dos restos alimentícios<br />
encontrados.<br />
No Brasil estão os sítios que oferecem os dados mais abundantes sobre os<br />
paleoíndios sul-americanos, e segundo Roosevelt (1999.41), “vários destes, com arte<br />
rupestre e a céu aberto, apresentando pedras lascadas, paredões de pintura rupestre fogões,<br />
têm numerosas e consistentes datações radiocarbônicas pré-Clovis que remontam a 50 mil<br />
anos AP”. Como estas informações são da paleontologia 5 , a presença humana em datas tão<br />
recuadas assim tem sido questionada, mas é fato praticamente indiscutível a presença<br />
humana no Brasil há pelo menos 20 mil anos AP.<br />
4 Mineiro de Poços de Caldas, Benedito Prezia trabalhou como enfermeiro junto a populações pobres de São<br />
Paulo e em 1983 tornou-se funcionário do CIMI em Brasília, no setor de publicações. Foi editor do<br />
Suplemento Cultural do jornal indigenista Porantim, para o qual escreve até hoje. Em 1977 terminou seu<br />
mestrado em semiótica e linguística geral na USP, com dissertação sobre as populações indígenas do planalto<br />
paulista nos séculos XVI e XVII. Publicou vários livros paradidáticos, sendo o mais recente, e certamente<br />
mais importante, “Brasil <strong>Indígena</strong> – 500 Anos de Resistencia”.<br />
5 A Paleontologia concentra seus estudos em fósseis de animais, espécies desaparecidas, lidando assim com<br />
milhões de anos, enquanto a Arqueologia, trabalha com fósseis humanos, antigas civilizações, lidando assim<br />
com milhares de anos.<br />
6
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
2. MINAS INDÍGENA NO PERÍODO PRÉ-COLONIAL 6<br />
2.1. CIVILIZAÇÕES DOS ABRIGOS (CAVERNAS)<br />
Os estudos arqueológicos em <strong>Minas</strong> Gerais se concentram em duas regiões<br />
principais, onde foram encontrados sítios com grande quantidade de informações das<br />
civilizações que habitavam as cavernas: Lagoa Santa e Serra do Cipó, nas proximidades de<br />
Belo Horizonte, e os vales dos rios Peruaçu e Cochá, afluentes do médio curso do Rio São<br />
Francisco, ao norte do Estado, na região da cidade de Januária. Na primeira, há importantes<br />
informações sobre as características biológicas e ritualísticas das populações que aqui<br />
habitaram, já na segunda, predominam informações sobre a tecnologia das mesmas.<br />
Os mais de cinqüenta esqueletos da “raça de Lagoa Santa” foram encontrados na<br />
região de Lagoa Santa, e sobre eles o pesquisador Prous (1991.214), acrescenta:<br />
(...) uma população muito homogênea fisicamente – era endogâmica, ou seja, os<br />
membros do grupo local casavam-se essencialmente entre si – (...) eram pessoas<br />
relativamente pouco robustas, que sofriam de cáries dentárias – fato raro entre os<br />
homens pré-históricos – e de inflamações ósseas. Sepultavam os mortos em covas,<br />
embrulhando-os numa rede revestida de entrecasca, por vezes adornados com<br />
colares de sementes; despejavam pó vermelho de óxido de ferro na cova, que era<br />
fechada com pequenos blocos de pedra amontoadas;<br />
Há indícios de populações habitando o território mineiro de até 20 mil anos AP,<br />
mas “a presença humana em <strong>Minas</strong> Gerais (e no Brasil) só é claramente atestada a partir de<br />
um período datado entre 11 mil e 12 mil anos atrás” (Prous, 1999.102). Apesar da grande<br />
quantidade de informações existentes sobre esta “raça”, é difícil sugerir de onde a mesma<br />
teria migrado para <strong>Minas</strong> Gerais. Há indícios da presença humana no Piauí em datas<br />
anteriores a 30 mil anos AP. Assim, a população de <strong>Minas</strong> pode ter migrado do Nordeste,<br />
mas de qualquer forma, isto é difícil de ser comprovado.<br />
6 A maioria dos livros de história e afins se referem a este período como “pré-histórico”. Neste relatório,<br />
entretanto, será usado “pré-colonial” por entender que a expressão “pré-histórico” é carregada de “préconceito”,<br />
pois sugere que a história teve início com a chegada dos colonizadores, o que é um grande engano.<br />
7
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
A menina dos olhos da arqueologia mineira é a pintura rupestre, que é por demais<br />
abundante. Na região do centro mineiro – Lagoa Santa e Serra do Cipó – predomina a<br />
chamada Tradição Planalto, caracterizada por grandes representações de animais e<br />
peixes. Esta tradição se estendeu desde o Paraná até parte da Bahia.<br />
Na região norte do Estado, da mesma forma, há indícios de ocupação entre 11 e 12<br />
mil anos AP, embora não tenham sido encontrados sepultamentos tão antigos. As<br />
informações mais precisas vêem das regiões de Montalvânia e Januária/Itacarambi. A<br />
despeito dos poucos fósseis humanos, uma enorme quantidade de objetos, principalmente<br />
de caça, foi encontrada nesta região. Pontas de flechas, instrumentos de pedra lascada, na<br />
sua maioria robustos e espessos, e lascas compridas e delgadas. Espátulas de osso de veado<br />
e várias bolas de pigmento vermelho foram encontrados, além de grandes fogueiras cheias<br />
de coquinhos queimados e de valvas de moluscos de água doce. Encontraram ainda, blocos<br />
de calcário usados como bigornas para quebrar os coquinhos (Prous, 1999.110). Tudo isto<br />
nos dá algumas dicas da tecnologia, principalmente de caça, destas antigas civilizações.<br />
Neste período mais remoto há algumas evidências da presença do “homem de<br />
Lagoa Santa” no sul da Bahia – região de Jacobina – nas proximidades do norte de <strong>Minas</strong>.<br />
Entretanto, por volta de 7 mil anos AP, há evidências de uma população bem diferente<br />
daquela de Lagoa Santa, com feições bem mais semelhantes aos indígenas modernos, o<br />
que indica uma circulação de civilizações nesta região. Quanto às pinturas rupestres,<br />
predomina a chamada Tradição São Francisco, caracterizada por representações<br />
geométricas e de instrumentos, que se estendeu até o Piauí, Goiás e Mato Grosso.<br />
2.2. CIVILIZAÇÕES DAS ALDEIAS<br />
Por volta de 3 a 2 mil anos AP, os abrigos (cavernas) começam lentamente a serem<br />
substituídos por acampamentos a céu aberto. Ao contrário do que se pensa, as informações<br />
tornam-se menos abundantes, pois os fósseis de sítios a céu aberto são mais vulneráveis.<br />
No último milênio, duas tradições de aldeias se tornam bem evidentes e distintas uma da<br />
outra. A primeira é chamada de Tradição Sapucaí, sobre a qual Prous (1991.216) tece o<br />
seguinte comentário:<br />
(..) multiplicam-se, em todo o Estado, as aldeias de uma cultura que raramente<br />
utiliza os abrigos (...) as aldeias eram formadas por grandes habitações coletivas<br />
dispostas em círculo ao redor de uma praça central (...) a cerâmica não era<br />
decorada, mas os vasos menores recebiam, às vezes, um banho (“engobo”) de tinta<br />
vermelha (...) o lascamento da pedra, em compensação, era praticado e sem maiores<br />
8
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
requintes: estes grupos deviam utilizar muito mais a madeira como matéria para<br />
instrumentos.<br />
Algumas destas aldeias contavam até com dezoito casas, agregando possivelmente,<br />
centenas de pessoas. A partir de vestígios como estes, pode-se atribuir este grupo aos<br />
ancestrais dos indígenas Jê, que até hoje mantêm padrões de aldeamento parecidos.<br />
Os grupos da outra tradição, chamada de Tupi-Guarani, não tiveram tempo de se<br />
tornarem numerosos no Estado de <strong>Minas</strong>, e por isto deixaram pouquíssimos sítios<br />
arqueológicos. Estes vieram da região litorânea, através dos principais rios navegáveis –<br />
Rio Doce e Rio Jequitinhonha – subiram seus principais afluentes e adentraram assim o<br />
território mineiro. Ao menos em parte são ancestrais dos Tupi históricos e sobre eles, é<br />
novamente Prous (1991.217) quem comenta:<br />
Grupos canoeiros e cultivadores de mandioca ocupavam essencialmente ambientes<br />
de mata ciliar onde podiam praticar a agricultura de coivara e a pesca, suas<br />
principais atividade de subsistência. As aldeias tupi-guarani eram também a céu<br />
aberto e compostas por várias grandes malocas (habitações coletivas de forma oval)<br />
cuja ocupação poderia ser por vários anos. À diferença dos Sapucaís, decoravam<br />
suas cerâmicas com relevos feitos na pasta fresca (corrugações feitas pinçando o<br />
barro, impressão de unhas) ou com desenhos geométricos muito delicados pintados<br />
em preto e vermelho sobre um fundo branco.<br />
2.3. CIVILIZAÇÕES DA ÉPOCA DO CONTATO<br />
Quando os colonizadores europeus aqui chegaram no início do século XVI, o<br />
território que hoje forma o Estado de <strong>Minas</strong> Gerais era habitado por um número superior a<br />
cem grupos indígenas. Oiliam José (1965), conseguiu listar setenta e uma tribos que aqui<br />
viviam na segunda metade do século XVI:<br />
1. Abaeté<br />
2. Abaíbas<br />
3. Abatinguara<br />
4. Abatira<br />
5. Aimorés<br />
6. Aiurãs<br />
7. Akroá<br />
8. Aranã<br />
9. Arari<br />
25. Guanhã<br />
26. Guarachués<br />
27. Imburú<br />
28. Inás<br />
29. Kaeté<br />
30. Kamakã<br />
31. Kapoxó<br />
32. Kaxinês<br />
33. Koropó<br />
49. Monoxó<br />
50. Moxotós<br />
51. Mutuns<br />
52. Nachenuques<br />
53. Nacknenuck<br />
54. Naminiquins<br />
55. Panane<br />
56. Parutuns<br />
57. Pojichás<br />
9
10. Araxá<br />
11. Borôros<br />
12. Caiapós<br />
13. Caramonas<br />
14. Cariris<br />
15. Cataguás<br />
16. Catiguçus<br />
17. Coroados<br />
18. Coroxopós<br />
19. Cropós<br />
20. Cururus<br />
21. Formigas<br />
22. Giropoques<br />
23. Goianás<br />
24. Guanaãs<br />
34. Korotó<br />
35. Kotoxó<br />
36. Krakatã<br />
37. Krakmun<br />
38. Krenaques<br />
39. Kumanoxó<br />
40. Maconis<br />
41. Malalis<br />
42. Mandimboias<br />
43. Mapoxó<br />
44. Mariquitás<br />
45. Maxakalis<br />
46. Menin<br />
47. Miritis<br />
48. Mongoyó<br />
58. Ponhames<br />
59. Poté<br />
60. Puriassú<br />
61. Purimirins<br />
62. Puris<br />
63. Purupi<br />
64. Samixumãs<br />
65. Temininó<br />
66. Tocoiós<br />
67. Tongará<br />
68. Tupinikin<br />
69. Xonin<br />
70. Xopotó<br />
71. Zamplans<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Sendo todos ágrafos, não é possível fazer um levantamento preciso, mas é óbvio<br />
que os acima listados são apenas alguns dos muitos povos que aqui viviam. Em textos<br />
sobre a presença indígena na época da colonização, outros nomes vão surgindo, como no<br />
trabalho de Ribeiro (s.d.180-197), do indígena Domingos Pacó (s.d.198-211) e outros:<br />
72. Bacuên<br />
73. Baenã<br />
74. Cânmri<br />
75. Comoxó<br />
76. Cumanoxó<br />
77. Cujãn<br />
78. Cutaxó<br />
79. Hén<br />
80. Jeruñhim<br />
81. Jukjût<br />
82. Kroato<br />
83. Mocuriñ<br />
84. Nerinhin<br />
85. Nhãnhãn<br />
86. Pataxó<br />
87. Pmácjiru<br />
88. Remré<br />
Ao contrário do que se pensa, estes povos não viviam aqui em perfeita paz e<br />
harmonia, como que num paraíso. Além das dificuldades naturais como a ameaça de<br />
doenças e animais ferozes, eles viviam em clima de tensão e conflitos intertribais, inclusive<br />
formando confederações de guerra, como o caso dos famosos e temidos Botocudos.<br />
10
3. PERÍODO COLONIAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Não é possível generalizar o contato dos vários grupos indígenas de <strong>Minas</strong> com os<br />
colonizadores europeus, pois enquanto alguns foram contactados já no século XVI, para<br />
outros o contato só veio a acontecer no século XIX. Podemos porém estabelecer a partir de<br />
quando eles começaram a ser contactados.<br />
Já nos dias da chegada ao Brasil, os europeus ouviam histórias dos indígenas do<br />
litoral sobre os grandes tesouros minerais que haviam no interior. Uma destas histórias era<br />
sobre Sabarabussu 7 (Serra Resplandecente) que seria riquíssima em prata e ouro. A partir<br />
de 1553, expedições são enviadas em busca dos tesouros do interior – incluindo<br />
Sabarabussu – formando assim as famosas bandeiras, compostas por grupos de até mil<br />
pessoas (CEDEFES, 1987.22). Entretanto, a colonização de <strong>Minas</strong> começou efetivamente<br />
só no final do século XVII, com os paulistas que penetraram o sertão dos Cataguases<br />
(Moreno, 2001.19), dentre os quais o mais conhecido é Fernão Dias Paes Leme, que foi<br />
nomeado pelo Rei de Portugal para apossar-se do famoso tesouro de Sabarabussu, sendo<br />
atribuído à sua bandeira o povoamento de <strong>Minas</strong> Gerais em 1674.<br />
Ciente da forte presença indígena nesta região, Fernão Dias leva consigo os<br />
melhores matadores de indígenas, como seu filho Matias Cardoso e o seu genro Manuel<br />
Borba Gato que guerrearam com os Xacriabá. Inicia-se assim efetivamente o sanguinolento<br />
contato dos indígenas de <strong>Minas</strong> com homens que nos livros de história do Brasil são<br />
chamados de heróis, desbravadores do sertão, fundadores de cidades, hoje homenageados,<br />
dando a ruas, bairros e cidades 8 os seus nomes, mas que para os indígenas do século XVII<br />
foram, na verdade, cruéis assassinos e invasores das suas terras.<br />
À medida que iam adentrando o interior, algumas tribos fugiam do contato, outras<br />
resistiam aos exploradores. As que fugiam, se uniam a outras tribos ou acabavam se<br />
envolvendo em conflitos intertribais devido a questão de território, principalmente com os<br />
7 Expressão indígena que viria posteriormente dar nome a atual cidade de Sabará, da grande Belo Horizonte.<br />
8 Inclusive, uma pequena cidade do norte de <strong>Minas</strong>, nas proximidades da reserva Xacriabá, até hoje se chama<br />
Matias Cardoso, em homenagem àquele que lutou com os Xacriabá.<br />
11
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Botocudos do leste que já vinham recuando do litoral também devido ao contato. As tribos<br />
que resistiam eram, muitas vezes, massacradas ou escravizadas. Um grande contingente de<br />
indígenas foi empregado como mão-de-obra escrava pelos conquistadores.<br />
Faltam-nos informações históricas sobre a maioria dos grupos que foram extintos,<br />
principalmente dos que habitavam o oeste do Estado. Infelizmente, podemos dizer que<br />
neste caso, a história não é necessariamente dos indígenas de <strong>Minas</strong>, mas sim dos<br />
sobreviventes indígenas de <strong>Minas</strong>.<br />
3.1. O CONTATO COM OS GRUPOS DO NORTE<br />
O principal interesse dos bandeirantes em <strong>Minas</strong> era exatamente a sua riqueza<br />
mineral e assim a exploração seguiu a rota sul-norte, com algumas ramificações para o<br />
oeste. Já em 1554, sai uma expedição de Porto Seguro, que após percorrer os rios<br />
Jequitinhonha e Pardo em busca da Sabarabussu, seguem por terra até alcançarem o Rio<br />
São Francisco, quando também optam pela rota norte, subindo este rio até a região dos<br />
índios Xacriabá. Não foram bem sucedidos, mas abriram caminho para uma sucessão de<br />
exploradores, tanto caçadores de ouro e prata, como caçadores de indígenas e criadores de<br />
gado (Paraíso 9 , 1987.16).<br />
O norte do atual Estado de <strong>Minas</strong>, bem como o norte de Tocantins e sul da Bahia,<br />
era habitado por vários grupos indígenas além do Xacriabá. Dado aos constantes<br />
enfrentamentos com os bandeirantes, os mais referidos são os Kayapó, mas, segundo<br />
Paraíso (1987.16), “outras referências falam dos Xerente, Xavante, Akwên, Bororo, Pareci,<br />
Karajá, Akroa, Kiriri, Kururu, Guariba, Amoipira, Rodela e Javaé”. A presença dos<br />
exploradores intensificou os conflitos intertribais, e assim começaram a surgir alianças<br />
entre os grupos indígenas, bem como, alianças com os bandeirantes como mecanismo de<br />
sobrevivência, que foi o caso dos Xacriabá.<br />
A figura que mais se destacou nesta região foi Matias Cardoso, filho de Fernão<br />
Dias, que concentra seus esforços na criação de gado nas margens do São Francisco. Em<br />
1690, cada um dos dezenove companheiros de Matias Cardoso recebem 80 léguas 10 de<br />
sesmaria na região, e a ocupação destas sesmarias é marcada por violentos combates entre<br />
9 A Drª Maria Hilda Baqueiro Paraíso é uma profunda conhecedora da história indígena da Bahia, Espírito<br />
Santo e leste de <strong>Minas</strong>, pois sua pesquisa de mestrado foi sobre os grupos que habitavam esta região. É<br />
Professora da Universidade Federal da Bahia, mestra em ciências sociais, doutora em história social e<br />
etnohistória indígena, com dezessete trabalhos publicados e responsável pela elaboração de cinco laudos<br />
periciais antropológicos.<br />
10 Uma légua eqüivale a 6 km.<br />
12
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
indígenas e exploradores. O primeiro grande embate aconteceu no mesmo ano, ou um ano<br />
depois, quando uma aldeia inteira foi destruída e apesar de não haver referência à etnia,<br />
pela localização é provável que se tratava ou dos Xacriabá ou dos Kayapó. Paraíso<br />
(1987.19) informa que Matias Cardoso atacou e escravizou os Anayó, Kiriri, Pimenteira,<br />
Piacú, Jandui e Icó.<br />
Os Kayapó eram resistentes e arredios, atacando tanto as fazendas de gado como as<br />
aldeias Xacriabá, sua tribo rival. Como mecanismo de sobrevivência, os Xacriabá fizeram<br />
aliança com Januário Cardoso de Almeida Brandão 11 , filho e sucessor de Matias Cardoso,<br />
na campanha deste último contra os Kayapó. Como resultado desta aliança, Januário<br />
Cardoso concedeu, em 1728, liberdade e terras aos Xacriabá:<br />
Dei terra com sobra para não andarem nas fasenda alheia do Riaxo do Itacaramby<br />
acima até as cabiceiras e vertentes e descanso extremado na Cerra Geral para a<br />
parte do peruaçú extremado na Boa Vista onde desagua para lá e para cá e por isso<br />
deilhe Terra com Ordi da nossa Magestade (...) já assim não podem andarem pelas<br />
fasendas alheias incomodando os a fazendeiros – missões para morada o brejo para<br />
trabalharem Fora os gerais para a suas cassadas e meladas. Arraial de Morrinhos 10<br />
de fevereiro de 1728. Adiministrador Januario Cardoso de Almeida Brandão<br />
(Schettino, 1999.27).<br />
Há notícias de outros grupos Xacriabá em Goiás nesta época, mas o destino destes é<br />
desconhecido. O grupo que recebeu terras de Januário Cardoso passou a viver em clima<br />
mais pacífico em suas terras, mas sofreu um forte processo de miscigenação étnica com<br />
escravos fugitivos e campesinos vindos da Bahia a procura de terras para cultivar. Desta<br />
forma, a atenção dos historiadores passou a ser concentrada na região leste, onde<br />
habitavam os grupos mais resistentes, os famosos Botocudos.<br />
3.2. O CONTATO COM OS GRUPOS DO LESTE<br />
3.2.1. OS BOTOCUDOS<br />
Por volta de 1760, a mineração começou a entrar em decadência, levando a<br />
metrópole a voltar sua atenção para a lavoura, propondo para isto a colonização dos sertões<br />
do leste mineiro, que tinham como limites a Mata Atlântica habitada pelos Botocudos.<br />
Os Botocudos não eram um povo, mas sim uma confederação de povos que<br />
habitavam a Mata Atlântica concentrados principalmente na Zona da Mata e Vale do Rio<br />
Doce em <strong>Minas</strong> Gerais, Espírito Santo e Bahia. Cada povo tinha seu nome próprio, mas<br />
todos falavam a mesma língua – do Tronco Macro-Jê – com pequenas variações,<br />
11 Uma das mais influentes cidades do norte de <strong>Minas</strong>, recebeu o nome de Januária, em sua homenagem.<br />
13
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
compartilhando a mesma cultura. Ao que parece, a maioria destes grupos eram distintos<br />
etnicamente, mas se uniram para somar forças na defesa e expansão do seu território.<br />
As primeiras notícias dos Botocudos datam de 1505, quando uma grande expedição<br />
chefiada por Francisco Espinoza, tendo como companheiro o padre Azpilcueta Navarro,<br />
subiu os rios Buranhém, Jequitinhonha e São Mateus, encontrando “um povo numeroso<br />
entre os rios Pardo e Jequitinhonha, (...) que se enfeita com grandes rodelas de madeira nas<br />
orelhas e no lábio inferior” (Soares 12 , 1992.23), e os primeiros contatos belicosos se deram<br />
ainda no século XVI, quando da instalação das capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, onde<br />
por fim, grupos Botocudos acabaram sendo aldeados, em 1602, com o trabalho do Padre<br />
Domingues Rodrigues (Paraíso, 1998.414).<br />
Nos registros históricos, vários nomes são dados aos Botocudos. Durante boa parte<br />
do período colonial, eles são chamados de Aimoré – nome dado pelos Tupi aos povos que<br />
não viviam no litoral e não eram do seu grupo. Parece que inicialmente eram chamados de<br />
Tapuias – os povos que moravam no interior. Aparecem ainda outros nomes menos<br />
freqüentes, como Aim-Pore – habitante das brenhas; Aim-Boré – malfeitor; Aim-Buré –<br />
os que usam botoques de embaré; Aim-Biré – nome do chefe indígena que se aliou aos<br />
franceses e que é citado por Padre Anchieta no poema Confederação dos Tamoios; e Guai-<br />
Muré – gente de nação diferente. Em documentos do século XVII, aparecem os nomes<br />
Guerém e Gren-Kren. No século XVIII, passam a ser chamados de Botocudos, sendo<br />
esta a forma mais usada para se referir a eles até hoje. Entretanto, Botocudos é um termo<br />
pejorativo, inventado pelos portugueses, dado ao fato deles usarem botoques como enfeites<br />
labiais e auriculares. Botoque para os portugueses é a rolha com que se fecha o barril de<br />
cachaça. No século XIX, os grupos do Vale do Rio Doce, se autodenominavam<br />
Engrekum, que significa andarilho (Soares, 1992.40-41). Parece que esta confederação<br />
não dava um nome a si própria, ou se dava, este não foi registrado. Cada grupo tinha a sua<br />
autodenominação “que em geral seguia o nome do líder que o fundara, através de cisão<br />
com o originário, ou de uma característica geográfica que identificava o território de caça<br />
exclusivo dos agrupamentos” (Mattos 13 , 1996.65). Os únicos remanescentes Botocudos,<br />
12 Desde 1979 diretamente envolvida com a questão indígena de <strong>Minas</strong> Gerais, Geralda Chaves Soares se<br />
tornou uma das principais indigenistas do Estado. Profunda conhecedora da história indígena de <strong>Minas</strong>, e em<br />
particular dos Botocudos, bem como da história e cultura Maxakali, pois morou com eles durante oito anos.<br />
Fez parte ativa da comissão organizadora da Campanha Internacional pela Regularização do Território<br />
Maxakali. Liderou o processo de obtenção de terras para os Pankararu e agora lidera a luta pelo<br />
reconhecimento étnico dos Aranã. Autora de vários trabalhos na área, entre eles, “Os Boruns do Watu – Os<br />
Índios do Rio Doce”.<br />
13 Izabel Missagia Mattos é uma grande conhecedora da história indígena de <strong>Minas</strong>, em particular dos<br />
Botocudos, pois sobre eles fez sua pesquisa de mestrado. Atualmente está pesquisando novamente sobre a<br />
história indígena de <strong>Minas</strong> para a sua tese de doutorado em antropologia social na UNICAMP. Já escreveu<br />
14
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
por exemplo, se autodenominam Krenak, que é o nome do antigo líder deste grupo, e se<br />
identificam como Borun – os índios, em contraste com Kraí – homem branco.<br />
Paraíso (1998.419) lista nomes de alguns subgrupos Botocudos, como os<br />
Naknenuk, Krakmun, Pejaerum, Jiporok, Pojixá, Nakrehé, Etwet, Takruk-Krak, Nep-Nep,<br />
Gutkrak, Nak-Nhapmã e Miñajirum.<br />
Os Botocudos foram os povos mais bem documentados de todos os períodos da<br />
história indígena de <strong>Minas</strong>, dada a sua forte resistência aos exploradores. Enquanto muitos<br />
grupos desapareceram rapidamente, frente a invasão colonial, os Botocudos se mantiveram<br />
firmes no seu território até tempos bem mais recentes. Eram temidos não apenas pelos<br />
colonizadores, mas também pelos grupos menores que pleiteavam um território nesta<br />
região da Mata Atlântica. Os colonizadores aproveitaram com muita astúcia este clima de<br />
tensão intertribal que já existia, incentivando os conflitos entre os demais grupos com os<br />
Botocudos, para não se exporem na guerra.<br />
3.2.2. OS MAXAKALI<br />
Já os Maxakali, refugiados nas florestas dos vales do Jequitinhonha e Mucuri<br />
foram contactados bem posteriormente. Em 1719, eles se encontravam aldeados em Lorena<br />
dos Tocoiós – atualmente município de Coronel Murta – no Vale do Jequitinhonha<br />
(Soares, 1995.38). O primeiro contato com os colonizadores ocorreu em 1734<br />
(Nimuendajú 14 , 1958.54), quando o mestre de campo João da Silva Guimarães, ao<br />
organizar uma bandeira para conquistar as cabeceiras do São Mateus, lutou com esse povo<br />
na região dos afluentes do Mucuri, na margem norte – provavelmente nas proximidades do<br />
rio Todos os Santos – perdendo seu irmão e muitos membros da bandeira (Paraíso,<br />
1992.5). Ao notar a resistência desses indígenas desistiu de seu intento e foi para as<br />
cabeceiras do Rio Doce (Rubinger 15 , 1963.243).<br />
Na segunda metade deste século os Botocudos que habitavam o Vale do Rio Doce,<br />
tradicionalmente inimigos dos Maxakali, ao sofrerem a ação dos colonizadores na região<br />
começaram a se deslocar rumo ao nordeste de <strong>Minas</strong> Gerais. Fugindo da guerra com esses<br />
mais de cinco textos relacionados ao assunto.<br />
14 Conhecido etnólogo alemão, por vários anos atuando aqui no Brasil entre grupos indígenas, falecido em<br />
1945, Nimuendajú esteve entre muitas tribos brasileiras, dentre as quais os Maxakali e Krenak, coletando<br />
dados que foram encaminhados ao Serviço de Proteção ao Índio. Suas observações se tornaram o primeiro<br />
documento de cunho antropológico escrito sobre os Maxakali.<br />
15 Professor da UFMG, Marcos Rubinger visitou os Maxakali em julho de 1962 e janeiro de 1963, envolvido<br />
com o Projeto de Pesquisa Maxakali. Desta forma, foi o segundo a pôr em papel um texto antropológico<br />
sobre os mesmos. Na segunda visita, se fez acompanhar de uma estagiária do Museu Nacional, professora<br />
Maria Stella Alves de Faria, que veio também a escrever um documento sobre os Maxakali.<br />
15
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
povos, parte dos Maxakali recuou para a beira-mar e foz do Mucuri. Outros grupos<br />
menores se dispersaram por outras regiões e alguns se uniram novamente. Algum tempo<br />
depois, retornaram da costa para o interior, reaparecendo em Lorena dos Tocoiós em<br />
1801, onde permaneceram até 1804. Ali a situação de miséria era tanta que praticavam a<br />
geofagia e a taxa de mortalidade era altíssima. A câmara de <strong>Minas</strong> Novas decidiu distribui-<br />
los entre os colonos e lavradores para servirem de mão-de-obra gratuita.<br />
Em 1804, o alferes Julião Fernandes Taborna Leão criou a 7ª Divisão Militar,<br />
sediando suas tropas em São Miguel – atual Jequitinhonha – e transferiu os Maxakali de<br />
Lorena dos Tocoiós para aquele quartel, para que compusessem suas tropas na guerra<br />
contra os Botocudos. Ali foram também aproveitados como canoeiros, transportadores de<br />
sal entre Calhau – Araçuaí – e o Quartel do Salto – Salto da Divisa – e fornecedores de<br />
objetos utilitários de cerâmica para os colonos. Em todo período imperial os Maxakali<br />
peregrinaram, geralmente em grupos pequenos, na tradicional região do Jequitinhonha e<br />
Mucuri, do leste de <strong>Minas</strong> ao litoral, numa tentativa desesperada de sobrevivência.<br />
16
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
4. MINAS INDÍGENA NO PERÍODO IMPERIAL<br />
4.1. DECLARADA A “GUERRA JUSTA”<br />
Com a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808, fugindo dos franceses, houve<br />
necessidade de mais terras para a Corte Imperial e a expansão se intensificou nas regiões<br />
dos rios Mucuri, Doce, Jequitinhonha e São Mateus, onde se concentravam os grupos<br />
Botocudos. Chegam a D. João VI informações da impossibilidade de conquistar estas áreas<br />
dada a resistência dos belicosos Botocudos. Documentos da época se referem a eles<br />
dizendo que “são bárbaros, traiçoeiros, vingativos, antropófagos, sem alma, sanguinários,<br />
preguiçosos, bestiais, quase animais, não falam o português, não são nem cristãos! E não se<br />
submetem aos brancos!” (Soares, 1987.26). Em resposta, D. João VI declara oficialmente<br />
“guerra justa” aos “antropófagos” Botocudos, autorizando a formação de milícias armadas<br />
para atacar os índios, a divisão entre os oficias das terras indígenas conquistadas, o<br />
aprisionamento e escravização de índios subjugados, maior salário para quem matasse mais<br />
indígenas, isenção de tributos para quem invadisse mais terras, e várias outras regalias 16 .<br />
Esta “guerra” não se limitou aos grupos Botocudos, mas se estendeu a todos os grupos<br />
indígenas do país, mesmo porque, na prática ela já existia, sendo aqui apenas oficializada.<br />
4.2. A POLÍTICA DA “BOA VIZINHANÇA”<br />
Quase paralelo a esta sangrenta e bárbara guerra, começa surgir um novo método de<br />
pacificação dos indígenas e posse de suas terras. Um militar francês chamado Guido<br />
Marlière, percebe que o massacre não seria o caminho ideal para conquistar estas terras,<br />
pois mesmo frente a tamanha opressão e terríveis ataques, os indígenas resistiam, ainda<br />
que o preço desta resistência fosse suas próprias vidas. Marlière começa então a usar a<br />
política da “boa vizinhança”, ganhando a amizade dos indígenas com presentes.<br />
16 Ver Anexo 04: Carta Régia de 13/05/1808 – Declaração de “Guerra Justa”.<br />
17
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Em 1813, ele é enviado pelo Governo aos Vales dos Rios Pomba e Peixe, onde a<br />
violência contra indígenas estava tomando proporções gigantescas. Bem sucedido nesta<br />
região com seu novo método de pacificação, Marlière é enviado aos Vales dos Rios Doce e<br />
São Mateus, em 1819, com a missão de obter a rendição dos Botocudos. Novamente é bem<br />
sucedido, e assim, em 1824 é nomeado Diretor dos Índios de <strong>Minas</strong>. Sua estratégia era<br />
oferecer amizade e proteção aos indígenas, com a sua poderosa organização militar,<br />
espalhada por toda parte. Intensifica assim o surgimento de quartéis e aldeamentos.<br />
4.2.1. OS QUARTÉIS<br />
Os quartéis eram bases militares que ofereciam proteção aos colonos e indígenas<br />
subjugados. Os caciques passaram a ser chamados de capitães. “Marlière dizia que o modo<br />
mais fácil de pacificar uma tribo era entregar um uniforme a seu cacique, nomeando-o<br />
Capitão” (Ribeiro, s.d.187). Geralmente ficavam na borda da mata e assim recebiam as<br />
tribos que perdiam a guerra para outras, sendo expulsas pela fome e pelos inimigos.<br />
O treinamento dos soldados indígenas era mínimo. Durante as guerras ofensivas,<br />
que se davam geralmente no período das secas, eles serviam como soldados contra seus<br />
próprios irmãos. Nas outras épocas, sua missão era plantar lavouras.<br />
4.2.2. OS ALDEAMENTOS<br />
Já os aldeamentos, eram locais construídos pelos padres ou por funcionários do<br />
Governo, para onde eram levados os indígenas atraídos pelos presentes, promessas ou pela<br />
falta de condições de permanecer na mata (CEDEFES, 1998.36). Nestes aldeamentos, os<br />
padres e freiras levavam os indígenas a se “converterem” ao catolicismo, inclusive<br />
batizando-os, ensinavam o português e promoviam casamentos com negros, visando<br />
deliberadamente destruir suas culturas “pagãs”. Somente no período compreendido “entre<br />
1800 e 1850, na área entre os rios Pardo e Doce, estabeleceram-se 73 aldeamentos e 87<br />
quartéis” (Paraíso, 1998.418), em torno dos quais iam juntando-se famílias de soldados,<br />
indígenas “mansos” e artesãos, surgindo assim vilas e povoados, que na sua maioria se<br />
tornaram cidades hoje conhecidas e algumas até prósperas. Às margens dos rios Doce,<br />
Suassuí e Jequitinhonha, somente Marlière organizou aos menos treze aldeamentos.<br />
A política da “boa vizinhança”, entretanto, perdurou apenas durante o trabalho de<br />
Marlière, pois depois da sua aposentadoria e reforma, a violência contra os indígenas<br />
voltou a mesma barbárie de antes. Inclusive, o Vale do Rio Doce se tornou novamente<br />
palco de invasões e massacres.<br />
18
4.3. AS FRENTES DE EXPANSÃO TERRITORIAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
A dominação do Estado de <strong>Minas</strong> se deu a partir de três principais frentes de<br />
expansão, que seguiam respectivamente o curso dos rios Doce, Jequitinhonha e Mucuri, os<br />
quais ligavam o território mineiro ao litoral. Às margens e proximidades destes rios e seus<br />
afluentes se deram os principais massacres de indígenas.<br />
4.3.1. VALE DO RIO DOCE<br />
Ainda no ano de 1808, foi criada a Junta Militar de Civilização dos Índios,<br />
Conquista e Comércio do Rio Doce, estabelecendo seis quartéis ao longo deste rio com<br />
fins de servir como ponto de apoio à guerra de extermínio dos indígenas. Os Botocudos,<br />
profundos conhecedores da selva, resistiram e venceram os soldados desta Companhia,<br />
mas ainda assim, aldeias inteiras foram contaminadas com vírus de varíola e sarampo<br />
(CEDEFES, 1987.32). Apesar desta tamanha resistência inicial, a região do Rio Doce e<br />
seus afluentes mineiros, foi a segunda a ser considerada sob controle, através do trabalho<br />
de Guido Marlière (Paraíso, 1998.418). Desta região, os únicos sobreviventes de guerra<br />
hoje são os Krenak, descendentes dos Botocudos, que mesmo perdendo sua língua e<br />
grande parte dos seus costumes culturais, não perderam a consciência da sua indianidade.<br />
4.3.2. VALE DO RIO JEQUITINHONHA<br />
Esta frente de expansão foi comandada por Julião Taborda Fernandes Leão, chefe<br />
da 7 ª Divisão Militar, que fundou quatro quartéis militares os quais acabaram se tornando<br />
cidades ainda hoje existentes – Jequitinhonha, Almenara, Joaíma e Salto da Divisa.<br />
Aventureiros, assassinos, traficantes e bêbados são alistados nos destacamentos<br />
militares, e desta forma, os aliados na captura dos indígenas foram os piores elementos da<br />
região. O território diminuía e por isto os temidos Botocudos se voltavam contra os grupos<br />
indígenas menores, levando grupos como os Malali, Maxakali e Makuni a buscarem<br />
proteção nos brancos. Julião Taborda usa-os na guerra contra os Botocudos, como já fazia<br />
com os demais índios aprisionados (CEDEFES, 1987.33). O Vale do Jequitinhonha foi a<br />
primeira área a ser considerada pelo Governo como “pacificada”, apesar de alguns grupos<br />
desta região continuarem arredios, evitando o contato, e para isto, se deslocando<br />
constantemente pelas matas (Paraíso, 1998.418). Desta região, os únicos sobreviventes de<br />
guerra hoje são os Maxakali, que quase extintos, se reestruturaram novamente conseguindo<br />
preservar sua língua e cultura, através de um esforço quase sobre-humano.<br />
19
4.3.3. VALE DO MUCURI<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
O Vale do Mucuri é o último a ser dominado pelos exploradores e isto se dá<br />
somente a partir da segunda metade do século XIX. A partir de 1847, chega no Vale a<br />
Companhia do Mucuri, chefiada por Teófilo Otoni que pretende ligar <strong>Minas</strong> Gerais ao<br />
litoral, pois este território ainda era isolado do mar por uma enorme cadeia de montanhas.<br />
Seu sonho é conseguir exportar produtos mineiros para o exterior.<br />
Teófilo Otoni possuía uma filosofia de conquista semelhante a de Guido Marlière.<br />
Seu método não incluía massacres aos indígenas, mas posse de suas terras pela amizade.<br />
Sua primeira tentativa de ligar <strong>Minas</strong> ao mar, foi através da navegação no Rio Mucuri e<br />
para isto construiu dois navios, mas descobriu por fim que o rio não era navegável. Decidiu<br />
então construir uma estrada, o que fez através de braços de mestiços, indígenas e negros,<br />
mas a mesma se tornou inviável devido a doenças, como a malária, que eram muito<br />
comuns na região, bem como, ataques indígenas. Não alcançando seus objetivos, Teófilo<br />
Otoni se retirou do Vale no final da década de 1950, mas deixou para trás colonos,<br />
catadores de poaia, e uma guerra brutal contra os indígenas marcada por invasões de terras,<br />
matança indiscriminada, epidemias de sarampo, varíola e gripe, provocadas de propósito<br />
através de roupas contaminadas e comidas envenenadas (CEDEFES, 1987.42).<br />
4.4. O ALDEAMENTO DE ITAMBACURI<br />
Em 1841, os padres Capuchinhos são contratados pelo Imperador do Brasil para<br />
civilizarem os indígenas (Soares, 1992.73), que tanto resistiam aos colonizadores. Em<br />
1873, Frei Serafim de Gorízia e Frei Ângelo de Sassoferrado chegam ao Vale do Mucuri e<br />
fundam o aldeamento de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, onde hoje é a cidade de<br />
Itambacuri. Eles são chamados de Ink-Jak de Tupan – irmãos de Deus. Este aldeamento<br />
visava catequizar principalmente os índios “Botocudos” – na verdade, o grupo Pojixá do<br />
Vale do São Mateus – que eram os mais belicosos e resistentes. De todos os aldeamentos<br />
de <strong>Minas</strong>, este foi o mais influente e consequentemente o mais bem documentado.<br />
O mais detalhado e fiel relato sobre este aldeamento foi deixado pelo indígena<br />
Domingos Ramos Pacó, filho do “língua” (tradutor) Félix Ramos da Cruz, que foi<br />
catequizado por estes padres, se tornou professor neste aldeamento e em 1918 escreveu um<br />
dos mais raros documentos escrito por um indígena brasileiro do século XIX 17 .<br />
17 Hámbric Anhamprán ti Maltâ Nhiñchopón? 1918. In: RIBEIRO, Eduardo Magalhães (org). Lembranças da<br />
Terra – Histórias do Mucuri e Jequitinhonha. Contagem: CEDEFES, s.d.<br />
20
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Segundo Pacó (s.d.198), as tribos Nocuriñ e Nhãnhãn, que somavam oitocentos<br />
homens, sem contar mulheres e crianças, chefiadas pelo Capitão (cacique) Pohóc, seu avô<br />
materno, habitavam o local quando da chegada dos Freis Serafim e Ângelo, que realizam<br />
ali a primeira missa no dia 13 de abril de 1873. Auxiliados principalmente pelo “língua”<br />
Félix Ramos, Frei Serafim e Ângelo, contactaram várias tribos do Vale e foram<br />
conduzindo-as ao aldeamento, como os Kraccatã, Cujãn, Jeruñhim, Nerinhin, Hén, Jukjût,<br />
Remré, Krermum, Nhãn-Nhãn, Cânmri, Pmácjirum, e outras (Pacó, s.d.201).<br />
Os capuchinhos não pararam por aí. Continuaram atraindo mais tribos para o<br />
aldeamento. Trouxeram tribos como os Aranã e até os temidos Pojixás, mencionados como<br />
“o terror e assombro destas zonas” (Pacó, s.d.202), e que na verdade eram os principais<br />
alvos. Assim, chegaram a ter três mil indígenas, de aproximadamente quinze tribos<br />
diferentes, aldeados em Itambacuri.<br />
Este aldeamento já foi criado sob a regência do Regimento das Missões, elaborado<br />
em 1845 para estabelecer como deveria ser o trabalho dos missionários entre os índios.<br />
Segundo este, as responsabilidades dos capuchinhos era “atrair, aldear, pacificar e<br />
catequizar os índios” (Soares, 1992.74). Assim, o dia-a-dia deste aldeamento foi se<br />
tornando enfadonho para os indígenas aldeados, pois não era nem um pouco semelhante ao<br />
dia-a-dia nas aldeias. O fato de vários povos estarem ali misturados já não agradava aos<br />
indígenas. Havia leis que os obrigavam a casar-se com negros e brancos, para se<br />
misturarem e se tornarem um só povo. Deveriam tornar-se cristãos, abandonando seus<br />
rituais, pois a única religião do aldeamento era a dos padres. Aos meninos era ensinado a<br />
língua portuguesa, e com a chegada das Irmãs Clarissas em 1907, foi criada uma grande<br />
escola, incluindo as meninas que ali eram internadas, junto com brancas, negras e mestiças.<br />
Este ambiente alienígena e opressor rapidamente gerou revolta por parte dos<br />
indígenas que sempre fugiam embrenhando-se nas matas ou retornando para suas aldeias.<br />
Estes eram caçados e alguns retornavam para o aldeamento. Alguns retornavam, devido a<br />
saudade da família ou filhos que haviam deixado para trás. Outros desapareciam e nunca<br />
mais eram vistos. Brigas e protestos se tornaram comuns principalmente provocados pelos<br />
Pojixás que eram os mais arredios e tinham uma liderança muito forte. Quando uma<br />
epidemia de sarampo provocou grande mortandade entre os aldeados, os Pojixás acusaram<br />
os padres de feitiçaria e se revoltaram, queimando o aldeamento e matando alguns padres<br />
(Paraíso, 1998.420). Pacó (s.d.208) lista cinco principais revoltas que aconteceram ali, das<br />
quais a mais grave foi quando em 24 de maio de 1893, Querino Grande, cacique dos Potón,<br />
21
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
liderou setecentos indígenas numa revolta, na qual, os padres Manuel Pequeno e Valentim,<br />
foram flechados, sobrevivendo por pouco.<br />
Com os bandeirantes, os indígenas mineiros foram vítimas de um terrível<br />
genocídio, através da guerra aberta, armas ou doenças intencionalmente provocadas,<br />
levando tribos inteiras à extinção. Com os militares e políticos da “boa vizinhança”, bem<br />
como com os religiosos, eles foram vítimas de um terrível etnocídio, destruindo também<br />
intencionalmente suas culturas e línguas.<br />
Na tentativa de fazer aqui uma abordagem não apenas factual, mas também<br />
ideológica da história indígena de <strong>Minas</strong>, é preciso dizer que na sua maioria, estes padres<br />
foram homens que se gastaram e se doaram, a uma causa que criam ardentemente se tratar<br />
da obra de Deus. Entretanto, foram também manipulados pelo Estado e poderosos, na<br />
ganância de adquirirem uma terra que não lhes pertencia.<br />
4.4.1. DOMINGOS RAMOS PACÓ<br />
Na história dos indígenas de <strong>Minas</strong>, e principalmente do Vale do Mucuri,<br />
Domingos Ramos Pacó é digno de menção especial, pois muitas informações que<br />
chegaram até nós vêm do documento que ele mesmo redigiu em 1918. Como o mesmo<br />
relata (Pacó, s.d.201,203), Pacó nasceu no aldeamento de Itambacuri em 1869, filho da<br />
índia Umbelina, com o “língua” Félix Ramos da Cruz, neto materno de Pohóc, cacique das<br />
tribos Mucuriñ e Nhãnhãn. Educado pelos padres capuchinhos, se tornou sacristão e aos<br />
quatorze anos de idade professor “das primeiras letras”, cargo este que exerceu por dezoito<br />
anos. Trabalhou também como secretário econômico no aldeamento.<br />
No fim do século XIX, desentendendo-se com os padres, deixou o aldeamento e<br />
passou a viver peregrinando na mata por alguns anos em busca de “sinais de Nossa<br />
Senhora”, que indicavam muita riqueza em pedras preciosas. Não achou nenhuma fortuna<br />
e ainda perdeu um dos olhos. Retornou às cidades se tornando professor em Igreja Nova,<br />
atual Campanário. Encorajado pelo historiador Reinaldo Porto, escreveu sua história em<br />
1918 e por volta de 1930 morreu nesta última cidade. Seu texto é um dos mais importantes<br />
para a história indígena de <strong>Minas</strong> Gerais, pois vem das mãos de um indígena do século<br />
XIX, sendo o testemunho mais gritante do massacre cultural feito aos indígenas do Vale do<br />
Mucuri, inclusive à sua própria tribo, que desapareceu sem deixar nenhum sobrevivente.<br />
22
5. MINAS INDÍGENA NA REPÚBLICA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Com a constituição de 1891, a questão indígena deixa de ser uma responsabilidade<br />
da União, ficando os Estados incumbidos de lidar com esta problemática, mas as lutas e<br />
massacres continuam em <strong>Minas</strong> Gerais, principalmente no Vale do Mucuri onde estavam o<br />
mais resistentes.<br />
Logo surge no palco nacional um novo personagem que acabaria se envolvendo<br />
diretamente com a questão indígena: é a pessoa do Coronel Cândido Mariano da Silva<br />
Rondon. Em 1892, Rondon assumiu a chefia da Comissão de Linhas Telegráficas,<br />
passando assim a trabalhar nos interiores mais remotos do país. Nestes trabalhos de<br />
instalação de linhas fez contatos com várias tribos indígenas, ainda não contactadas, como<br />
os Nambikuara, sempre num clima de paz e diálogo (Gomes, 1991.85). Na sua formação<br />
militar, foi fortemente influenciado pela filosofia positivista de Augusto Comte,<br />
apresentando assim uma nova maneira de lidar com o problema indígena. Seu lema era:<br />
“morrer, se preciso for; matar, nunca” (Prezia, 2000.197).<br />
5.1. SPI – SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO<br />
Quando em 1910, sob pressões de intelectuais e personalidades estrangeiras, o<br />
governo criou o SPI – Serviço de Proteção ao Índio, Rondon foi indicado Diretor do<br />
mesmo. Imbuído de um sentimento paternalista, o SPI assume a proteção e tutela dos<br />
indígenas, considerando estes como menores de idade.<br />
Devido à construção das estradas de ferro Bahia-<strong>Minas</strong> e Vitória-<strong>Minas</strong>, o sul da<br />
Bahia, o norte do Espírito Santo e a região do Rio Doce em <strong>Minas</strong> Gerais, tornaram-se as<br />
principais áreas de atuação do recém criado SPI. Os Xacriabá do Norte, por serem<br />
considerados “índios aculturados do Nordeste”, foram totalmente ignorados.<br />
23
5.1.1. OS POSTOS DE ATRAÇÃO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Os postos de atração eram uma nova versão dos aldeamentos. Neles, eram<br />
concentrados um determinado número de indígenas, para a utilização do restante de suas<br />
terras. As estradas de ferro penetraram no território dos últimos Botocudos, em <strong>Minas</strong>, e<br />
para evitar conflitos entre estes, já famosos pela sua belicosidade, e os operários, o SPI<br />
criou cinco postos de atração: (1) Posto da Ermida, no trecho baiano do Jequitinhonha;<br />
(2) Posto do Rio Pepinuque, para o grupo dos índios Jiporok; (3) Posto do Rio Pancas,<br />
no Espírito Santo, para os Miñajirum; (4) Outro no Rio Pancas, para os Gutkrak; e o (5)<br />
Posto do Rio Eme, em <strong>Minas</strong>, para os Krenak (Paraíso, 1998.420). Em decorrência do<br />
contato, uma grande quantidade de doenças infecto-contagiosas dizimaram a população<br />
indígena destes postos, e aos poucos o SPI foi desativando os mesmos, sob a alegação da<br />
drástica redução populacional, restando apenas o Posto do Rio Eme, destinado aos Krenak,<br />
para onde foram transferidos os sobreviventes dos demais postos (Soares, 1992.131).<br />
5.1.2. ARRENDAMENTO DE TERRAS INDÍGENAS<br />
Em 1920, o governador de <strong>Minas</strong> Gerais, Arthur Bernardes, decide doar terras aos<br />
indígenas do Estado. A esta altura, os mais de cem grupos que aqui viviam no século XVI,<br />
estavam reduzidos a três apenas – Xacriabá, Maxakali e Krenak. A maioria foi totalmente<br />
extinta e alguns fugiram para outros estados. Os Xacriabá permaneciam com suas terras no<br />
norte, sendo crescentemente invadidas por campesinos e fazendeiros. Assim, Arthur<br />
Bernardes entrega aos Maxakali 4 mil ha. e aos Krenak 2 mil ha., ampliando<br />
posteriormente para 4 mil ha. também. Entretanto, alegando que os indígenas eram<br />
nômades e sua incipiente agricultura insuficiente para sustentá-los, funcionários do SPI<br />
começaram em 1921 a arrendar terras indígenas – Maxakali e Krenak – para trabalhadores<br />
nacionais, que deveriam pagar com alimento para os indígenas (Paraíso, 1998.421).<br />
Desta forma, tem início efetivo a intrusão de agricultores e fazendeiros nestas<br />
terras, que com o passar do tempo foram se tornando “donos” das terras cultivadas. Para a<br />
criação de bovinos, estas terras, principalmente a dos Maxakali, são desmatadas<br />
transformando-se em pasto, o que acaba com a caça e coleta. Com o desmatamento, os rios<br />
diminuem, desaparecendo também a pesca. Sem suas principais fontes de subsistência, os<br />
índios começam a arrebatar animais dos intrusos de suas terras, bem como, da população<br />
vizinha. O sentimento de ódio e repulsa por parte da população dominante em relação aos<br />
indígenas aumenta ascendentemente. Este conflito entre os inicialmente arrendatários, mas<br />
posteriormente declarados intrusos, perdura até o final do século XX.<br />
24
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Quando em 1940 decide-se demarcar as terras Maxakali várias aldeias ficam fora.<br />
Um grande corredor de fazendas separa as duas aldeias e os fazendeiros intrusos não são<br />
removidos, permanecendo nas terras mais de cinqüenta anos ainda. Nesta mesma data é<br />
aumentado o arrendamento das terras Krenak e o pagamento passa a ser feito ao SPI.<br />
Como se percebe, o SPI se transforma “numa máquina oficial, invadida pela<br />
corrupção e violência” (Prezia, 2000.198). O sonho de um órgão oficial de “proteção” aos<br />
índios, torna-se num pesadelo real de um órgão oficial de “opressão” aos indígenas. O<br />
idealismo de Rondon é frustrado pela ambição de uma sociedade exploradora, governada<br />
por políticos obcecados pela posse de mais e mais terras.<br />
5.2. GRIN – GUARDA RURAL INDÍGENA<br />
Com o golpe de 1964, quando se instalou o regime militar no país, o SPI foi<br />
extinto, com a destituição de toda sua diretoria. Dois anos depois, em 1966, foi criada a<br />
GRIN – Guarda Rural <strong>Indígena</strong>, com o objetivo de transformar os indígenas em militares,<br />
sob o comando do Capitão Pinheiro.<br />
<strong>Indígena</strong>s de toda parte do país foram transportados para Belo Horizonte, onde<br />
receberam treinamento militar, para reprimir seus próprios irmãos. “Xerente, Pankararu,<br />
Urubu Kaapor, Gavião, Pataxó, Maxakali” (Soares, 1992.138) são apenas alguns dos<br />
muitos povos representados na GRIN. Como já era de se esperar, este treinamento não<br />
levou em consideração questões étnicas e culturais. Acontece então um grande etnocídio e<br />
acelera o processo de destruição cultural. Muitos índios revoltados fogem, ou tentam fugir,<br />
e são duramente reprimidos.<br />
5.2.1. COLÔNIA PENAL INDÍGENA<br />
No mesmo ano que é criada a GRIN, cria-se também uma Colônia Penal <strong>Indígena</strong>,<br />
e o local escolhido para sediá-la é o território Krenak, do Vale do Rio Doce. Para lá são<br />
levados em regime de detenção indígenas acusados de crimes, tachados como rebeldes e<br />
infratores. O Centro de Reeducação <strong>Indígena</strong> funciona no velho esquema militar: trabalho<br />
forçado, solitária, violência e assassinatos (Soares, 1992.140-141).<br />
Segundo Paraíso (1998.422), “o presídio chegou a abrigar entre sessenta e oitenta<br />
indivíduos, em média”, com representantes das tribos Karajá, Kampa, Mawé, Xerente,<br />
Kayapó, Baenã, Kadiwéu, Bororo, Kaiwá, Kanela e Pankararu. Os principais motivos de<br />
25
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
detenção ali registrados, foram roubo, homicídio, embriaguez e vadiagem. Em 1971, este<br />
presídio foi transferido para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia, e com ele os<br />
seus detentos, juntamente com os anfitriões compulsórios – Krenak, e lá se juntou a eles<br />
um grupo dos Pataxó da Bahia. Esta colônia penal funcionou apenas até 1972, mas foi<br />
tempo suficiente para provocar a morte, sofrimento, exílio e fuga de vários indígenas,<br />
principalmente Krenak.<br />
5.3. FUNAI – FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO<br />
Em dezembro de 1967 foi criada a FUNAI – Fundação Nacional do Índio,<br />
substituindo assim o extinto SPI. Enquanto o SPI tinha como principal objetivo “civilizar”<br />
os indígenas e torná-los úteis à sociedade dominante, a FUNAI tem o objetivo de<br />
“integrar” os indígenas à sociedade dominante. Desenvolvendo trabalho em parceria com<br />
entidades religiosas e ONG’s, tem em <strong>Minas</strong> como principais parceiros o CIMI – Conselho<br />
Indigenista Missionário, com forte atuação principalmente entre os Maxakali a partir da<br />
década de 1980, e o CEDEFES – Centro e Documentação Eloy Ferreira da Silva, que até<br />
hoje lidera a luta pelos direitos indígenas no Estado. Surge assim um movimento de<br />
articulação, sendo um marco deste a Primeira Assembléia <strong>Indígena</strong> do Leste, realizada em<br />
Itambacuri, em 1979 (Ribeiro, s.d.7). Na década de 1980, os indígenas de <strong>Minas</strong> obtêm<br />
apoio de sindicatos de trabalhadores e em 1989 acontece em Governador Valadares, o 1 º<br />
Encontro de Lideranças <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais e Espírito Santo (Soares, 1992.15).<br />
5.4. DESFECHO HISTÓRICO DOS GRUPOS MINEIROS<br />
O século XX foi marcado por uma intensa resistência e luta dos grupos Xacriabá,<br />
Maxakali e Krenak pela sobrevivência e posse de suas terras. Mesmo neste século, muito<br />
sangue indígena foi derramado e o leste e norte do Estado foram palco de ações brutais por<br />
parte do governo, fazendeiros e poderosos contra os indígenas.<br />
5.4.1. A LUTA DOS XACRIABÁ<br />
Devido a sua forte miscigenação étnica e elevado grau de descaracterização<br />
cultural, os Xacriabá permaneceram basicamente sem nenhuma assistência até bem<br />
recente. “No início do século XIX, os Xacriabá de São João das Missões estavam<br />
abandonados pelo poder da província (...) sem missionário ou diretor” (Paraíso, 1987.22), e<br />
26
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
esta situação se estendeu até a segunda metade do século XX. Apesar de não serem mais<br />
vítimas das elites pioneiras, portugueses e paulistas, foram vitimados por outro tipo de<br />
invasão. Levas de baianos pobres, sertanejos, retirantes do sertão baiano em função das<br />
secas, migraram para <strong>Minas</strong> em busca de terras para cultivo (Schettino, 1999.28).<br />
A primeira geração de retirantes acolhidos pelos Xacriabá em suas terras,<br />
entenderam o princípio de uso da terra não como propriedade privada mas comunitária,<br />
entretanto, os filhos destes retirantes, que na sua maioria nasceram ali, passaram a se sentir<br />
donos das terras. Muitos desses retirantes se casaram com indígenas tornando o<br />
relacionamento interétnico tolerável, mas com o passar do tempo, a situação foi se<br />
tornando conflitiva. Esses casamentos interétnicos provocaram também uma forte<br />
miscigenação que hoje é bem visível. A população Xacriabá é bem morena e de cabelos<br />
crespos, dada à grande quantidade de casamentos com negros forros, ou baianos. Vale<br />
lembrar, que isto se deu principalmente entre a segunda metade do século XIX e primeira<br />
do século XX, período de transição do Império à República e promulgação da Lei Áurea,<br />
quando “a tendência dos índios foi de acolher dentro dos seus limites (...) contingentes<br />
marginalizados da sociedade nacional, retirantes baianos pauperizados e negros forros ou<br />
fugidos que encontraram no território indígena condições mínimas de sobrevivência e<br />
sociabilidade” (Schettino, 1999.31).<br />
Mas a invasão se deu não apenas por retirantes. Fazendeiros da região,<br />
ambicionando aumentar suas propriedades, exerceram também forte pressão sobre os<br />
Xacriabá, expandindo seus limites para dentro da reserva indígena.<br />
Quando o SPI foi criado em 1910, se dedicou apenas aos índios isolados, ignorando<br />
os “aculturados do Nordeste”. Somente em dezembro de 1973 foi criado o Posto <strong>Indígena</strong><br />
Xacriabá e em 1979 seu território foi homologado, com 46.414,92 ha. sendo na verdade<br />
uma redução da área doada por Januário Cardoso, que por sua vez constituía-se numa<br />
pequena parcela do território original. Um lugarejo chamado Rancharia, considerado por<br />
eles parte do seu território ficou fora desta homologação, o que gerou certa insatisfação.<br />
Suas terras, entretanto, permaneceram infestadas de posseiros que os oprimiam e<br />
limitavam seu território. A partir da homologação a tensão com estes posseiros se<br />
intensificou, tomando uma dimensão de agressividade. No dia 14 de maio de 1986, o<br />
indígena José Pereira Lopes, conhecido como Zé de Benvinda, foi assassinado, pela ação<br />
de pistoleiros, ficando feridos os indígenas Manuel Fiuza Filho e o homônimo do morto,<br />
José Pereira Lopes, na aldeia de Sumaré (Paraíso, 1987.25).<br />
27
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Conseqüentemente, instaurou-se um clima de revolta e medo na reserva,<br />
aumentando drasticamente a tensão. Por volta das duas horas da madrugada, do dia 12 de<br />
fevereiro de 1987, na aldeia Sapé, a casa do vice-cacique Rosalino Gomes de Oliveira foi<br />
cercada por dezesseis pistoleiros que dispararam tiros impiedosamente contra todos que<br />
estavam na residência. Naquele dia foram mortos os indígenas Rosalino, José Teixeira e<br />
Manuel Fiuza da Silva, que ainda se recuperava dos ferimentos do ultimo ataque. Anísia<br />
Nunes, esposa de Rosalino, grávida de dois meses, abraçando a filha Rosalina, de apenas<br />
dois anos, também foi ferida no braço. Seu filho José Nunes, hoje um dos professores<br />
Xacriabá, naquela época apenas com dez anos de idade, foi obrigado a arrastar o corpo<br />
ensangüentado do pai até o terreiro, para os pistoleiros verificarem se realmente estava<br />
morto. Seu irmão, Domingos Nunes, conseguiu fugir sob tiros em sua direção, e é o<br />
próprio que relata esta drástica e revoltante chacina (Oliveira, 1997.35,36).<br />
Com esta chacina o processo foi levado a sério e assim, ainda em 1987, finalmente<br />
foi processada a expulsão dos posseiros da reserva Xacriabá. No entanto, dois fatos ainda<br />
os incomodavam. Seu território permaneceu ligado ao município de Itacarambi, onde o<br />
prefeito não era nem um pouco simpatizante dos indígenas, aliás, foi um dos mandantes<br />
desta última chacina. Desta forma, continuam lutando até que em 1996 São João das<br />
Missões foi emancipado município, se desligando assim de Itacarambi, e o cacique<br />
Rodrigão foi eleito e reeleito vice-prefeito (Dutra, 1998.36-38). Outro fato, era o vilarejo<br />
de Rancharia, que com aproximadamente setenta famílias, somando cerca de seiscentas<br />
pessoas, permanecia não homologado como território indígena. Em 1996, entraram com<br />
uma reivindicação oficial junto à FUNAI solicitando a regularização de Rancharia com<br />
6.600 ha., o que aconteceu no início de 2001, ampliando assim o território total dos<br />
Xacriabá para 53.014,92 ha. Assim, finalmente reina paz na reserva Xacriabá.<br />
5.4.2. A LUTA DOS KRENAK<br />
Apesar de receberem terras do governo em 1920, os Krenak não tomaram posse<br />
efetiva das mesmas tão cedo. Com a prática do arrendamento de terras indígenas, os reais<br />
proprietários foram sendo compulsoriamente expulsos. Já em 1923 acontece um terrível<br />
massacre em Cuparaque, município de Resplendor, quando vários homens, mulheres e<br />
crianças Krenak foram assassinados. Em 1930, o SPI transfere outros povos indígenas para<br />
o Posto <strong>Indígena</strong> Krenak o que resulta numa óbvia miscigenação étnica.<br />
Em 1942 seu território foi demarcado com uma área de 3.983.09 ha., mas em 1956<br />
são exilados para as terras dos seus antigos inimigos Maxakali e o Posto <strong>Indígena</strong><br />
28
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
declarado extinto. Como já era de se esperar, o contato com os Maxakali resultou em<br />
conflitos, ocasionando o retorno do grupo, à pé, dois anos depois, para suas antigas terras,<br />
que nesta altura estavam invadidas (Faria, 1992.12). Caminharam noventa e cinco dias.<br />
Os Krenak passam a conviver de forma forçada com os fazendeiros que haviam se<br />
apoderado das suas terras, convivência esta que é agravada com a criação da Colônia Penal<br />
em 1966 ao introduzir indígenas de várias outras etnias no mesmo ambiente.<br />
Em 1972, são novamente exilados, só que desta vez na Fazenda Guarani, município<br />
de Carmésia, para onde foi transferida a Colônia Penal. Os que se recusaram a sair da terra<br />
foram algemados e levados pela polícia. Alguns foram para o Posto <strong>Indígena</strong> de Vanuíre,<br />
em São Paulo, viver com os Kaygang, enquanto outros se dispersaram e foram viver<br />
clandestinamente em Colatina, no Espírito Santo. Mas ainda na década de 1970, começam<br />
a se organizar na luta pela terra, fazendo contatos com autoridades em Belo Horizonte e<br />
Brasília. Recebem apoio do CIMI, antropólogos e outras entidades.<br />
Em 1979, o Rio Doce enche e transborda, devastando as plantações dos fazendeiros<br />
que ocupavam as terras. Nesta altura, a articulação dos Krenak pela posse das terras já<br />
estava bem avançada e eles entendem esta enchente como um sinal de que estava na hora<br />
do retorno. Os fazendeiros se mobilizam, mas eles recebem apoio de trabalhadores rurais,<br />
sindicatos, imprensa e várias outras entidades e retornam novamente às suas terras.<br />
Seguem-se então duas décadas de demanda judicial. Mesmo sendo despejados por<br />
várias vezes, os Krenak persistem sempre retornando novamente. Em 1989 um grupo dos<br />
Krenak que estava vivendo em Vanuíre retornou, aumentando assim a força indígena.<br />
Vários encontros são realizados, não apenas entre os indígenas de <strong>Minas</strong>, mas também com<br />
os do Espírito Santo e Bahia. Destaca-se neste período o apoio da Igreja Metodista de<br />
Colatina e Belo Horizonte, através do trabalho do GTME - Grupo de Trabalho Missionário<br />
Evangélico (Soares, 1992.191-193). Houve uma grande mobilização, até que finalmente<br />
obtiveram a reintegração do seu território, com 3.983,09 ha., sendo os posseiros retirados<br />
pela ação da Polícia Federal, em abril de 1997 (Dutra, 1998.18).<br />
5.4.3. A LUTA DOS MAXAKALI<br />
Somente depois da visita de Curt Nimuendaju aos Maxakali em 1939, quando<br />
registrou a existência de duas aldeias apenas, Mikael e Mikax-kakax, no Umburanas, com<br />
cento e vinte a cento e quarenta indígenas (Nimuendajú, 1958.56), é que saiu a decisão<br />
oficial de demarcar as terras, sendo criado no ano de 1941 o Posto <strong>Indígena</strong> Maxakali na<br />
aldeia de Água Boa. Na demarcação algumas aldeias ficaram de fora o que gerou<br />
29
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
insatisfação dos indígenas e deu liberdade para a entrada de posseiros. O Pradinho que se<br />
encontrava invadido por fazendeiros não foi demarcado. Até a fundação do posto as terras<br />
eram exploradas pelo comércio de poaia, peles e madeira que durou até quase o<br />
desaparecimento total das matas.<br />
Segundo dados do arquivo do SPI, no ano de 1942 a população Maxakali estava<br />
reduzida a cinqüenta e nove pessoas (Rubinger, 1963.252). Entretanto, parece que estes<br />
dados não são precisos, pois como citado acima, Nimuendajú, apenas três anos antes,<br />
registra cento e vinte a cento e quarenta indígenas, e o próprio arquivo do SPI registra<br />
cento e dezoito pessoas em 1943, um ano depois (Rubinger, 1963.253). O certo é que neste<br />
período os Maxakali estavam reduzidos a um pequeno grupo de pessoas. Aliás, não foi a<br />
primeira vez, pois Amorim (1966.5) afirma que em datas anteriores um surto “de sarampo<br />
reduziu ainda mais a população, restando apenas cerca de 15 indivíduos, sendo o número<br />
de homens duas vezes maior que o de mulheres”.<br />
Antônio Cascorado Maxakali liderou, na aldeia do Pradinho, a luta pela terra. Os<br />
conflitos envolvendo índios e fazendeiros continuaram e são expulsos cinqüenta agregados<br />
trazidos de Felizburgo. Em 24 de dezembro de 1955 é assassinado o líder Cascorado<br />
Maxakali. O governo então decide demarcar a aldeia do Pradinho com 1.028,39 ha.<br />
separada de Água Boa, com 2.412,19 ha., por uma área de 1.852,55 ha. A demarcação é<br />
feita em 1956 mas com a extinção do SPI e surgimento da GRIN e FUNAI, segue um<br />
período de grande instabilidade. Em 1972 o Governador do Estado de <strong>Minas</strong> Gerais,<br />
Rondon Pacheco, através da Rural <strong>Minas</strong> titula os onze fazendeiros que ocupavam a área<br />
intermediária entre Água Boa e Pradinho.<br />
No ano de 1979 é liberada para a pastoral indigenista a presença de uma equipe de<br />
missionários do CIMI Leste na área. No ano seguinte a FUNAI responde às pressões dos<br />
fazendeiros implantando o PDIA – Projeto de Desenvolvimento, Integração e Assimilação<br />
– em convênios com a UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora. Neste projeto, houve<br />
uma integração de professores, antropólogos, psicólogos e médicos para conseguirem a<br />
assimilação dos indígenas. Desrespeitaram sua identidade étnica e cultural ao tentarem<br />
impor um outro modo de vida e organização. O conflito entre índios e posseiros toma<br />
dimensões gigantescas, culminando em brutescos assassinatos.<br />
Dia 09 de julho de 1983, dois grupos de Maxakali retornam do sul da Bahia, onde<br />
havia vendido uma boa quantidade de feijão. Haviam também ingerido bastante bebida<br />
alcoólica, estando assim embriagados. O grupo de Alcides era o último e juntamente com<br />
ele vinha sua esposa Jovita e seu filho, ainda criança. Alcides era filho do cacique<br />
30
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Capitaozinho e estava sendo preparado para assumir o lugar do pai. Cansados da longa<br />
caminhada, pararam à noite, na beira do caminho, numa fazenda, para descansar um pouco<br />
e ali acenderam uma fogueira. Três pistoleiros do fazendeiro se aproximam, comem pão<br />
oferecido a eles por Alcides e depois covardemente o assassinam a golpes de facão. Sua<br />
esposa, filho e demais do grupo são perseguidos, mas conseguem fugir.<br />
Toda a tribo se revolta, querem a punição dos culpados, a unificação das áreas e a<br />
retirada dos fazendeiros intrusos. As autoridades fazem vista grossa, inclusive a FUNAI, e<br />
a imprensa se contradiz, mas o fato tem uma grande repercussão e de todo o Brasil chegam<br />
abaixo-assinados e cartas de apoio à luta dos Maxakali. As duas aldeias se organizam<br />
passando a realizar reuniões semanais e muitos rituais religiosos para unir o povo.<br />
No silêncio da FUNAI, apelam para deputados e outras autoridades, mas a<br />
violência não para aí. Em fevereiro de 1987, Osmiro Maxakali é encontrado morto numa<br />
fazenda. Osmiro é um jovem de 29 anos, filho de Otácio e Licinha Maxakali.<br />
Recentemente havia brigado com o filho do dono da fazenda onde foi encontrado seu<br />
corpo. Novas manifestações são feitas e a luta se intensifica (CEDEFES, 1987.70-98).<br />
Segue-se uma década de morosa luta pela desocupação da gleba de 1.852,55 ha.<br />
entre as duas aldeias. É elaborado um mapa da área. Contatos são feitos com Brasília e<br />
com a imprensa, sob apoio de vários órgãos, igrejas e entidades internacionais, bem como,<br />
da sociedade civil através de abaixo-assinados e cartas aos Governos Estadual e Federal.<br />
Os Maxakali tem contato com os demais povos nas Assembléias <strong>Indígena</strong>s.<br />
Em agosto de 1993, o Governo Federal reconhece como terra indígena a área<br />
intermediária. A faixa é demarcada, mas o processo de regularização não é concluído e<br />
assim os posseiros continuam nas terras. Em 1995, é lançada a Campanha Internacional<br />
pela Regularização do Território Maxakali, com apoio do CIMI, CEDEFES, da<br />
Dreitkõnigsaktion da Áustria, da CESE – Coordenação Ecumênica de Serviços e de outras<br />
entidades nacionais e internacionais ligadas à defesa dos direitos humanos e dos povos<br />
indígenas. Após quatro prorrogações do prazo, foi finalmente estipulada a data de 20 de<br />
junho de 1999 como prazo máximo para a retirada dos posseiros. Com a participação de<br />
policiais militares e federais, os quatorze fazendeiros finalmente desocuparam as terras,<br />
após mais de cinqüenta anos de invasão.<br />
31
5.5. O PROCESSO DE MIGRAÇÃO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
A partir da década de 1970, os conflitos envolvendo grupos indígenas se<br />
intensificaram no leste do país, principalmente no Nordeste, levando vários grupos a<br />
migrarem para outras regiões. Desta, forma, <strong>Minas</strong> que tinha apenas os Xacriabá, Maxakali<br />
e Krenak em seu território, começa a receber outros grupos em busca de terras.<br />
5.5.1. OS PATAXÓ<br />
Com a criação do Parque Nacional de Monte Pascoal nos anos sessenta, os Pataxó<br />
da Bahia se tornaram vítimas de diversas atrocidades, como mortes, estupros e destruição<br />
de casas, diminuindo consideravelmente o seu território tradicional, o que resultou na<br />
degradação de sua condição de vida naquela região (Vilarino, 2001.17). Assim, um grupo<br />
dos mesmos migrou para a Fazenda Guarani em Carmésia, se juntando aos exilados<br />
Krenak que nesta época lá estavam. Entretanto, segundo a indigenista Vanessa Caldeiras 18 ,<br />
há evidências de que grupos Pataxó habitaram esta região em tempos anteriores. Com o<br />
fim da Colônia Penal e regresso dos Krenak para seu antigo território, os Pataxó<br />
permaneceram, obtendo posse oficial daquela terra.<br />
5.5.2. OS PANKARARU<br />
Com a construção da Hidrelétrica de Itaparica, somando os conflitos com<br />
fazendeiros e o grave problema da seca, um grupo dos Pankararu da aldeia de Brejo dos<br />
Padres, em Pernambuco, migraram em sentido sul, ainda na década de 1950. Após<br />
morarem com os Krahô, Xerente e Karajá, uniram-se aos Pataxó da Fazenda Guarani em<br />
1983, onde permaneceram por onze anos, até conseguirem, em 1994, sua própria terra no<br />
Vale do Jequitinhonha (Caldeiras, 2001c.36).<br />
5.5.3. OS XUKURU-KARIRI<br />
Em função de inúmeros conflitos e mortes na região de Palmeira dos Índios em<br />
Alagoas, sob a forte liderança do cacique Warkanã D’Aruanâ, um grupo migrou para a<br />
região de Paulo Afonso na Bahia. Novamente se envolveram em conflitos e assim, em<br />
18 Durante uma palestra no CEDEFES, em 12/04/2002. Antropóloga e Socióloga, Vanessa Caldeira é<br />
indigenista do CEDEFES, atuando na área de direitos/políticas indígenas. Tem acompanhado de perto a<br />
questão indígena de <strong>Minas</strong> e recentemente foi uma das principais responsável pelo reconhecimento étnico<br />
oficial dos Kaxixó.<br />
32
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
1998, migraram finalmente para <strong>Minas</strong> Gerais, permanecendo por algum tempo em São<br />
Gotardo até conseguirem terras no município de Caldas, em 2001 (Caldeira, 2001d.20).<br />
Vale lembrar que, em 1969, um grupo de vinte índios Guarani do Rio de Janeiro<br />
vieram também para <strong>Minas</strong> Gerais, se instalando na Fazenda Guarani, mas não<br />
permaneceram (Paraíso, 1998.422). Outros grupos como os Atikum e Tembé, também<br />
migraram para <strong>Minas</strong>, porém retornaram para suas terras ou seguiram para outros estados.<br />
5.6. O PROCESSO DE EMERGÊNCIA<br />
Nas duas últimas décadas do século XX um novo fenômeno marca a história dos<br />
indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais. Grupos originariamente mineiros, mas dispersos por várias<br />
partes do Estado e do país durante o processo da colonização e expansão territorial,<br />
desaparecendo assim historiograficamente, começam a se reorganizar em tribos e<br />
reivindicar seus direitos como grupos indígenas. É bem verdade, que neste processo,<br />
algumas famílias envolvidas na articulação estão interessadas apenas na posse de terras, o<br />
que de qualquer forma é direito que lhes assiste, mas a maioria dos envolvidos são<br />
movidos por um sentimento e consciência da sua indianidade. São grupos que perderam<br />
em grande parte sua cultura tradicional, língua e estilo de vida tribal, mas que preservaram<br />
sua identidade étnica na convicção de jamais terem deixado de ser indígenas.<br />
5.6.1. OS KAXIXÓ<br />
As primeiras expedições de bandeirantes paulistas nas imediações dos rios Pará,<br />
São Francisco e Rio das Velhas, região dos Kaxixó, tiveram início ainda no século XVII,<br />
na esperança de localizarem a famosa Sabarabussu (Caldeiras, 1999.51). Como nas demais<br />
regiões do Estado, os quartéis e aldeamentos dizimaram os indígenas da região e neste<br />
processo os Kaxixó foram dispersos pelas várias fazendas e povoados que surgiram.<br />
Foram envolvidos pelo processo de agregação (Ribeiro, s.d.24-29) se tornando<br />
trabalhadores braçais nas fazendas da região. Apesar de conscientes da sua indianidade,<br />
permaneceram em silêncio durante anos, sendo esta consciência passada de pais para<br />
filhos, mas não revelada em temor da discriminação por parte da população dominante.<br />
Em 1986, envolvidos num conflito de terras com fazendeiros, pediram ajuda ao<br />
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pompéu, revelando a estes a sua identidade. Na<br />
impossibilidade de oferecer ajuda efetiva, o Sindicato passou a situação para o CEDEFES,<br />
33
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
entidade que têm atuado eficazmente na questão indígena do Estado. Desta forma, têm-se<br />
início a luta dos Kaxixó pelo seu reconhecimento étnico oficial, sendo realizado neste<br />
mesmo ano um levantamento histórico sobre o grupo pela indigenista Geralda Soares.<br />
Em 1992, a liderança Kaxixó participou da II Assembléia Geral da APOINME –<br />
Associação dos Povos <strong>Indígena</strong>s do Nordeste, <strong>Minas</strong> Gerais e Espírito Santo, recebendo<br />
apoio dos vinte e quatro povos indígenas ali representados. Enfrentando oposição de<br />
fazendeiros vizinhos desde o início, em 1993 surge a primeira resistência oficial por parte<br />
de governantes. O prefeito do município de Martinho Campos emite nota à imprensa<br />
repudiando a luta dos Kaxixó.<br />
No ano seguinte, um laudo antropológico é realizado a pedido da FUNAI o qual dá<br />
parecer contrário ao reconhecimento étnico do grupo. Superam a frustração inicial e<br />
retornam à luta em 1995, quando participam da IV Assembléia Geral da APOINME, onde<br />
são fortemente encorajados a continuar e logo recebem apoio da ABA – Associação<br />
Brasileira de Antropólogos. Assim, em 1996 se fazem presentes na abertura do Programa<br />
de Formação de Professores <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais, no Parque do Rio Doce e em 1998<br />
iniciam sua participação na programação da Semana dos Povos <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais,<br />
organizada pelo CIMI e CEDEFES (Caldeiras, 1999.9-14).<br />
Em 1997 solicitaram ao CEDEFES a realização de um estudo sobre a história do<br />
grupo. Através de denúncias sobre a destruição de sítios arqueológicos na área por eles<br />
ocupada, tiveram acesso também à Procuradoria Geral da República, a qual instaurou um<br />
processo de investigação implicando em conseqüente estudo sobre a identidade étnica do<br />
grupo, estudo este que teve parecer favorável.<br />
Frente a tal parecer, a FUNAI solicitou, em 2000, uma nova análise antropológica,<br />
desta vez por um antropólogo indicado pela ABA. Em julho do mesmo ano saiu o<br />
resultado com parecer favorável (Caldeiras, 2001b.40) e em dezembro o órgão indigenista<br />
nacional concluiu o caso, os reconhecendo oficialmente. Resta agora a restituição e<br />
regularização do seu território tradicional.<br />
5.6.2. OS ARANÃ 19<br />
Com “sua origem na história dos Botocudos (...) os Aranã foram aldeados pelos<br />
missionários capuchinhos em 1973, no Aldeamento Central Nossa Senhora da Conceição<br />
19 A maior parte das informações aqui contidas foram obtidas em entrevista com o Sr. Pedro Índio de Souza<br />
(em 20/03/02), mais conhecido como Gilmar, um dos filhos de Pedro Sangê, hoje morador de Belo<br />
Horizonte, e com a indigenista Geralda Soares (em 08/02/02), moradora da cidade de Araçuaí de onde dá<br />
suporte à articulação do grupo Aranã na luta pelo reconhecimento étnico oficial.<br />
34
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
do Rio Doce, onde epidemias dizimaram a população. Alguns sobreviventes migraram<br />
para o Aldeamento de Itambacuri, de onde saíram os ancestrais dos Aranã de hoje (...)”<br />
(Matos, 2000b.16). Os poucos sobreviventes Aranã deste aldeamento, foram dispersos por<br />
várias regiões sendo envolvidos pelo processo de agregação (Ribeiro, s.d.24-29) e<br />
perdendo quase na totalidade a consciência étnica. Entretanto, um certo Manoel, levado<br />
ainda quando criança para a região do Vale do Jequitinhonha, fez algo até então inédito,<br />
inserindo a expressão “índio” em seu nome, passando a se identificar como Manoel Índio e<br />
teve três filhos que também eram identificados com este sobrenome (Caldeira, 2001a.6)<br />
Um dos seus três filhos, Pedro Inácio Figueiredo, mais conhecido como Pedro<br />
Sangê, tonou-se o patriarca do atual grupo Aranã, e foi além do seu pai no ineditismo, pois<br />
registrou em cartório os dez filhos do seu segundo casamento com o sobrenome “índio”.<br />
Segundo relato do seu próprio filho Gilmar, Sangê possuía o domínio da leitura e escrita,<br />
sendo não apenas alfabetizado, mas também um alfabetizador.<br />
Na fazenda Alagadiço, no município de Coronel Murta, Vale do Jequitinhonha, a<br />
família Índio teve contato com a família Caboclo. Enquanto a primeira era identificada<br />
como indígenas dado ao seu sobrenome e aparência física, a segunda era assim chamada<br />
pejorativamente, o que no entanto, não deixa de remeter-lhes a uma origem indígena.<br />
Assim, unem-se através de casamento e compartilhamento do mesmo território.<br />
Seu território está exatamente ao lado dos Pankararu e foi o contato com estes<br />
últimos que despertou os Aranã para os direitos que lhes assistem enquanto povo indígena.<br />
Assim, a partir de 1994 começaram a se organizar e iniciaram efetivamente uma luta pelo<br />
reconhecimento étnico, estando presentes no movimento indígena estadual e nacional. Em<br />
2001 houve um grande avanço, quando a Procuradoria Geral da República esteve no<br />
município fazendo um levantamento da real situação e a FUNAI solicitou à ABA que<br />
fizesse um laudo antropológico para averiguar a sua indianidade.<br />
Percebemos assim que ao longo dos séculos foram desenvolvidas diferentes<br />
categorias étnicas no Brasil como resultado da adaptação ao seu meio ambiente e<br />
posteriormente do sangrento processo de dominação e miscigenação étnica. Os<br />
agrupamentos indígenas no Estado de <strong>Minas</strong> Gerais foram quase todos dizimados ou<br />
forçados a migrarem para outras regiões, restando apenas alguns remanescentes, que<br />
juntamente com outros que para aqui migraram, e ainda alguns que ressurgiram, lutam por<br />
seu espaço. Na parte seguinte, estes grupos serão estudados separadamente.<br />
35
<strong>SEGUNDA</strong> <strong>PARTE</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>: Uma Perspectiva Sociocultural<br />
36
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Antes de apresentarmos a situação sociocultural de cada grupo indígena de <strong>Minas</strong>,<br />
fazem necessárias algumas considerações que, embora bastante genéricas, nos ajudarão a<br />
posicionar o agrupamento étnico indígena do Estado dentro de uma análise geral, bem<br />
como justificarão algumas abordagens que faremos nos comentários específicos.<br />
1.1. TRONCOS LINGÜÍSTICOS<br />
As línguas indígenas estão agrupadas em “famílias lingüísticas” que por sua vez se<br />
agrupam em “troncos lingüísticos”, facilitando assim o estudo das mesmas, pois cada<br />
agrupamento tem uma origem comum. Os mais de duzentos e cinqüenta povos indígenas<br />
do Brasil estão agrupados em dois troncos lingüísticos principais e em algumas famílias<br />
isoladas não pertencentes a nenhum tronco. Como língua e cultura são intimamente<br />
ligadas, conhecer a origem lingüística de um grupo implica em compreender no mínimo<br />
alguns traços gerais da sua cultura, o que facilita a sua análise como um todo, mesmo<br />
quando já se perdeu a língua tradicional, pois muitos dos traços culturais permanecem.<br />
A classificação em troncos e famílias lingüísticas indígenas mais aceita pelos<br />
estudiosos foi realizada pelo professor Aryon Dall'Igna Rodrigues, que publicou os<br />
resultados em 1986. Os dois troncos lingüísticos principais são: o TUPI, formado por sete<br />
famílias lingüísticas e duas línguas não classificadas em família, e o MACRO-JÊ, formado<br />
por seis famílias e quatro línguas não classificadas em família. Além destas, há ainda cerca<br />
de cem línguas agrupadas apenas em famílias e outras dez consideradas isoladas pois não<br />
pertencem a nenhum agrupamento (Prezia, 2000.46).<br />
1.1.1. TRONCO LINGÜÍSTICO TUPI<br />
O maior e mais conhecido, agrupa povos que se encontram dispersos por<br />
praticamente todo o território brasileiro. Uma das suas principais características é que<br />
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<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
vivem em florestas tropicais à beira dos rios ou no litoral, devido ao que os povos deste<br />
tronco foram os primeiros a serem contactados – especificamente os Tupinambá – pois<br />
habitavam o litoral leste e por isto as línguas Tupi foram as mais documentadas.<br />
Por estarem espalhados pelo território brasileiro, os povos do tronco Tupi<br />
apresentam grandes diferenças quanto à sua organização social e uma grande diversidade<br />
cultural, entretanto, suas línguas são muito parecidas. Os Tupi desenvolvem uma relação<br />
de interdependência entre a sua terra e seu modo de viver, levando o seu "mundo dentro de<br />
si", ou seja, um povo do tronco lingüístico Tupi pode desenvolver o seu modo de ser e<br />
viver em qualquer lugar, independente da terra em que se localizarem ser ou não<br />
tradicional 20 . Para eles, a vida é passageira, sendo o "outro mundo" o verdadeiro, o real.<br />
Suas aldeias, geralmente são pequenas e construídas em círculo, com um pátio no<br />
centro, onde se realizam as grandes reuniões, os rituais e os eventos importantes da<br />
comunidade. Cada casa costuma abrigar uma família extensa, com pais, filhos e genros.<br />
Sem dúvida foram os povos indígenas que mais influenciaram a cultura brasileira.<br />
Além da rede de dormir, dos muitos objetos de cerâmica e da farinha da mandioca, os<br />
povos de cultura Tupi também deixaram no sul, através da convivência com os Guarani, o<br />
uso do chimarrão. Não se pode esquecer o hábito do banho diário que herdamos desses<br />
povos. Muitas palavras Tupi fazem parte do nosso vocabulário, como taquara, tapera,<br />
mirim, maloca, mandioca, saci, jacaré, tucano, caatinga, mutirão, mingau, capim, sapé,<br />
pitar, caipira, peteca, catapora, pereba e outras. Uma infinidade de nomes Tupi também<br />
compõe a lista de cidades, rios e montanhas de nosso país como: Paraná, Guanabara,<br />
Ibirapuera, Jacareí, Itajaí, Pernambuco, Uruaçu, Itapemirim, Pindamonhangaba,<br />
Morumbi, Pacaembu, Itatiaia, Piracicaba entre outras. Usamos algumas interjeições e<br />
advérbios Tupi, como oi, que veio substituir o olá português, e a negação Tupi an-an, que<br />
no português popular significa sim ou não (CIMI, 2002.4). Hoje são cerca de quarenta e<br />
quatro povos Tupi ainda existentes no Brasil, com aproximadamente setenta mil pessoas.<br />
1.1.2. TRONCO LINGÜÍSTICO MACRO-JÊ<br />
Os povos de origem Macro-Jê se fixaram nas regiões do cerrado e caatinga e por<br />
isto, os primeiros contatos com eles foram feitos pelos bandeirantes que iam ao interior em<br />
busca da mão-de-obra escrava e de riquezas naturais.<br />
20 É o caso dos Guarani que migraram desde o Paraguai pelo litoral brasileiro, seguindo as revelações de seu<br />
Deus, Nhanderú, em busca da "terra sem males" – um paraíso onde não se envelhece, nem trabalha, pois o<br />
alimento já aparece pronto, localizado além do mar, onde nasce o sol.<br />
38
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
As aldeias dos povos Jê geralmente são em forma de meia-lua com a casa de<br />
religião ou de reuniões na outra extremidade, e dão um enorme valor ao centro da aldeia.<br />
Não usam rede, geralmente dormindo sobre peles de animais, esteiras de palha ou em<br />
camas de varas – jiraus. O sol tem grande significado, e ao contrário dos Tupi, o indígena<br />
Jê dá muito valor ao seu território tradicional, não sabendo sobreviver sem o seu povo, a<br />
sua aldeia e o seu lugar dentro dela. Sem a referência territorial não conseguem se situar no<br />
mundo. Por isso suas aldeias são sempre bem organizadas e estruturadas.<br />
As sociedades Jê são mais hierarquizadas, havendo, quase sempre, um cacique<br />
geral. Para enfrentar essa tendência centralizadora, criaram conselhos, que também são<br />
chamados de “sistema de metades”. O grupo se divide em duas partes, que se alternam no<br />
comando da aldeia e geralmente se casam entre si, quando o homem é levado pela sua<br />
mulher para a casa de seu pai, onde permanecem pelo menos até o nascimento do primeiro<br />
filho. Em alguns casos, as mulheres dotadas de qualificações especiais podem<br />
desempenhar papéis importantes, como o de pajé ou até mesmo cacique. A pessoa começa<br />
a participar muito cedo da vida adulta. A mulher se torna mãe por volta dos treze ou<br />
quatorze anos, e o rapaz, pai por volta dos quinze ou dezesseis.<br />
Também ao contrário dos povos Tupi, para os quais o mundo dos mortos é muito<br />
presente, os povos Jê são orientados pela idéia da vida. A vida é boa, é o paraíso, algo<br />
definitivo. Os mortos são inimigos formando a anti-sociedade dos vivos. Possuem uma<br />
visão dualista do universo e da sociedade – o todo é a união dos opostos: vida X morte; sol<br />
X lua; terra X água; vermelho X preto; homens X natureza; centro X periferia.<br />
As cerâmicas Jê são mais simples que as Tupi, mas são peritos em artesanato de<br />
taquara, embira, palha e penas. A influência dos povos de língua do tronco Macro-Jê em<br />
nossa sociedade não foi tão acentuada quanto a dos povos de língua Tupi, mas teve<br />
importância sobretudo em áreas como o Nordeste, o centro oeste do Brasil e <strong>Minas</strong> Gerais.<br />
Na alimentação ficou o uso do feijão, do milho, do amendoim e o gosto pelo churrasco.<br />
Deixaram traços na música, não só no ritmo do forró, como também no famoso canto do<br />
vaqueiro do sertão. Vários nomes de rios ou cidades vieram das línguas Jê: Poté, Nanuque,<br />
Chapecó, Corumbá, Cuiabá e outros. Hoje são aproximadamente quarenta e cinco povos,<br />
com uma população aproximada de cinqüenta e duas mil pessoas (Prezia, 2000.62-66).<br />
Todos os oito grupos indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais pertencem ao tronco Macro-Jê, e<br />
muitas das características aqui citadas ainda são evidentes neste grupos mineiros.<br />
39
Tronco<br />
MACRO-JÊ<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Família<br />
Maxakali Jê Botocudo Kariri ?<br />
40
Língua<br />
Maxakali<br />
Pataxó<br />
Akwén Krenak<br />
Aranã<br />
Dialeto<br />
Xacriabá<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Kariri Pankararu<br />
Kaxixó<br />
1.2. CLASSIFICAÇÃO DA ORIGEM ÉTNO-GEOGRÁFICA<br />
Quando neste relatório nos referimos aos “grupos indígenas de <strong>Minas</strong>” ou mesmo<br />
aos “grupos indígenas mineiros”, deve ficar subentendido que não estamos atribuindo aos<br />
mesmos, <strong>Minas</strong> Gerais como origem étno-geográfica, mas indicando sua atual localização.<br />
1.2.1. REMANESCENTES<br />
São os grupos originários de <strong>Minas</strong> Gerais, que durante estes quinhentos anos de<br />
dominação e opressão, resistiram etnoculturalmente, não sucumbindo frente à ação<br />
etnocida dos dominadores. São os remanescentes étnicos dos mais de cem grupos<br />
indígenas que aqui habitavam na época do contato, e que mesmo passando por período de<br />
acentuada redução, nunca desapareceram historiograficamente. São eles:<br />
Xacriabá – É o único grupo do Estado que permaneceu no seu território<br />
tradicional, de forma ininterrupta, desde o período colonial.<br />
Maxakali – Seu território tradicional se estendia até a Bahia, mas foram<br />
contactados aqui em <strong>Minas</strong>, onde também realizaram a maioria das suas peregrinações.<br />
Krenak – Originários do Vale do Rio Doce, mesmo por várias vezes exilados do<br />
seu território tradicional, sempre retornaram para lá, até que conquistaram posse definitiva.<br />
1.2.2. MIGRATÓRIOS<br />
Como já mencionado, a partir da década de 1970 os conflitos envolvendo grupos<br />
indígenas se intensificaram no leste do país, principalmente no Nordeste, levando vários<br />
grupos a migrarem para outras regiões. Como <strong>Minas</strong> Gerais apresentava um quadro<br />
relativamente pacífico nesta época, alguns migraram para cá, sendo que nem todos<br />
permaneceram. Já no final dos anos noventa, outras migrações aconteceram, completando<br />
o quadro de três grupos migratórios que se fixaram aqui definitivamente:<br />
Pataxó – Originários da Bahia, de onde vieram na década de 1970.<br />
Pankararu – Originários de Pernambuco, de onde saíram na década de 1950.<br />
Xukuru-Kariri – Originários de Alagoas, de onde saíram na década de 1990.<br />
41
1.2.3. EMERGENTES<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Desde o início da colonização, o governo sempre incentivou a política da<br />
miscigenação com o objetivo de acabar com a cultura indígena. Nos aldeamentos das<br />
missões católicas isto aconteceu com muito vigor. Quando em 1850 foi promulgada a Lei<br />
de Terras, muitas aldeias foram declaradas extintas sob a alegação de sua população ser<br />
mestiça. As terras ficaram para o Estado como devolutas e depois cedidas ou invadidas por<br />
fazendeiros. As famílias indígenas remanescentes tornaram-se, na sua maioria, agregadas<br />
destas fazendas, quando não expulsas. Como forma de resistência, algumas fomentavam<br />
casamentos entre si, firmando laços de parentesco e preservando alguns traços culturais.<br />
No início da década de 1970, atenção maior foi dada à questão indígena, e com o<br />
surgimento do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, da Igreja Católica, estes grupos<br />
começaram a ser acompanhados, ocorrendo assim um verdadeiro ressurgimento étnico. Em<br />
1971, em <strong>Minas</strong> Gerais e no Espírito Santo reconhecia-se apenas um grupo indígena – os<br />
Maxakali – enquanto hoje são onze. No Nordeste eram onze grupos, com pouco mais de<br />
doze mil pessoas, hoje são trinta e sete com mais de oitenta mil pessoas (Prezia, 2000.91).<br />
Classificamos aqui como grupos emergentes, portanto, os remanescentes de povos<br />
originários de <strong>Minas</strong> Gerais, que por um período de tempo desapareceram<br />
historiograficamente, mas reapareceram novamente como grupos étnicos. São eles:<br />
Kaxixó – Nunca deixaram o Estado nem seu território tradicional, mas só foram<br />
reconhecidos oficialmente como grupo étnico em 2001.<br />
Aranã – Originários do Alto Vale do Jequitinhonha, foram dispersos e agora se<br />
reorganizaram em grupo lutando pelo reconhecimento étnico.<br />
1.3. O MITO DO “ÍNDIO PURO”<br />
Assim como os povos indígenas do Nordeste, os de <strong>Minas</strong> são freqüentemente<br />
diminuídos e rebaixados a “índios de segunda categoria” devido a visão fantasiosa e<br />
utópica que durante centenas de anos foi alimentada e difundida pelos dominadores,<br />
através de livros didáticos, comerciais de televisão, e até materiais de cunho antropológico,<br />
segundo a qual, “índio” é aquele sujeito de pele vermelha, cabelos negros e lisos, que anda<br />
descalço e totalmente nu, com um grande cocar na cabeça, o corpo todo pintado, muitos<br />
enfeites de pena e um arco e flecha na mão. Que fala o tupi-guarani, mora numa pequena<br />
palhoça coberta de capim chamada oca, usa um instrumento musical chamado maracá,<br />
42
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
adora um deus chamado Tupã, a lua chamada de Jacy, ao sol chamado de Coaracy e tem<br />
um filho chamado curumim. Este é um “índio de sangue puro”, um “índio de verdade”.<br />
Se o indígena tem pele quase negra e cabelos crespos, ou cor clara, olhos claros e<br />
cabelos acastanhados, fala português, usa as mesmas roupas da sociedade externa, mora<br />
em uma casa de alvenaria, com energia elétrica e água encanada, ouve rádio e possui um<br />
aparelho de televisão, o máximo que lhe é atribuído é o título de “caboclo”, “bugre”, “índio<br />
misturado”, ou numa linguagem mais refinada, “índio aculturado”.<br />
Oliveira (1999.34), sugere quatro ênfases etnológicas que são espúrias e por demais<br />
danosas ao estudo dos grupos indígenas atuais. A Etnologia das perdas culturais coloca<br />
toda a sua ênfase no que o grupo indígena perdeu no decorrer do seu contato com a<br />
civilização externa, como a língua, aspectos da sua religiosidade, moradia, indumentária e<br />
organização social. Vale lembrar aqui, que em qualquer momento da sua história um povo<br />
sempre possui cem por cento de cultura, ainda que esta não seja mais nem um pouco<br />
semelhante à cultura de cem anos atrás. A cultura é dinâmica e à medida que novos<br />
conceitos e valores lhes são acrescentados ela vai sofrendo transformações e adaptações,<br />
mas nunca se torna uma “meia-cultura”. A etnologia da idealização do passado enfatiza<br />
apenas as vantagens do antigo momento cultural, dos antigos costumes tradicionais, como<br />
os únicos ideais para determinado povo. Há todo um saudosismo cultural que leva para<br />
uma análise utópica do povo, num momento histórico que não mais existe. A etnologia da<br />
pureza original talvez seja a principal responsável pelo mito do “índio puro”, pois elucida<br />
a figura de um indígena isolado, vivendo num mundo culturalmente introspectivo, sem<br />
interação com outras culturas e sem qualquer índice de miscigenação étnica. Este índio era<br />
puro porque não tinha contado com a cultura não-indígena, pois esta é a causadora dos<br />
desequilíbrios morais e sociais. Na verdade este índio nunca existiu, pois mesmo antes da<br />
chegada dos colonizadores europeus, no nosso continente havia a prática de casamentos<br />
interétnicos, possivelmente em alta escala, e por isto, sempre houve miscigenação. O<br />
argumento da pureza moral também é enganoso, pois desde os primórdios do ser humano,<br />
os pecados sociais e morais estiveram presentes (Souza, 2001). Por fim, a etnologia da<br />
naturalização da situação colonial, cuja ênfase é voltada para a realidade indígena da<br />
época do contato com os colonizadores, como sendo a originária e ideal para cada grupo, e<br />
utopicamente possível de ser resgatada.<br />
Uma vez que abordamos os grupos indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais, a consciência de que<br />
este “índio puro” nunca existiu é importante, pois os grupos mineiros são povos que<br />
passaram por um forçado processo de miscigenação étnica, em contato constante com a<br />
43
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
civilização externa, através do qual muito da sua antiga cultura tradicional foi substituído<br />
por costumes e valores da cultura nacional. Sete dos oito grupos de <strong>Minas</strong> passaram por<br />
aldeamentos das missões católicas – capuchinhos – onde era fomentado o casamento com<br />
negros e brancos, proibida a língua tradicional e forçosamente imposta a religiosidade<br />
católica. Agora é muito cômodo para a própria sociedade que em gerações passadas forçou<br />
este contato, em tom pejorativo e com forte grau de discriminação classificá-los como<br />
“aculturados” 21 . O “índio puro” ou “primitivo” não passa de uma fantasia do homem<br />
moderno, que viabilizou sua imagem para possibilitar a idéia de uma sociedade complexa e<br />
moderna (1999.49). A abordagem que aqui faremos, parte do pressuposto que o ser<br />
indígena tem mais a ver com a questão etnocultural, do que com a questão biológica.<br />
O que é ser indígena? Diante dos recentes avanços da antropologia, ser indígena<br />
não é uma questão biológica, de raça, como se dizia antigamente, mas uma questão<br />
étnica, cultural. Ser indígena, a partir dos novos conceitos da antropologia, é<br />
considerar-se diferente da sociedade nacional, por apresentar uma ligação<br />
histórica com as sociedades pré-colombianas, sendo descendente dos primeiros<br />
ocupantes deste continente (Prezia, 2000.89).<br />
1.4. PROGRAMAS ASSISTENCIAIS<br />
Os indígenas de <strong>Minas</strong> são beneficiados por dois principais programas<br />
governamentais de assistencialismo que visam prover melhores condições de vida a este<br />
seguimento diferenciado da sociedade nacional.<br />
1.4.1. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO INDÍGENA DIFERENCIADA<br />
Até 1994 a FUNAI, em parceria com o MEC – Ministério de Educação e Cultura,<br />
provia para alguns grupos indígenas ensino fundamental nos moldes de escolas rurais,<br />
com currículo convencional e professores não-indígenas, o que contribuía ainda mais para<br />
a interferência cultural externa nas culturas de cada povo. Em 1995 entrou em<br />
funcionamento um programa de ensino diferenciado, promovido pela SEE/MG –<br />
Secretaria de Estado da Educação de <strong>Minas</strong> Gerais, em convênio com a UFMG –<br />
Universidade Federal de <strong>Minas</strong> Gerais, FUNAI – Fundação Nacional do Índio e IEF –<br />
<strong>Instituto</strong> Estadual de Florestas (Dutra, 1998.54-59).<br />
Neste programa é oferecido o curso de formação de professores indígenas,<br />
realizado no Parque Estadual do Rio Doce - UHITUP 22 . Este local foi escolhido por se<br />
21 Este termo tem sido fortemente criticado pela antropologia moderna e principalmente pelo movimento<br />
indigenista, porque significa literalmente “sem cultura” – a-culturado – enquanto sabemos que não existe<br />
povo sem cultura.<br />
22 Palavra Maxakali que significa “alegria” (Dutra, 1998.58)<br />
44
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
tratar de um ambiente bastante natural, com árvores em abundância, distante de centros<br />
urbanos, deixando assim os indígenas bastante à vontade. O curso é realizado em oito<br />
módulos, sendo dois por ano, com professores especializados na área. Durante estes<br />
módulos é fomentado a produção de materiais didáticos pelos próprios alunos, os quais são<br />
publicados e utilizados nas respectivas aldeias. Estes professores são habilitados a nível de<br />
segundo grau e, retornando para suas respectivas aldeias, organizam escolas de ensino<br />
fundamental, sendo devidamente remunerados. O currículo é composto pelos conteúdos<br />
curriculares universais (CIMI-LE, 1999.4), acrescidos da língua e cultura tradicional:<br />
Língua – materna (no caso dos Maxakali e Krenak) e português; Matemática; História;<br />
Geografia; e Ciências. Atualmente são assistidos por este programa, apenas os Xacriabá,<br />
Maxakali, Krenak e Pataxó. Os demais, entretanto, possuem professores em formação<br />
visando a organização de escolas num futuro próximo.<br />
1.4.2. DISTRITO SANITÁRIO ESPECIAL INDÍGENA<br />
A partir de 1999 foi implementado também o programa de assistência na área de<br />
saúde com objetivo de evitar a locomoção do indígena que necessita de atendimentos<br />
médicos para um hospital, onde o ambiente é totalmente alienígena ao seu contexto, o que<br />
ocasiona sempre maiores transtornos. Para isto, a FUNASA – Fundação Nacional de Saúde<br />
fornece uma equipe de saúde formada geralmente por médicos, dentistas, enfermeiros e<br />
auxiliares de enfermagem, de acordo com a realidade populacional de cada povo. Fornece<br />
também treinamento para Agentes <strong>Indígena</strong>s de Saúde, para trabalhar em seus respectivos<br />
povos com saúde preventiva e atendimentos básicos, sendo contratados pelo Estado e<br />
remunerados. Cada equipe e povo conta com um veículo para locomoção, geralmente uma<br />
caminhonete Toyota, que além de ser usada pela equipe de saúde atende a população<br />
indígena na medida do possível. Atualmente há equipe de saúde junto aos Xacriabá e<br />
Maxakali; os Pataxó são atendidos pelo médico da cidade de Carmésia; e os demais, com<br />
exceção dos Aranã, contam apenas com o veículo para transporte de doentes.<br />
45
2. OS XACRIABÁ<br />
2.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Se não existisse história, não existia índio.<br />
Então, se existe a história, é porque nós somos índios.<br />
José dos Reis Xacriabá 23 .<br />
Classificados como “índios aculturados do Nordeste”, sua identidade étnica foi, e<br />
ainda é, ignorada por muitos, inclusive por órgãos governamentais, como o SPI que<br />
durante suas atividades nunca deu assistência a este povo. Trazem o estigma de<br />
“caboclos”, “aculturados”, “miscigenados” e já foram considerados por alguns como<br />
extintos. Realmente com um alto índice de miscigenação, eles não se enquadram nas<br />
qualidades do “índio puro” fantasiadas pela sociedade envolvente e por alguns estudiosos.<br />
Confundidos com retirantes baianos, seu contexto social muito se assemelha às<br />
comunidades rurais dos sertões da Bahia e nordeste do país, quando visto de fora.<br />
Entretanto, não é necessária uma análise cultural muito profunda para perceber que os<br />
Xacriabá possuem identidade própria e consciência da sua indianidade, a qual é<br />
evidenciada principalmente pela religiosidade e pela posse comunitária da terra.<br />
2.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
Os Xacriabá de hoje são o resultado de um forte processo de miscigenação étnica<br />
inicialmente provocado de forma intencional pelos colonizadores, mas depois continuado<br />
pelo relacionamento pacífico destes indígenas com a população sofredora da região.<br />
2.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA<br />
No seu Mapa Etnohistórico, Nimuendajú (1981) indica que no século XVIII os<br />
Xacriabá viviam entre os rios Paracatu, afluente do São Francisco, Palma, afluente do<br />
Tocantins, Gurgeia, afluente do Parnaíba, limite entre Bahia e Piauí, e nas nascentes do<br />
Palma em Goiás. Como já visto, a chegada dos colonizadores resultou na luta dos Xacriabá<br />
contra os invasores e também contra outros grupos indígenas da região, o que os levou<br />
paulatinamente a se concentrarem na região que hoje habitam. Encurralados ali, os antigos<br />
indígenas entraram num ascendente processo de miscigenação com dois principais<br />
seguimentos da sociedade externa: negros e retirantes baianos.<br />
23 Em Oliveira (1997.79).<br />
46
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
O casamento com negros foi inicialmente promovido pelos padres, com o objetivo<br />
deliberado de miscigenar a raça indígena, integrando-os assim à civilização externa.<br />
Posteriormente, negros fugitivos das senzalas começaram a procurar abrigo junto aos<br />
Xacriabá que os recebiam prontamente, pois muitos já viviam com eles.<br />
Com as secas do Nordeste, baianos retirantes também começaram a procurar os<br />
Xacriabá em busca de terras para cultivo. Sendo a terra uma propriedade comunitária e não<br />
privada, os retirantes também foram recebidos como parceiros no cultivo e passaram a se<br />
unir em matrimônio. Desta forma, os atuais Xacriabá são o resultado da mistura dos<br />
antigos indígenas, com negros africanos e retirantes baianos. Schettino (1999.18) sugere<br />
haver também uma “mistura dos cariris e cayapó”, mas isto parece pouco provável.<br />
2.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
A faixa de terra situada entre as bacias dos rios Tocantins, Araguaia e São Francisco,<br />
indo de Goiás a Maranhão, historicamente é o território tradicional de três grupos que<br />
compõem a família étnica Akwén. Os que ficaram às margens do Tocantins se identificam<br />
como Xerente; os dos Rios Tocantins, Araguaia e das Mortes se identificam como<br />
Xavante; e o grupo do Rio São Francisco como Xacriabá (Paraíso, 1987.14).<br />
2.1.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA<br />
Segundo o professor Aryon Rodrigues (1994.56), os Xacriabá pertencem ao tronco<br />
lingüístico Macro-Jê, família Jê, língua Akwén e dialeto Xacriabá. Entretanto, a única<br />
coisa que restou desta língua foram algumas palavras dispersas usadas no dia-a-dia e nos<br />
rituais. Por volta dos anos cinqüenta, eles foram proibidos de usarem até as poucas<br />
palavras no momento das suas cerimonias 24 , sendo hoje falantes apenas do português com<br />
uma elevada carga de regionalismo, bem como, com algumas palavras do seu antigo<br />
idioma. Mas sua descendência Jê é claramente evidenciada na distribuição espacial da<br />
reserva, que é altamente dispersa pelo território, além do constante fracionamento das<br />
aldeias num processo quase contínuo de divisões, também característico dos grupos Jê.<br />
2.1.1.4. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA<br />
O Território <strong>Indígena</strong> Xacriabá, somando um total de 53.014,92 ha., está localizado<br />
no extremo norte de <strong>Minas</strong>, no município de São João das Missões, na margem esquerda<br />
do Rio Itacarambi, afluente do São Francisco, entre os municípios de Manga e Miravânia<br />
ao norte, e Itacarambi ao sul, distando 736 km de Belo Horizonte. A entrada principal da<br />
24 Em entrevista com o cacique Rodrigão, no dia 09/04/02. Pelo menos dois outros pesquisadores já<br />
registraram este mesmo depoimento (Chettino, 1999.126).<br />
47
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
reserva dista 16 km da cidade de São João das Missões e a partir desta entrada, a última<br />
aldeia à esquerda, Riacho do Buriti, está a 36 km, e à direita, Peruaçú, a 39 km, ficando as<br />
demais espalhadas neste percurso. Só há rodovia até a cidade de Itacarambi, que está a 20<br />
km antes de São João das Missões, sendo a partir desta, estrada, mas bem preservada.<br />
2.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA<br />
Devida uma constante rotatividade da população Xacriabá, é difícil precisar sua<br />
população, mas não resta dúvidas de que superam a sete mil indivíduos, com um<br />
considerável percentual de crianças e adolescentes.<br />
Esta população está distribuída em vinte e três aldeias ou vilarejos, espalhadas por<br />
todo o território, sendo as mais influentes o Brejo do Mata Fome, onde vive o cacique e<br />
está a base da FUNAI, e Sumaré. As aldeias são formadas por residências<br />
consideravelmente afastadas uma das outras, ligadas entre si, na sua maioria, apenas por<br />
trilhas que penetram os bosques e possibilitam o tráfego apenas de pedestres ou de cavalos.<br />
As residências, na sua maioria absoluta, são casebres de adobe 25 ou enchimento 26 , cobertas<br />
com telhas de barro fabricadas por eles próprios. Geralmente são pequenas, sem piso, com<br />
poucos móveis e nelas reside não mais que uma família. Não há energia elétrica na<br />
maioria, nem água encanada. Em abril de 2002, a FUNAI estava construindo banheiros<br />
para estas famílias, pois até então também não havia. Dada à presença do cacique e a base<br />
da FUNAI, o Brejo do Mata Fome é o vilarejo mais bem estruturado, contando com<br />
energia elétrica, água encanada, antena parabólica, estabelecimentos comerciais, um<br />
hospital e um templo católico. Sumaré, o segundo mais influente vilarejo, também conta<br />
com energia elétrica e um posto médico.<br />
1. Barra do Sumaré<br />
2. Barreiro Preto<br />
3. Forges<br />
4. Brejo do Mata Fome<br />
ALDEIAS XACRIABÁ EM ABRIL DE 2002<br />
9. Morro Falhado<br />
10. Olhos D’Água<br />
11. Peruaçú<br />
12. Pindaíba<br />
17. Riacho Cumprido<br />
18. Riacho do Brejo<br />
19. Riacho do Iburití<br />
20. Santa Cruz<br />
25<br />
Muito comuns naquela região, adobe é uma espécie de tijolo, feito de barro, porém não levado ao forno. As<br />
vezes chamado de “tijolo cru”.<br />
26<br />
Igualmente comuns naquela região, as casas de enchimento tem suas paredes feitas de varas cruzadas com<br />
os espaços preenchidos com barro.<br />
48
5. Catinguinha<br />
6. Imbaúba<br />
7. Itacarambizinho<br />
8. Itapicurú<br />
13. Prata<br />
14. Rancharia<br />
15. Riachão<br />
16. Riachinho<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
21. São Domingos<br />
22. Sapé<br />
23. Sumaré<br />
Apesar de várias tentativas de expulsão e invasão territorial por parte da sociedade<br />
envolvente, temos no caso dos Xacriabá uma ocupação ininterrupta da área desde a<br />
chegada dos colonizadores. Desta forma, o índice de migração não é tão elevado, a não ser<br />
nos casos de retirada em busca de trabalho em outras regiões, que ocorrem até hoje. Neste<br />
sentido, os dois principais centros migratórios são Mato Grosso, para onde ainda há uma<br />
considerável movimentação de famílias Xacriabá em determinados períodos do ano em<br />
busca do cultivo da cana-de-açúcar, e São Paulo, para onde muitas famílias migraram<br />
definitivamente em busca de emprego se integrando totalmente à civilização externa.<br />
2.1.3. RELIGIOSIDADE<br />
A religiosidade Xacriabá é um dos aspectos culturais mais relevantes e ao mesmo<br />
tempo mais invisíveis (Schettino 1999.125), influenciando o seu comportamento e reações<br />
às mais variadas situações a que são expostos. Com o processo de catequese imposto pelos<br />
padres capuchinhos 27 da Missão de São João, os Xacriabá adotaram o catolicismo como<br />
religião. Entretanto, é evidente um alto grau de sincretismo, mesclando elementos católicos<br />
com práticas e valores da sua antiga religiosidade, principalmente por parte dos membros<br />
efetivos, não incorporados por casamento. Sendo sua religiosidade de caráter sigiloso,<br />
registramos aqui apenas os aspectos mais evidentes, carecendo um estudo mais profundo.<br />
Vale citar as palavras de Paraíso (1987.47) sobre este sincretismo, ressaltando que<br />
o mesmo não acontece com os poucos convertidos ao protestantismo:<br />
Devido ao processo de aculturação a que foram submetidos, os Xacriabá adotaram<br />
a crença católica, como dominante, além de algumas conversões recentes ao<br />
protestantismo. Porém, há perfeita conciliação entre a primeira crença religiosa e o<br />
culto e fé a Yayá. O mesmo não ocorre com o protestantismo, o que inclusive<br />
motivou a perda de chefia por parte do antigo capitão, Laurindo Gomes de Oliveira.<br />
Ao se tornar “crente”, renegou a fé em Yayá e, por coincidir este fato com o<br />
incremento da presença de posseiros na área, o capitão foi afastado do seu cargo,<br />
tendo sido substituído por um devoto de Yayá.<br />
2.1.3.1. DANÇAS CERIMONIAIS<br />
27 Schettino (1999.14) inclui também os jesuítas, mas Paraíso (1987.51) não crê nesta possibilidade,<br />
sugerindo que foram apenas os capuchinhos. Tudo indica que ela tem razão.<br />
49
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Como a maioria dos indígenas do Nordeste, sua dança cerimonial é chamada de<br />
Toré 28 e envolve cantorias que propiciam o ambiente de contato com o sobrenatural. Não<br />
foi possível coletar detalhes, pois além da reserva dos mesmos em descrever, segundo eles,<br />
o ritual não pode ser realizado em sua plenitude com a presença de estranhos, pois sua<br />
principal entidade não se manifesta neste caso. O Toré é realizado com freqüência, sempre<br />
à noite (Schettino, 1999.129), mas tudo indica não haver datas predeterminadas para o<br />
mesmo, sendo por isto necessárias convocações.<br />
Parece que Paraíso (1987.49) obteve a melhor descrição do ritual, ainda que<br />
incompleta. Segundo seus informantes, ao chegar ao local do Toré os participantes são<br />
orientados quanto à posição que devem ocupar, já devendo todos estarem vestidos de<br />
branco e descalços. Antes de iniciar as danças, é preparada uma bebida chamada jurema,<br />
que possui efeito alucinógeno. Ao começar, o pajé retira das pedras o bastão sagrado e o<br />
coloca num canto do terreiro, que num determinado momento começa também a se<br />
movimentar sozinho, emitindo fumaça pelas extremidades, e por fim pára sobre a grande<br />
tigela, fazendo também uma cruz de fumaça que nem todos conseguem ver. A jurema é<br />
distribuída entre os participantes em pequenas tigelas, e logo após dá-se a manifestação da<br />
principal entidade em caráter de oráculo, trazendo respostas aos participantes, avisos,<br />
orientação e repreensões, não apenas pessoais mas também comunitárias. É evidente a<br />
presença de sinais do catolicismo, como a cruz de fumaça, bem como do candomblé<br />
baiano, vindo da África, como as roupas brancas e pés descalços. Interessante é que “a<br />
participação do Toré é exclusiva dos membros aceitos como efetivos e não incorporados<br />
por casamento. Também são excluídos os que se casam com membros da sociedade<br />
nacional” (Paraíso, 1987.40), pois Yayá gosta apenas daqueles que têm “o seu sangue”. É<br />
curioso o fato de não haver rituais especiais no nascimento, casamento, nem na morte.<br />
2.1.3.2. ENTIDADE ESPIRITUAIS<br />
2.1.3.2.1. YAYÁ<br />
Apesar de crerem na existência de outras entidades no seu mundo espiritual, toda a<br />
cosmologia Xacriabá gira em torno de uma entidade principal, chamada Yayá. Este é um<br />
nome carinhoso atribuído à “onça-cabocla”, bem como aos ancestrais quando o povo já<br />
28 Este nome “é bastante conhecido pelos índios da caatinga baseados historicamente na bacia do São<br />
Francisco e outras regiões do nordeste brasileiro” (Schettino, 1999.130).<br />
50
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
não têm memória dos seus nomes. Duas versões mitológicas 29 explicam o surgimento de<br />
Yayá, mas ambas se referem a um encantamento de certa índia chamada Yndaiá que se<br />
transformou numa onça em defesa da sua família e não conseguindo reverter e<br />
encantamento permanece até hoje como onça encantada (Paraíso, 1987.41).<br />
Tal entidade é tão central na cosmologia 30 Xacriabá que a história do povo é<br />
ordenada em torno da sua presença, ausência e retorno, com a respectiva ausência,<br />
presença e expulsão dos não-índios. Antes da intrusão dos posseiros, Yayá vivia no<br />
território convivendo com o seu povo em harmonia, mas com a chegada dos invasores, ela<br />
teria se refugiado no Rio de Janeiro vindo esporadicamente visitar o seu povo, anunciando<br />
sua presença através de fortes assobios. Ventanias, ataques a animais dos intrusos, ruídos<br />
estranhos e batidas nas portas das residências eram atribuídos ao descontentamento de<br />
Yayá. Até hoje ela continua se manifestando através de “rastros, marcas deixadas no meio<br />
do mato, galhos quebrados, etc, ou ainda, através de seu característico assobio” (Schettino,<br />
1999.138). Pode se mostrar como onça ou como mulher, de acordo com sua livre decisão,<br />
por isto, Marcato (1978.411) se referiu a ela como “um ser mítico, imortal, mutável”.<br />
Nenhuma decisão pode ser tomada sem que ela seja ouvida, que inclusive pode fazer<br />
previsões. Os líderes não viajam sem antes ouvi-la sobre sua segurança e possibilidade de<br />
sucesso, e durante a viagem os familiares podem acompanhar sua trajetória conversando<br />
com ela. Desta forma, apesar dos Xacriabá terem consciência do Deus dos cristãos, na<br />
prática, se relacionam com Yayá. Sobre isto, Paraíso (1987.44) comenta com muita<br />
propriedade e razão, excetuando a afirmativa de serem eles “profundamente cristãos”:<br />
A ação de ataque aos fazendeiros é tão dificultosa que é necessária a interferência<br />
de forças superiores e divinas que garantam a proteção e a impunidade dos índios.<br />
É interessante que, apesar dos Xacriabá serem profundamente cristãos, não é no<br />
Deus ocidental que eles vão procurar essa força, mas no espírito não denominado, o<br />
que indica, claramente, uma tentativa de resgate dos deuses ancestrais.<br />
2.1.3.2.2. SÃO JOÃO DOS ÍNDIOS<br />
Segundo Filho (2002.1), em julho de 1695 religiosos liderados pelo padre Miguel<br />
de Carvalho fundaram o povoado e criaram a Missão de São João com a finalidade de<br />
catequizar a nação indígena Xacriabá, promovendo assistência social e a conversão dos<br />
índios ao credo católico. Ao construir a igreja, os padres contrataram os serviços de um<br />
artesão indígena que, sob a orientação dos religiosos, esculpiu a imagem de São João. Em<br />
29 Ver anexo 01: 1.1. Yayá, A Onça Cabocla.<br />
30 Foi lançado um livro de histórias Xacriabá que em muito pode auxiliar na compreensão da cosmologia<br />
deste povo, pois são contadas pelos próprios indígenas: “Índios Xacriabá: O Tempo Passa e a História Fica”,<br />
dos irmãos José e Domingos Nunes de Oliveira (ver Referências Bibliográficas).<br />
51
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
visita à Missão, Januário Cardoso levou a imagem para a igreja construída na Freguesia de<br />
Morrinhos, mas misteriosamente a imagem foi reencontrada no tronco de uma árvore<br />
próximo à igreja de São João dos Índios. Buscaram a imagem de volta, mas a história se<br />
repetiu. Assim, a comunidade indígena passou a venerar o santo como realmente<br />
milagreiro, o adotando também como entidade protetora dos índios. Vale observar que o<br />
pano de fundo desta veneração é o relacionamento deles com Yayá e assim, como já<br />
tinham uma entidade na sua religiosidade indígena, passaram a ter uma dentro do<br />
catolicismo. Esta imagem se encontra até hoje na capela de São João das Missões, para<br />
onde há um considerável fluxo de romeiros, principalmente nos dias 21 a 25 de julho,<br />
período quando se realiza a grande festa do padroeiro da cidade.<br />
2.1.3.2.3. OUTRAS ENTIDADES<br />
Há entidades de menor importância que também compõem o universo cosmológico<br />
Xacriabá, como a Dona, que se encarrega da preservação dos olhos d’água. Segundo os<br />
informantes de Paraíso (1987.47), esta entidade “possui uma enorme mão, com a qual<br />
agarra e afoga todos aqueles que sujam, desmatam, lavam roupa ou levam animais para<br />
beber na sua morada”. Crêem ainda na existência do Bicho-homem, que vive nas matas e<br />
tem o corpo coberto de pelos, bem como, no Homem-pé-de-garrafa, que deixa seu rastro<br />
de um único pé, em forma de garrafa, nos caminhos da aldeia.<br />
2.1.3.3. LUGARES E OBJETOS SAGRADOS<br />
2.1.3.3.1. OS TERREIROS<br />
Os terreiros são os locais onde acontece o Toré. Como já comentado, no dia do<br />
ritual os participantes devem entrar ali descalços, pois o local é sagrado. É ali que os laços<br />
de solidariedade são fortalecidos e onde Yayá se manifesta para falar com o povo tanto<br />
sobre assuntos pessoais como comunitários. O chão dos terreiros é batido e limpo de toda<br />
vegetação, ficando geralmente próximo às grutas. Antes haviam três terreiros,<br />
respectivamente nos vilarejos de Rancharia, Prata e Brejo do Mata Fome, sendo este<br />
último o principal. Ao que parece, hoje apenas o último está em plena atividade. O acesso<br />
é difícil, não havendo trilhas abertas nem indicativos da direção (Schettino, 1999.127).<br />
2.1.3.3.2. AS GRUTAS 31<br />
31 Schettino (1999), fez uma boa documentação fotográfica destas grutas.<br />
52
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
As grutas são cavernas ou pedreiras onde, segundo eles, Yayá habita. Nelas ficam<br />
guardadas as “tralhas” usadas no Toré, como tigelas e outros vasilhames também sagrados.<br />
Estas grutas são bem preservadas por eles, não apenas pelo seu valor religioso, mas<br />
também pela consciência do valor natural das mesmas.<br />
2.1.3.3.3. OS OLHOS D’ÁGUA<br />
Estes são fontes perenes de água e portanto, importantíssimos para a comunidade,<br />
principalmente durante as longas estiagens. Como crêem que a “Dona” protege os olhos<br />
d’água, todos evitam o trânsito nestes locais.<br />
2.1.3.3.4. OS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS<br />
Apesar de considerarem de menor importância religiosa, os sítios são também<br />
respeitados por conter uma grande quantidade de pinturas rupestres que eles atribuem aos<br />
seus ancestrais. Em 2001, foi realizada uma série de pesquisas arqueológicas na reserva,<br />
culminando no tombamento histórico, em fevereiro de 2002, de cinco grutas principais,<br />
riquíssimas em pinturas rupestres da chamada “Tradição São Francisco”, caracterizada por<br />
representações geométricas e de instrumentos diversos. Foram tombadas a Gruta Olhos<br />
D’Água, Gruta das Pinturas, Gruta Lapa Grande, Gruta dos Ventos e a Gruta do Cipó 32 .<br />
Alguns locais também considerados sagrados ficaram fora do território demarcado, como a<br />
Lagoa de Jaíba, a Mata de Jurema e a própria Igreja de São João das Missões.<br />
2.1.3.3.5. OBJETOS SAGRADOS<br />
Do conjunto de objetos sagrados, chamados de “tralhas” (Schettino, 1999.129), o<br />
principal é o Bastão, descrito como um instrumento de madeira, de tamanho médio e que<br />
pode ser tocado apenas pelo pajé, pois se outra pessoa tocá-lo, morrerá imediatamente<br />
(Paraíso, 1987.49). Fica guardado numa pedreira e só é retirado dali no momento do Toré,<br />
quando, segundo eles, o bastão dança sozinho e emite fumaça pelas extremidades.<br />
Um segundo objeto seria a Tigela Grande, feita de barro, onde é preparada a<br />
bebida chamada jurema, ingerida durante o Toré. E uma terceira classe de objetos são as<br />
Tigelas Pequenas, que são os vasilhames usados para distribuir a jurema.<br />
Segundo o cacique Rodrigão 33 , seu povo parou de praticar o Toré em 1944, quando<br />
ele tinha apenas cinco anos de idade, devido as muitas perseguições, principalmente de<br />
32 Exposição virtual no site: www.grupostone.cjb.net<br />
33 Em entrevista do dia 09/04/02.<br />
53
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
fazendeiros que entendiam os rituais como macumba contra eles. Policiais passaram a<br />
vigiar o povo para que não praticasse o ritual e aqueles que desobedeciam eram<br />
brutalmente espancados. Os antigos líderes então, esconderam os objetos sagrados numa<br />
determinada gruta que ficava na mata e o Toré deixou de ser praticado. Vinte e dois anos<br />
depois, Rodrigão encontrou os objetos sagrados, mas o povo temia voltar àquela prática.<br />
Em 1969, antropólogos da FUNAI estudando o caso Xacriabá incentivaram-lhes a voltar à<br />
prática do ritual, sugerindo que do contrário eles não conseguiriam posse definitiva de suas<br />
terras. Assim, o próprio Rodrigão articulou com os mais antigos e voltaram a praticá-lo.<br />
2.1.4. CATEGORIAS DE PODER SOCIAL<br />
Inicialmente é preciso considerar pelo menos dois principais aspectos. Primeiro que<br />
a chefia era hereditária, e hoje, mesmo adotando uma postura democrática, a maioria dos<br />
ocupantes das várias categorias de liderança pertencem à família Gomes de Oliveira. O<br />
segundo aspecto é que liderança política e religiosa estão intimamente relacionadas, pois<br />
como somente os “do sangue de Yayá” podem participar dos rituais, os demais,<br />
introduzidos na comunidade por casamento interétnico e mesmo os Xacriabá que se casam<br />
com não-índios, são consequentemente excluídos da possibilidade de liderança, já que a<br />
liderança deve seguir os conselhos de Yayá. Observemos o comentário de Paraíso<br />
(1987.40,41,47) sobre a destituição de Laurindo Gomes, cacique antecessor de Rodrigão:<br />
A destituição de Laurindo Gomes de Oliveira deveu-se a sérias discordâncias<br />
quanto à sua atuação. Ao tornar-se protestante, Laurindo abandonou o culto a Yayá<br />
e recusou-se a revitalizá-lo (...) e por coincidir este fato com o incremento da<br />
presença de posseiros na área, o capitão foi afastado do seu cargo, tendo sido<br />
substituído por um devoto de Yayá. (...) é nas lições dos “antigos” e nas<br />
informações emanadas de Yayá que os Xacriabá se baseiam para viver a sua prática<br />
política.<br />
2.1.4.1. CACIQUE<br />
O cacique é o representante geral do povo, responsável pela sua representação<br />
externa, pela solução de questões interétnicas e o principal articulador de soluções internas<br />
que evitem o conflito. Além da representação geral do povo, representa também a sua<br />
aldeia ou um grupo de aldeias próximas. Já há algumas décadas, Manoel Gomes de<br />
Oliveira, mais conhecido como Rodrigão, tem exercido a função de cacique Xacriabá. É<br />
54
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
um homem com grande liderança, muito querido e respeitado por todo o povo. Com a<br />
emancipação do município de São João das Missões, foi eleito vice-prefeito (Dutra,<br />
1998.38) e reeleito em 2000 para o segundo mandato.<br />
2.1.4.2. REPRESENTANTES<br />
Cada aldeia, ou um grupo de aldeias próximas, elegem um representante que forma<br />
com os demais o Conselho Geral, presidido pelo cacique. Eles possuem as mesmas funções<br />
internas do cacique, só que limitadas à comunidade local. Cada aldeia tem também o seu<br />
conselho que é formado pelos chefes das famílias e presidido por seu representante. As<br />
condições para se candidatar a representante é a crença em Yayá e a participação do Toré.<br />
Em maio de 2002 haviam quatorze representantes indicados pelas vinte e três aldeias.<br />
2.1.4.3. PAJÉ<br />
O pajé é o principal líder religioso devendo ser conhecedor “da ciência” e da língua<br />
de Yayá – língua ritual que apresenta resquícios do antigo idioma. É quem mantêm um<br />
relacionamento mais próximo com Yayá possuindo a capacidade de acalmá-la quando está<br />
irada, e este poder de comunicação com ela que lhe dá autoridade perante o povo. Ele é<br />
responsável pela convocação das reuniões e pelos trabalhos durante o ritual, sendo o único<br />
autorizado a tocar no bastão sagrado. Em maio de 2002 haviam dois pajés em atividade.<br />
Ele também é conhecedor de plantas medicinais devendo preparar remédios<br />
naturais quando procurado. Vale citar que além do pajé, há também os rezadores, raizeiros<br />
e curandeiros, que apesar de não ocuparem uma categoria de poder social, são pessoas as<br />
vezes procuradas para a realização de trabalhos afins.<br />
2.1.4.4. MADRINHA E MESTRA DE TERREIRO<br />
A madrinha sempre acompanha o pajé durante os trabalhos, sendo responsável pelo<br />
posicionamento dos participantes no terreiro, bem como pela apresentação dos novos<br />
membros da comunidade, aceitos na reunião. Parece haver rituais de iniciação para os<br />
meninos, sendo a idade mínima sete anos, mas não conseguimos maiores informações.<br />
Já a mestra de terreiro é responsável pela guarda do material usado durante o Toré,<br />
bem como pela limpeza do terreiro.<br />
2.1.5. PROBLEMAS SOCIAIS<br />
2.1.5.1. SAÚDE<br />
55
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
A assistência na área de saúde é feita pela FUNASA que mantêm duas equipes de<br />
atuando na reserva, cada uma com um médico, um dentista, um enfermeiro e alguns<br />
auxiliares, que contam com a ajuda de agentes de saúde indígenas. Estas equipes atendem<br />
apenas nos dois postos de saúde das aldeias Brejo do Mato Fome e Sumaré.<br />
Considerando que se trata de uma população em torno de sete mil indivíduos,<br />
distribuídos em vinte e três aldeias, que distam umas das outras até 39 km, é fácil concluir<br />
que o atendimento ainda é deficiente. Há uma grande necessidade de trabalho preventivo e<br />
de conscientização da população em questões básicas de saúde. Com exceção de algumas<br />
poucas aldeias, não há qualquer saneamento básico nestes vilarejos onde se concentram<br />
uma média de trezentas pessoas. Somente neste ano de 2002 a FUNAI iniciou a construção<br />
de banheiros para cada residência, pois até então nem isto existia. Desta forma, é muito<br />
fácil contrair e transmitir doenças, principalmente na população infantil.<br />
2.1.5.2. TRANSPORTE<br />
O meio de transporte mais comumente usado pela população são cavalos, mas em<br />
casos de doença pode se tornar inviável. A FUNAI e FUNASA não dispõem de veículos<br />
suficientes para atender todas as aldeias e por isto, muitas pessoas deixam de ser assistidas<br />
pelas equipes de saúde. A estrada que leva à aldeia Brejo do Mata Fome, que é a porta de<br />
entrada para as demais é bem conservada, mas o mesmo não acontece com a maioria.<br />
Existem aldeias de difícil acesso e por isto, acabam ficando sem assistência. Um melhor<br />
cuidado das estradas e ao menos duas linhas de ônibus ligando São João das Missões às<br />
duas aldeias mais distantes já ajudaria em muito.<br />
2.1.5.3. ANALFABETISMO<br />
Há vinte e duas escolas instaladas e em pleno funcionamento, com mais de cem<br />
professores formados pelo UHITUP – Projeto de Formação de Professores <strong>Indígena</strong>s, no<br />
Parque Estadual do Rio Doce. Toda uma geração está crescendo alfabetizada e recebendo<br />
formação escolar. Entretanto, este projeto não contemplou os adultos analfabetos, que no<br />
caso dos Xacriabá deve superar 90% da população adulta. Como mantêm um constante<br />
contato com a civilização externa, o analfabetismo se torna um fator depreciativo.<br />
2.1.5.4. A SECA<br />
Com um clima tropical de savana, a longa estação seca que geralmente se estende<br />
de abril a setembro, é um fator complicador na produção não apenas indígena mas de toda<br />
56
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
a população regional. Há poucos rios perenes dentro do território, o que está intimamente<br />
vinculado a esta característica climática. Esta carência de rios, juntamente com a baixa taxa<br />
de umidade, limita o seu solo, que apesar de tudo é fértil. Apesar de serem originalmente<br />
caçadores e coletores, hoje esta prática foi quase totalmente abandonada. Seus meios de<br />
subsistência estão na agricultura e pecuária, com a criação de bovinos. Segundo o cacique<br />
Rodrigão, há cerca de cinco mil bovinos dentro da reserva. Com a seca, ambos<br />
seguimentos ficam prejudicados, obrigando muitos dos jovens Xacriabá a saírem, ainda<br />
que temporariamente, para regiões como Mato Grosso e São Paulo em busca de trabalho.<br />
2.1.6. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
Em todas as listas de agências missionárias 34 os Xacriabá estão classificados entre<br />
os grupos indígenas não-alcançados, sem presença de missionários e igrejas. Entretanto,<br />
constatamos a presença de três denominações evangélicas entre os Xacriabá, em pelo<br />
menos treze aldeias, somando cerca de cento e oitenta evangélicos. Nenhuma delas foi<br />
fundada por missionários formais, mas por cristãos “leigos” de cidadelas vizinhas, como<br />
Manga, Itacarambi e a própria São João das Missões.<br />
2.1.6.1. CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL<br />
A partir de um trabalho em São João das Missões, irmãos voluntários da<br />
Congregação Cristã no Brasil começaram a evangelizar os indígenas resultando em várias<br />
conversões. O trabalho teve continuidade e hoje somam cerca de noventa pessoas em oito<br />
aldeias diferentes, sendo assistidas por um obreiro voluntário, indígena, chamado Hélio, do<br />
vilarejo de Rancharia. Extremamente fechados, se recusam a dar informações sobre o<br />
trabalho. O Hélio é um jovem senhor muito simples, reservado, semi-analfabeto, radical<br />
nas suas convicções cristãs, mas sem sombra de dúvida homem consagrado a Deus, que<br />
paga um alto preço para atender ao trabalho nestas oito aldeias sob sua responsabilidade.<br />
Não possuindo automóvel, percorre as aldeias de bicicleta, subindo e descendo morros, em<br />
estradas com péssimo estado, sob uma temperatura geralmente elevada.<br />
Com alguns convertidos na aldeia Brejo do Mata Fome, os Cristãos no Brasil têm a<br />
simpatia do cacique Rodrigão, que não coloca obstáculos para a evangelização, proibindo<br />
apenas a construção de templos dentro do território, proibição esta que na verdade não<br />
parte do cacique e sim da FUNAI 35 . Desta forma, os convertidos desta igreja decidiram<br />
34 Inclusive da AMTB – Associação de Missões Transculturais Brasileiras, que é atualizada a cada dois anos.<br />
35 Interessante é que na referida aldeia existe um grande templo católico.<br />
57
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
construir um salão anexado à residência de um dos seus membros, sem placa de<br />
identificação, para ser ali seu local de reuniões. Enquanto isto não acontece, continuam se<br />
reunindo de casa em casa.<br />
2.1.6.2. IGREJA PENTECOSTAL DEUS É AMOR<br />
Inicialmente sob a responsabilidade da sua sede na cidade de Manga, a Igreja Deus<br />
é Amor iniciou um trabalho em algumas aldeias contando hoje com cerca de sessenta<br />
convertidos, sendo agora atendidos pelo obreiro da cidade de Itacarambi. Uma igreja<br />
pentecostal da cidade de São João das Missões chamada Alfa e Ômega também iniciou um<br />
pequeno trabalho na reserva, mas não puderam dar continuidade e seus membros se<br />
transferiram para a Deus é Amor. Muito fechados, se recusam a dar maiores informações.<br />
2.1.6.3. IGREJA ASSEMBLÉIA DE DEUS<br />
Sob a responsabilidade da sede em Manga, obreiros da Assembléia de Deus<br />
iniciaram um trabalho em duas aldeias, há cerca de quatro anos, contando hoje com trinta e<br />
dois membros. Em cada aldeia ordenaram um diácono para liderar o trabalho, ambos<br />
pessoas simples e semi-analfabetas, mas de liderança, sendo supervisionados por um<br />
presbítero de Manga que dá assistência ao trabalho todas quintas-feiras 36 .<br />
Proibidos pela FUNAI de construir templo dentro da reserva, construíram um<br />
pequeno salão na outra margem do rio, fora do território indígena, mas perto das duas<br />
aldeias. Desta forma, os membros precisam apenas atravessar o rio para participar das<br />
reuniões que acontecem sempre aos domingos, terças, quartas e quintas-feiras.<br />
2.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
Apesar dos cento e oitenta crentes Xacriabá representarem 2,5% da população total,<br />
as três igrejas ali plantadas estão longe de apresentarem sinais de autoctonia 37 , e portanto,<br />
continua sendo necessário e urgente trabalhos missionários entre este povo. Aquelas igrejas<br />
não possuem liderança própria, baixíssimo nível de conhecimento bíblico e sua prática<br />
evangelística é ainda deficiente, sendo o trabalho voltado mais para curas e libertação. Um<br />
36 Em entrevista com o Pr. Édson Campos, no dia 10/04/02.<br />
37 Segundo o princípio dos três autos: auto-governante, auto-sustentável e auto-propagável.<br />
58
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
trabalho de ensino e discipulado, com incentivo à evangelização, seria o ideal nestas<br />
igrejas já plantadas, mas dificilmente alguma delas aceitaria a cooperação de um obreiro de<br />
outra denominação. Como pelo menos dez aldeias ainda não têm qualquer trabalho<br />
evangélico, parece estratégico direcionar esforços inicialmente a estas.<br />
Vale considerar que as portas para a evangelização dos Xacriabá estão abertas,<br />
devido a alguns fatos. Primeiro, antropólogos não têm tanto interesse neste povo devido a<br />
sua forte descaracterização cultural, o que é um fator facilitador pois são eles quem mais se<br />
opõem ao trabalho missionário. Segundo, por se tratar de um povo numericamente<br />
expressivo, tendo uma liderança forte e autônoma, a voz da FUNAI não é tão decisiva<br />
como em outros grupos, apesar de exercer influência. Logo, adquirindo a confiança e<br />
amizade da liderança, o obreiro teria passe livre para atuar. Terceiro, como todos são<br />
falantes do português e naturalmente receptivos, as barreiras são minimizadas.<br />
2.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
Sendo a permanência dentro da reserva proibida, três pequenas cidades se tornam<br />
estratégicas para uma abordagem missionária. São João das Missões é a mais estratégica,<br />
por se tratar do próprio município e ser a mais próxima da entrada principal. Entretanto,<br />
para atender as aldeias do norte ou sul da reserva, as cidades de Manga e Itacarambi seriam<br />
respectivamente estratégicas. Vale ressaltar que se trata de cidades pequenas e com poucos<br />
recursos.<br />
2.2.2. A QUESTÃO SINCRETISTA<br />
Faz-se necessário uma séria análise fenomenológica da religiosidade Xacriabá, bem<br />
como um profundo estudo da sua cosmologia para uma abordagem missionária relevante.<br />
É evidente que o catolicismo que professam foi assimilado a partir de uma base animista<br />
que até hoje é profundamente arraigada na sua cosmovisão. É preciso descer ao nível dos<br />
significados para uma correta leitura das diversas formas da sua religiosidade. A figura de<br />
Yayá parece estar intimamente relacionada com sua história de sofrimento, causada pela<br />
intrusão da sociedade externa com a chegada dos colonizadores. Tudo gira em torno do<br />
sofrimento do povo e da sua resistência. Logo, uma teologia de sofrimento é de<br />
necessidade primária no processo de plantio de igrejas neste povo. Casos de possessão são<br />
muito comuns em toda a tribo, dado a este íntimo relacionamento dos mesmos com o<br />
mundo dos espíritos o que, consequentemente, torna necessária uma sólida teologia do<br />
Espírito Santo. É preciso considerar também, que o fato deles não terem preservado o<br />
59
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
nome de um ser criador não significa necessariamente que tenham assimilado corretamente<br />
o conceito da pessoa de Deus, pregado pelos cristãos. É provável que a figura de Deus<br />
tenha também sido assimilada a partir desta base animista e daí não conceberem a idéia de<br />
um relacionamento direto com Ele, optando por Yayá. Um estudo do que eles entendem da<br />
pessoa de Deus pode ser muito importante para o processo de evangelização.<br />
2.2.3. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
Apesar da existência de três denominações entre eles, apenas a Assembléia de Deus<br />
pode estar aberta a um trabalho em parceria. Uma possibilidade viável de integração seria<br />
com a Igreja Congregacional presente tanto em São João das Missões como em Itacarambi,<br />
mas esta possui poucos recursos financeiros e humanos. Em Manga, o ideal seria com a<br />
Assembléia de Deus, filiada à Convenção Mineira, com sua sede em Belo Horizonte, que<br />
certamente tem interesse em um trabalho mais arrojado entre indígenas.<br />
O principal centro urbano da região é a cidade de Januária, onde existem igrejas<br />
bem mais estruturadas, mas fica um pouco distante. Outros centros urbanos seriam as<br />
cidades de Janaúba e Montes Claros, mas ficam ainda mais longe.<br />
2.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS<br />
Apesar das sugestões aqui apresentadas pressuporem o trabalho de bi-ocupacionais,<br />
o trabalho exclusivo de plantio de igrejas não está em hipótese alguma excluído. Estas<br />
sugestões se justificam principalmente pelas constantes restrições que missionários de<br />
carreira têm enfrentado em campos diversos, mas pode não ser o caso dos Xacriabá.<br />
2.2.4.1. SAÚDE<br />
Mesmo com duas equipes da FUNASA já atuando na reserva, há lugar para<br />
profissionais na área de saúde, principalmente preventiva. De médicos a enfermeiros, todos<br />
seriam bem vindos pelo povo e a FUNAI certamente não faria oposição, principalmente se<br />
atuassem nas aldeias mais distantes. Atualmente há um enfermeiro da Igreja Batista de<br />
Montes Claros que, compondo uma das equipes de saúde, tem pregado o evangelho com<br />
vigor para muitos indígenas, sem enfrentar qualquer resistência. Ele não tem interesse,<br />
entretanto, de plantar uma igreja, ou mesmo de se envolver formalmente com um projeto<br />
60
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
missionário, mas sua atuação tem sido uma benção para aquele povo, para as igrejas já<br />
existentes e uma prova de que um trabalho nesta área seria muito estratégico e viável.<br />
2.2.4.2. ALFABETIZAÇÃO<br />
Mesmo necessitando de professores de ensino médio, somente educadores índios são<br />
aceitos na escola indígena (Dutra, 1998.38). Entretanto, um projeto de alfabetização de<br />
adultos certamente seria visto com bons olhos pela liderança indígena, pois em muito<br />
contribuiria ao desenvolvimento do povo.<br />
2.2.4.3. AGROPECUÁRIA<br />
Como já visto, os Xacriabá produzem a maioria dos produtos alimentícios que<br />
necessitam para sua subsistência, bem como possuem um considerável rebanho bovino.<br />
Como o mercado regional não é tão forte e eles não têm prática de comércio, preferem<br />
circular seus produtos entre si na base da troca, sem relações monetárias. Isto é muito<br />
positivo pois preserva elementos básicos da sua organização social 38 . Entretanto, tanto eles<br />
como o seu território tem capacidade de produzir muito mais e até de adquirir total<br />
independência da sociedade externa nos seus produtos alimentícios básicos. O que lhes<br />
falta são técnicas mais modernas das quais mesmo a maioria dos produtores regionais são<br />
privados, por se tratar de uma região bastante isolada e sofrida.<br />
38 Paraíso (1987.33) aponta três principais fatos que distinguem o seu sistema de produção dos demais<br />
agricultores regionais: “a posse comunal da terra, a ausência de relações monetárias entre os membros da<br />
comunidade ou mesmo com o órgão assistencial, e um sistema de convivência que não se baseia na<br />
competição, mas na solidariedade”.<br />
61
3. OS MAXAKALI<br />
3.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Meu pai contou pra mim. Eu vou contar pro meu filho.<br />
Ele conta pro filho dele. É assim: ninguém esquece.”<br />
Kelé Maxakali 39<br />
De todos os grupos indígenas de <strong>Minas</strong>, os Maxakali são os que mais preservaram a<br />
cultura, dado a sua forte resistência à civilização externa. Eles estão entre os mais<br />
resistentes do leste brasileiro, pois com o processo de colonização, “apenas quatro povos<br />
desta região conseguiram conservar suas línguas e suas culturas: os Fulni-ô em<br />
Pernambuco, os Maxakali em <strong>Minas</strong> Gerais, os Xokleng em Santa Catarina e os Guarani<br />
que migram pelas regiões litorâneas do sul e sudeste” (Casas, 2002.Internet).<br />
Mesmo estando em contato direto com a civilização externa há mais de duzentos e<br />
cinqüenta anos, sua estrutura social, cultura e língua permanecem vivas e<br />
caracteristicamente tribais. Obviamente, muito da cultura externa foi introduzido no seu<br />
contexto sociocultural, mas não o suficiente para comprometer sua identidade étnica.<br />
3.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
Sua história cultural registra muitos reveses, envolvendo guerras inter-tribais,<br />
perseguições, massacres, epidemias, fugas. Para resistir a estas ameaças, tiveram que se<br />
unir a outros grupos, acontecendo assim uma miscigenação étnica. Mas hoje os Maxakali<br />
formam uma etnia forte, resistente e muito consciente da sua indianidade.<br />
3.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA<br />
Os remanescentes Maxakali parecem não ser etnicamente um único grupo definido,<br />
mas sim o resultado da união de vários grupos minoritários que se articularam<br />
politicamente como aliados, se aldeando em conjunto com fins de formarem uma maior<br />
39 Em CEDEFES (1987.5).<br />
62
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
resistência aos invasores das suas terras, principalmente a partir de 1808 quando ocorreu a<br />
invasão sistemática de seus territórios e se ampliaram os conflitos com outros grupos<br />
étnicos, particularmente com os Botocudos.<br />
O termo Maxakali é uma palavra de língua desconhecida mas que aparentemente<br />
indica exatamente esta união de vários grupos. Por esta razão há divergência quanto a<br />
autodenominação do grupo: Monacó bm – Nimuendajú 40 (1958.54); Kumanaxú – Joaquim<br />
Souza, antigo chefe de posto (Paraíso 41 , 1999.Internet); Tikmã-ãn – Alvares 42 (1995.91);<br />
mas tudo indica que Frances Popovich 43 (1994.15) tem razão quando registra Tikmü’ün<br />
como o termo que adotam para si mesmos.<br />
3.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
Parece que os Maxakali faziam parte da confederação étnica chamada Naknenuk<br />
composta pelos Pataxó, Manoxó ou Amixakori, Kumanaxó, Kutatói, Malali, Makoni,<br />
Kopoxó, Kutaxó e Pañâme, que se opunha principalmente aos Botocudos (Paraíso,<br />
1999.Internet). Como a maioria destes grupos foram extintos, hoje a família Maxakali é<br />
formada apenas pelos próprios Maxakali, Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe (Rodrigues, 1994.56).<br />
3.1.1.3. TRONCO LINGÜÍSTICO<br />
Segundo Popovich (1994.15) e Aryon Rodrigues (1994.56), pertencem ao tronco<br />
Macro-Jê, família Maxakali e língua Maxakali.<br />
3.1.1.4. CLASSIFICAÇÕES ETNOLÓGICAS<br />
3.1.1.4.1. QUANTO A HABITAÇÃO<br />
Nimuendajú (1954.59) se referiu às famílias Maxakali como sendo “pelo menos<br />
predominantemente patrilocais” e tem razão quando diz “predominante”, pois segundo<br />
Popovich (1994.25) quando do casamento o casal vai morar “com os pais da noiva até o<br />
primeiro bebê deles poder sentar-se sozinho, ocasião quando deveriam construir sua<br />
própria casa”, geralmente perto da casa dos pais do noivo. A índia Maria Diva explica que<br />
40 Nimuendajú esteve entre os Maxakali em 1939, colhendo dados que foram encaminhados ao SPI. Suas<br />
observações se tornaram o primeiro documento antropológico escrito sobre eles.<br />
41 A Dra. Paraíso é uma profunda conhecedora da história Maxakali, visto ter desenvolvido sua dissertação de<br />
mestrado sobre grupos indígenas incluindo os Maxakali.<br />
42 A Dra. Alvares esteve por dois períodos morando nas aldeias Maxakali e apresentou dissertação de<br />
mestrado sobre a referida tribo na UNICAMP.<br />
43 Sem dúvida alguma, a Dra. Frances é a maior conhecedora da língua e cultura Maxakali, pois com eles<br />
morou de 1959 a 1981, estudando sua cultura e traduzindo o Novo Testamento para sua língua.<br />
63
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
isto se dá “porque até nascer o primeiro filho, a mulher ainda não tem juízo para cuidar<br />
sozinha de filhos 44 ”.<br />
Lançando mão das clássicas definições de Peter Mudock (Guiart, 1973.32), quanto<br />
às classificações residenciais, pode-se dizer que os Maxakali estão se movendo de<br />
matripatrilocais intermediários transitórios 45 , para neolocais 46 .<br />
3.1.1.4.2. QUANTO À DESCENDÊNCIA<br />
Nimuendajú (1954.59), corretamente classificou suas famílias como “patrilineares”,<br />
sendo assim os filhos pertencentes à família do pai e a transmissão de toda categoria de<br />
bens é feita através dos homens.<br />
3.1.1.4.3. QUANTO AO CASAMENTO<br />
“O casamento entre primos cruzados matrilaterais 47 é o ideal” (Popovich, 1994.38),<br />
embora, em épocas de crise tem acontecido casamentos com primos cruzados patrilaterais<br />
e outros. É considerado por eles como um processo e não um ato realizado num momento<br />
certo, não havendo assim ritual nem comemoração 48 . Neste processo há um namoro<br />
discreto e uma negociação também discreta. Ao que parece, o casamento se efetiva ao<br />
nascer o primeiro filho. As meninas geralmente se casam aos doze ou treze anos e os<br />
rapazes, quando são cinco ou sete anos mais velhos que elas (Popovich, 1994.29,53).<br />
3.1.1.5. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA<br />
Os remanescentes Maxakali vivem hoje em duas aldeias – Água Boa e Pradinho –<br />
unificadas na Terra <strong>Indígena</strong> Maxakali, com uma área de 5.293,13 ha. no Vale do Mucuri,<br />
nos municípios mineiros de Bertópolis e Santa Helena de <strong>Minas</strong>, limítrofe com Bahia,<br />
cercados pelos municípios de Umburatiba, Machacalis e Batinga, este último já no Estado<br />
da Bahia. As duas aldeias distam 13 km uma da outra.<br />
3.1.1.5.1. KÕNÃG MAI - ÁGUA BOA<br />
44 Em entrevista do dia 07/02/02.<br />
45 Residência na casa dos pais da mulher até que nasça o primeiro filho, depois na casa dos pais do marido.<br />
46 Residência diferente e, às vezes, muito afastada da dos pais do marido e da mulher.<br />
47 Ou seja, “entre a filha do irmão da mãe e o filho da irmã do pai” (Popovich, 1994.47), de acordo com o<br />
Método Genealógico do inglês W. H. R. Rivers (Guiart, 1973.54).<br />
48 Vale ressaltar aqui, que acontecem algumas exceções. Recentemente, a filha da índia Noêmia, líder de um<br />
dos grupos residenciais de Água Boa, casou-se com vestido de noiva, aos moldes da civilização externa. Isto,<br />
entretanto, não é comum.<br />
64
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
A aldeia de Água Boa (Kõnãg Mai) está localizada há 12 km da cidadela de Santa<br />
Helena de <strong>Minas</strong>, que por sua vez dista 24 km de Machacalis, e 240 km de Teófilo Otoni,<br />
maior centro urbano da região. A estrada de acesso é razoavelmente boa.<br />
As aldeias Maxakali são distribuídas em vários pequenos grupos residenciais,<br />
variando o número de palhoças (miptut) onde vivem várias famílias, constantemente<br />
passando por cisões que formam outros grupos. Em fevereiro de 2002 haviam na aldeia de<br />
Água Boa dez grupos residenciais, espalhados numa extensão aproximada de 6 km, cada<br />
um variando entre duas a dez palhoças, sendo identificados pelo nome da pessoa mais<br />
influente do grupo - Totó (ao extremo oeste), Manoel Kelé, Joviel, Zezinho (ou Zé Pirão),<br />
Edvaldo, Diva, Noêmia, Dimas (ao nordeste), Pinheiro e Bororó (ao extremo leste).<br />
3.1.1.5.2. PANANIY - PRADINHO<br />
A aldeia do Pradinho (Pananiy) está localizada há 13 km da pequena cidade de<br />
Batinga e assim como Água Boa, está distribuída em grupos residenciais, pouco definidos<br />
e constantemente em modificações, identificados pelo nome da pessoa mais influente do<br />
grupo, com exceção de uma. Em fevereiro de 2002 haviam dez grupos – Milton, Guigui,<br />
Amélio, Vicente, Dotor, Maroto, Marcelino, Israel, Marinho e Aldeia Nova.<br />
3.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA<br />
No último censo da FUNAI, realizado em 2001, os Maxakali somavam 970<br />
indivíduos, sendo 514 na aldeia de Água Boa e 456 no Pradinho. Não há um percentual<br />
exato, mas cerca de 60% da população é de jovens e crianças.<br />
3.1.3. ÍNDICE DE COMUNICAÇÃO BILÍNGÜE<br />
A língua Maxakali é falada por todos, sendo sua preservação algo notável. Apesar<br />
do prolongado contato com a civilização externa, fazem questão de, entre eles, não usarem<br />
o português, o que é uma exceção entre os povos do leste (Alves, 2000.49).<br />
O português é compreendido pela maioria, mas falado por poucos, basicamente<br />
pelos líderes, como professores e anciãos, principalmente no Pradinho onde o contato é<br />
menor. Os que se arriscam na pronúncia, falam unicamente palavras esparsas e as mulheres<br />
basicamente não falam o português, devido ao mesmo ser usado apenas para contatos com<br />
a civilização externa, o que cabe quase que exclusivamente aos homens (Alvares,<br />
1992.15).<br />
Em “agosto de 1980, o governo iniciou um programa de educação bilíngüe com o<br />
objetivo de diminuir as barreiras lingüísticas existentes entre a sociedade Maxakali e a<br />
65
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
dominante” (Popovich, 1993.5), mas o interesse foi pequeno. Somente agora alguns jovens<br />
têm se interessado e para atender a esta demanda, foi contratado um professor da referida<br />
cidade que tem ido semanalmente até a aldeia para dar aulas de português. Desta forma, a<br />
única possibilidade de comunicação efetiva é na própria língua.<br />
3.1.4. SINAIS DE ANIMISMO<br />
A religiosidade Maxakali é mais fortemente expressa pelo relacionamento<br />
constante com as várias entidades espirituais que formam todo um panteão. Estes vários<br />
seres sobrenaturais têm personalidade e exigências, inclusive alimentares, bastante<br />
diferenciadas, o que exige não só sua identificação durante os rituais mas também o<br />
conhecimento de como agradá-los para evitar que venham fazer mal à comunidade. Crêem<br />
que os espíritos amigos ajudam a identificar os espíritos inimigos com quem estão lidando<br />
(Paraíso, 1999.Internet). Para que haja um equilíbrio no relacionamento entre homens e<br />
espíritos é que se faz necessário os vários rituais praticados por eles.<br />
3.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS<br />
3.1.4.1.1. CURA<br />
Os rituais de cura destinam-se às crianças, aos jovens e adultos, excetuando os<br />
recém-nascidos – por não terem nomes ainda, e logo, não existirem socialmente<br />
(Popovich, 1994.12) – e os velhos, que avançados em idade necessitam descansar (Paraíso,<br />
1999.Internet). A doença é motivo de grandes traumas, pois é interpretada como uma<br />
intervenção dos espíritos que capturam as almas das pessoas fazendo-as ficar doentes.<br />
Consequentemente os rituais de cura visam restaurar o equilíbrio, agradando aos espíritos,<br />
dos quais as mulheres são as presas mais fáceis (Alvares, 1995.21)<br />
O ritual é comandado pelo líder do grupo que, acompanhado dos parentes, canta,<br />
dança e pergunta em voz baixa ao doente qual o espírito que o atormenta e a este quais os<br />
seus desejos que precisam ser satisfeitos. Cumprida essa etapa, os homens retiram-se para<br />
a kuxex (casa da religião) para adotarem as medidas necessárias à continuidade dos<br />
trabalhos. Tendo obtido todo o necessário, retornam junto ao jirau do doente, promovendo<br />
nova sessão de cânticos e rezas e lançando grandes baforadas de fumo sobre o paciente. Os<br />
espíritos são instados a se retirarem. Quando o cão da casa gane, é considerado que foi<br />
estabelecido o contato com o espírito iniciando-se uma nova etapa do processo de cura: a<br />
66
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
casa é deixada no escuro e usam-se os zunidores até novos ganidos do animal. Este é o<br />
sinal indicativo da saída do espírito. Os responsáveis pelos rituais se retiram da casa, onde<br />
as lamparinas voltam a ser acesas e a comida ofertada aos espíritos desaparece, sendo o<br />
consumo atribuído aos homenageados (Paraíso, 1999.Internet). Enquanto os vivos estão<br />
reunidos para recuperar a alma do doente, os mortos se reúnem para impedir que a alma<br />
volte para o mundo dos vivos. Desta forma, “a doença é a relação indevida entre vivos e<br />
mortos (...) O ritual de cura estabelece a ordem e reinstaura a separação entre os mundos,<br />
só assim o doente se recupera” (Alvares, 1995.21).<br />
3.1.4.1.2. APAZIGUAMENTO<br />
Os rituais de apaziguamento acontecem em datas imprevisíveis e geralmente visam<br />
solucionar eventuais crises sociais ou políticas. Quando os espíritos são por alguma coisa<br />
ou por alguém ofendidos, faz-se necessário apaziguar a sua ira para que não venham<br />
provocar males à comunidade como pestilências, calamidades ou mesmo catástrofes<br />
dependendo do espírito ofendido. Neste caso a entidade ofendida exige as oferendas ou<br />
caso isto não aconteça é preciso descobrir quais são os seus gostos para assim satisfazê-la.<br />
De certa forma, todo ritual é de apaziguamento.<br />
3.1.4.1.3. INICIAÇÃO<br />
Os rituais de iniciação acontecem sempre que chega a época dos kutok (meninos)<br />
serem recebidos na tribo como homens. Isto ocorre apenas com as crianças do sexo<br />
masculino quando estes atingem a idade aproximada de sete anos 49 , que desde pequenos<br />
têm acesso à kuxex onde além de aprenderem as atividades próprias do seu sexo, inclusive<br />
os rituais, mantêm relações mais próximas com os homens.<br />
Quando do ritual, o menino é conduzido para a kuxex e lá permanece por cerca de<br />
trinta dias. O seu alimento é preparado pela mãe que passa para o seu introdutor na religião<br />
– geralmente o pai ou tio – e este o leva para o menino. Durante este período o introdutor<br />
transmite ao menino toda a história e os segredos da sua cultura, bem como cânticos, que<br />
são ensinados pelos yãmiy. “Possuir Yãmiy é a condição para se atingir a maioridade<br />
Maxakali. Os velhos dão aos seus filhos seus cantos e Yãmiy porque ‘não necessitam mais<br />
deles’, ou seja, já se transformaram em pessoas completas” (Alvares, 1992.93). Findo o<br />
período de trinta dias o menino é enfeitado com pinturas, colares e todos os ornamentos<br />
49 Segundo Paraíso (1999.Internet) e Alvares (1992.97). Popovich (1994.29) fala de doze anos.<br />
67
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
próprios dos homens, sai da Casa de Religião, toda a tribo festeja e a partir daí o menino é<br />
considerado homem adulto, podendo participar de todos os rituais (Paraíso, 1999.Internet).<br />
3.1.4.1.4. FUNERAIS<br />
Os rituais fúnebres são marcados por muito choro e o corpo não é enterrado pelos<br />
parentes, que permanecem na aldeia, mas sim pelos amigos, e isto o mais rápido possível,<br />
pois deve acontecer antes do pôr-do-sol. Neste ínterim, “todo o grupo residencial deve<br />
abandonar as casas e queimar completamente a casa do morto” (Popovich, 1993.21) e após<br />
o sepultamento, “a família enlutada muda-se para a casa dos parentes mais próximos”<br />
(Alvares, 1992.164). Caso a morte ocorra durante a noite, todo o grupo deverá ficar em<br />
vigília, pois um espírito poderá se esconder no interior do corpo, transformando-o<br />
posteriormente numa onça, atacando o grupo (Alvares, 1992.158), ou pode simplesmente<br />
provocar doenças em outros.<br />
3.1.4.1.5. COLHEITA<br />
Sempre que os Maxakali colhem algum produto que demandou cultivo da terra, um<br />
ritual é realizado em agradecimento aos espíritos, pois são eles quem “não permitem que a<br />
safra se perca 50 ”. Há danças, cânticos e oferendas ao espírito protetor da safra.<br />
Todos estes rituais são praticados de forma coletiva e nos lugares sagrados. A<br />
prática isolada de rituais por apenas um dos membros da comunidade, além de ser<br />
considerada perigosa à sociedade é interpretada como prática de feitiçaria, o que<br />
normalmente resulta na morte do acusado (Popovich, 1994.28). Para a realização de alguns<br />
rituais eles pintam o corpo, põem mascaras e as mulheres devem acreditar que aqueles não<br />
são os homens mas os espíritos. A maior parte do tempo não pronunciam palavras<br />
inteligíveis, mas apenas gritos, e cantam chamando os espíritos.<br />
3.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS<br />
Os Maxakali crêem que o mundo foi criado por Topa (Deus) o qual há muito tempo<br />
atrás vivia entre os homens, mas, tendo se aborrecido retirou-se e enviou-lhes um grande<br />
dilúvio, havendo variantes quanto ao número de sobreviventes – um homem ou um casal –<br />
que deram origem ao povo Maxakali, e desde então Topa deixou de relacionar-se<br />
50 Entrevista com Zezinho Maxakali, no dia 08/02/02.<br />
68
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
diretamente com o homem 51 . Abaixo de Topa, existe um grande número de entidades com<br />
as quais eles se relacionam no dia-a-dia.<br />
3.1.4.2.1. YÃMIY<br />
Os yãmiy são os “espíritos dos mortos” e detêm todo o conhecimento, seja do<br />
sagrado ou não. São eles que trazem o conhecimento aos vivos, e idealmente, somente eles<br />
sabem fazer os instrumentos musicais, os paus de religião (mimãnãm) as máscaras,<br />
pinturas e até mesmo o arco e flecha de caça – nãptut (Alvares, 1992.96). Sempre que um<br />
maxakali morre, seu espírito torna-se um yãmiy e passa a viver numa dimensão diferente,<br />
porém, podendo a qualquer momento estabelecer contato com os vivos.<br />
3.1.4.2.2. YÃMIYXOP<br />
Os yãmiy estão ordenados em vários grupos – provavelmente doze ou quatorze –<br />
chamados yãmiyxop 52 , que se subdividem em muitos subgrupos (Alvares, 1992.89). Os<br />
vários yãmiy que compõem um yãmiyxop se personificam manifestando-se como uma<br />
entidade e não como um grupo 53 . Desta forma, há o yãmiyxop do morcego, do gavião e<br />
assim por diante. Nos rituais, são exatamente os yãmixop que se manifestam, e inclusive,<br />
há objetos como varapaus e estacas destinadas especificamente a determinados yãmiyxop.<br />
3.1.4.2.3. HÃMGÃYÃGÑAG<br />
No topo dessa hierarquia encontra-se Hãmgãyãgñag, a alma finada individual,<br />
soberana das forças do bem e do mal (Paraíso, 1999.Internet). Os Maxakali têm pavor<br />
desta entidade e com ela não se relacionam diretamente. Segundo eles, Hãmgãyãgñag se<br />
manifesta como uma onça feroz que vive na mata e devora as suas vítimas. A senhora Ana<br />
Ribeiro, que com eles viveu muitos anos, chamada por eles de Xukux’An (avó Ana) relata 54<br />
que seu esposo, Milguezinho – “o amansador” – conversava diretamente com esta onça,<br />
não podendo vê-la mas ouvindo-a em bom tom.<br />
3.1.4.3. LUGARES E OBJETOS SAGRADOS<br />
51 O principal mito acerca do surgimento dos Maxakali, relata o rompimento de “um pacto com Topa” e do<br />
conseqüente castigo, em forma de um grande dilúvio (Soares, 1995), bem como o repovoamento da terra,<br />
através de relações com uma corça (Alves, 1999.91). Ver anexo 01: 2.1. O dilúvio.<br />
52 Yãmiy – “espírito do canto” – e xop – “grupo, bando”. Portanto, a idéia é de um grupo de espíritos.<br />
Yãmiyxop é usado também para designar as cerimônias aos yãmiyxop.<br />
53 Conversando com Zezinho Maxakali (08/02/02) sobre a Trindade Divina, ele usou a figura dos yãmiyxop<br />
para exemplificar sua compreensão, dizendo que a Trindade é três em um só, assim como os yãmixop são<br />
vários também em um só.<br />
54 Em entrevista do dia 06/02/02.<br />
69
3.1.4.3.1. KUXEX<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
A kuxex (casa de religião) é o local mais sagrado de toda aldeia ou grupo<br />
residencial. Consiste em um simples rancho de forquilhas e coberto de capim, sem paredes<br />
ou qualquer outro objeto no seu interior. Somente na kuxex os rituais podem ser realizados,<br />
de forma coletiva e somente pessoas do sexo masculino têm acesso a ela, sendo<br />
terminantemente proibido às mulheres entrarem neste recinto sagrado. Apesar de não haver<br />
notícias de precedente histórico, todos são unânimes em afirmar, que se uma mulher entrar<br />
na kuxex será sacrificada pelos homens que a espancarão até morrer, ou “adoecerá e<br />
morrerá por castigo dos yãmiy” 55 . É nela que as oferendas aos yãmiy são depositadas.<br />
São construídas pelos grupos residenciais, sendo que mais de um grupo pode se<br />
reunir para os rituais na mesma kuxex. Depois disto, ficam abandonadas, sem qualquer<br />
manutenção, e geralmente acabam desfeitas por ventos ou chuvas. Quando dos rituais, eles<br />
então reformam ou constróem outra, enquanto também cantam e dançam.<br />
3.1.4.3.2. MIMÃNÃM<br />
Os mimãnãm (paus de religião) são varapaus ou troncos de madeira através dos<br />
quais os yãmiyxop “descem” nos momentos dos rituais. Os maiores são pintados em uma<br />
lateral com riscos e pontos, os quais indicam os cânticos e movimentos cerimoniais. São<br />
fincados em frente a kuxex e, geralmente, existem três mimãnãm de tamanhos diferentes.<br />
Um varapau de aproximadamente 8 metros de altura destinado ao Xunimkup – yãmiyxop<br />
do morcego; dois troncos pequenos, com cerca de 1,5 metro de altura, sendo um destinado<br />
ao Yãmigkup – yãmiyxop de mulher; e o outro destinado ao Mõgmokakup – yãmiyxop de<br />
gavião. Quando mais de um grupo residencial se reúne numa mesma kuxex, são fincados<br />
mimãnãm para cada grupo. Durante certos rituais eles penduram colares e outros objetos na<br />
ponta dos mimãnãm, consagrando-os assim aos yãmiyxop. As vezes, galinhas vivas são<br />
penduradas e os celebrantes lhes atiram flechas até ficarem completamente cravadas.<br />
3.1.4.4. ESTUDO DE PODER SOCIAL<br />
Culturalmente, os Maxakali não possuem caciques. Popovich (1993.27) comenta,<br />
que “durante os vinte anos que tivemos contato com esse povo, não conseguimos descobrir<br />
a palavra para ‘chefe’”. Assim, a liderança é exercida pela pessoa mais influente de cada<br />
55 Como relata o missionário Adair Gomes, em correspondência pessoal de 23/04/02.<br />
70
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
grupo residencial, podendo ser tanto homem como mulher. Na aldeia de Água Boa os dois<br />
maiores grupos residenciais têm como líder mulheres – Maria Diva e Noêmia.<br />
Entretanto, com as modificações que a sociedade vai enfrentando, novas categorias<br />
começam a surgir. Dado à necessidade de representantes junto às autoridades externas, eles<br />
têm elegido “caciques” que os representam. Com o advento da escola, os professores<br />
também começam a exercer influência nos grupos residenciais e em toda a aldeia.<br />
Um fato interessante é que os Maxakali se distinguem da maioria das tribos<br />
indígenas quanto ao papel do pajé. Na verdade pode-se dizer que os Maxakali não possuem<br />
pajés, pois crêem que cada homem nasce com poderes religiosos. O que eles têm são<br />
anciãos que se destacam na tribo pela sua experiência nos rituais – de cura principalmente<br />
– e, ademais, o cacique acumula deveres políticos e religiosos (Paraíso, 1999.Internet).<br />
3.1.5. PROBLEMAS SOCIAIS<br />
3.1.5.1. SOBREVIVÊNCIA<br />
A sobrevivência étnica dos Maxakali esteve seriamente ameaçada chegando a<br />
correrem risco de extinção. Eles são típica e culturalmente caçadores, pescadores e<br />
coletores, tendo a terra como algo sagrado. O principal alvo dos colonizadores era<br />
exatamente suas terras, e quando estas lhes foram tomadas, ficaram durante décadas sem a<br />
sua fonte de subsistência. As duas aldeias onde por muitos anos foram confinados não<br />
eram suficientes para a sobrevivência de quase mil índios, além do que os fazendeiros<br />
invasores desmataram toda a região, fazendo dos bosques pastos para bovinos. Isto acabou<br />
com a caça, coleta e minguou os rios quase totalmente. Foram impedidos pelos fazendeiros<br />
de até mesmo banharem-se nos seus rios. O principal rio da reserva é o Umburaninha, e<br />
durante o período de invasão esteve sob o domínio dos fazendeiros. Sem onde caçar,<br />
coletar e pescar, os Maxakali se tornaram muito sedentários enfrentando por muitos anos<br />
uma difícil luta pela sobrevivência. Suas alternativas eram portanto arrebatar animais dos<br />
vizinhos “brancos” ou sair às cidades da região pedindo ajuda. Às margens das rodovias<br />
em direção às cidades de Governador Valadares, Teófilo Otoni e outras, muitos índios<br />
morreram assassinados, atropelados e mesmo por excesso de álcool. Hoje, de posse<br />
novamente das suas terras este problema pode deixar de existir, mas será necessário um<br />
longo processo de reeducação étnica e reflorestamento da reserva.<br />
Atualmente, sobrevivem dos poucos produtos que cultivam, da comercialização –<br />
desvalorizada – de alguns destes produtos e artesanatos, doações da FUNAI e do salário<br />
71
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
dos professores e aposentados que serve para alimentar não apenas a família dos<br />
beneficiados, mas também parte do grupo residencial.<br />
3.1.5.2. ALCOOLISMO<br />
O alcoolismo, entretanto, parece ser o maior problema enfrentado pelos Maxakali.<br />
Os colonizadores e exploradores regionais introduziram a cachaça ao dia-a-dia Maxakali,<br />
usando-a como produto de troca pelo seu trabalho, terra, bens e até mulheres (Amorim,<br />
1966.23). O resultado disto é que a população indígena quase toda se tornou alcoólatra, e<br />
isto há mais de cinqüenta anos, sendo portanto toda a atual geração fortemente influenciada<br />
por este distúrbio social (Torretta, 1997.3).<br />
Como já dito, os Maxakali são fortemente resistentes à influência cultural externa.<br />
Entretanto, apesar de toda resistência cultural, eles acabaram se curvando ao alcoolismo.<br />
Dos mais velhos às crianças, quase todos se embriagam. É comum encontrá-los pelas ruas<br />
das cidades vizinhas ou mesmo estradas, cambaleando por excesso de álcool. Vários já<br />
morreram de coma alcóolico ou por insolação, e até crianças já foram atendidas com<br />
problemas de alcoolismo. Quando bebem se tornam agressivos e por isto é comum ver<br />
brigas principalmente entre casais. A missionária-enfermeira Marlene Martins, relata<br />
vários casos de ferimentos conseqüentes de brigas quando alcoolizados 56 . A dependência<br />
chegou a um estágio tão sério que, por não terem dinheiro para comprar cachaça, a<br />
substituem por álcool puro, acetona, éter ou desodorante. O pouco dinheiro que às vezes<br />
adquirem é gasto quase todo com bebida (Abdala, 1998.53).<br />
3.1.6. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
Os Maxakali estão em contato com o evangelho e missionários evangélicos há<br />
quarenta e três anos, mas ainda não há uma igreja plantada em seu meio. Alguns<br />
missionários já trabalharam entre eles, outros trabalham até hoje.<br />
3.1.6.1. HAROLD E FRANCES POPOVICH - SIL<br />
Americanos, vieram para o Brasil através da SIL – Sociedade Internacional de<br />
Lingüística, e “em fevereiro de 1959” começaram “a morar e trabalhar entre os índios<br />
Maxakali” (Popovich, 1993.5), onde permaneceram bravamente até 1981, e depois<br />
continuaram ainda por vários anos visitando as aldeias esporadicamente. Neste período de<br />
vinte e dois anos, analisaram a língua foneticamente, grafaram, criaram quatro cartilhas de<br />
56 Em entrevista do dia 06/02/02.<br />
72
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
alfabetização e iniciaram o processo de alfabetização, apesar de, segundo o próprio Harold<br />
(Antunes, 1999.ii) “somente uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever”. Entretanto,<br />
o maior legado dos Popovich foi o Novo Testamento traduzido para a língua Maxakali,<br />
dedicado em 1981. Não deixaram igreja plantada.<br />
3.1.6.2. RONALDO E KÁTIA LIMA - MNTB<br />
Após alguns anos trabalhando com os Zoé no Pará e depois com os Pankararu em<br />
Pernambuco, Ronaldo casa-se com a Kátia, vindo trabalhar como casal com os Maxakali,<br />
em março de 1992, e um mês depois, formou equipe com o casal Adair e Zilene Gomes da<br />
mesma Missão. Ele é o responsável pela tradução e ela pela elaboração de um dicionário 57 .<br />
3.1.6.3. ADAIR E ZILENE GOMES - MNTB<br />
Após concluírem instituto bíblico e lingüístico da MNTB – Missão Novas Tribos<br />
do Brasil, formou equipe com o casal Ronaldo e Kátia Lima, em abril 1992, apenas um<br />
mês após a chegada destes. Ele é responsável pela coleta de dados culturais e ela pela<br />
análise e descrição da cultura 58 .<br />
Com visão específica de plantar igrejas, os dois casais foram introduzidos e<br />
apresentados à tribo pelo próprio Harold e iniciaram o aprendizado da língua e cultura.<br />
Usando como método de evangelismo as lições sugeridas pelo livro “Alicerces Firmes” da<br />
própria MNTB, iniciaram a tradução das mesmas e até fevereiro de 2002 haviam traduzido<br />
35 das 68 lições. Iniciaram efetivamente o processo de evangelismo através do estudo<br />
destas lições em meados de 2000. Residindo em Batinga, na Bahia, concentraram seus<br />
esforços primeiramente na aldeia do Pradinho, mas, recentemente, voltaram seus esforços<br />
para a aldeia de Água Boa, dista 27 km de Batinga.<br />
3.1.6.4. MARLENE MARTINS – Missão Emanuel<br />
Enfermeira técnica, começou a trabalhar com os Maxakali em dezembro de 1999,<br />
através da Missão Emanuel de Governador Valadares e da Terceira Igreja Presbiteriana de<br />
Belo Horizonte. Aceita como enfermeira voluntária pela FUNASA, iniciou seu trabalho<br />
como profissional da saúde numa época quando ainda não havia uma equipe de saúde junto<br />
aos Maxakali, trabalhando assim sozinha, na aldeia de Água Boa, a partir da cidade de<br />
Santa Helena de <strong>Minas</strong>, onde reside. Mesmo sendo jovem e solteira, logo adquiriu respeito<br />
e amizade da parte dos indígenas, tornando-se muito querida por todos eles. Sua visão é<br />
57 Conforme entrevista do dia 09/02/02.<br />
58 Conforme entrevista do dia 09/02/02.<br />
73
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
discipular alguns dos líderes, para que estes evangelizem aos demais, mas dado aos muitos<br />
afazeres, seu trabalho tem se limitado quase que somente à área de saúde, testemunhando<br />
do evangelho nas oportunidades que surgem. Por não falar a língua, sua comunicação se<br />
limita aos que entendem o português.<br />
3.1.6.5. JOÃO MARIA SILVA - AD<br />
Foi enviado pela Igreja Assembléia de Deus de Belo Horizonte para trabalhar com<br />
os Maxakali de Água Boa, em agosto de 1999. Fixando residência também em Santa<br />
Helena de <strong>Minas</strong> e posteriormente em Machacalis, lá permaneceu até julho de 2001.<br />
Visitando a aldeia diariamente e depois semanalmente, seu trabalho consistiu em visitas às<br />
várias famílias testificando do evangelho em português, pois não aprendeu a língua.<br />
Também não presenciou conversões 59 .<br />
3.1.6.6. AGUSTINHO E NELICE CIPRIANO – Missão Horizontes<br />
Tendo se preparado no <strong>Instituto</strong> Bíblico Cades-Barneia, dos Terena, o casal<br />
Agustinho (Aguigu) e Nelice Cipriano foi enviado em maio de 2002, numa parceria de<br />
igrejas Presbiterianas e Assembléias de Deus, mediada pela Missão Horizontes. É o mais<br />
recente esforço missionário junto aos Maxakali. Ele é índio Makuxi, o que tem causado<br />
impacto na tribo. Residindo em Santa Helena de <strong>Minas</strong>, seu trabalho tem sido evangelizar<br />
os Maxakali na cidade, pois não obteve permissão para atuar na aldeia, mas ainda assim<br />
tem obtido bons resultados 60 .<br />
3.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
Existem várias possibilidades de abordagem missionária junto aos Maxakali, sendo<br />
prudente, entretanto, trabalhar em parceria com os missionários que já atuam entre eles.<br />
3.2.1. LÍNGUA A SER UTILIZADA<br />
Como eles preservaram e falam entre eles somente sua própria língua, numa<br />
abordagem missionária faz-se necessário o uso da língua Maxakali. Primeiro, somente<br />
falando Maxakali é possível comunicar-se com todos e, segundo, somente na sua língua<br />
eles conseguirão compreender as verdades mais profundas do evangelho.<br />
59 Conforme entrevista do dia 20/01/02.<br />
60 Em correspondência pessoal (18/10/02) do missionário José Vicente, da Missão Horizontes.<br />
74
3.2.2. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Como tem sido já usado pelos missionários lá presentes, os dois centros mais<br />
estratégicos para o trabalho entre eles, já que a FUNAI não permite que missionários fixem<br />
residência nas aldeias, são Santa Helena de <strong>Minas</strong>, a 12 km da aldeia de Água Boa, e<br />
Batinga (BA) a 13 km da aldeia do Pradinho. Há estradas razoavelmente boas.<br />
3.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA<br />
Como os Maxakali preservam com vivacidade seus valores animistas, numa<br />
abordagem missionária faz-se necessário muita atenção à questão dos significados de<br />
conceitos e fenômenos, bem como da função cultural dos mesmos. Haverá sempre um<br />
risco deles entenderem o evangelho ou alguns conceitos cristãos à luz dos seus conceitos<br />
animistas, gerando assim um sincretismo religioso, infelizmente comum em muitos grupos<br />
tribais que receberam o evangelho.<br />
Faz-se necessário um estudo mais profundo da cosmologia Maxakali, pois a mesma<br />
é bastante complexa. O natural e o sobrenatural se confundem, não sendo claramente<br />
distinguidos. As entidades espirituais são tão reais quanto as pessoas e objetos, daí o<br />
convívio constante com elas. Seus tabus e costumes, partem do lendário para o cotidiano,<br />
sendo justificados e instituídos através de mitos sobre ocorrências com seus ancestrais. Um<br />
ponto que pode ser explorado na abordagem cosmológica, é a questão do surgimento do<br />
homem. Há vários mitos sobre o inicial relacionamento do homem com Topa e o<br />
afastamento do mesmo quando do rompimento de “um pacto”, com um conseqüente<br />
castigo, em forma de um grande dilúvio (Soares, 1995.1), havendo variantes quanto ao<br />
número de sobreviventes que deram origem ao povo Maxakali, repovoando a terra através<br />
de relações com uma corça (Alves, 1999.91). Já os “brancos” seriam “descendentes das<br />
cinzas de um monstro lendário, o ‘înmõxa” (Popovich, 1993.25). Entretanto, todos estes<br />
mitos partem do pressuposto da já existência de pessoas, não havendo assim, um mito<br />
sobre o surgimento do primeiro homem. Por várias vezes, este pesquisador levantou tal<br />
questionamento e a reação dos anciãos foi titubeante, confessando não terem uma resposta.<br />
Ao que parece, a principal razão da indiferença deles em relação ao Evangelho, é<br />
porque vêem Jesus como o “Topa dos brancos 61 ” e consequentemente, a Bíblia é a Palavra<br />
do “Topa dos brancos” e assim por diante. Como a história da criação de Adão e Eva já foi<br />
introduzida ao conhecimento dos mesmos através do Popovichs, há fortes possibilidades<br />
61 Em entrevista com Zezinho Maxakali, no dia 08/02/02.<br />
75
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
deles aceitarem esta história como a real, se feito uma eficiente abordagem. Isto<br />
acontecendo, a idéia de “Topa dos Maxakali” e “Topa dos brancos” serem entidades<br />
diferentes, pode mudar, já que se dará a ambas raças uma mesma origem. Em conversa<br />
com cinco dos principais anciãos Maxakali, este pesquisador levantou esta questão e todos<br />
concordaram que poderia ser uma possibilidade real.<br />
3.2.4. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
Em ambos centros estratégicos, há igrejas que poderiam se tornar parceiras tanto de<br />
um trabalho missionário entre os Maxakali, como de uma futura igreja indígena.<br />
Entretanto, todas são igrejas pequenas, com recursos limitados e pouca visão missionária,<br />
sendo assim necessário que se faça um trabalho de conscientização e treinamento com<br />
estas igrejas. Em Santa Helena de <strong>Minas</strong> há um pequeno trabalho da Igreja Presbiteriana<br />
do Brasil, onde a missionária Marlene Martins congrega, que seria uma possibilidade. Está<br />
presente também a Igreja Assembléia de Deus. Outra possibilidade seria com a Igreja<br />
Batista de Batinga (BA), pois a mesma foi quase que fundada e hoje pastoreada pelo<br />
próprio missionário Ronaldo Lima e equipe. Trata-se, entretanto, de uma pequena<br />
comunidade, com poucos recursos financeiros, humanos e mesmo logísticos para tal<br />
empreendimento. Ainda em Batinga, está presente também a Igreja Assembléia de Deus.<br />
Entretanto, tais possibilidades seriam de parceria ou apoio missionário pois, dado à<br />
preservação cultural por parte dos Maxakali, seria inviável congrega-los numa mesma<br />
igreja com pessoas da civilização externa.<br />
3.2.5. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS<br />
Dado as muitas restrições por parte da FUNAI e de antropólogos, trabalhos de<br />
cunho bi-ocupacional seriam os mais viáveis. Entretanto, não se pode descartar a idéia de<br />
projetos específicos de plantio de igreja, por exemplo. O que segue são apenas algumas<br />
sugestões de projetos que poderiam ser conciliados com uma abordagem missionária, mas,<br />
certamente, existem outras possibilidades.<br />
3.2.5.1. SAÚDE<br />
76
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Mesmo já existindo uma equipe de saúde e um trabalho missionário nesta área,<br />
ainda há necessidade de profissionais de saúde, principalmente na aldeia do Pradinho, onde<br />
o atendimento é mais precário. Médicos, dentistas e enfermeiros, com certeza seriam bem-<br />
vindos, tanto pelos índios como pela FUNAI.<br />
3.2.5.2. EDUCAÇÃO<br />
Com a crescente necessidade que os jovens têm sentido de aprender o português,<br />
necessidade esta que tende a aumentar, professores de português também seriam bem-<br />
vindos, podendo trabalhar como voluntários nas aldeias dando aulas para jovens e adultos.<br />
3.2.5.3. REFLORESTAMENTO<br />
Algo que eles precisam com urgência é um processo de reflorestamento do<br />
território, quase totalmente transformado em pasto para bovinos. Profissionais nesta área<br />
poderiam entrar com um projeto de reflorestamento do território, envolvendo o<br />
treinamento de índios para fazer o trabalho.<br />
3.2.5.4. AGRICULTURA<br />
Apesar de já cultivar a terra e tentarem comercializar alguns produtos, eles não têm<br />
acesso às técnicas e opções que vão surgindo no mercado. Esta é uma das razões porque<br />
seus produtos são desvalorizados e às vezes até menosprezados pela população regional.<br />
Um profissional na área poderia dar-lhes uma grande contribuição, dando condições para<br />
oferecerem produtos mais competitivos<br />
3.2.5.5. PECUÁRIA<br />
Ultimamente eles têm mostrado interesse em criar bovinos, pois assim teriam leite<br />
e às vezes carne. Já solicitaram à FUNAI e ao CIMI doações de bovinos, entretanto, da<br />
mesma forma que na agricultura, não possuem conhecimento da pecuária, pois nunca<br />
criaram animais, além de incipientemente porcos e galinhas. Dado a extensão do seu<br />
território, seria possível criar não apenas bois, mas também carneiros e cabras.<br />
77
4. OS KRENAK<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Queremos sonhar livremente, sem cercas, sem solitárias, sem policiais, descer e<br />
subir de bote pelo Watu, recolhendo os peixes das armadilhas, sem medo de<br />
tocaias. Suas águas um dia estarão limpas porque os brasileiros também<br />
despertarão para proteger nossa fonte comum de vida!<br />
Marcos Krenak 62<br />
4.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
Marcados pelo contato mais violento de todo o leste do país, os Krenak são<br />
caracterizados pela sua tenaz resistência ao sistema dominante, num esforço quase sobre-<br />
humano pela sobrevivência étnica e cultural. Vítimas de inúmeros massacres, expulsão do<br />
seu território e intenso processo de miscigenação, eles não se curvaram, mesmo quando<br />
reduzidos a algumas poucas dezenas. Novamente de posse do seu território, depois de<br />
quase um século de peregrinação, eles se engajam num deliberado processo de resgate<br />
étnico-cultural, buscando independência da sociedade externa. “Nós somos o capinzinho<br />
que amarelou de tanto ficar debaixo da pedra e agora se levanta” (Krenak, 1997.45).<br />
4.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
Os Krenak são os remanescentes da famosa confederação dos Botocudos,<br />
resultantes da união de dois subgrupos étnicos da mesma, tradicionalmente aliados, mas na<br />
prática rivais entre si, principalmente na disputa pela liderança do grupo. Apresentam um<br />
considerável índice de miscigenação com não-índios e com indígenas de outras etnias.<br />
4.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA<br />
A confederação dos Botocudos era formada por um grande número de grupos<br />
étnicos que tendo se aliado na luta contra outras etnias, e posteriormente na resistência aos<br />
colonizadores, compartilhavam uma mesma cultura e língua, possuindo uma pequena<br />
variação lingüística que caracterizava cada grupo (Mattos, 2000.13). Com os projetos de<br />
expansão dos exploradores, principalmente através dos quartéis e aldeamentos, estes vários<br />
62 Em Krenak (1997.44).<br />
78
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
grupos paulatinamente sucumbiram diante do sistema dominante. Foi assim com os<br />
belicosos Pojixás que desapareceram nas proximidades do aldeamento de Itambacuri.<br />
Alguns grupos porém, se refugiaram na floresta do Rio Doce, permanecendo ali por<br />
algum tempo, mas com a abertura da Estrada de Ferro Vitória-<strong>Minas</strong>, que cortava<br />
exatamente aquela região, se tornou inevitável a rendição destes grupos. Nesta altura, a<br />
confederação Botocudos basicamente não existia mais, e assim, cada grupo se identificava<br />
pelo nome do seu líder ou por alguma particularidade geográfica do seu território. O último<br />
grupo a negociar a sua rendição foi o Gutkrak (montanha do cágado) liderado pelo Capitão<br />
Krenak 63 , homem de grande liderança que foi substituído por seu filho Muin (Mattos,<br />
2001.30). Os Krenak de hoje assim se autodenominam em função deste cacique.<br />
Além de Gutkrak, há descendentes de outro grupo Botocudo, os Nakhré-hé, os<br />
quais são fortemente miscigenados, principalmente com negros, o que aumenta a<br />
rivalidade com o primeiro grupo, que apesar de também possuir um considerável grau de<br />
miscigenação, defende a “pureza em relação às origens” (Mattos, 1996.204). O próprio<br />
cacique, que é Nakhré-hé, é conhecido pelo nome de Nego em português, ou “Him” na<br />
língua Krenak, que significa “preto”. É possível ainda que haja descendentes de um<br />
terceiro grupo Botocudo, Miñajirum, e talvez até de um quarto, Naknenuk (Faria, 1992.28).<br />
4.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
Como remanescentes dos Botocudos, é possível que formem família com os Aranã,<br />
mas isto ainda carece de comprovação, pois nem todos subgrupos Botocudos eram<br />
etnicamente parentes.<br />
4.1.1.3. TRONCO LINGÜÍSTICO<br />
Segundo Aryon Rodrigues (1994.56), pertencem ao tronco Macro-Jê, família<br />
Botocudo e língua Krenak. Vale ressaltar, que sua língua quase entrou em extinção, sendo<br />
preservada apenas pelas mulheres mais idosas, entretanto, nos últimos anos tem sido feito<br />
um esforço deliberado para que as crianças e adolescentes aprendam a sua língua, e<br />
felizmente estão tendo êxito, pois hoje, as crianças e grande parte dos adolescentes já se<br />
comunicam bem na língua tradicional, tendo inclusive, professores que a dominam.<br />
4.1.2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA<br />
63 Vale recordar, que os caciques passaram a ser chamados de “Capitães”, desde a época de Marlière. De<br />
acordo com Marcos Krenak, o nome “Krenak” significa “cabeça na terra”, se referindo ao tradicional<br />
costume de colocarem a cabeça na terra antes de iniciar suas danças cerimoniais (Maurício, 1997.13).<br />
79
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
O Território <strong>Indígena</strong> Krenak, somando um total de 3.983.09 ha., está localizado no<br />
Município de Resplendor, Vale do Rio Doce, no sudeste de <strong>Minas</strong>, quase limítrofe com o<br />
Espírito Santo. Tomando a cidade de Resplendor como referência, a reserva se localiza a<br />
noroeste da mesma, na margem esquerda do Rio Doce, fazendo fronteira com o município<br />
de Conselheiro Pena a oeste. A aldeia mais próxima dista 12 km de Resplendor, e esta dista<br />
520 km de Belo Horizonte. Todo o percurso é em estrada, beirando a Estrada de Ferro<br />
Vitória-<strong>Minas</strong>, na margem direita do Rio Doce, sendo por fim, necessário atravessar o<br />
mesmo de bote, o que, dependendo da época é bastante perigoso ou até mesmo impossível.<br />
No entanto, há pelo menos três entradas para a reserva. O Rio Eme corta todo o território,<br />
desembocando no Rio Doce ao sul da reserva, e no centro do território está a Serra do<br />
Kuparake, que divide a reserva no sentido leste-oeste.<br />
4.1.3. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA<br />
A população Krenak soma cerca de 230 pessoas, com pouco mais de trinta famílias<br />
nucleares, oriundas de três famílias extensas, distribuídas em três aldeias, com habitações<br />
altamente dispersas, algumas distando até quilômetros uma das outras. Com a expulsão dos<br />
fazendeiros os índios aproveitaram suas casas de alvenaria para fixar residência.<br />
A principal aldeia é chamada de Barra do Eme, localizada ao sul da reserva, no<br />
encontro do Rio Eme com o Rio Doce. Ali está o grupo mais expressivo e articulador, com<br />
uma liderança muito forte na pessoa de Laurita Félix. Os traços fisionômicos são mais<br />
visíveis neste grupo, que preza por casamentos intraétnicos. Os principais projetos são ali<br />
articulados e desenvolvidos, funcionando ali uma escola de ensino fundamental, dentro dos<br />
parâmetros de escola indígena diferenciada.<br />
Ao nordeste da reserva está a Aldeia do Eme, que apesar de ser a residência do<br />
cacique Him ou Nego, é pouco expressiva e possui um número reduzido de famílias. É<br />
onde se percebe o mais alto grau de miscigenação étnica e pouco interesse pela<br />
preservação cultural. Estas e outras razões geram rejeição dos outros grupos que lutam<br />
acirradamente pela preservação cultural e reafirmação da consciência étnica.<br />
Por fim, ao noroeste da reserva localiza-se a Aldeia do Córrego da Gata, sob a<br />
liderança de Basílio. Esta é a mais isolada geograficamente, sendo de difícil acesso. Lá<br />
também funciona uma escola e são aliados ao grupo de Laurita Félix, da Barra do Eme, na<br />
oposição ao cacique Him, do Eme.<br />
Vale considerar que os Krenak têm a aldeia Tupã, dos Kaingang, em Vanuíre, São<br />
Paulo, como o principal centro de migração. Lá vive um número considerável de krenaks<br />
80
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
que para lá fugiram, principalmente durante os vários exílios que sofreram, e se fixaram<br />
através de casamentos. Ainda hoje, há uma relativa movimentação de famílias indo e<br />
voltando de Vanuíre, dado aos laços de parentesco e amizade. Segundo o cacique Him, é<br />
provável que os Krenak de Vanuíre somem um número maior que os do Rio Doce 64 . Além<br />
deste, há também grupos de Krenak vivendo nas cidade de Colatina, no Espírito Santo, e<br />
Conselheiro Pena, município vizinho da reserva, em <strong>Minas</strong> Gerais (Faria, 1992.14). Estes,<br />
porém, já se integraram totalmente na sociedade externa, não demonstrando interesse em<br />
retornar para o território tradicional.<br />
4.1.4. SITUAÇÃO LUINGÜÍSTICA<br />
Em alguns períodos da história, os Krenak chegaram a ser proibidos de falar a sua<br />
língua (Dutra, 1998.103), o que, somado ao forçado processo de miscigenação e dispersão,<br />
resultou numa perda quase total da língua, fazendo com que todos se tornassem falantes do<br />
português. Entretanto, as mulheres mais idosas preservaram a língua, passando para suas<br />
filhas, que não eram vistas como ameaça. Algumas delas, quando crianças, aprenderam a<br />
falar apenas a língua tradicional, como Laurita Félix que veio aprender o português com<br />
doze anos de idade, e Maria Júlia, que só aprendeu quando começou a estudar numa escola<br />
convencional.<br />
Novamente de posse do seu território tradicional, iniciaram um intenso processo de<br />
resgate cultural e lingüístico, que já tem dado resultados visíveis e muito positivos. Grande<br />
parte dos jovens, adolescentes e quase todas as crianças já se comunicam bem na sua<br />
língua tribal, que é ensinada na escola como uma das principais disciplinas do seu<br />
currículo. No lar, as mães, avós e irmãos, procuram intencionalmente conversar com as<br />
crianças também na língua para desenvolver a capacidade de conversação. Assim, a<br />
comunidade Krenak vai resgatando sua língua e linguagem tradicional. As palavras de<br />
Laurita Félix são denunciadoras e também ricas em informações de como isto acontece:<br />
No tempo do Pinheiro, os soldados não deixavam a gente falar na língua, diziam:<br />
fala direito! Acho que por isso foram deixando de aprender (...) Eu falo com meus<br />
netos, fico sozinha com meu netinho e converso com ele, tudo na língua. Mando ele<br />
espantar galinha, ele espanta; mando ele tocar o gado, ele toca; tudo na língua<br />
(Dutra, 1998.103).<br />
Apesar de sabermos que a língua Krenak é do tronco Macro-Jê, da família<br />
Botocudo, a mesma ainda carece de uma sistematização gramatical, pois em 1982 a<br />
lingüista Lucy Seky iniciou um trabalho entre eles (Paraíso, 1998.430), mas não obteve<br />
64 Em entrevista do dia 07/05/02.<br />
81
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
êxito dada a resistência do próprio povo que rejeita quase tudo que vem de fora. A grafia<br />
da língua é feita a partir do português de modo bem informal pelos próprios professores,<br />
que vão tentando escrever da forma que pronunciam, juntamente com as mulheres mais<br />
idosas que verificam se está sendo feito da forma correta. Alguns jovens Krenak receberam<br />
bolsas de estudo e estão fazendo faculdade, e um dos professores Krenak tem o sonho de<br />
fazer lingüística para analisar e grafar corretamente a sua própria língua, mas até então,<br />
nada foi feito no sentido de levar este sonho à frente.<br />
4.1.5. RELIGIOSIDADE<br />
A despeito da forte influência católica que os Krenak receberam desde o contato,<br />
eles são enfáticos em afirmar: “não somos católicos nem protestantes” 65 . Verificando um<br />
pouco mais acuradamente a sua religiosidade, é fácil perceber que eles foram fortemente<br />
influenciados pelo catolicismo regional. Entretanto, fica claro também que a sua base de<br />
concepção tanto da religião, como do mundo, é animista. Poderíamos classifica-los então,<br />
como animistas sincretistas com forte influência católica.<br />
4.1.5.1. DANÇAS CERIMONIAIS<br />
Segundo Mattos (1996.166), a dança cerimonial que os Krenak chamam<br />
simplesmente de trabalho era realizada com muita freqüência próximo ao cemitério dos<br />
seus ancestrais, em torno de uma estátua de madeira chamada Yonkyón que era uma figura<br />
central na cosmologia Krenak. Yonkyón desapareceu em 1939, havendo fortes indícios de<br />
que tenha sido roubado por Nimuendajú. Mattos (1996.166) sugere que tenha sido ele:<br />
“Nimuendajú (1986), quando de sua visita à área em 1939, chegou a fotografá-la. Por volta<br />
dessa mesma época teria ocorrido o seu desaparecimento”. Já Paraíso (1998.Internet)<br />
afirma: “o mastro sagrado, levado da aldeia na década de 30 por Curt Nimuendajú”.<br />
De qualquer forma, após o desaparecimento de Yonkyón os rituais foram<br />
diminuindo até deixarem de ser praticados. Com o despertamento para o resgate cultural e<br />
o surgimento de uma xamã, as danças voltaram a ser praticadas, mas não com o mesmo<br />
vigor. Faria (1992.20) informa que durante a sua pesquisa de campo “em 1991 (...) os<br />
Krenak haviam reconstruído a casa de religião, onde voltaram a praticar seus rituais<br />
tradicionais (...)”. Consistem basicamente em danças, cantorias e na transmissão de<br />
mensagens dos ancestrais à comunidade ou a determinadas pessoas. Rituais de nascimento,<br />
iniciação, casamento e morte, já não são mais praticados.<br />
65 Em entrevista com Ailton Krenak, um dos líderes de maior poder de articulação, no dia 07/05/02.<br />
82
4.1.5.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
O universo espiritual Krenak é formado por um considerável panteão de entidades<br />
que influenciam diretamente o seu dia-a-dia, pois apesar de não se relacionarem com elas a<br />
nível de mediunidade ou mesmo de oráculo, suas atitudes e crenças giram em torno de<br />
satisfazê-las ou pelo menos respeitá-las.<br />
4.1.5.2.1. MARÉT-KMAKNIAM<br />
Marét são seres espirituais que habitavam o céu (taru) Botocudo, sendo os grandes<br />
ordenadores dos fenômenos da natureza, capazes de protegerem os índios (burúm)<br />
enquanto os não-índios (kraí) estivessem distantes. Segundo eles, os marét são sempre<br />
muito bondosos para os Krenak (Krenak, 1997.9).<br />
O marét mais reverenciado pelos Krenak é o Marét-kmakniam (“velho Marét”).<br />
Seria invisível para os kraí (não-índios) mas os informantes de Faria (1992.19) deram a<br />
seguinte descrição:<br />
“A sua aparência era de um homem pouco mais alto do que um anão, com a cabeça<br />
branca e pêlos ruivos. Tinha como peculiaridade um pênis colossal que atingia até a<br />
garganta das mulheres com que mantinha relações sexuais.”<br />
Este possui uma esposa, chamada Marét-Jikky (“velha Jikky”) que sempre se<br />
esconde dos olhos não apenas dos kraí, mas também dos Krenak e vive no céu, tendo o<br />
casal vários filhos – os Marét-kmakanim-krouk – que também podem aparecer para os<br />
burúm (Mattos, 1996.165).<br />
4.1.5.2.2. NANITIONG (ou NANDYÓN)<br />
Os nanitiong são os espíritos encantados dos mortos que também são dignos de<br />
acato e veneração. São eles quem emitem os avisos de morte e por isto quem ver um<br />
nanitiong está fadado a adoecer e até morrer. Assim como os marét, podem fecundar as<br />
mulheres e ter filhos com elas, apesar de, ao que parece, não haver nenhuma história<br />
ressente sobre um fato destes. Os Krenak crêem que cada pessoa possui uma alma<br />
principal e várias secundárias, sendo que a morte acontece quando a principal deixa o<br />
corpo, mas as demais permanecem ainda por algum tempo, podendo inclusive se<br />
transformar em animais encantados – preferencialmente onças. Isto fica claro no<br />
comentário que eles fazem sobre a morte do grande cacique Krenak: “E o tempo passou,<br />
83
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
sentimos o fim de suas energias. Krenak chamou seu povo: Eu vou morrer (...) Veio outra<br />
lua e a alma principal do velho Krenak deixou seu corpo” (Krenak, 1997.37).<br />
Mattos (1996.168) relata também que “uma criança Nakhre-ré de 11 anos, ao<br />
relatar a morte de um menino de 9 anos, baleado pela mãe, disse que este ao ser ferido,<br />
saiu a correr, sendo seguido por sua alma um pouco atrás, até cair debaixo da cerca”.<br />
4.1.5.2.3. KREMBÁ<br />
Krembá era o pai de Laurita Félix e pelo seu depoimento pode-se deduzir que era<br />
um pajé, sendo hoje o espírito (nanitiong) que orienta os Krenak através da xamã, Marilza,<br />
filha de Laurita, logo, neta do próprio Krembá. Desde que começou a manifestar-se através<br />
da sua neta, vem determinando que sejam “realizados os trabalhos de reorganizar o grupo,<br />
voltar a ‘dançar’ seus rituais, fazer arcos e flechas, curar suas doenças pela forma<br />
tradicional, falar sua antiga língua e recuperar o mastro sagrado” (Paraíso, 1998.Internet).<br />
4.1.5.2.4. TOKÓN<br />
Estes são os espíritos da natureza, que também mantêm contato com os xamãs<br />
durante os rituais. Paraíso (1998.Internet) sugere que assumiram um papel central no<br />
universo religioso Krenak, por estarem associados à disputa política entre as duas metades.<br />
4.1.5.3. LUGARES E OBJETOS SAGRADOS<br />
Ao que parece, o único objeto sagrado que os Krenak possuíam era exatamente o<br />
Yonkyón que lhes foi roubado. Já lugares sagrados, eles possuem alguns, sendo os<br />
principais os abrigos rupestres e a casa de religião.<br />
4.1.5.3.1. OS ABRIGOS RUPESTRES<br />
O Vale do Rio Doce é rico em abrigos rupestres, estudados em 1994 pela<br />
antropóloga Izabel Mattos e pela arqueóloga-historiadora Alenice Baeta 66 , nos quais<br />
predominam figuras de flechas que os Krenak identificam como “flechas encantadas” dos<br />
seus ancestrais. Sobre isto Mattos (1996.173) comenta:<br />
Não é provável que as pinturas existentes nos diversos abrigos rupestres do Vale do<br />
Rio Doce tenham sido feitas por antepassados dos Krenak. Contudo, eles parecem,<br />
de fato, apropriar-se e identificar-se com as pinturas, considerando-as ‘mágicas’,<br />
(por acreditarem que nunca podem ser apagadas), interpretando-as como parte de<br />
sua herança cultural, sendo que a visita a esses lugares lhes traz o sentimento de<br />
encontro e comunicação com os Marét.<br />
66 Arte Rupestre, Etno-História e Identidade <strong>Indígena</strong> no Vale do Rio Doce – MG. Belo Horizonte: UFMG,<br />
1994.<br />
84
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Estes abrigos eram locais estratégicos para refúgio em caso de conflitos armados,<br />
pois além da sua difícil acessibilidade é nos abrigos que os marét habitam, sendo as<br />
pinturas, sinais deixados por eles. Quando os Krenak visitam estes abrigos, costumam<br />
deixar oferendas às entidades que ali habitam. Eles se sentem guardiões dos abrigos, pois<br />
crêem que a presença de kraí tira o encanto dos mesmos.<br />
4.1.5.3.2. KIEME-BURÚM 67 – “CASA DE RELIGIÃO”<br />
A casa de religião é onde realizam suas danças cerimoniais, sendo um simples e<br />
pequeno rancho improvisado. Desta forma, o seu encanto ou dimensão sagrada possui<br />
caráter temporário. Na nossa pesquisa de campo observamos uma kieme-burúm, nas<br />
proximidades da residência de Laurita Félix, abandonada no meio do mato.<br />
4.1.6. ESTUDO DE PODER SOCIAL<br />
É interessante a questão de poder social entre os Krenak, pois apesar de se tratar de<br />
um grupo que luta unido pela sua sobrevivência e liberdade, se dividem internamente em<br />
grupos rivais. A luta pelo poder social é facilmente perceptível já nos primeiros contatos.<br />
Isto é comum em grupos exogâmicos, o que sugere a possibilidade de em tempos passados<br />
terem adotado este mecanismo social.<br />
4.1.6.1. CACIQUE<br />
Desde o retorno dos Krenak da Fazenda Guarani em 1980, o cacique tem sido o<br />
índio José Alfredo de Oliveira, apelidado Him na língua Krenak, ou Nego, em português,<br />
por possuir muitos traços negros na sua fisionomia. Sob o cacique recai a responsabilidade<br />
da representação externa do povo, bem como da liderança interna. Entretanto, Him tem<br />
desempenhado apenas esta primeira função, pois internamente não detêm nenhuma<br />
autoridade sobre os outros dois grupos que lhe são rivais. Na prática, sua permanência no<br />
cacicado é uma questão emérita, pois foi ele quem liderou o retorno da Fazenda Guarani,<br />
apesar da iniciativa ter sido de Laurita Félix. Outro fato, é que apesar de na prática<br />
mulheres como Laurita Félix exercerem forte liderança, as mesmas não podem representar<br />
o grupo publicamente. Esta última está preparando seu filho Rondon para se tornar um<br />
cacique, o qual já até concorreu com Him numa eleição. Este “treinamento” tem respaldo<br />
histórico, pois segundo Faria (1992.26) “a preparação do cacique para o exercício de suas<br />
atividades era promovida por sua mãe. Esta mulher tinha o poder decisivo do grupo”.<br />
67 Literalmente “casa de índio”.<br />
85
4.1.6.2. LÍDERES DE ALDEIA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Como já mencionado, cada aldeia ou subgrupo, possui o seu líder local, o qual se<br />
responsabiliza por todas as iniciativas e decisões locais. Desta forma, o grupo do Córrego<br />
da Gata liderado por Basílio se aliou ao grupo da Barra do Eme liderado por Laurita Félix<br />
na oposição à liderança do cacique Him. Dado ao poder de articulação de Laurita, alguns<br />
projetos assistenciais destinados ao povo acabam beneficiando apenas estes dois grupos.<br />
O poder de liderança de Laurita não é resultado apenas da sua capacidade de<br />
articulação, mas também da sua ascendência genealógica. Ela é filha do antigo e venerado<br />
xamã Krembá, neta do cacique Muin e bisneta do grande cacique Krenak. Isto justifica a<br />
conclusão de Faria (1992.26) quando afirma que tradicionalmente “as lideranças deveriam<br />
ser do mesmo grupo familiar”.<br />
Uma questão que merece destaque é que o fato das mulheres deterem o domínio da<br />
língua e a memória histórica do povo, acabam exercendo certa liderança, como o caso de<br />
Marilza, Sônia e Paula Krenak, também aliadas de Laurita Félix.<br />
4.1.6.3. XAMÃ<br />
Já há muitos anos os Krenak não possuem um pajé, sendo as danças cerimonias<br />
dirigidas pelo índio Nadiu, que é chefe do posto da FUNAI, e por Laurita. Entretanto, com<br />
o desenvolver de atividades mediúnicas por Marilza Félix, que recebe o espírito do seu avô<br />
Krembá, esta tem adquirido poder social nos dois grupos aliados que a consideram<br />
efetivamente como uma xamã, obedecendo as orientações transmitidas pela mesma.<br />
O grupo do cacique Him resiste ao xamanismo de Marilza, acusando-a de<br />
impostora. O fato dela ser casada com um kraí depõe contra sua autoridade, pois é de<br />
consenso geral que os marét e nanitiong “não gostam de sentir a ‘catinga’ de Kraí”<br />
(Mattos, 1996.187). Ainda assim, pelo menos nos dois grupos aliados Marilza continua<br />
gozando de grande aceitabilidade como xamã do povo Krenak.<br />
4.1.7. PROBLEMAS SOCIAIS<br />
4.1.7.1. SAÚDE<br />
86
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Os Krenak não são assistidos por uma equipe de saúde, tendo à sua disposição<br />
apenas um veículo da FUNASA para conduzir até o posto médico ou hospital da cidade de<br />
Resplendor, aqueles que necessitam de assistência. Há uma auxiliar de enfermagem<br />
indígena, chamada Sônia, filha do cacique Him que, trabalhando no Posto Médico, é<br />
liberada para atender pacientes do seu povo nos casos mais simples.<br />
Não tendo pajé, a comunidade indígena abandonou quase que completamente seus<br />
métodos tradicionais de medicina, tornando-se totalmente dependente do transporte da<br />
FUNASA e atendimento do sistema de saúde da cidade. A questão principal é que um<br />
único veículo nem sempre é suficiente para atender a todo o povo que é altamente disperso<br />
por todo o território. Algumas famílias se vêem em dificuldade para solicitar o veículo<br />
dada a sua localização isolada. As estradas que cortam a reserva estão em péssimo estado,<br />
e em épocas de chuvas tornam-se intransitáveis, e isto se aplica não apenas ao transporte de<br />
doentes mas ao transporte em geral.<br />
4.1.7.2. ESCOLA<br />
Nas aldeias Barra do Eme e Córrego da Gata há escolas de ensino básico para<br />
crianças, apesar de funcionarem em estado de precariedade. Há professores indígenas,<br />
formados pelo Projeto UHITUP no Parque Estadual do Rio Doce (Dutra, 1998.58), mas as<br />
escolas não progrediram, funcionando somente no nível básico. Desta forma, os<br />
adolescentes e jovens que desejam dar continuidade aos seus estudos precisam se deslocar<br />
diariamente para a cidade de Resplendor, o que não é tão fácil. A prefeitura municipal<br />
providenciou um ônibus para transportar os alunos krenak e demais da região, entretanto, é<br />
preciso atravessar o Rio Doce de bote, o que, em épocas de enchentes, torna-se inviável.<br />
Mesmo em tempos de seca não é tão fácil. Quando da nossa pesquisa de campo,<br />
atravessamos o rio com o grupo de estudantes, sendo que dois remavam e um tirava água<br />
com um balde, pois o bote estava furado.<br />
Outro fato, e talvez o mais complicador, é que há um forte sentimento de<br />
discriminação em relação aos indígenas por toda população regional, e por isto, os<br />
estudantes Krenak em escolas convencionais são fortemente estigmatizados. A<br />
discriminação em sala de aula é patente até por parte de vários professores. Há uma<br />
professora da escola de Resplendor – Marli Schiavini de Castro – que fazendo parte do<br />
GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico 68 e ali atuando desde 1989, tenta<br />
68 O GTME desenvolve um trabalho semelhante ao CIMI, não se envolvendo com evangelização. Atua na<br />
área do assistencialismo e, no caso Krenak, foi um dos principais órgãos de articulação e apoio na luta pela<br />
terra. A professora Marli Castro é a principal obreira do GTME entre os Krenak.<br />
87
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
fazer um trabalho de conscientização sobre a questão indígena, na escola e comunidade, na<br />
expectativa de diminuir o preconceito que parece estar impregnado no sentimento regional.<br />
Vale considerar ainda, que estes estudantes sendo submetidos a um ensino formal,<br />
num ambiente totalmente alienado da sua realidade, tendem a desenvolver um forte<br />
sentimento de reação contra a população regional ou de excessiva aproximação cultural da<br />
mesma, aumentando o clima de conflito ou desfigurando a sua identidade etnocultural.<br />
Através do GTME, um grupo de crianças e adolescentes foi aceito num colégio<br />
metodista na cidade de Colatina (ES), em regime de semi-internato, o que Faria (1992.28)<br />
classifica como “dramática situação”:<br />
(...) crescentemente as crianças Krenak estudam em Colatina, num colégio<br />
protestante, em regime de semi-internato, garantindo a sobrevivência física, mas<br />
inviabilizando a reprodução social do grupo constituindo-se num verdadeiro crime<br />
de etnocídio o descaso das autoridades para com esta dramática situação.<br />
Faria (1992.21) comenta ainda que no início dos anos noventa, quando os rituais<br />
voltaram a ser praticados com mais freqüência, alguns jovens que estudavam neste colégio<br />
se recusaram a participar dos rituais. Obviamente, pode-se perceber o forte preconceito da<br />
autora para com evangélicos, mas é verdade que esta não é uma situação ideal para os<br />
jovens Krenak. A falta de escola é um dos principais problemas atuais deste grupo.<br />
4.1.7.3. RELACIONAMENTO COM A SOCIEDADE REGIONAL<br />
O histórico clima de tensão entre os Krenak e a população regional, ainda é latente<br />
nos dias atuais e a pesquisadora Mattos (1996.177) dedica todo um tópico do seu relatório<br />
para tratar do termo pejorativo bugre, usado pela população regional para se referir a eles.<br />
Semelhante ao termo caboclo, usado para designar os índios amazonenses em contato com<br />
a população urbana, bugre se diferencia numa questão básica: enquanto caboclo nega ao<br />
índio sua identidade, o aproximando da civilização externa, visando assim agregá-lo,<br />
bugre nega a dignidade humana do índio, classificando-o como uma categoria inferior à<br />
civilização externa, indigno de convívio, visando assim segregá-lo 69 .<br />
Enquanto parte da população regional rejeita os bugres por considerá-los<br />
preguiçosos, vagabundos, uma sub-raça, outros os evitam por considerá-los perigosos,<br />
violentos, delinqüentes. A existência da Colônia Penal <strong>Indígena</strong> na reserva Krenak, sendo<br />
69 Neste estudo, Mattos (1996.177-206) faz uma comparação e classificação dos termos índio – aquele<br />
indivíduo distante, habitante da floresta, que anda nu, caçando e pescando, mais próximo à animalidade do<br />
que da esfera humana; puri – índio que se aliou aos “brancos” na tarefa civilizatória dos demais índios, bom<br />
selvagem; caboclo – índio que se misturou com a civilização urbana, digno de pena e, mesmo num nível<br />
inferior, é aceitável no convívio regional, principalmente como mão-de-obra barata; bugre – ser desprezível,<br />
selvagem, feroz, que dada à sua sub-raça e alto grau de periculosdade é indigno de convívio.<br />
88
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
tutelados por policiais, somada à tradicional belicosidade deste grupo, desde os tempos dos<br />
primeiros contatos, marcou a lembrança regional de forma quase indelével. A figura dos<br />
bugres é sempre relacionada a delinqüentes e criminosos. Neste sentido, o relato de Mattos<br />
(1996.190) é muito significativo:<br />
Como forma de elogio por sua conduta julgada “honesta e trabalhadora”, os<br />
conhecidos de um índio que vende peixe na cidade de Conselheiro Pena afirmamnos<br />
que “ele não é índio legitimo, mas misturado”, pois apenas desta forma<br />
poderiam justificar a predisposição relativamente pacífica para o contato com um<br />
“bugre” – inimigo potencial.<br />
Por outro lado, há da mesma forma ou talvez ainda mais forte, um sentimento de<br />
discriminação dos Krenak em relação à população regional. Eles se consideram superiores<br />
aos kraí e são profundamente etnocêntricos, sendo esta uma das razões da sua forte<br />
resistência cultural. Este etnocentrismo é fundamentado na cosmologia Krenak, tendo suas<br />
raízes nas restrições que os marét e nanitiong fazem em relação à presença de kraí no<br />
território indígena e principalmente nos abrigos rupestres, considerados morada destas<br />
entidades. A simples presença de um kraí num lugar sagrado é suficiente para desencantá-<br />
lo, não pelo seu poder mas por sua impureza que profana o sagrado (Mattos, 1996.164).<br />
Desta forma, os Krenak têm muita resistência à presença de não-índios no seu<br />
território. Em nossa pesquisa de campo constatamos que neste sentido eles são realmente<br />
os menos receptivos. Se o kraí é impuro e profanador, logo o burúm é uma raça superior,<br />
ainda que massacrada e perseguida. Este sentimento de superioridade, somado à vívida<br />
memória do processo de massacre e exploração, também por parte dos impuros kraí, gera<br />
consequentemente um arraigado sentimento de discriminação e rejeição a tudo que vem de<br />
fora. É por isto que as jovens Krenak que saíram da área por terem se casado com kraí,<br />
mesmo mantendo fortes laços de ligação com a família, não são mais consideradas parte<br />
efetiva da comunidade, principalmente no grupo de Laurita Félix.<br />
Em parte isto explica também a rejeição a antropólogos, lingüistas, missionários,<br />
bem como aos órgãos governamentais, como a própria FUNAI e FUNASA. O chefe de<br />
Posto da FUNAI é indígena – Nadiu – e os contatos com o governo e autoridades são feitos<br />
diretamente através do Núcleo de Cultura <strong>Indígena</strong>, estabelecido no município de Nova<br />
Lima, região metropolitana de Belo Horizonte, fundado e presidido por Ailton Krenak, um<br />
dos líderes indígenas do Estado com maior capacidade de articulação. Vale considerar, que<br />
resistência e rejeição aos órgãos governamentais remonta também, e talvez principalmente,<br />
ao fato do SPI e FUNAI terem sido por muito tempo órgãos de opressão aos Krenak,<br />
89
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
principalmente com os exílios compulsórios para o território Maxakali e posteriormente<br />
para a Fazenda Guarani. Isto fica bem evidente nas palavras de Laurita Félix:<br />
Foi o tempo que nóis era bobo, que a FUNAI chegava botava nóis no carro e levava<br />
nóis embora. Mas agora não carrega mais, não. Nóis passa fome, um dia come,<br />
outro dia não come, mas o outro ano nóis num passa fome, não. Ela queria levar<br />
nóis de volta prá Fazenda Guarani. Eu falei que não ia, não. Se lá é bom, ele pode<br />
morar lá, nóis não (...) (Mattos, 1996.199).<br />
4.1.8. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
Principalmente os indígenas do grupo de Laurita Félix são enfáticos em afirmar que<br />
não aceitam missionários no seu território 70 . Entretanto, a despeito desta resistência, a<br />
Assembléia de Deus de um pequeno povoado próximo da reserva, chamado<br />
Independência, tem entrado sorrateiramente pela aldeia mais isolada, Córrego da Gata,<br />
onde já existe um grupo com cerca de vinte pessoas, entre membros e congregados, se<br />
reunindo sistematicamente. Também na aldeia do Eme, há uma convertida e por isto a<br />
igreja organizou um salão nas proximidades desta aldeia, onde realiza cultos semanais, na<br />
expectativa de alcançar mais pessoas. Trata-se de um trabalho bem recente, iniciado e<br />
realizado por voluntários, carente de esforços mais direcionados na área de instrução, bem<br />
como contextualização, mas sem dúvida alguma um grande passo.<br />
4.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
É possível que os Krenak não sejam os mais resistentes ao evangelho, mas com<br />
certeza são os menos receptivos ao trabalho missionário. Desta forma as possibilidades de<br />
abordagens missionárias são minimizadas, mas em hipótese alguma totalmente<br />
descartadas. Um fato amenizador, é que não tendo a FUNAI nem qualquer outro órgão<br />
externo poder de manipulação sobre os Krenak, uma vez adquirida a simpatia destes as<br />
portas estariam escancaradas para a atuação missionária. Logo, já podemos pressupor que<br />
qualquer projeto missionário deve levar em consideração a aproximação amigável e<br />
obtenção de confiança mútua com o grupo, bem como, um alto grau de flexibilidade por<br />
parte do missionário.<br />
O caminho que a Assembléia de Deus esta seguindo é muito sábio, iniciando o<br />
trabalho pela aldeia mais isolada, pois desta forma tem evitado confrontos com o grupo<br />
70 Em entrevista com Ailton Krenak, no dia 07/05/02.<br />
90
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
mais tradicional. Neste caso, é realmente prudente deixar o grupo maior – de Laurita Félix<br />
– para uma abordagem posterior. Certamente seria possível iniciar também um trabalho de<br />
forma efetiva no grupo do cacique Him, dada à sua abertura para o externo. Pode-se levar<br />
em contar também, que este grupo é geograficamente mais acessível, estando perto de uma<br />
rodovia e do povoado de Independência.<br />
4.2.1. LÍNGUA A SER UTILIZADA<br />
Como todos são falantes do português mas nem todos são falantes da língua<br />
tradicional, a abordagem deve ser feita mesmo no português. Entretanto, um interesse pelo<br />
aprendizado da língua tradicional deve ser visto com bons olhos pelo grupo.<br />
4.2.2. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
Não resta dúvida de que a cidade de Resplendor seria o centro mais estratégico para<br />
um trabalho entre os Krenak, porém, no caso de iniciar uma abordagem pela aldeia do Eme<br />
– cacique Him – o povoado de Independência também seria uma excelente opção, apesar<br />
da sua infra-estrutura não ser das melhores.<br />
4.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA<br />
Mesmo não podendo ser classificados como um grupo puramente animista, sua<br />
cosmovisão repousa sobre bases animistas. Logo, esta questão precisa ser tratada com<br />
muita seriedade em uma abordagem missionária 71 . Parece que sua cosmologia gira em<br />
torno do sagrado/profano, sendo que os kraí e tudo o que vem deles se enquadra nesta<br />
segunda categoria, o que indica a necessidade de uma teologia de santo e profano com<br />
sólida base bíblica, já no momento do evangelismo. Uma teologia de espíritos também se<br />
fará necessária, dada a sua arraigada crença nos marét e nanitiong.<br />
A questão do “desencanto” do seu mundo espiritual ou encantado com a simples<br />
presença dos não-índios parece ser também uma questão central na sua cosmologia,<br />
devendo assim receber uma atenção especial. Inclusive, Mattos (1996.165) faz um<br />
comentário acerca da cruz por demais interessante:<br />
O significado da cruz é muito curioso pois, se de um lado a ela são atribuídos<br />
poderes de afugentar as almas dos mortos (nandyón) cuja visão traz a morte, por<br />
outro lado ela destrói também os encantamentos dos “velhos” cujos ensinamentos<br />
71 O livro Conhe Pãnda / Ríthioc Krenak – Coisa Tudo na Língua Krenak, que é uma coletânea de histórias<br />
contadas pelos mais velhos e escritas pelos professores Krenak, pode ajudar na compreensão da cosmologia<br />
Krenak. Ver KRENAK, Maurício & Outros nas Referências Bibliográficas.<br />
91
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
são capazes de protegê-lo. Talvez por isso é que, hoje, no esforço de alimentar a<br />
identidade étnica, os Krenak rejeitem a presença missionária na área.<br />
Observe que eles atribuem poderes a um símbolo cristão, mas ao mesmo tempo o<br />
consideram profano, desencantador do seu mundo espiritual, certamente, por se tratar de<br />
um símbolo não-indígena. O próprio catolicismo regional é também um pouco sincretista e<br />
pode ser que por isto não tenha feito muito sentido para os Krenak. Mas a apresentação de<br />
um evangelho supracultural, que não é propriedade dos kraí nem dos burúm, que não pode<br />
ser “desencantado” por nada, talvez cause interesse neste povo que traz no coração uma<br />
grande expectativa pelo sagrado.<br />
4.2.4. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
Há várias possibilidades de integração com igrejas da região, inclusive, algumas<br />
podem até apoiar missionários. A cidade de Resplendor é bastante evangelizada, tendo três<br />
grandes Igrejas Presbiterianas do Brasil, três Assembléias de Deus, duas Metodistas, três<br />
Batistas e outras três igrejas pentecostais de menor porte. É possível trabalhar em parceria<br />
com as presbiterianas, assembléias e metodistas, e talvez, também com as batistas. A<br />
Primeira Presbiteriana é atualmente pastoreada pelo Rev. João Batista Landim, que tem<br />
interesse em atuar entre os Krenak.<br />
Entretanto, seja qual for a igreja alvo de integração, faz-se necessário um sério<br />
trabalho de conscientização, pois dado ao histórico impasse entre indígenas e população<br />
regional, as igrejas não se sentem desafiadas a um trabalho entre os Krenak. Há<br />
discriminação também por parte de evangélicos.<br />
4.2.5. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS<br />
Qualquer projeto de trabalho entre os Krenak será passivo de resistência, mas sem<br />
um projeto que envolva algum tipo de assistencialismo, será ainda mais difícil conseguir<br />
trabalhar com eles. Qualquer abertura para alguém atuar na reserva, será motivada pelo que<br />
eles irão receber em troca.<br />
4.2.5.1. SAÚDE<br />
92
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Como eles não são assistidos por uma equipe de saúde da FUNASA, esta é uma<br />
área muito propícia e que seria vista com bons olhos. Médicos, dentistas e enfermeiros,<br />
certamente serão bem aceitos pela comunidade dada a sua carência. Mesmo um trabalho de<br />
prevenção e conscientização da comunidade, que poderia ser feito por técnicos em áreas<br />
afins de saúde, poderia ser bem aceito. É provável que profissionais da saúde sejam aceitos<br />
até como voluntários da FUNASA, podendo assim se locomover com o veículo que é<br />
posto à disposição dos indígenas 72 .<br />
4.2.5.2. ANÁLISE LINGÜÍSTICA<br />
Apesar da resistência dos Krenak a antropólogos e lingüistas, eles têm consciência<br />
da necessidade de um estudo sério da sua língua, o que em muito contribuiria para o<br />
resgate da mesma que eles tanto desejam. Portanto, uma vez adquirida a simpatia e<br />
amizade do grupo, certamente seria possível o desenvolvimento de um projeto de análise<br />
lingüística e grafia da língua. Um projeto nesta área seria de grande contribuição para todo<br />
o grupo, pois se tornaria numa ferramenta de perpetuação do idioma Krenak, e ao mesmo<br />
tempo seria o melhor caminho para compreensão cultural e conhecimento da sua<br />
cosmologia por parte do missionário.<br />
72 Um caso deste tem acontecido com os Maxakali, onde uma missionária-enfermeira vem atuando entre eles<br />
como voluntária da FUNASA deste dezembro de 1999 (cf. 3.1.6.4. 2ª Parte).<br />
93
5. OS PATAXÓ<br />
5.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras,<br />
e indo embora para o rio e o mar.<br />
Kanátyo Pataxó 73<br />
Vivendo numa situação razoavelmente estável, os Pataxó de <strong>Minas</strong> Gerais fazem<br />
um esforço intencional de afirmar a sua indianidade, principalmente através da produção<br />
artesanal e da introdução de palavras indígenas no seu vocabulário, visto terem perdido a<br />
sua língua tradicional. Se caracterizam como os mais receptivos dos grupos indígenas do<br />
Estado, sendo muito calorosos e alegres, mantendo também um bom relacionamento com a<br />
sociedade regional, inclusive exercendo forte influência na política do município onde se<br />
encontra o Território <strong>Indígena</strong> Pataxó.<br />
5.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
5.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA<br />
Os Pataxó de <strong>Minas</strong> Gerais têm sua origem étnica nos Pataxó da Bahia,<br />
particularmente no grupo de Barra Vermelha – os classificados como Pataxó Meridionais<br />
(Faria, 1992.70) – de onde migraram. Em 1951, o grupo que ali habitava sofreu um dos<br />
mais terríveis massacres registrados na história indígena da Bahia – o “fofo de 51” 74 -<br />
quando policiais dispararam contra os índios que se defendiam com lanças, arcos e flechas,<br />
totalmente indefesos contra a força militar. Grande parte da população adulta sucumbiu<br />
ficando esta data marcada na memória étnica como a época do ressurgimento dos Pataxó.<br />
Com um considerável contingente de homens mortos, no processo de recomposição<br />
populacional houve vários casamentos interétnicos, inclusive alguns com não-índios.<br />
73 Em Pataxó (1997b.23)<br />
74 Maiores informações sobre este episódio estão disponíveis em várias fontes, como em Faria ( 1992. 75-77)<br />
e em Dutra (1998.16) onde é relatado pela índia Vanusa Pataxó.<br />
94
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Entretanto, a consciência da sua indianidade nunca foi abalada, pelo contrário, eles fazem<br />
questão de afirmar e reafirmar quem são. No grupo atual, constata-se a presença de<br />
indígenas Krenak, Maxakali e Pankararu e alguns poucos não-índios.<br />
Na década de 1960 outro episódio ameaça os Pataxó de Barra Vermelha, quando<br />
foi criado o Parque Monumento Nacional de Monte Pascoal, reduzindo o seu território<br />
tradicional em 23.000 ha. Isto desencadeou um processo de migração de grupos familiares<br />
para outras regiões, e assim a família do índio Thyundayba migrou para <strong>Minas</strong> Gerais em<br />
1975, onde fixou residência e foi seguida por várias outras famílias (Vilarino, 2001.17).<br />
5.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
Como os Maxakali, parece que inicialmente os Pataxó faziam parte da<br />
confederação étnica chamada Naknenuk composta pelos Manoxó ou Amixakori,<br />
Kumanaxó, Kutatói, Malali, Makoni, Kopoxó, Kutaxó, Pañâme e pelos já mencionados<br />
Maxakali (Paraíso, 1999.Internet). Com a extinção da maioria destes grupos e as divisões<br />
de outros, hoje os Pataxó de <strong>Minas</strong> fazem parte da família Maxakali que é formada pelos<br />
próprios Pataxó (<strong>Minas</strong> e Bahia), Pataxó Hã-hã-hãe e Maxakali (Rodrigues, 1994.56).<br />
5.1.1.3. TRONCO LINGÜÍSTICO<br />
O lingüista Aryon Rodrigues (1994.56) os classificou como pertencentes ao tronco<br />
Macro-Jê, família Maxakali e língua Pataxó.<br />
5.1.1.4. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA<br />
Mais conhecido como Fazenda Guarani, o Território <strong>Indígena</strong> Pataxó totaliza 3.270<br />
ha. e está localizado no município de Carmésia, a 7 km da cidade com o mesmo nome, no<br />
Vale do Aço, sub-região da cidade de Guanhães, distando cerca de 200 km de Belo<br />
Horizonte. Há rodovia até a cidade de Carmésia, ficando um pequeno trecho de estrada até<br />
os vilarejos Pataxó. O território consiste numa antiga fazenda cafeeira, que adquirida pelo<br />
governo foi transformada na década de 1960 numa colônia penal indígena para onde foram<br />
transferidos os detentos do território Krenak, bem como os próprios Krenak e um grupo de<br />
índios Guarani, vindos do Rio de Janeiro. No final deste período, os Pataxó migraram para<br />
esta fazenda em busca de abrigo e com a retirada daqueles outros grupos eles<br />
permaneceram, fixando residência permanente e adquirindo posse legal do território.<br />
Os vilarejos se localizam num vale, entre duas montanhas cobertas por uma<br />
preservada floresta que dá condições aos Pataxó de produzirem artesanato em abundância,<br />
95
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
principalmente em madeira. O solo é rico, porém desgastado pelo longo cultivo de café, e<br />
um pequeno riacho corta o território, abastecendo os vilarejos. As casas de alvenaria<br />
construídas e usadas pelos fazendeiros e posteriormente pelos funcionários da colônia<br />
penal foram preservadas, sendo utilizadas como residência pelas várias famílias indígenas.<br />
O antigo presídio ainda existe, inclusive com suas celas onde muitos índios sofreram, e foi<br />
transformado num posto de saúde e ponto turístico para os visitantes que por ali passam.<br />
5.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA<br />
Somam trezentas pessoas, com um considerável contingente de crianças e<br />
adolescentes, o que aponta o crescimento do grupo (Vilarino, 2001.16). Esta população<br />
está dividida em três vilarejos, bem próximos uns dos outros, cada um com liderança<br />
própria, com o mesmo conjunto de direitos e obrigações, não havendo qualquer tipo de<br />
ascendência hierárquica. O grupo está distribuído em residências de famílias nucleares, e<br />
não mais em famílias extensas como era o costume tradicional. Todos na mesma direção,<br />
na margem da mesma estrada que dá entrada ao território, culminando no último vilarejo.<br />
Desta forma, por ordem de acessibilidade, a primeira a ser encontrada é a Aldeia<br />
Reintiri Imbiruçu, sendo a segunda maior aglomeração, onde funciona uma escola, e é<br />
liderada pelo cacique Mangagá – Sebastião. Logo à frente se encontra a Aldeia Central,<br />
onde está a maior aglomeração e consequentemente exerce maior influência em todo o<br />
grupo. Ali se encontra o prédio da antiga colônia penal e por isto há um maior tráfego<br />
turístico, bem como um maior fluxo de indígenas das outras aldeias dado ao fato de ali<br />
estar o posto médico. Há também uma estruturada escola infantil, inclusive equipada com<br />
computadores, que atende alunos desta aldeia e da terceira que não tem escola. O líder da<br />
Aldeia Central é o cacique Thyundayba – Manoel Ferreira da Silva. Por fim, encontra-se a<br />
terceira aldeia, chamada Pofi, que está bem próxima da segunda e é a menos influente pois<br />
ali residem apenas três famílias, sob a liderança do cacique Bayara – José Terêncio.<br />
5.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA<br />
Como quase todos grupos do Nordeste, eles perderam totalmente a sua língua<br />
tradicional sendo hoje falantes apenas do português. Vale lembrar que sendo os Pataxó um<br />
povo do litoral baiano, foram contatados pelos europeus bem cedo na história 75 , sendo este<br />
contato com a civilização externa mantido ininterrupto até os dias atuais. Desta forma, a<br />
75 Como os Pataxó sempre viveram distribuídos em vários grupos, o contato parece ter acontecido em<br />
momentos diferentes, não havendo datas precisas. Tudo indica, que os o grupo Pataxó que habitava a região<br />
de Porto Seguro foi contatado no século XVIII (Faria, 1992.70).<br />
96
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
língua Pataxó se perdeu no tempo e com ela grande parte da sua cultura tradicional,<br />
principalmente através da ação dos capuchinhos. Segundo o cacique Thyundayba 76 , os<br />
mais velhos não ensinavam a língua aos filhos para evitar que estes fossem perseguidos.<br />
Mas ocorreu um fato inovador no caso dos Pataxó. O alemão Maximiliano os<br />
visitou quando ainda falavam a língua tradicional e registrou centenas de palavras com<br />
seus significados. Recentemente, um antropólogo da Bahia trouxe uma lista de duzentos e<br />
cinqüenta e oito palavras, as quais têm sido introduzidas no seu vocabulário. Na sua<br />
maioria são substantivos, como nomes de animais, árvores e objetos, não sendo possível<br />
desenvolver uma conversação, mas eles usam estas palavras no seu dia-a-dia como forma<br />
de resgatar alguns traços da sua tradição. Deram um nome indígena a todos aqueles que<br />
possuíam nome não-indígena, ficando os adultos com dois nomes, e as crianças recebem<br />
apenas o nome indígena. Desta forma, há nomes como Thyundayba (pescador), Angohó<br />
(lua), Bekoy (sol), Ytxahá (flor), Yrerewa (cachoeira), Haniahay (anta), Hwnka (semente).<br />
5.1.4. RELIGIOSIDADE<br />
Com o intenso processo de catequese dos capuchinhos, os Pataxó se tornaram<br />
católicos, apesar de alguns traços da sua religiosidade tradicional ainda estarem presentes.<br />
É difícil classificar o grupo como um todo, pois há divergência entre eles próprios,<br />
inclusive entre os caciques. Enquanto alguns se identificam como católicos, outros se<br />
identificam como crentes e ainda outros resistem à religiosidade externa afirmando<br />
seguirem as suas próprias tradições, apesar de ser evidente a influência católica na sua<br />
cosmovisão. Talvez possamos classificá-lo como católicos sincretistas.<br />
5.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS<br />
A dança Pataxó é conhecida como awê sendo praticada com freqüência pois é um<br />
sinal de afirmação da sua indianidade. Para a maioria o awê já perdeu seu sentido<br />
religioso 77 não passando de uma manifestação folclórica, mas em alguns grupos ainda há<br />
manifestações de espíritos, com evidências de possessão o que indica certo grau de<br />
misticismo e talvez alguns resquícios animistas. O índio Bekoy, chefe familiar de grande<br />
credibilidade em todo o povo afirmou 78 : “nossa religião é o awê”.<br />
Além de praticarem o awê freqüentemente em reuniões e celebrações internas, o<br />
praticam sempre que recebem visitantes em maior quantidade e também viajam por<br />
76 Em entrevista do dia 09/05/02.<br />
77 Se bem que o cacique Thyundayba nos afirmou em conversa pessoal (09/05/02) que “toda música que<br />
canta é em agradecimento a Deus e em sentido de oração”.<br />
78 Em entrevista do dia 09/05/02.<br />
97
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
cidades vizinhas ou mesmo distantes, para fazerem apresentações. Estas ocasiões são<br />
preciosas para eles, por propiciar a venda de artesanato que é uma das suas principais<br />
fontes de renda. Adultos e crianças se enfeitam para o awê pintando o corpo –<br />
principalmente braços e rosto – com tinta feita de jenipapo e outras substâncias. Usam<br />
também colares de sementes, madeira e penas, cocares e vários outros enfeites, além dos<br />
vários tipos de chocalhos e instrumentos de percussão.<br />
5.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS<br />
As várias entidades que compunham o panteão espiritual dos Pataxó desapareceram<br />
paulatinamente da sua cosmologia com o processo de catequese católica, restando alguns<br />
poucos personagens que parecem possuir mais um caráter folclórico do que divino nas suas<br />
mentes. Crêem que Txopai (Deus) deu origem a tudo e inclusive já viveu aqui na terra com<br />
os Pataxó, indo depois para o Itôhã (céu) onde vive e governa o mundo. É difícil,<br />
entretanto, determinar se esta história vem da tradicional cosmologia Pataxó ou se trata de<br />
uma adaptação do ensino bíblico da encarnação.<br />
5.1.4.2.1. HAMÃY<br />
Hamãy é “a protetora dos animais”, mas que também protege os Pataxó quando<br />
estes não a entristecem. Vive na natureza e se enfurece se alguém ferir um animal e deixa-<br />
lo escapar, pois terá muito trabalho para curá-lo. Possui um abrigo para onde leva todos os<br />
animais feridos para tratá-los, podendo induzir algumas pessoas até este abrigo se assim o<br />
quiser. Ela também pode aparecer para as pessoas de várias formas e mesmo confundi-las<br />
na floresta, não deixando-as encontrar o caminho para casa, quando abusam da sua<br />
autoridade (Pataxó, 1997a.20). Entretanto, na nossa pesquisa não foi possível verificar se<br />
Hamãy possui valor religioso ou apenas lendário. Parece que esta última opção é a mais<br />
real, não havendo muita importância religiosa desta entidade na sua cosmologia.<br />
5.1.4.2.2. CAMUNDERÊ 79<br />
Descrito como “um bicho muito cabeludo... perigoso... assustador”, o Camunderê<br />
faz parte das lendas Pataxó como personagem que no passado “comia” crianças durante a<br />
noite e que ninguém sabia onde ficava a sua boca. Certo dia, um velho e sábio índio se<br />
escondeu e quando o Camunderê se aproximou de uma criança para devorar, o índio<br />
descobriu que sua boca ficava nas proximidades do umbigo, sendo o único local que<br />
79 Ver anexo 01: 4.1. O Camunderê.<br />
98
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
golpeado poderia levar aquela criatura à morte. Desta forma, o índio acertou uma flecha na<br />
boca da criatura que veio a morrer. Entretanto a história do Camunderê não terminaria aí,<br />
pois a partir de então ele teria se transformado numa “assombração”: “apesar de estar<br />
morto, até hoje existe assombração desse bicho perigoso” (Pataxó, 1997a.23).<br />
Parece que estas são as duas, pelo menos principais, entidades espirituais que<br />
restaram da antiga cosmologia Pataxó, mas não há rituais de veneração ou devoção a elas,<br />
apenas respeito. No caso do Camunderê, tudo indica que eles o encaram apenas como uma<br />
figura mitológica. Há indícios de veneração da lua, mas parece serem casos isolados, não<br />
envolvendo todo povo. Segundo Kanátyo (Pataxó, 1997a.25), sua mãe venera a lua<br />
fazendo orações para ela sempre que está cheia, crendo que esta a livra de vários males.<br />
5.1.4.3. CASA DE REUNIÕES<br />
Ao contrário da maioria dos grupos indígenas de <strong>Minas</strong>, os Pataxó não preservaram<br />
objetos sagrados, nem mesmo para os seus rituais. Fazem uso da Casa de Reunião –<br />
Cabana – que apesar de ser o local do awê, não chega a ser considerada sagrada por todo o<br />
povo, a não ser por alguns como Kanátyo, que atribui caráter sagrado também à pedra, à<br />
floresta e ao canto dos pássaros (Dutra, 1998.12). Esta é bem característica, com um<br />
formato redondo, construída com grossos troncos de madeira, coberta por capim e possui<br />
uma espécie de parede também de madeira com não mais que um metro de altura. É<br />
realmente uma construção encantadora e por eles muito bem preservada. Ali realizam não<br />
apenas as danças cerimoniais mas também as demais reuniões comunitárias.<br />
5.1.5. ESTUDO DE PODER SOCIAL<br />
A organização política dos Pataxó é centrada no chefe familiar, que ao seu modo<br />
lidera sua família e responde por ela junto ao grupo. O sistema de liderança é simples, com<br />
um cacique e subcacique para cada vilarejo, não havendo mais a função de pajé.<br />
5.1.5.1. CACIQUE<br />
Os caciques Thyundayba, Mangagá e Bayara lideram cada um uma aldeia ou<br />
vilarejo, e juntos lideram todo o grupo. Não há qualquer ascendência hierárquica entre eles,<br />
mas Thyundayba se destaca em influência por ser o líder da aldeia maior e também<br />
vereador do município de Carmésia já no quarto mandato. Pesa também o fato de ter sido o<br />
primeiro a migrar para a Fazenda Guarani em 1975, com sua esposa, quatro filhos e nora.<br />
Aos caciques compete liderar o grupo nas decisões e iniciativas comunitárias, bem<br />
como representá-lo externamente. Quando equipes saem para realizar apresentações em<br />
99
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 100<br />
escolas ou afins das cidades vizinhas, é o cacique quem escolhe ou indica. Também no<br />
awê, é ele quem lidera a dança, dado ao fato de não possuírem mais pajé. São escolhidos<br />
de forma democrática para mandatos de tempo indeterminado.<br />
5.1.5.2. SUBCACIQUES<br />
Geralmente chefes de famílias influentes de cada vilarejo, os subcaciques possuem<br />
as mesmas especificações dos caciques só que na ausência destes. Entretanto, pela posição<br />
de confiança e simpatia que detêm, a palavra dos mesmos são influenciadoras nas decisões.<br />
5.1.6. PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS<br />
É latente a necessidade que os Pataxó de <strong>Minas</strong> sentem de afirmarem a sua<br />
indianidade à sociedade externa. Parece que pelo fato de terem perdido a sua língua e<br />
grande parte da sua cultura tradicional 80 , eles sentem a necessidade de demonstrar<br />
publicamente que ainda assim continuam sendo indígenas, o que procuram fazer<br />
principalmente através da venda de artesanato que é o principal contato e meio de interação<br />
que têm com a sociedade externa. Parece que Faria (1992.90) percebeu com precisão este<br />
sentimento e conseguiu expressá-lo com criatividade. Ela comenta que “cada peça<br />
funciona como uma espécie de ‘atestado’ que é passado adiante e circula por membros da<br />
sociedade nacional, fazendo com que todos os que o vejam saibam que os índios Pataxó o<br />
produziram e, portanto, existem”. Mas é fácil perceber também, que a sua cultura se<br />
manifesta em várias outras características da sua sociedade. Vejamos algumas:<br />
5.1.6.1. POSSE COMUNITÁRIA DA TERRA<br />
Certamente esta é uma das principais manifestações culturais da indianidade<br />
Pataxó, pois como os demais grupos indígenas eles não têm a terra como propriedade<br />
privada ou particular, não nutrindo o sentimento de posse pessoal. A terra é para eles um<br />
bem comum, meio de sobrevivência, pertencente a todo grupo.<br />
Mas há uma particularidade no caso dos Pataxó, pois enquanto na maioria dos<br />
grupos não apenas a posse, mas também a exploração da terra é comunitária, recaindo<br />
geralmente sobre o cacique a responsabilidade de determinar onde deve ou não fazer<br />
cultivo, os Pataxó transferem a responsabilidade de exploração para as famílias (Faria,<br />
80 Faria (1992.79) faz uma análise mais precisa acerca dos fatores modificadores da sua estrutura social,<br />
apontando como primeiros e principais “o contato prolongado e, ao que parece, ininterrupto, entre os Pataxó<br />
e a sociedade nacional, o aldeamento compulsório, a ação dos agentes governamentais e a sedentarização<br />
forçada”.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 101<br />
1992.84). Isto é conseqüência da centralidade do chefe de família no sistema político. Cada<br />
família tem o direito de cultivar um determinado pedaço de terra como bem lhe entender,<br />
obviamente, desde que não prejudique a comunidade como um todo. Desta forma, as<br />
plantações são realizadas em conjunto pela família nuclear, envolvendo geralmente pais,<br />
filhos ou irmãos, ou mesmo genros, dependendo das negociações e interesses de cada um,<br />
e não mais pelas famílias extensas.<br />
5.1.6.2. CASAMENTO<br />
Com um desejo intencional de resgatar pelo menos parte da sua cultura tradicional,<br />
os Pataxó em escala ascendente vêm resgatando alguns costumes relacionados ao<br />
casamento. Angthichay Pataxó (1997a.13) relata como estes acontecem:<br />
No dia do casamento, os pais dos noivos, juntamente com os caciques, marcam o<br />
lugar de onde o noivo começará a carregar a pedra. O rapaz carrega a pedra até o<br />
local onde será realizado o casamento. Chegando lá, ele põe a pedra no chão e, ali<br />
mesmo, os noivos trocam de cocar e, naquele momento, é realizada a cerimônia.<br />
Depois da realização do casamento, todos os membros da comunidade vão para a<br />
casa dos noivos beber cauim e festejar até o raiar do novo dia. Geralmente, os<br />
Pataxó casam bem novos, entre doze e treze anos, mas hoje isto já está mudando e<br />
estão se casando entre os quatorze, dezesseis e até os dezoito anos.<br />
Faria (1992.80) explica este ritual ressaltando a pequena adaptação que sofreu na<br />
Fazenda Guarani. Segundo ela, em Barra Vermelha o jovem deveria carregar, ao invés da<br />
pedra, uma tora de madeira da floresta até o centro da aldeia, como comprovação da “sua<br />
capacidade de transportar sua esposa, caso ficasse doente, ferida ou impedida de<br />
locomover-se de onde estivesse até a aldeia”.<br />
O cacique Thyundayba 81 nos explicou que os casamentos intraétnicos são<br />
realizados apenas na aldeia, de acordo com ritual acima descrito e seguido sempre pelo<br />
awê. Já os casamentos interétnicos com não-índios são realizados também nos cartórios<br />
civis, explicando que “no casamento com os branco, a moça num herda nada se não casar<br />
no cartório, enquanto aqui ela herda de qualquer jeito”. Vale ressaltar, que com o<br />
crescimento populacional os casamentos interétnicos vão ficando cada vez mais raros.<br />
5.1.6.3. PRODUÇÃO ARTESANAL<br />
A produção artesanal era tradicionalmente considerada pelos Pataxó como<br />
atividade secundária, exercida em momentos não dedicados às atividades consideradas<br />
81 Em entrevista do dia 09/05/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 102<br />
mais importantes. Entretanto, quando a partir de 1970 o fluxo turístico aumentou<br />
assustadoramente em Porto Seguro, por ter sido ali realizada a primeira missa no Brasil, os<br />
Pataxó passaram a ver o artesanato como uma fonte de renda, mesmo porque estavam<br />
ameaçados com a redução do seu território, quando da criação do Parque Monumento<br />
Nacional do Monte Pascoal. Faria (1992.87) informa que o incremento do artesanato<br />
deveu-se à atuação do primeiro chefe de Posto da FUNAI em Barra Vermelha, que trouxe<br />
para os Pataxó modelos do artesanato dos Xerente, e partir destes eles criaram novas<br />
formas, de acordo com a aceitação do público.<br />
O grupo de <strong>Minas</strong> produz artesanato numa escala considerável, vendendo nas<br />
cidades vizinhas, aos visitantes da aldeia – aliás esta é uma das razões da sua calorosa<br />
receptividade, pois todo visitante é visto como um cliente em potencial – e quando<br />
convidados para apresentações em escolas ou afins, levam artesanato em abundância.<br />
A produção é familiar, ficando os homens encarregados de talhar a madeira, fazer<br />
arcos, flechas, lanças, cocares, tangas, pentes, colheres e gamelas, enquanto as mulheres<br />
trabalham com as penas, enfeitando a produção masculina que exige esse tipo de adorno,<br />
além de trançarem esteiras, chapéus e confeccionarem colares. As crianças também<br />
participam ficando encarregadas das cestarias e dos acabamentos. Obviamente, tudo isto é<br />
realizado de forma bem natural, sem qualquer rigidez, podendo variar de funções<br />
dependendo do momento ou disposição de cada um. A existência de matas na Fazenda<br />
Guarani facilitou a produção, principalmente dos objetos de madeira. Assim, grande parte<br />
do tempo é dedicado à produção artesanal que é uma das principais atividade do grupo. É<br />
interessante também observar o critério usado para atribuir preço às peças. Como na sua<br />
visão a matéria-prima é dada pela natureza, não podendo portanto ser avaliada em termos<br />
quantitativos, o preço é dado de acordo com a habilidade do artesão e com o tempo gasto<br />
na confecção do objeto. A maior ou menor aceitação do produto no mercado, também é<br />
levado em conta.<br />
Outro produto muito peculiar dos Pataxó é o cauim, que é uma bebida feita da<br />
mandioca, podendo utilizar também o abacaxi e o gengibre. Esta bebida é para o consumo<br />
interno, não sendo comercializada, e é sempre consumida durante o awê, principalmente<br />
em festas de casamento, quando, às vezes, acompanha um churrasco, sendo considerada<br />
também como medicinal (Dutra, 1998.12)<br />
5.1.7. SOBREVIVÊNCIA<br />
A produção artesanal é um dos principais meios de sobrevivência dos Pataxó,<br />
assim como a produção agrícola de subsistência. Entretanto, outros meios de
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 103<br />
sobrevivência vêm sendo introduzidos na comunidade, como a piscicultura (criação de<br />
peixes) e apicultura (criação de abelhas). Estes projetos tem sido um sucesso, mas<br />
principalmente a piscicultura pois os mesmos não dispõem de rios onde possam pescar. A<br />
criação de peixes tem melhorado a qualidade de vida dos Pataxó, que além de se<br />
beneficiarem do produto para o consumo interno, começam a comercializá-lo. Já a<br />
apicultura é um projeto mais recente não dando ainda grandes resultados, mas todos estão<br />
com muita expectativa de sucesso. Para estes projetos eles contam com a participação de<br />
entidades como a EMATER, SEE/MG, Prefeitura Municipal de Carmésia, além de ONG’s<br />
como o CEDEFES e o CIMI (Mattos, 2000b.15).<br />
Recentemente outras fontes de renda têm surgido e em muito contribuído para a<br />
manutenção de várias famílias, bem como de todo o grupo. Os mais idosos conseguiram<br />
aposentadoria, dez professores formados pelo Projeto UHITUP no Parque Estadual do Rio<br />
Doce foram admitidos como professores indígenas remunerados para as duas escolas.<br />
Também foram admitidos quatro agentes de saúde e dois auxiliares de enfermagem.<br />
5.1.8. PROBLEMAS SOCIAIS<br />
5.1.8.1. PRODUÇÃO AGRÍCOLA<br />
Apesar de serem tradicionalmente caçadores-coletores e semi-nômades, quando<br />
submetidos pelos colonizadores a um estilo de vida sedentário, os Pataxó da Bahia se<br />
tornaram exímios agricultores, produzindo não apenas para seu consumo mas também para<br />
comercialização. Entretanto, quando migraram para a Fazenda Guarani o solo da mesma já<br />
estava desgastado com o cultivo de café o que limitou a capacidade de produção agrícola.<br />
Ainda assim, produzem milho, feijão, arroz, cana, banana, mandioca, laranja e<br />
outros produtos, mas em pequena escala, apenas para seu próprio consumo. Alguns ainda<br />
tentam comercializar o excedente, mas acabam desanimando devido ao preço não ser tão<br />
atrativo. Entretanto, eles têm recursos humanos para produzir muito mais e a suas terras<br />
têm condições de propiciar uma produção maior, desde que seja devidamente revigorada.<br />
5.1.8.2. TRANSPORTE<br />
Não havendo meio de transporte que ligue a aldeia a qualquer cidade, contam com<br />
apenas dois veículos que esporadicamente estão à sua disposição: a Toyota da FUNASA e
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 104<br />
um veículo da FUNAI. A outra opção é se deslocar até a cidade de Carmésia – a 7 km – a<br />
pé ou de bicicleta. Quando são convidados para realizar apresentações em outras cidades se<br />
vêem com dificuldades de se deslocarem em um grupo maior, inclusive pelo fato de<br />
levarem artesanato em abundância.<br />
5.1.8.3. COMUNICAÇÃO<br />
Como o contato com a civilização externa é intenso e constante, os Pataxó tem<br />
sentido falta de um meio de comunicação. Seus parentes da Bahia, bem como os que estão<br />
espalhados em Belo Horizonte, Mato Grosso e Belém não conseguem entrar em contato.<br />
Assim, eles têm solicitado um telefone público para a aldeia.<br />
5.1.9. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
Apesar de não haver nenhum missionário atuando entre os Pataxó, há duas igrejas<br />
que já reúnem um grupo considerável de membros das três aldeias. Mas há necessidade de<br />
um trabalho de instrução pois os convertidos são pessoas simples e com pouca base<br />
bíblica, apesar da vivacidade da sua fé.<br />
5.1.9.1. ASSEMBLÉIA DE DEUS<br />
Algumas famílias foram alcançadas pelo evangelho, através das Assembléias de<br />
Deus, ainda na Bahia e uma destas migrou para a Fazenda Guarani. A partir de 2001 a<br />
igreja de Carmésia começou a dar-lhes assistência e hoje já reúnem cerca de vinte pessoas<br />
em cultos semanais, sendo inclusive benquistos pelo restante do grupo.<br />
5.1.9.2. IGREJA PENTECOSTAL MISSIONÁRIA<br />
Também da cidade de Carmésia, tem dado assistência às aldeias reunindo cerca de<br />
dez pessoas. O trabalho desta não tem sido tão expressivo e parece não gozar da mesma<br />
simpatia que a Assembléia de Deus.<br />
Segundo o cacique Thyundayba, há também alguns espíritas 82 , mas particularmente<br />
ele simpatiza com os evangélicos. Parece que esta sua simpatia tem influenciado o restante<br />
do grupo, pois ele já esteve numa igreja evangélica por cinco anos, até que ficou viúvo e se<br />
juntou a outra mulher deixando assim a igreja. Seu testemunho é impactante:<br />
82 Não foi possível definir que tipo de espíritas: se kardecistas ou populares.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 105<br />
No momento eu não tenho religião, eu tenho fé em Jesus (...) agora, eu tenho<br />
vontade de dedicar somente à crença, porque na crença a fé da gente é somente em<br />
Um, então você tem que obedecer a Ele 83 .<br />
5.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
Vale a pena considerar desde já, que os Pataxó estão totalmente abertos ao trabalho<br />
missionário devido a vários fatores. Um deles é que o fato de estarem em contato com a<br />
civilização externa há muitos anos e terem recebido muito influência católica, a categoria<br />
“cristão” não é algo tão distante e alienígena para eles. É positivo também o fato do<br />
catolicismo não haver se tornado a “religião oficial” do grupo, pois apesar de<br />
demonstrarem claramente a influência católica na sua cosmovisão, não se identificam<br />
como tal. A presença de um grupo evangélico entre eles, pelo menos aparentemente não<br />
sendo discriminados, é por demais significante, pois aponta para a consciência de alguém<br />
poder ser cristão e continuar sendo índio. Aliás, a maioria dos convertidos Pataxó<br />
participam sem dificuldade do awê, o considerando puramente cultural, sem qualquer<br />
conotação religiosa. Uma das convertidas da Assembléia de Deus, testemunhou que no<br />
grupo onde não há nenhum evangélico, durante o awê acontecem casos de manifestação<br />
demoníaca, enquanto no grupo dela, onde estão os evangélicos isto não acontece. Outro<br />
fato ainda, é a simpatia do cacique Thyundayba ao evangelho e o seu testemunho de que<br />
mesmo sendo “crente” por cinco anos, nunca deixou de ser índio 84 . É também positivo o<br />
pouco envolvimento deles com entidades de caráter antropológico, que via de regra<br />
procura restringir o trabalho missionário. Dada ao seu grau de autonomia e poder de<br />
manipulação, é provável que a FUNAI também não teria como colocar objeções.<br />
Devemos considerar também que um trabalho missionário qualquer entre os Pataxó<br />
deve levar em consideração o grupo de evangélicos ali já existente, principalmente o<br />
trabalho da Assembléia de Deus que goza de boa simpatia do povo. Ali há pessoas<br />
83 Em entrevista do dia 09/05/02.<br />
84 A capacidade de assimilação do evangelho pelo cacique Thyundayba é fascinante, como nesta palavra<br />
proferida em conversa pessoal:<br />
Quando um índio na aldeia osasse com uma filha dele, ou irmã dele, ou mãe dele, o cacique ia lá,<br />
chamava o capitão, mandava chamar a família, mandava ele ficar de joelhos ali, metia o pau, matava<br />
ele de pancada, fazia uma carreira de fogo, queimava e pegava aquele restim de cinza que sobrasse e<br />
jogava dentro d’água, para que não ficasse gente ruim, pois gente ruim não prestava. Se ele ficasse<br />
ali, ia casar e sair mais gente ruim pra fazer o mesmo que ele fez. Então, pra evitar isto matava ele<br />
que não fazia mais, e outro que entrasse ia evitar também, para não acontecer o mesmo. E isto está<br />
escrito na Bíblia e Deus falou pra esse índio esse pensamento. Então, eu acho que o certo é a pessoa<br />
ser crente porque só acredita em Deus único.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 106<br />
realmente convertidas e com fé vívida no evangelho, necessitando de instrução bíblica e<br />
conscientização da necessidade de evangelização.<br />
5.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
Nas proximidades da reserva há a cidade de Carmésia – a 7 km – e a Vila<br />
Esperança – a 15 km – sendo esta última, como o nome já indica, uma pequena vila às<br />
margens da rodovia que liga a região à capital Belo Horizonte. Ambas são pequenas e com<br />
poucos recursos, mas dada a localização da reserva sem dúvida seriam os centros mais<br />
estratégicos. Além destes, seria possível o estabelecimento de uma base na cidade de<br />
Guanhães, mas esta dista 50 km, o que torna não tão viável um trabalho a partir dali. Vale<br />
ressaltar que esta última é uma cidade com maior estrutura e com igrejas grandes.<br />
5.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
Devido ao seu positivo envolvimento com o povo seria prudente e viável trabalhar<br />
no mínimo em parceria com a Assembléia de Deus de Carmésia e esta certamente estaria<br />
aberta para isto. Entretanto, a mesma se trata de uma igreja pequena, de poucos recursos e<br />
com uma limitada visão da conscientização missionária, sendo assim necessário um<br />
trabalho de conscientização. Outra possibilidade real e viável é com igrejas de Guanhães,<br />
pois ali estão presentes, além de outras, a Igreja Presbiteriana e Assembléia de Deus,<br />
ambas grandes e bem estruturadas. Estas poderiam servir como base de um trabalho<br />
missionário, bem como assumir o trabalho em si.<br />
5.2.3. ABORDAGEM COSMOLÓGICA 85<br />
Um fato curiosíssimo na cosmologia Pataxó é a história de Txopai e Itôhã, sobre a<br />
qual eles até publicaram um livro 86 para uso nas escolas e perpetuação da história. Segundo<br />
esta lenda, quando na terra só existia animais, Txopai (Deus) desceu à terra através de uma<br />
gota d’água da chuva e trouxe muita sabedoria, como a época certa de plantar e colher, a<br />
forma como caçar e pescar, e como descobrir as ervas medicinais. Admirava a beleza do<br />
85 Os Livros O Povo Pataxó e Sua História, e Txopai e Itôhã podem em muito ajudar na compreensão da<br />
cosmologia Pataxó, pois consistem em lendas e na história do povo contadas pelos próprios Pataxó. Ver<br />
PATAXO, 1997a e b nas Referencias Bibliográficas.<br />
86 O Txopai e Itôhã (Deus e Céu), de autoria de Kanátyo Pataxó, foi publicado em 1997 numa parceria do<br />
MEC/UNESCO/SEE-MG. O autor tem se destacado como escritor, compositor e poeta do povo Pataxó,<br />
tendo grande participação também no livro O Povo Pataxó e Sua História, publicado no mesmo ano pela<br />
mesma parceria. É professor, formado pelo Projeto UHITUP e um dos articuladores do grupo.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 107<br />
dia, da noite e das estrelas, fazia fogueira para se esquentar à noite e era aquecido pelo sol<br />
durante o dia. Os demais indígenas vieram a existir também através de gotas d’água das<br />
chuvas, povoando assim toda a terra. Txopai então passou seus conhecimentos aos demais<br />
índios e quando estes já sabiam como viver, ele “se despediu dando um salto, e foi<br />
subindo... subindo... até que desapareceu no azul do céu, e foi morar lá em cima no<br />
‘ITÔHÃ’” de onde protege os indígenas aqui na terra. É por isto que na sua definição<br />
poética, Kanátyo diz que “Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas pedras, e indo<br />
embora para o rio e o mar” (Pataxó, 1997b).<br />
Na pesquisa de campo não foi possível descobrir se esta história vem da antiga<br />
cosmologia Pataxó ou se é uma adaptação do ensino bíblico da encarnação de Cristo,<br />
transmitida a eles pelos católicos, mas é fato que a mesma está impregnada nas suas<br />
mentes, fazendo parte da sua cosmovisão e consequentemente influenciando toda a sua<br />
concepção de mundo e divino. E como esta história tem sido usada na escola como livro<br />
texto para suas crianças, além da sua transmissão oral, certamente continuará nas gerações<br />
futuras. Desta forma, um bom uso desta lenda como ponte para a pessoa de Cristo, pode<br />
surtir um grande efeito no grupo Pataxó, ou no mínimo, ser uma porta de entrada para sua<br />
cosmologia.<br />
5.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS<br />
5.2.4.1. DISCIPULADO E ENSINO BÍBLICO<br />
Dada a sua abertura e a já existência de um grupo de convertidos com plena<br />
liberdade de culto e expressão religiosa, bem como do seu conhecimento geral do<br />
cristianismo pela vertente católica, é possível um trabalho direto de discipulado e ensino<br />
bíblico com este grupo de convertidos, bem como de evangelismo com o restante do povo.<br />
Como já comentado, há várias pessoas genuinamente convertidas ali, gozando de boa<br />
credibilidade por parte do restante do povo. Desta forma, estes convertidos munidos de<br />
conhecimento bíblico e fervor evangelístico teriam condições de evangelizar os demais,<br />
principalmente se focalizarem o trabalho em famílias que é o ponto forte da organização<br />
social dos Pataxó.<br />
Os professores seriam pessoas estratégicas, pois tem exercido forte influência em<br />
toda esta geração de crianças e adolescentes, bem como os caciques que são líderes<br />
respeitados por todo o povo. Ao que parece, até então isto não tem sido feito, pois ambas<br />
as igrejas que ali atuam têm focalizado seu trabalho na realização de cultos nos lares
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 108<br />
buscando obter mais convertidos. Um trabalho de instrução bíblica e discipulado poderia<br />
ser realizado em parceria com estas igrejas, ou pelo menos com a Assembléia de Deus.<br />
5.2.4.2. SAÚDE<br />
A assistência na área de saúde tem sido razoável, pois além da presença constante<br />
de uma enfermeira indígena – técnica, do povo Pankararu – na reserva, bem como dos<br />
agentes de saúde, um médico da cidade de Carmésia faz atendimento nas aldeias uma vez<br />
por semana, e eles ainda contam com o veículo da FUNASA que fica à sua disposição para<br />
estes fins. Entretanto, mais profissionais nesta área certamente seriam bem-vindos,<br />
principalmente na área odontológica, onde realmente precisam de uma atenção maior.<br />
5.2.4.3. AGRONOMIA<br />
O solo da reserva Pataxó é de excelente qualidade, mas está desgastado pelo<br />
prolongado cultivo de café pelos fazendeiros que ali viveram durante décadas. É necessário<br />
um trabalho de revitalização do solo para que possam produzir em maior escala, o que<br />
seria de grande valia para todo o povo.
6. OS PANKARARU<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 109<br />
Antes dos portugueses invadirem, nós índios tínhamos nossos costumes.<br />
Os índios não adoeciam, mas foram tirando nossas riquezas e<br />
deixando doenças, troca que nos trouxe muitas mortes.<br />
Fabiana Pankararu 87<br />
6.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
Após anos compartilhando com outros grupos indígenas o mesmo território, o<br />
grupo Pankararu de <strong>Minas</strong> Gerais vive agora no seu próprio território onde tem liberdade<br />
para desenvolver e reafirmar suas tradições culturais, produzir o necessário para sua<br />
manutenção e alimentar o sonho de um dia ser um grande grupo vivendo de acordo com<br />
seus costumes e desfrutando dos benefícios que a terra lhes oferece. Apesar de ser o menor<br />
dos grupos indígenas do Estado, os Pankararu vivem relativamente bem, se relacionando<br />
pacífica e amigavelmente com a sociedade regional, inclusive recebendo desta um<br />
considerável apoio.<br />
6.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
6.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA E SITUAÇÃO DEMOGRÁFICA<br />
Os Pankararu de <strong>Minas</strong> consistem em um pequeno grupo migratório do povo<br />
Pankararu de Pernambuco, especificamente da aldeia conhecida como Brejo dos Padres, no<br />
município de Tacaratú. De lá migraram na década de 1950, devido o grave problema da<br />
seca e vários conflitos 88 com posseiros, resultantes da construção da hidrelétrica de<br />
Itaparica, no Rio São Francisco, que inundou a maioria das terras férteis da região<br />
(Caldeira, 2001c.35). Como é característica cultural deste povo, eles se dividem em<br />
famílias nucleares e assim este grupo que migrou para esta região nada mais é do que uma<br />
família. Antes de chegar em <strong>Minas</strong> Gerais, conviveram com os Krahô, Xerente e Karajá, e<br />
87 Em Thydêwá (internet).<br />
88 Segundo Torres (internet), “entre todas as comunidades (de Pernambuco), é a mais envolvida em conflitos<br />
pela posse da terra, embora a sua presença na região desde séculos atrás, seja incontestável”.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 110<br />
quando finalmente aqui chegaram foram recebidos pelos Pataxó da Fazenda Guarani, em<br />
Carmésia, onde permaneceram por onze anos e estabeleceram laços matrimoniais com os<br />
próprios Pataxó e também com os Krenak.<br />
O grupo consiste numa família nuclear, tendo como progenitores o idoso casal<br />
Eugênio Cardoso da Silva e Benvina Vieira, somando ao todo vinte pessoas, sendo dois<br />
idosos, nove adultos e nove crianças. Quanto à origem étnica, são dezessete Pankararu, três<br />
Pataxó e uma Krenak, distribuídos da seguinte forma:<br />
Progenitores: Eugênio e Benvina<br />
Filho/nora: Cláudio e esposa (Krenak)<br />
Filho/nora: Ivan e Jossiléide (Pataxó)<br />
Filha/genro: Cléide e Dimas (Pataxó)<br />
Filha/genro: Cleonice e César (Pataxó) – residentes fora da aldeia.<br />
A estes acrescenta-se mais um filho solteiro, e as nove crianças que, mesmo<br />
possuindo pai ou mãe de outro grupo são consideradas Pankararu.<br />
Vale ressaltar, que somente em Pernambuco os Pankararu somam cerca de seis mil<br />
indígenas, e em São Paulo vivem cerca de mil pessoas, na favela do Real Parque, próximo<br />
ao Morumbi, às margens do Rio Pinheiros.<br />
6.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
Segundo Prezia (2000.239) a família étnica é formada pelos Pankararu, Pankararé e<br />
Pankaru. Arruti (1996.23) sugere outros grupos como membros da mesma família, mas<br />
parece que esta sugestão não é tão bem comprovada como a classificação adotada por<br />
Prezia.<br />
6.1.2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL<br />
Em 1993, os Pankararu iniciaram o processo de articulação 89 por uma terra onde<br />
pudessem desenvolver melhor a sua cultura, e um ano depois conseguiram sensibilizar a<br />
Diocese de Araçuaí, que doou 60 hectares de terra de uma fazenda chamada Alagadiço, no<br />
município de Coronel Murta, Médio Vale do Jequitinhonha. Para lá se transferiram em<br />
junho de 1994, onde com apoio de ONG’s, políticos e pastorais construíram a aldeia<br />
89 A principal mentora deste processo foi a indigenista Geralda Soares, que conhecendo os Pankararu na<br />
Fazenda Guarani e vendo o seu desejo de possuírem um território próprio, se dispôs a ajudá-los na<br />
articulação. Não conseguindo terras no Vale do Rio Doce nem no Vale do Aço, devido ao elevado preço,<br />
contactou o Bispo da Diocese de Araçuaí que se dispôs a doar, em esquema de comodato, os 60 hectares<br />
onde hoje vivem.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 111<br />
Apukaré, com quatro casas de alvenaria para os respectivos casais, uma quadra de futebol,<br />
canalização de água e energia elétrica. Mas apesar de possuírem água canalizada, não<br />
havia rios no seu território, o que dificultava sua vida e produção. Foi quando em 2000, a<br />
Igreja Metodista, através do GTME, doou-lhes mais 8 hectares de terra estendendo seu<br />
território até o Rio Jequitinhonha que rega toda aquela a região.<br />
A aldeia está localizada à margem esquerda da rodovia que liga as cidades de<br />
Araçuaí e Coronel Murta, distando apenas 7 km desta última, 33 km da outra e cerca de<br />
270 km de Belo Horizonte. A aldeia dista pouco mais que 1 km da rodovia, sendo este<br />
trecho estrada não pavimentada.<br />
6.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA<br />
Desde há muito os Pankararu perderam sua língua tradicional, falando hoje apenas<br />
o português. Nas cantorias dos seus rituais religiosos há palavras da sua antiga língua, mas<br />
apesar de preservá-las, nem eles mesmos sabem bem o significado. Segundo Prezia<br />
(2000.239), Aryon Rodrigues os classificou apenas como um grupo que perdeu sua língua<br />
tradicional, mas é provável que eram falantes de alguma língua do tronco Macro-Jê.<br />
6.1.4. RELIGIOSIDADE<br />
Apesar de numericamente reduzidos, a religiosidade Pankararu é forte e arraigada,<br />
gerando assim um forte sincretismo religioso, pois oficialmente são considerados católicos.<br />
O próprio nome da aldeia de origem – Brejo dos Padres – já indica uma atuação católica<br />
junto a este grupo. Brejo dos Padres é o resultado de um aldeamento dos capuchinhos e<br />
apesar de não haver consenso quanto à época de fundação, sabe-se que é muito antigo.<br />
Torres 90 (internet) informa que “acha-se envolvida em lendas ou suposições a época da<br />
fundação do aldeamento, havendo, porém, indícios de que seja de 1802”. De qualquer<br />
forma, podemos afirmar que a catequese católica junto aos Pankararu remonta a quase dois<br />
séculos, o que indica que várias gerações foram influenciadas. Mesmo assim, sua<br />
religiosidade tradicional é ainda muito forte, o que indica por sua vez um alto grau de<br />
resistência religiosa, provavelmente conseqüente de traços animistas na sua arraigada<br />
cosmovisão.<br />
90 Almir Torres é índio da Tribo Fulni-ô, da cidade de Águas Belas, mora no Recife e criou um site sobre os<br />
Índios de Pernambuco. Ver TORRES nas referências bibliográficas.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 112<br />
Eles se identificam como católicos e veneram vários dos seus santos, entretanto,<br />
acham possível conciliar sua catolicidade com sua tradicional religião, como fica claro nos<br />
textos abaixo, ambos registrados por índios Pankararu:<br />
Porque nós somos católicos (...) Nós acreditamos em Deus, no bom Jesus da<br />
Lapa, em Nossa Senhora, nos Santos. Mas não achamos que é a mesma coisa.<br />
Deus acima de tudo e depois os Praiá que nos acompanham e nos protegem –<br />
ensina sempre mãe Benvina Pankararu (Relatório, 2000.18)<br />
Nós adoramos os Praiá, que em nossa tradição é Deus, que nos dão até hoje a<br />
resistência, a luz, a força. São nossos próprios ancestrais que nos protegem (...)<br />
Nossa religião é indígena. Nós passamos de pais para filhos, nós seguimos<br />
nossos costumes (Thydêwá.Internet).<br />
Desta forma, podemos classificar os Pankararu como católicos sincretistas, com<br />
fortes traços animistas. As palavras da indigenista Vanessa Caldeira (2001c.37) são<br />
ratificadoras neste sentido:<br />
O sincretismo religioso compõe a realidade pankararu, assim como compõe a<br />
realidade de grande parte das populações indígenas no país. Ser católico e possuir<br />
uma crença indígena simultaneamente não significa problema para os Pankararu.<br />
Acreditar em Deus e nos Praiás, participar do ritual do batismo da Igreja Católica e<br />
realizar o ritual do Menino no Rancho, rezar o Pai Nosso e cantar para os Praiás<br />
compõe hoje a cosmologia, a forma dos Pankararu perceberem e compreenderem o<br />
mundo.<br />
6.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS<br />
As danças cerimoniais Pankararu são marcadas pelas cantorias, indumentárias e<br />
pinturas corporais, bem como pelos vários instrumentos, como flauta, o maracá e o apito<br />
“rabo de tatu” (Relatório, 2000.18). São muito freqüentes e constituem a principal<br />
manifestação cultural e religiosa dos Pankararu.<br />
6.1.4.1.1. TORÉ<br />
Os grupos indígenas do Nordeste, quase na sua totalidade, adotaram a expressão<br />
Toré para suas danças cerimonias, mas cada um pratica o mesmo à sua forma, sendo<br />
comum a dança, cantorias e o uso de alguma bebida que geralmente é peculiar a cada<br />
grupo. Desta forma, os Pankararu também chamam de Toré sua dança tradicional, que<br />
além de ser realizada em datas específicas e expontâneas, sempre estão presentes nos<br />
demais rituais religiosos. No caso do Toré dos Pankararu, Torres (internet) faz uma<br />
excelente descrição:<br />
O Toré é dançado ao ar livre por homens, mulheres e crianças, em qualquer época<br />
do ano, dependendo apenas da disposição da comunidade. Para os Pankararu, o
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 113<br />
Toré é uma expressão de contentamento, um folguedo a que se entregam<br />
freqüentemente "se a vida não estiver muito difícil pela falta de chuva". Dança-se,<br />
de preferência, nos fins de semana "sem hora para terminar, varando noite e dia"<br />
em certas ocasiões.<br />
O local da dança é um terreiro onde os participantes, aos pares, formam um grupo<br />
compacto em formação circular que gira em torno do centro. Cada par, ao<br />
acompanhar o movimento do grupo, gira também em torno de si próprio e o terreiro<br />
é pisado furiosamente por todos marcando o ritmo da dança. Além do baque surdo<br />
dos pés, o ritmo é marcado por maracás (elaborados com pequenas cabaças) e pelas<br />
vozes em coro dos dançarinos. Os versos, de difícil compreensão, são "puxados"<br />
pelo guia do grupo e cantados em português mesclado com expressões do dialeto da<br />
tribo.<br />
6.1.4.1.2. MENINO NO RANCHO<br />
Este é o ritual de iniciação dos meninos do grupo nos segredos da sua religiosidade<br />
tradicional, quando os mesmos atingem cerca de doze anos de idade. A cerimônia tem<br />
lugar num rancho armado no centro da aldeia, especificamente para este fim, sendo o<br />
menino – ou meninos – pintado de branco e vestido de palha de croá. Dois grupos são<br />
formados para disputar a criança, um pelos praiás – protetores mágicos, que dançam<br />
vestindo suas indumentárias – e o outro pelos padrinhos do menino – que dançam pintados.<br />
Trava-se uma luta simbólica terminando sempre com a vitória dos praiás que introduzem o<br />
menino no poró, onde passa uma temporada servindo ao seu praiá, aprendendo da cultura,<br />
e quando também recebem o seu próprio praiá.. Como é um ritual tipicamente masculino,<br />
a única participação das mulheres é na cantoria, enquanto os homens lutam entre si. Mas<br />
devemos ressaltar aqui, que apesar das mulheres não participarem da dança ou disputa em<br />
si, sua participação é de fundamental importância pois sem as cantorias não se pode<br />
realizar o ritual. Uma informante de Torres (internet), da aldeia Brejo dos Padres, fez a<br />
seguinte explicação deste ritual:<br />
(...) é dedicada a Mãe D'água que ameaça roubar a criança. Temendo perder a<br />
criança, a mãe promove a festa para apaziguar a Mãe D'água. Os Praiás, que são<br />
em número de vinte e dois, são os padrinhos secretos da criança e escondem a sua<br />
identidade com longas vestes, cobrindo totalmente os seus corpos (...) No final, um<br />
banquete é servido a todos pela mãe da criança.<br />
Na pesquisa de campo não conseguimos constatar se este é realmente o fundo<br />
cosmológico do ritual 91 , pois não vimos nenhuma referência à Mãe D’Água. Contudo, não<br />
podemos descartar a possibilidade deste relato ser verdadeiro.<br />
6.1.4.1.3. DANÇA DO CANSANÇÃO<br />
91 A Dona Benvina é bastante resistente em dar informações sobre suas tradições e cultura, e como ela ocupa<br />
posição de respeito no grupo, tivemos dificuldade em colher maiores informações.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 114<br />
Há também a Dança do Cansanção, geralmente realizada no primeiro sábado do<br />
mês de março, quando as mulheres do grupo trazem do mato cestos cheios de umbu e os<br />
oferecem aos homens com os quais irão formar pares para os festejos. Estes com o corpo<br />
pintado de branco tentam, durante a dança, livrar-se dos golpes de galhos de cansanção 92<br />
que lhes são enviados. É uma prova de agilidade dolorosa para os perdedores.<br />
6.1.4.1.4. OUTRAS CERIMÔNIAS<br />
O grupo de <strong>Minas</strong> Gerais deixou de praticar várias outras cerimônias que em<br />
Pernambuco ainda são muito praticadas. Algumas foram abandonadas em virtude das<br />
diferenças geográficas e falta de produtos comuns à terra. Outras devido ao reduzido<br />
número de adultos que aqui vive. Entretanto, tais cerimônias fazem parte da cultura<br />
Pankararu e certamente voltarão a ser praticadas quando houver um grupo numericamente<br />
viável.<br />
Dentre outras, poderíamos destacar a Festa do Umbu, realizada no início do ano,<br />
quando aparecem os primeiros frutos do umbuzeiro. O primeiro fruto encontrado é trazido<br />
“ao dono do terreiro poente” e preso a um fio entre duas forquilhas, onde os índios tentam<br />
flechar o umbu. Os participantes se pintam de branco, usando vestes de palha de ouricuri<br />
ou croá, armados de arco e flecha. Aquele que consegue flechar o umbu recebe como<br />
prêmio um resistente cipó. Começa então a prova do puxamento do cipó, na qual um grupo<br />
ao lado do nascente procura arrastar outro colocado ao lado do poente.<br />
Há também a Dança dos Bichos, na qual os ganhadores são os que melhor<br />
conseguem representar os movimentos de animais como o porco, o cachorro, a formiga e o<br />
sapo.<br />
6.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS<br />
6.1.4.2.1. PRAIÁS<br />
“Os ‘praiás’, são os ‘encantados’, pessoas que têm o status de receberem espíritos<br />
dos ancestrais para curas, vidências e outras práticas espirituais” 93 . Na prática, tanto os<br />
espíritos dos ancestrais como os “encantados” que recebem estes espíritos são chamados de<br />
praiás. São estas entidades que protegem os Pankararu e os orientam quanto aos seus<br />
92<br />
Vegetal que traz tanto no seu caule como nas folhas, uma grande quantidade de espinhos que causam<br />
inchaço, coceira e queimação.<br />
93<br />
Em correspondência pessoal (28/05/02) do Missionário Élio Moraes, da MNTB, que trabalha com os<br />
Pankararu no Pernambuco.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 115<br />
rituais e tradições. Participam de todos os rituais praticados na aldeia, quando alguns<br />
homens do grupo pintam o próprio corpo e se vestem com as indumentárias feitas de croá –<br />
um saiote que cobre até os pés e uma máscara ou peruca, que cobre toda a cabeça, rosto e<br />
parte superior do corpo, de modo a ficar difícil identificar a pessoa durante a noite escura.<br />
Os homens se enfeitam fora da aldeia e ao adentrarem a mesma as mulheres e crianças<br />
devem acreditar que não são homens, pois quando estes recebem um praiá, eles se<br />
transformam no próprio praiá.<br />
A crença nos praiás é sem dúvida o ponto da sua religiosidade mais arraigado<br />
culturalmente. Não se sabe ao certo quantos destes seres compõem o universo cosmológico<br />
Pankararu, mas há indícios de que sejam em número de vinte e dois (Torres.Internet). Cada<br />
grupo possui um praiá como seu protetor, que no caso do grupo de <strong>Minas</strong> é o Apukaré, por<br />
isto o nome da sua aldeia. Sabe-se também que cada praiá possui seu canto e sua história<br />
(Caldeira, 2001c.37). Não dispomos de maiores informações acerca das peculiaridades<br />
destas entidades, mas tudo indica que os próprios Pankararu não se preocupam com estas<br />
informações.<br />
6.1.4.3. LOCAIS SAGRADOS<br />
6.1.4.3.1. PORÓ<br />
Os Pankararu não possuem uma “casa de religião”, pois o Toré é realizado ao ar<br />
livre, no terreiro, com a participação de todos, mas o poró para eles é sagrado. Trata-se de<br />
uma pequena clareira aberta na mata para os homens se arrumarem para as cerimônias<br />
(Relatório, 2000.18). É ali que eles colocam suas vestimentas rituais e saem como<br />
personificadores dos praiás. Isto acontece sempre antes dos rituais, quando fumam no<br />
cachimbo (campiô) e também ingerem a “garapa” ou “decitá” – caldo de cana, na ausência<br />
da qual, dissolvem a rapadura fazendo um caldo similar, que é o caso do grupo de <strong>Minas</strong> 94 .<br />
Nos intervalos da dança sempre retornam ao poró para ingerirem mais “garapa”. Neste<br />
local é terminantemente proibida a presença de mulheres, pois é ali que os homens<br />
recebem os praiás – ao que parece, no momento que fumam o cachimbo – e as mulheres<br />
não podem presenciar este momento. Na verdade, parece que a sacramentalidade deste<br />
local está mais relacionada ao costume de manter sigilo às mulheres quanto ao que<br />
acontece ali 95 .<br />
94 Segundo a indigenista Geralda Soares, que atualmente tem dedicado seus trabalhos aos Pankararu e Aranã.<br />
Em entrevista do dia 11/07/02.<br />
95<br />
Em correspondência pessoal (28/05/02), o missionário Élio Moraes, afirmou ser este costume muito<br />
semelhante ao exibido no filme “ee-taow”, do povo Mouk da Papua Nova Guiné, e ressaltou que lá, em
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 116<br />
É na mata que o índio faz sua concentração e depois vem para dançar. Nós<br />
fumamos o Campiô (cachimbo) para honrar o Ar, os Mestres. Em fevereiro e<br />
março, temos a dança da cansanção. Eu incentivo os mais novos, as crianças, a<br />
conhecerem nossa cultura (Thidêwá.Internet).<br />
6.1.4.3.2. RANCHO<br />
Consiste numa pequena cabana, quadrada, com quatro forquilhas e coberta por<br />
capim. É construído especificamente para a festa “Menino no Rancho”, e por isto seu<br />
caráter sagrado é temporário – apenas durante a cerimônia. Fica exatamente no centro da<br />
aldeia, podendo ser destruído ao final da cerimônia ou não. Neste caso, é reconstruído<br />
quando de outra cerimônia. Ali o menino é introduzido para ser disputado pelos padrinhos<br />
e praiás, quando simbolicamente são passados a ele os segredos tradicionais do grupo.<br />
6.1.5. ESTUDO DE PODER SOCIAL<br />
Como o grupo Pankararu de <strong>Minas</strong> é composto apenas por uma família, é natural<br />
que os progenitores exerçam liderança, pois os demais são filhos e netos. Desta forma, a<br />
liderança natural seria do senhor Eugênio, chefe da família, pois no povo Pankararu a<br />
liderança é exercida por homens. Entretanto, o mesmo ficou cego e isto tem limitado a sua<br />
atuação. Assim, a dona Benvina tornou-se a principal articuladora do grupo e tem exercido<br />
uma autoritária liderança, a ponto de quase causar uma nova cisão no pequeno grupo. Ela é<br />
extremamente tradicional, prezando pelos seus costumes e rejeitando até ajuda externa, o<br />
que vem causando sérias discussões entre ela e principalmente seu filho Ivan, que tem<br />
como aliado suas duas irmãs. Apesar de exercer esta forte liderança, não há um título<br />
atribuído à posição da dona Benvina, o que indica o costume de liderança masculina e não<br />
feminina do povo.<br />
Entretanto, como existem rituais dos quais a mulher não pode participar, o líder<br />
religioso precisa ser necessariamente um homem. Assim, mesmo cego o senhor Eugênio<br />
tem desempenhado a função de pajé do grupo, pois sendo o mais idoso é detentor dos<br />
segredos da sua religião.<br />
Outra pessoa que tem se destacado na comunidade é a Cleonice, pelo fato de ser<br />
AIS – Agente <strong>Indígena</strong> de Saúde. Apesar de não ter sido formada pelo projeto<br />
governamental de assistência na área de saúde aos indígenas – FUNASA – a mesma seria<br />
submetida a um treinamento complementar para passar a atuar como tal. Seu irmão Ivan,<br />
Pernambuco, “a questão das mulheres não poderem saber quem está dentro da roupa é levado muito à sério”.<br />
Uma índia ficou “olhando na espreita, um índio se vestir e o resultado foi desastroso. Segundo essa índia, ela<br />
adoeceu por um ano e não quer mais saber de descobrir quem está vestindo aquela roupa”.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 117<br />
também tem recebido destaque somente pelo fato de estar estudando para se tornar um<br />
professor indígena. Ele possui uma reconhecida capacidade de articulação e tudo indica se<br />
tornar futuramente o líder do grupo.<br />
Vale aqui ressaltar, que em Pernambuco eles continuam tendo como líderes o<br />
cacique e o pajé, os quais parecem ser escolhidos pelos praiás. A afirmação do Pankararu,<br />
Zé Índio, do Brejo dos Padres, indica este estreito relacionamento entre cacique e praiá:<br />
“No segredo de nossa religião se sabe, os Encantados sabem quem é o verdadeiro Cacique,<br />
sabem que eu represento ele” (Thydêwá.Internet).<br />
6.1.6. OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS<br />
A fabricação de artesanatos tem sido bastante intensa na comunidade Pankararu, os<br />
quais são usados tanto para enfeite pessoal, principalmente no momento do Toré e demais<br />
cerimônias, como para comercialização como meio de angariar recursos para sua<br />
subsistência. Além disto, poderíamos destacar também a posse comunitária da terra,<br />
comum em todos os grupos indígenas, sua convicção e opção de serem e permanecerem<br />
“diferentes” da sociedade externa, entretanto, é sem dúvida a sua religiosidade a principal<br />
manifestação cultural.<br />
6.1.7. SOBREVIVÊNCIA<br />
Sua economia está centrada na realização da agricultura familiar de subsistência,<br />
produzindo principalmente feijão, milho e mandioca. Criam animais de pequeno porte<br />
como porcos e galinhas, e além de contarem com a venda de artesanatos, recebem cestas<br />
básicas. Se valem também da aposentadoria dos dois idosos – Eugênio e Benvina – e do<br />
salário da agente indígena de saúde – Cleonice. Enquanto estuda para professor indígena,<br />
Ivan presta esporadicamente serviços como pedreiro na região e o Cláudio estava na<br />
expectativa de ser contratado pela FUNAI como agende sanitário para cuidar da água.<br />
6.1.8. PROBLEMAS SOCIAIS<br />
Por ser um grupo pequeno, os Pankararu de <strong>Minas</strong> vivem relativamente bem, sem<br />
maiores dificuldades. O problema real que enfrentam atualmente é a educação das<br />
crianças, pois devido ao reduzido número não podem participar do Programa de<br />
Implantação de Escolas <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais. A única opção para eles seria colocar<br />
estas crianças para estudar em Coronel Murta, a 7 km, mas tem a questão de ser escola
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 118<br />
convencional o que não é ideal para as crianças que vivem num ambiente totalmente<br />
diferente e num período de resgate cultural. Ainda tem o problema de transporte.<br />
Um outro problema seria o de saúde, pois mesmo a cidade de Coronel Murta não<br />
oferece um bom atendimento – nem convencional, quanto menos diferenciado. Assim eles<br />
precisam se deslocar para Araçuaí, a 37 km. Apesar de terem a Cleonice, ela é apenas<br />
agente de saúde, trabalhando mais na área preventiva. Por enquanto, este problema não é<br />
difícil de ser contornado, mas à medida que a população crescer certamente se tornará uma<br />
grande dificuldade. Logo precisarão de mais terras também, pois a que hoje possuem não é<br />
suficiente para um grupo muito maior.<br />
6.1.9. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
Não há qualquer presença missionária, bem como nenhum convertido ao<br />
evangelho. Apesar da quantidade de igrejas nas duas cidades próximas – Coronel Murta e<br />
Araçuaí – ser consideravelmente grande, nenhuma tem se sensibilizado pelo desafio de<br />
evangelizar aquele grupo. O único trabalho evangélico ali atuante é o do GTME, que<br />
através da Igreja Metodista participou ativamente no processo de articulação por terras,<br />
vindo posteriormente até a doar os 8 ha. para complementar a doação da Igreja Católica.<br />
Coordenado pela pastora Zélia Soares da Igreja Metodista de Governador Valadares, o<br />
trabalho do GTME ali se limita ao assistencialismo, através da atuação da indigenista<br />
Geralda Soares 96 .<br />
6.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
As possibilidades de um trabalho missionário entre os Pankararu são grandes e<br />
necessárias, mesmo se tratando de um grupo tão reduzido. Suas características culturais e<br />
sua religiosidade tão vivas, são indicadores da necessidade de um trabalho específico com<br />
eles. Entretanto, é preciso estar ciente que o fato de ser um grupo pequeno não eqüivale<br />
dizer que um trabalho com eles é mais fácil do que com outros grupos maiores. Aliás, a<br />
resistência pode ser ainda maior, dado à necessidade de reafirmar suas tradições.<br />
A líder Benvina certamente seria oposta a qualquer tentativa de aproximação com<br />
objetivo de evangelização, dado às suas fortes convicções e autoritarismo, e ela pode<br />
perfeitamente influenciar o restante do grupo. Logo, uma opção seria a aproximação do<br />
96 Geralda Soares tem atuado ali como obreira do GTME.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 119<br />
grupo via assistencialismo, mas uma outra possibilidade pode ser também muito viável. A<br />
Missão Novas Tribos do Brasil tem um trabalho em pleno andamento com o grupo<br />
principal de Pernambuco. Talvez seja possível promover a mudança de uma família<br />
convertida e madura na fé do Brejo dos Padres para cá, pois assim haveria menos<br />
resistência. Não sabemos, entretanto, se isto seria realmente possível pelo fato do grupo de<br />
<strong>Minas</strong> não manter qualquer relacionamento com o grupo de Pernambuco.<br />
6.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
Tanto Coronel Murta como Araçuaí seria boas opções, levando em consideração<br />
que a primeira, apesar de distar apenas 7 km, possui pouca infra-estrutura, enquanto<br />
Araçuaí já é bem mais estruturada. Inclusive, a indigenista Geralda Soares optou por<br />
residir nesta última cidade, onde possui maiores possibilidades de articulação.<br />
6.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
Araçuaí possui boas e bem estruturadas igrejas, como a Batista, Presbiteriana e<br />
Assembléia de Deus. Coronel Murta também possui algumas igrejas. A questão básica é a<br />
falta de consciência e visão missionária. Um intenso trabalho de conscientização seria<br />
necessário.<br />
6.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA<br />
A questão dos praiás demanda uma atenção especial, se fazendo necessário um<br />
estudo sério da cosmologia Pankararu para saber como abordar esta delicada e arraigada<br />
questão. Uma teologia de espíritos será de extrema importância, pois certamente as<br />
principais “perguntas” virão desta área, exigindo assim respostas sólidas e de profundidade<br />
bíblica, para evitar um possível sincretismo como acontece com o catolicismo. Aliás, este<br />
sincretismo em si também demanda atenção especial, pois demonstra a capacidade do<br />
grupo em aceitar conceitos diametralmente opostos, com naturalidade e praticar ambos,<br />
ainda que de forma superficial.<br />
6.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS<br />
6.2.4.1. EDUCAÇÃO
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 120<br />
Enquanto uma escola indígena não é implantada no grupo, um profissional do<br />
ensino certamente teria uma grande aceitação por eles para trabalhar com as crianças. Seria<br />
possível montar um currículo inclusive diferenciado, com aulas de cultura e história<br />
Pankararu dada pelos próprios adultos do grupo, ficando o profissional com as matérias<br />
mais técnicas. As crianças estão quase todas dentro de uma mesma faixa etária, o que<br />
facilitaria o trabalho.<br />
6.2.4.2. EVANGELISMO E DISCIPULADO<br />
Dado ao nível de influência da cultura externa e ao fato de falarem somente o<br />
português, nada impede uma abordagem direta de evangelismo, como os missionários da<br />
MNTB tem feito no Pernambuco 97 . Como já foi dito, neste caso a provável dificuldade<br />
seria a resistência, principalmente da dona Benvina, por evitar influências externas.<br />
97 Em correspondência pessoal do missionário Élio Moraes, do dia 28/05/02.
7. OS XUKURU-KARIRI<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 121<br />
Eu quero saber se nesse programa tem terra! Porque o<br />
problema de todo o mundo é a terra. O nosso problema é a terra!<br />
Warkanã D’Aruanâ 98<br />
7.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
Marcados por longos anos de luta por seu território tradicional e por uma história<br />
de opressão e massacres tanto étnico como cultural, o afã dos Xukuru-Kariri é conseguir<br />
viver em paz num território que lhes pertença, onde possam viver os valores da sua cultura<br />
sem qualquer intervenção externa. Convencidos de que isto só seria possível quando<br />
obtivessem suas próprias terras, concentraram todos os seus esforços na luta por este bem<br />
comum. Após alguns anos de instabilidade e conflitos, peregrinando por vários lugares e<br />
regiões, o grupo do cacique Warkanã D’Aruanâ (“onça pintada”) ou José Sátiro, como é<br />
conhecido pela sociedade externa, migrou finalmente para <strong>Minas</strong> Gerais, onde encontrou<br />
terra e paz, buscando se estabilizar tanto política, como sócio, econômica e culturalmente.<br />
Com traços muito peculiares e característicos de uma cultura diferenciada, os<br />
Xukuru-Kariri de <strong>Minas</strong> têm atraído a atenção da sociedade externa e com a mesma vem<br />
convivendo pacificamente, enquanto no seu contexto interno lutam para reafirmar sua<br />
cultura e religiosidade, que lhes é patente. Vivendo agora em uma região bastante diferente<br />
da sua terra tradicional, com um clima tão distinto, eles enfrentam certas dificuldades de<br />
adaptação, mas seguem com plena convicção de que serão bem sucedidos.<br />
7.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
7.1.1.1. SITUAÇÃO DEMOGRÁFICA E ORIGEM ÉTNICA<br />
Os Xukuru-Kariri de <strong>Minas</strong> consistem em um grupo pequeno, somando hoje cerca<br />
de setenta pessoas, quase todas parentes, sendo uma pequena facção do seu povo que<br />
habita o Estado de Alagoas. Há uma outra facção também com cerca de setenta pessoas<br />
98 Em Caldeira (2001d.20).
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 122<br />
vivendo em Paulo Afonso, na Bahia, que sendo aliada desta de <strong>Minas</strong> negocia a sua união<br />
com a mesma, o que deve acontecer dentro de pouco tempo.<br />
O grupo de <strong>Minas</strong> tem sua origem nos conhecidos Xukuru-Kariri de Palmeira dos<br />
Índios, no Estado de Alagoas onde se constituem em um povo com cerca de duas mil<br />
pessoas, dividido em três principais facções. O faccionalismo 99 é uma das características<br />
marcantes deste povo, que tem sua história marcada por conflitos internos e divisões.<br />
Como o nome já indica, a origem étnica deste povo se deve à união de dois grandes povos<br />
originários da região de Pernambuco – os Xukuru – e de Alagoas – os Kariri Wakonã. Isto<br />
se deu pela atuação de missões católicas naquela região ainda no século XVIII, que aldeou<br />
estes dois povos exatamente no local onde hoje é a cidade Palmeira dos Índios. Através do<br />
convívio forçado, que resultou numa miscigenação étnica por meio de casamentos<br />
interétnicos, estes dois povos se fundiram nos hoje conhecidos como Xukuru-Kariri. No<br />
século XIX houve ainda um forte processo de miscigenação deste grupo, que já se<br />
mesclava, com camponeses nordestinos pobres de várias regiões (Oliveira Júnior. Internet).<br />
Na região de Palmeira dos Índios eles se dividem em três principais facções, em<br />
torno das famílias Santana e Celestino. Os Santana são influentes na Fazenda Cafurna,<br />
enquanto os Celestino na Fazenda Canto. Na década de 1990, uma cisão destes últimos deu<br />
origem a uma terceira facção em torno de Manoel Selestino, ex-cacique da Fazenda Canto.<br />
Os conflitos destes grupos culminaram no assassinato do cacique Luzanel Ricardo,<br />
sucessor de Manoel no cacicado da Fazendo Canto em dezembro de 1994. Com a<br />
intensificação destes conflitos, alguns grupos menores migraram para outras regiões, sendo<br />
um destes liderado por Warkanã de D’Aruanâ, também conhecido como José Sátiro, que<br />
assumiu a posição de cacique do grupo que o seguiu. Quando deixaram Palmeira dos<br />
Índios desceram rumo à Bahia onde se alojaram primeiro no município de Paulo Afonso e<br />
depois em Botirama. Ali ocorreram novos conflitos, o que ocasionou a migração da família<br />
de Warkanã para <strong>Minas</strong> Gerais em 1998, onde solicitaram à FUNAI a aquisição de uma<br />
terra para o assentamento definitivo do grupo. Enquanto a situação estava sendo avaliada,<br />
o grupo se fixou temporariamente no município de São Gotardo e finalmente em 2001<br />
foram transferidos em caráter definitivo para o município de Caldas (Caldeira, 2001d.20).<br />
7.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
99 Sobre isto consultar o texto de Adolfo Alves de Oliveira Júnior: “Faccionalismo Xukuru-Kariri e a Atuação<br />
da FUNAI”. Ver OLIVEIRA JÚNIOR nas Referencias Bibliográficas.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 123<br />
Ao que parece, a família étnica é formada pelos Xukuru-Kariri e os Kariri-Xocó de<br />
Alagoas, os Xukuru de Pernambuco, os Kariri do Ceará e os Kiriri da Bahia. É possível<br />
que tenham algum grau de parentesco também com os Xokó do Sergipe.<br />
7.1.2. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL<br />
A aldeia Xukuru-Kariri de <strong>Minas</strong> se localiza no município de Caldas, sul do<br />
Estado, na região da cidade de Poços de Caldas. A aldeia está numa fazenda a 7 km da<br />
cidade de Caldas que dista, por sua vez, cerca de 510 km de Belo Horizonte. Se trata de<br />
uma fazenda com 101 hectares, de posse da União, destinada ao assentamento definitivo<br />
do grupo. Da aldeia até uma rodovia são apenas 2 km, sendo assim um local de fácil<br />
acesso. O grupo fixou residência onde era a antiga sede da fazenda, fazendo uso das<br />
residências de alvenaria que já existiam. Segundo o filho do cacique, Clarismõn (sol)<br />
também conhecido como Jânio 100 , o grupo tem costume de morar em cabanas de lona, mas<br />
como a região é bastante fria, chegando à noite até a zero grau, faz-se necessário casas de<br />
alvenaria, o que inclusive tem retardado a vinda do grupo que ainda está na Bahia, pois não<br />
têm condições de construir casas.<br />
7.1.3. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA<br />
Os Xukuru-Kariri pertencem ao tronco Macro-Jê, família Kariri e língua Kariri<br />
(Prezia, 2000.231), mas apenas poucas pessoas ainda detêm o conhecimento e domínio<br />
parcial da mesma. Todos são falantes do português sendo esta a língua usada no seu dia-a-<br />
dia. Entretanto, num esforço deliberado de reafirmação cultural, eles desejam que em um<br />
futuro próximo todo o grupo domine a língua tradicional, e assim, têm o projeto de ensinar<br />
a mesma de forma sistemática para as crianças e adultos assim que conseguirem criar uma<br />
escola na aldeia. Já possuem duas professoras indígenas e o próprio Clarismõn é o<br />
responsável pelo ensino da língua.<br />
7.1.4. RELIGIOSIDADE<br />
Sendo aldeados e catequizados por missionários católicos desde o século XVIII, os<br />
Xukuru-Kariri incorporaram em sua religiosidade muitos aspectos do catolicismo,<br />
principalmente a veneração de Maria e de alguns outros santos. Consequentemente<br />
perderam também muito das suas crenças e tradições religiosas do passado, tornando-se<br />
sincretistas com fortes aspectos animistas. Apesar de terem incorporado vários aspectos do<br />
100 Em entrevista do dia 19/03/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 124<br />
catolicismo, fazem questão de distinguir entre este e a sua própria religião, como se pode<br />
perceber nas palavras da índia Tânia (Thydêwá.Internet):<br />
Meu nome é Tânia, tenho 35 anos, sou índia Xukuru-Kariri, da Aldeia Mata da<br />
Cafurna e sou professora da mesma a 15 anos (...) Procuro separar muito os<br />
costumes do Catolicismo dos costumes da cultura indígena. Eu sinto muito quando<br />
eles afirmam ser católicos e adorar imagens.<br />
Alguns traços animistas são bem evidentes no grupo e nas suas cerimônias<br />
religiosas. Suas crendices são mantidas sob um rígido sigilo tornando difícil uma análise<br />
das mesmas. Eles não permitem em hipótese alguma a presença de não-índios nos seus<br />
rituais, com exceção de um, o Toré, e são proibidos de relatar os mesmos. Evitam até<br />
comentar sobre seus costumes religiosos.<br />
7.1.4.1. DANÇAS CERIMONIAIS<br />
7.1.4.1.1. TORÉ<br />
Como se trata de uma cerimônia comum a todos os grupos do Nordeste, o Toré é a<br />
única dança aberta a todos e sobre a qual eles têm liberdade de comentar. Consiste numa<br />
dança em círculo, quando todos entoam suas cantorias na língua tradicional que se<br />
harmonizam com os vários instrumentos usados, marcando compasso com o pisar forte no<br />
chão. O líder do grupo inicia a dança e todos o acompanham, usando instrumentos como o<br />
maracá, flauta e os que o grupo dispuser. Como andam sempre com o corpo pintado, para o<br />
Toré, bem como para qualquer outra cerimônia, se enfeitam com uma indumentária<br />
apropriada para o momento. Sempre que são convidados para fazer apresentações em<br />
escolas ou qualquer local público, é o Toré que exibem. Parece que este ritual possui mais<br />
um aspecto folclórico do que propriamente religioso.<br />
7.1.4.1.2. RITUAIS SAGRADOS<br />
Os rituais sagrados são mantidos em absoluto segredo e nem mesmo os nomes são<br />
revelados. São realizados num local sagrado dentro da mata onde não-índios não podem<br />
em hipótese alguma se aproximar. Falando dos rituais dos antigos Kariri do São Francisco,<br />
Prezia (2000.156) menciona o Warakidzã, como um dos rituais sagrados deste povo. É<br />
provável que haja rituais semelhantes ou relacionados ainda hoje, mas na nossa pesquisa de<br />
campo não foi possível constatar e parece não haver nenhuma literatura sobre tais rituais.<br />
De qualquer forma, vale citar as palavras de Prezia:
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 125<br />
Um dos principais rituais era o do Warakidzã, que durava de três a quatro dias e<br />
ocorria na época do amadurecimento do coquinho do ouricuri, alimento preferido<br />
do porco-do-mato. Nessa ocasião, Warakidzé descia da estrela Orion, como<br />
“encantado”, na figura de um jovem formoso, exigindo enfeites de penas e<br />
determinando a perfuração dos lábios dos adolescentes.<br />
Eles praticam também um ritual de iniciação, sobre o qual Clarismõn comentou<br />
com reservas e superficialmente 101 , sendo contudo, possível ter uma idéia:<br />
A religião da gente, agente não revela, por que é nossos costumes, dos nossos<br />
antepassados. É praticada dentro das matas. Existe um período que agente passa de<br />
trinta a sessenta dias lá com os mais novos que não tem o conhecimento. Mas mais<br />
adiante eu num posso passar pra você (...) O mesmo que tinha a trezentos anos<br />
atrás, ainda existe hoje.<br />
7.1.4.2. ENTIDADES ESPIRITUAIS<br />
Apesar de todo o sigilo, foi possível constatar em nossa pesquisa que eles crêem em<br />
uma entidade chamada Dejuá-lhá, à qual atribuem a criação de tudo e o governo do<br />
mundo. Afirmam ser o mesmo “deus dos brancos”, apenas com nome diferente. Este ocupa<br />
o cume da hierarquia no panteão de entidades que habitam seu mundo espiritual, tendo sob<br />
seu controle um número indeterminados de entidades inferiores com as quais eles se<br />
relacionam. Estas são mediadoras entre eles e Dejuá-lhá. Novamente, o comentário de<br />
Clarismõn 102 dá uma leve idéia desta realidade:<br />
Dejuá-lhá, Deus que criou tudo (...) tem o principal e tem os outros que agente<br />
também pede aquilo com o coração, então eles vão levar a mensagem para o<br />
principal (...) só existe um Deus no mundo, pra todas as pessoas, que seja índio,<br />
branco, negro... existe um Deus só.<br />
Prezia (2000.156) fala também sobre algumas entidades que eram veneradas pelos<br />
antigos Kariri do São Francisco, sendo possível que pelo menos algumas destas sejam<br />
veneradas pelos Xukuru-Kariri:<br />
101 Idem.<br />
102 Idem.<br />
Entre as entidades veneradas pelos Kariri destaca-se Nhinhó, criador do mundo e do<br />
povo Kariri; Badzé ou Padzu, deus da floresta e do fumo que teve dois filhos:<br />
Poditã, deus da caça, e Warakidzé, deus da chuva. Quem desrespeitasse essas<br />
entidades poderia receber um castigo de morte dado através do bisamu ou pajé.
7.1.4.3. SINCRETISMO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 126<br />
Apesar dos sinais de animismo serem tão evidentes, a influência católica na sua<br />
cosmovisão também é muito forte. Torres (internet) registra as palavras de um índio<br />
Xukuru chamado Antero, que são sugestivas:<br />
Nos tempos dos índios inocentes, encontraram a imagem de Nossa Senhora num<br />
tronco de jucá, os padres levaram então, a Santa para a Igreja, mas a Santa voltou<br />
para o tronco de jucá. 103<br />
Pelo que parece, na figura de Maria está concentrada a influência católica e<br />
curiosamente eles consideram Palmeira dos Índios como “Terra do Nosso Senhor” e <strong>Minas</strong><br />
Gerais como “Terra da Nossa Senhora” 104 . Em uma sondagem feita pelos missionários<br />
Ebenézer e Adriana Leal (s.d.4), da Missão Novas Tribos do Brasil, nos índios Xukuru de<br />
Pesqueira, constataram a seguinte entidade na sua cosmologia:<br />
“Mãe Tamaim” ou “N. S. ª das Montanhas”, uma versão de Maria, santa dos<br />
católicos, que foi vista por três crianças em um certo local na Vila de Cimbres,<br />
tendo esta aldeia como o lugar de adoração dessa divindade. Outros santos católicos<br />
também são venerados pelos Xucurus, porém, com menos intensidade.<br />
7.1.4.4. LOCAL SAGRADO<br />
Como já comentamos, eles possuem um local sagrado que se localiza na mata e ao<br />
que parece não se trata de uma construção, mas sim de uma clareira. Chama-se oricuri e<br />
não-índios não tem acesso a este local que parece ser freqüentado por eles apenas nos<br />
rituais. Todos os seus rituais sagrados são realizados lá. Algumas vezes a palavra oricuri<br />
tem sido atribuída a um ritual, mas as palavras de um índio de Palmeira dos Índios, da<br />
facção da família Celestino, deixam claro se tratar de um local e não de um ritual:<br />
Temos uma outra aldeia que é o nosso "Oricuri", que é na mata, essa mata tem<br />
importância para nós, pois sem ela não poderíamos manter nossa religião e nossos<br />
rituais, lá podemos nos reunir e descansar, debater assunto que só a nós interessa, é<br />
onde buscamos nossas ervas medicinais, que usamos para curar doenças conhecidas<br />
e misteriosas.<br />
Como poderíamos manter nossa religião sem nossa mata, onde tem os encantos e<br />
mistérios que só nós temos o prazer de compartilhar com nossos irmãos indígenas,<br />
hoje Kariri-Xocó? (Thydêwá.Internet).<br />
7.1.5. ESTUDO DE PODER SOCIAL<br />
O grupo de <strong>Minas</strong> tem uma liderança fortíssima na pessoa do cacique Warkanã<br />
D’Aruanâ, também conhecido como José Sátiro, o qual possui uma notável capacidade de<br />
103 Os Xacriabá têm uma lenda muito parecida, sobre o São João dos Índios (cf. 2.1.3.2.2. 2ª Parte).<br />
104 Clarismõn, numa palestra na Universidade Federal de Viçosa, em 11/06/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 127<br />
articulação política, não apenas dentro do grupo, mas também começa a ter na sociedade<br />
regional. Com uma expressiva oratória, tem sido convidado para dar palestras em vários<br />
locais e em reuniões importantes. Em junho de 2002, foi convidado para palestrar na<br />
Universidade Federal de Viçosa, quando a mesma realizava uma semana de palestras sobre<br />
a questão social. Tem participado ativamente do movimento indígena e dos encontros<br />
relativos à questão indígena em nível estadual e nacional, construindo rápida e boa relação<br />
com as outras etnias do Estado. É possível perceber a perspicácia do cacique Warkanã nas<br />
suas próprias palavras, registradas por Caldeira (2001d.21):<br />
O programa de formação entre SETASCAD, FADEMA e Conselho dos Povos<br />
<strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais já começou certo, uma vez que foi elaborado por nós<br />
mesmos e prevaleceu no programa o respeito a nós, povos indígenas. Confiamos<br />
neste trabalho, pois o mesmo tem fortalecido as discussões quanto à nossa<br />
autonomia e à firmação do nosso Conselho no Estado de <strong>Minas</strong> Gerais.<br />
Desponta-se também a liderança do vice-cacique Clarismõn, também conhecido<br />
como Jânio, que sendo filho do cacique Warkanã está sendo preparado pelo pai para<br />
assumir futuramente a liderança do grupo. Este é jovem ainda, mas também com um<br />
notável poder de articulação e liderança. Conhecedor da língua, da religiosidade, dos<br />
costumes culturais que preservaram e aprendendo com o pai as artimanhas políticas tanto<br />
internas como externas, tem substituído Warkanã na liderança do grupo quando este se<br />
ausenta, bem como em encontros e até palestras quando o mesmo não pode comparecer. A<br />
esposa do cacique e mãe de Clarismõn, a índia Tãira, ou Josefa, também tem exercido<br />
liderança sobre o grupo, na ausência do seu esposo e do seu filho. O pajé do grupo ainda<br />
está na Bahia, mas em negociação de transferência para <strong>Minas</strong>, com o restante do grupo.<br />
Enquanto isto, Warkanã acumula a função de cacique e pajé, visto ser também conhecedor<br />
dos segredos da religião tradicional.<br />
Segundo Oliveira Júnior (internet), em Alagoas, além do cacique e do pajé, o povo<br />
conta com liderança do conselho tribal, responsável pela intermediação entre o grupo e o<br />
gestor local da assistência do órgão indigenista. Mas como aqui se trata de um grupo<br />
reduzido, este último não se fez necessário ainda.<br />
7.1.6. OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS<br />
7.1.6.1. ENFEITES CORPORAIS E INDUMENTÁRIAS<br />
Os Xukuru-Kariri possuem um estilo de enfeitar o corpo muito peculiar e curioso,<br />
se destacando dos demais grupos do Estado. Enquanto alguns grupos pintam apenas o rosto
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 128<br />
– como os Maxakali – ou também os braços – como os Pataxó – eles pintam todo o corpo,<br />
do tornozelo ao pescoço, e também o rosto. Usam uma tinta preta, feita de jenipapo para<br />
pintar o corpo com formas geométricas diversificadas, tinta esta que fica impregnada na<br />
pele, pois estão sempre retocando. No corpo usam sempre a cor preta, enquanto no rosto<br />
usam vermelho. O vermelho simboliza o “sangue derramado” dos seus bravos guerreiros<br />
que no passado morreram defendendo o seu povo, e o preto simboliza “luto” pelos muitos<br />
que morreram. Enquanto no corpo usam riscos poligonais, no rosto fazem as vezes malhas<br />
mesclando o preto e vermelho, ou então riscos horizontais. As mulheres às vezes pintam o<br />
rosto com circunferências.<br />
Usam também grandes enfeites de penas que alguns colorem com cores variadas<br />
dando um aspecto de singular beleza. Alguns homens usam grandes penas presas ao braço<br />
que se estendem até a altura da cabeça e algumas mulheres enfeitam seus sutiãs também<br />
com penas. Usam variados tipos de colares e pulseiras, sendo que as mulheres preferem a<br />
madeira e sementes, enquanto os homens preferem dentes de animais que eles abateram.<br />
Certamente são os enfeites de osso que dão uma maior peculiaridade aos Xukuru-<br />
Kariri quanto aos enfeites corporais. Além dos belos colares e pulseiras de presas de<br />
animais, são peritos no manuseio de osso para a fabricação de enfeites variados. Alguns<br />
jovens perfuram as orelhas com várias pequenas peças de osso e como brinco usam dentes<br />
de duas raízes, sendo que uma perfura a pele. Clarismõn e alguns outros têm o nariz<br />
perfurado com três pontiagudas peças de osso. Duas, de aproximadamente 3 cm, perfuram<br />
o nariz no sentido vertical, de cima para baixo, ficando duas pequenas e obtusas pontas<br />
para cima e duas pontiagudas pontas saindo de dentro das vias nasais. Como suporte destas<br />
últimas, uma peça fina, de aproximadamente 7 cm, perfura o nariz em sentido horizontal,<br />
deixando uma pontiaguda extremidade de cada lado. Isto lhe confere uma aparência<br />
guerreira e feroz.<br />
Em épocas especiais, como nas apresentações ou representações que fazem em<br />
cidades, usam sobre suas bermudas um saiote de palha ou de capim, sendo o das mulheres<br />
na altura dos joelhos e o dos homens na altura dos tornozelos. Alguns, como Clarismõn,<br />
portam ainda uma bela lança de madeira, que lhe confere um aspecto de autoridade.<br />
7.1.6.2. PRODUÇÃO ARTESANAL<br />
Produzem artesanato em abundância tanto para enfeites ou uso pessoal, como para<br />
comercialização. Dentre os muitos, podemos citar variados tipos de lanças, arco e flecha,<br />
maracás, vários tipos de chocalhos, abundantes e variados colares, principalmente de
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 129<br />
sementes, madeira e coco, saiotes de capim, muitos enfeites de pena, sutiãs diversos,<br />
gamelas e outras vasilhas de madeira, e várias peças feitas de asas secas de pássaros. Ao<br />
contrário de alguns grupos, eles valorizam este material produzido, colocando as vezes até<br />
preços exorbitantes nos mesmos.<br />
7.1.6.3. NOMES INDÍGENAS<br />
Como forma de afirmação cultural, todas as pessoas da aldeia possuem um nome<br />
indígena, cada um com seu respectivo significado, além do nome não-indígena. Desta<br />
forma, há nomes como os já citados e outros:<br />
Nome Nome Significado Quem é<br />
Não-indígena <strong>Indígena</strong><br />
José Sátiro Warkanã D’Aruanâ “onça pintada” cacique<br />
Jânio Clarismõn “sol” filho do cacique (vice-cacique)<br />
Josefa Tãira esposa do cacique<br />
José Antônio Taquari sobrinho do cacique<br />
Taiuanê. Filha de Taquari<br />
Ayrã adolescente do grupo<br />
7.1.7. SOBREVIVÊNCIA<br />
Eles tentam vender este artesanato produzido aos visitantes da aldeia e em<br />
exposições ou apresentações nas cidades onde vão, mas além da produção artesanal,<br />
investem também na produção agrícola de subsistência, “tendo a família nuclear como<br />
unidade primária de produção e consumo, coadjuvada por práticas inter-familiares de<br />
auxílio mútuo” (Oliveira Júnior.Internet). Os principais produtos são milho, feijão,<br />
mandioca e batata-doce, mas desde que mudaram para <strong>Minas</strong> vêm tendo problemas com a<br />
produção. Como a região e clima são muito diferentes, ainda não conseguiram produzir em<br />
quantidade satisfatória. Quando para aqui mudaram, perderam toda uma semeadura por ter<br />
feito na época errada. Não há indígenas funcionários do governo, como na maioria das<br />
outras tribos do Estado, pois não têm escola e a assistência de saúde é recente. Também<br />
não têm idosos aposentados, pois o grupo é formado por pessoas relativamente novas.<br />
Desta forma, a alimentação é o principal problema que estão enfrentando aqui em <strong>Minas</strong>.
7.1.8. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 130<br />
Não há missionários trabalhando com este grupo e nenhum convertido entre eles.<br />
Parece que algumas igrejas evangélicas já estiveram dirigindo cultos esporádicos na aldeia,<br />
mas não passou disto. Até onde constatamos através de sondagem nas igrejas da cidade de<br />
Caldas, não há nenhum projeto de evangelização direcionado a este grupo, mesmo porque<br />
são recém-chegados na região, algo totalmente novo e inusitado para as igrejas e população<br />
regional.<br />
7.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
Sem dúvidas existem chances reais de abordagens missionárias neste grupo de<br />
Xukuru-Kariri aqui residente, principalmente neste tempo de adaptação à nova região onde<br />
fixaram residência definitiva. Mas é preciso estar ciente que apesar da abertura do cacique,<br />
bem como de todo o grupo, para o diálogo com a sociedade externa, quando se trata de<br />
religião os mesmos são bastante resistentes. As palavras se Clarismõn 105 são denunciadoras<br />
neste sentido:<br />
Qualquer pessoa que seja de uma religião, ela venha falar da Palavra de Deus diante<br />
da nossa comunidade, agente está sempre de porta aberta pra aceitar. Agente só<br />
num aceita induzir a cabeça de nossos índio jovens, por que agente já nascemos<br />
com uma religião, então agente não pode deixar de acreditar numa religião que vem<br />
de muitos anos atrás pra acreditar em outra religião. Agora, sempre acreditando<br />
porque só existe um Deus no mundo, pra todas as pessoas, que seja índio, branco,<br />
negro... existe um Deus só. Agora existe costume que são diferente. Existe pastores<br />
que vem aqui na nossa aldeia, fala com meu pai que é o cacique, fala com ele se dá<br />
pra vim fazer um culto aqui. Meu pai sempre: as porta estão aberta, só num aceito<br />
induzir a cabeça de nenhum índio.<br />
Outro fato, é que o cacique Warkanã é cheio de artimanhas e manobras políticas,<br />
procurando tirar proveito de todas as situações. Numa tentativa de abordagem missionária<br />
no grupo certamente ele faria resistência e tentaria de alguma forma se aproveitar dos<br />
interessados.<br />
7.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
A cidade de Caldas é suficientemente estratégica por estar apenas a 7 km da aldeia.<br />
Trata-se de uma cidade de pequeno porte, interiorana, mas de fácil acesso e com muitas<br />
105 Em entrevista do dia 19/03/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 131<br />
opções de transporte. Outra possibilidade é a cidade de Poços de Caldas, a qual é um dos<br />
principais centros urbanos do sul de <strong>Minas</strong>. Cidade de excelente infra-estrutura, de porte<br />
médio, mas a 27 km da aldeia.<br />
7.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
Em Caldas há algumas igrejas como Assembléia de Deus, Batista e Quadrangular,<br />
mas todas pequenas e com pouca visão missionária. Certamente seriam geograficamente as<br />
ideais, mas talvez as igrejas de Poços de Caldas sejam uma melhor opção. Lá sim há<br />
muitas igrejas bem estruturadas, com certa visão missionária e certamente com<br />
disponibilidade e condições de apoiar um trabalho indígena.<br />
7.2.3. A QUESTÃO ANIMISTA<br />
Dado ao caráter sigiloso da sua religiosidade, um estudo profundo da cosmologia<br />
Xukuru-Kariri se faz necessário, pois ao que parece, isto ainda não foi realizado nem<br />
mesmo do ponto de vista antropológico. Há aspectos animistas profundamente arraigados<br />
na sua cosmovisão, o que se constitui um grande desafio a uma abordagem missionária. O<br />
fato de crerem que existe um só Deus para índios e não-índios é por demais positivo, pois<br />
se Dejuá-lhá se tratar realmente do Deus Verdadeiro, revelado nas Sagrados Escrituras,<br />
muita coisas são simplificadas. Se o contrário for verdade, então temos aqui um fator<br />
complicador, pois além de tratar com as questões animistas, teremos que desfazer todo um<br />
sincretismo que vem sendo alimentado pela cosmologia tribal há séculos.<br />
É evidente que se faz necessário uma teologia da singuralidade de Cristo na<br />
mediação entre Deus e o homem, pois tanto na sua perspectiva animista quanto católico-<br />
sincretista, há outros mediadores. Nos seus rituais tradicionais há todo um panteão de<br />
espíritos que fazem a mediação entre eles e Dejuá-lhá, enquanto nas suas crendices<br />
católicas a figura central é Maria.<br />
Um fato curioso e que pode ser uma porta de entrada para sua cosmologia, quem<br />
sabe até uma ponte para a pregação evangelho, é a grande ênfase que eles dão ao “sangue<br />
derramado”. Na sua visão, o “sangue derramado” dos seus bravos e heróicos guerreiros<br />
que pelo povo lutaram no passado tem um valor extraordinário, sendo constantemente<br />
lembrados e homenageados. Ouvindo-os falar sobre, ou mesmo citar o “sangue<br />
derramado” em suas falas, a impressão que se tem é que há todo um aspecto místico por<br />
trás disto. Não seria surpresa se descobríssemos que nos seus rituais secretos há também
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 132<br />
derramamento de sangue. Talvez uma analogia sobre o sangue de Cristo derramado na cruz<br />
do Calvário pela humanidade, tenha um efeito inesperado na sua compreensão do<br />
evangelho.<br />
7.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS<br />
7.2.4.1. ESCOLA<br />
Atualmente as crianças e adolescente estão estudando na cidade de Caldas, sendo<br />
transportados por um veículo da prefeitura municipal. Entretanto, eles estão desejosos de<br />
terem uma escola na aldeia, para evitar que suas crianças sejam tão influenciadas pela<br />
cultura externa, bem como para que possam ensiná-las a língua kariri. Há um professor da<br />
língua e duas professoras de nível primário, mas falta um projeto consistente para a<br />
implantação da escola. Profissionais do ensino, como professores e talvez principalmente<br />
pedagogos, que possam cuidar desta parte burocrática e da supervisão pedagógica<br />
poderiam facilmente criar uma escola de ensino diferenciado para este grupo, o que seria<br />
de grande importância para eles.<br />
7.2.4.2. AGRONOMIA<br />
A principal dificuldade que hoje enfrentam é o desconhecimento da terra e clima. O<br />
que plantar, quando e como. Alguém que possa lhes dar orientações nesta área seria muito<br />
bem-vindo e poderia dar-lhes uma colaboração simples mas de grande valia.<br />
7.2.4.3. EVANGELIZAÇÃO E DISCIPULADO<br />
O grau de integração com a civilização externa, bem como o domínio do português<br />
abre portas para um trabalho direto de evangelização do grupo. O problema seria a possível<br />
resistência a ser enfrentada. Assim um obreiro indígena teria maior facilidade de<br />
penetração e integração social com eles.
8. OS KAXIXÓ<br />
8.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 133<br />
“Kaxixó significa pedra, que é a Nossa Senhora da Lapa.<br />
Na lei branca de vocês, cês chama caverna (...)”<br />
Zezinho Kaxixó 106<br />
Depois de séculos no anonimato, sufocados pela perseguição e posteriormente pela<br />
discriminação, os Kaxixó reapareceram como demonstração de um profundo desejo de<br />
viver a sua indianidade, trazendo à tona costumes e valores que estiveram camuflados<br />
durante anos afim, mas nunca perdidos. Mesmo proibidos de revelar sua identidade, os<br />
Kaxixó preservaram viva a consciência de serem indígenas, passando seus “segredos” e<br />
tradições de pais para filhos.<br />
Reconhecidos oficialmente pela FUNAI como grupo indígena em dezembro de<br />
2001, depois de quinze anos de luta por tal reconhecimento, e quatro estudos<br />
antropológicos, sendo o primeiro negativo, os Kaxixó se sentem agora totalmente livres<br />
para viver num estilo de vida diferenciado e peculiar, colocando em prática a cada dia,<br />
aquilo que vai sendo resgatado do seu passado de sofrimento e opressão. Sua grande luta<br />
agora é pela posse de suas terras tradicionais e o resgate cultural tão desejado pelo grupo.<br />
Estão, entretanto, conscientes de que há um longo caminho ainda a ser percorrido para<br />
alcançar o que têm como ideal, se é que um dia alcançarão.<br />
8.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
8.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA<br />
Para entendermos a origem étnica deste grupo, faz-se necessário voltarmos um<br />
pouco na história do mesmo. A “lenda da resplandecente Sabarabussu” e o preamento 107 de<br />
índios, motivaram as primeiras expedições de bandeirantes paulistas nas imediações do Rio<br />
106 Em entrevista do dia 18/03/02.<br />
107 Aprisionamento de indígenas para escravização.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 134<br />
Pará, ainda no século XVII (Diniz, 1965.13), havendo referências de expedições de<br />
apresamento nas cabeceiras do São Francisco e entre este e o Rio das Velhas a partir de<br />
1640 (Monteiro, 1994.82). Teria sido com estas bandeiras que os Kaxixó tiveram os<br />
primeiros conflitos, resistindo à fixação dos mesmos no seu território. No século XVIII,<br />
surge então a lendária figura do Capitão Inácio de Oliveira Campos 108 e sua esposa Dona<br />
Joaquina de Pompéu 109 , contra os quais a resistência Kaxixó foi inútil. Este Capitão Inácio,<br />
que os Kaxixó chamam de “governo”, teria chegado na região com “mil negros” e um<br />
grande contigente de “índios Carijó” 110 , subjugando os Kaxixó, se apossando de suas<br />
terras, e os reduzindo a jagunços. Fornecia alimentos e carne para a corte, nos tempos de<br />
D. João VI, sendo o trabalho feito por escravos e os índios utilizados como jagunços para<br />
controlar negros. Enquanto estes eram obrigados a batizar-se, o índio jagunço devia ser<br />
pagão (Nunes 111 .Internet) o que dificulta o levantamento histórico, pois naquela época a<br />
certidão de batismo era o único registro civil. Após a morte do Capitão Inácio, em 1799,<br />
(...) continou sua viúva, a célebre dona Joaquina do Pompéu, as atividades rurais de<br />
criação e engorda de gado bovino, além da criação de cavalos e do plantio de<br />
mantimentos (Diniz, 1962.116),<br />
e<br />
ao morrer, em 1824, sua herança compreendia um milhão de alqueires de terras,<br />
mais de 1.000 escravos, 53.932 reses de criar, 9.000 éguas e 2.411 juntas de bois,<br />
além de jóias, ouro em pó e em barra, baixelas de prata, que não foram declarados<br />
(Mathieu, s/d.15,16).<br />
Este momento de contato e dominação constitui o marco inicial da história de<br />
formação étnica do grupo Kaxixó atual. Um dos filhos deste casal teve um relacionamento<br />
com uma índia Kaxixó, chamada posteriormente de Tia Vovó. Deste relacionamento<br />
nasceu Fabrício ou Fabrisco, como é lembrado pelo grupo. Aí começa o principal tronco<br />
Kaxixó.<br />
108 Segundo Franco (1954.99), no seu Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas:<br />
Bandeirante das <strong>Minas</strong> Gerais, que saindo de Pitangui, ao tempo do governo do conde de Valadares,<br />
em 1771, descobriu nas cabeceiras do rio das Velhas, no lugar em que mais tarde se fundou o arraial<br />
do desemboque, umas minas de ouro, regressando com sua bandeira em princípio de 1773. No local<br />
das minas foi erguida uma capela pelo padre Félix José Soares, o qual desde 1765 já percorria<br />
aquelas paragens, na esperança das minas, afinal encontradas por Inácio de Campos.<br />
109 O surgimento da cidade de Pompéu está ligada a esta família. Sobre a mesma pode-se consultar<br />
MATHIEU, Célia. O Matriarcado Rural nas Gerais: Vida e Obra de Dona Joaquina de Pompéu. Belo<br />
Horizonte: Biblioteca Pública de <strong>Minas</strong>, s/d. (Mimeo, do Concurso da <strong>Minas</strong> Mulher).<br />
110 “O uso preponderante do termo carijó para se referir aos escravos índios, nas <strong>Minas</strong> do princípio do século<br />
XVIII (...) a palavra carijó veio a se generalizar a quaisquer índios reduzidos, assim como passou mais tarde,<br />
em meados do século XVIII, a designar também os índios mestiços” (Moraes, 1992.33,34). Ou seja, Carijó é<br />
um termo genérico para todos índios escravos, e não necessariamente índio do povo Carijó. Palitot (internet)<br />
esclarece também: “Carijó era o nome genérico dado aos indígenas que acompanharam os paulistas nas<br />
minas, sendo que muitos deles devem ter permanecido na região, mantendo a língua geral ou o tupi paulista”.<br />
111 O Padre Jerónimo Nunes era coordenador da CPT – Comissão Pastoral da Terra, da cidade de Pompéu, em<br />
1986, quando pela primeira vez os Kaxixó revelaram sua indianidade. Atualmente se encontra em Portugal.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 135<br />
Para complicar a formação étnica dos atuais Kaxixó, entraram em cena mais dois<br />
segmentos: os “Carijó” do século XVIII, procedentes de São Paulo, e os negros,<br />
descendentes dos escravos africanos que trabalhavam na fazenda. Foi ainda a família de<br />
Fabrisco que selou uma dessas uniões, pois um de seus filhos casou com uma índia Carijó<br />
(Palitot.Internet). Por muito tempo, os Kaxixó foram conhecidos como “Índios Caboclos<br />
da Vargem do Galinheiro”, hoje um bairro da cidade de Pompéu, antes conhecida como<br />
“Buriti da Estrada”, local de passagem obrigatória para os tropeiros, que lá se abasteciam<br />
com as galinhas criadas pelos “índios caboclos” (Mattos, 1999.57). Assim, os Kaxixó é um<br />
caso bem peculiar dos chamados grupos indígenas “emergentes”, pois ao contrário do que<br />
ocorre no Nordeste, onde a maioria dos grupos é descendente de antigas populações que<br />
viviam nos aldeamentos missionários, os Kaxixó, são remanescentes de grupos que viviam<br />
nas fazendas da região do baixo rio Pará, como agregados e jagunços.<br />
Portanto, podemos concluir que os atuais Kaxixó são frutos da miscigenação dos<br />
antigos Kaxixó 112 , com os “Carijó” – escravos de vários etnias – negros escravos e<br />
“brancos” da família da Dona Joaquina, chamados de “povo do governo”. Por isto, no<br />
grupo atual encontra-se pessoas de pele vermelha morenada, cabelos pretos e lisos, como o<br />
ex-vice-cacique Jerry; pessoas negras, como o atual vice-cacique Zezinho; e pessoas<br />
brancas de olhos claros, como o cacique Djalma.<br />
8.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
Como povo “emergente”, o atual grupo Kaxixó é etnicamente isolado, não<br />
possuindo parentesco próximo com qualquer outro grupo indígena. Apresentando um alto<br />
grau de miscigenação, é difícil sugerir até qual a família étnica dos antigos Kaxixó dado ao<br />
fato de “Carijó” ser um termo genérico para todos os índios escravos do século XVIII.<br />
8.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA<br />
Dezesseis famílias, num total de sessenta e três indivíduos se envolveram<br />
efetivamente na luta pelo reconhecimento étnico oficial. Entretanto, o senhor Djalma –<br />
cacique Kaxixó – afirma que todo o grupo espalhado na região soma trezentos e cinqüenta<br />
e seis pessoas 113 . A maior concentração está no Capão do Zezinho, mas há outros três<br />
112 Caldeira (1999.35) informa que além dos “carijó”, negros e o “povo do governo”, há vários subgrupos<br />
Kaxixó: “gentios, índios caboclos, índios da Criciúma, povo selvagem – xavante ou bicho, e os caboclos<br />
d’água”.<br />
113 Em entrevista do dia 18/03/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 136<br />
lugarejos não muito distantes. Caldeira (1999.15,16) fez um levantamento com muita<br />
precisão da realidade demográfica Kaxixó:<br />
Capão do Zezinho<br />
(50 individuos/12 famílias)<br />
1. Sr. Zezinho (64) 114 – viúvo<br />
2. Vó Chica (81) – viúva<br />
Geraldo (Geraldinho – 12) – neto<br />
3. Divino (34) – pai<br />
Cristina (27) – mãe<br />
Breno (07) – filho<br />
4. Djalma (62) – solteiro<br />
5. Nilvandro (29) – pai<br />
Elenir (22) – mãe<br />
Daniela (07 meses) – filha<br />
6. Geraldo (31) – pai<br />
Ronilde (30) – mãe<br />
Letícia (07) – filha<br />
Lauro (04) – filho<br />
Felipe (01) – filho<br />
7. Marcelino (35) – pai<br />
Marilda (Ida – 31) – mãe<br />
Fernanda (13) – filha<br />
Otávio (05) – filho<br />
José (10 meses) – filho<br />
8. Pedro F. Filho (53) – pai<br />
Geni (47) – mãe<br />
Sérgio (16) – filho<br />
Jaciara (12) – filha<br />
9. Zico (50) – pai<br />
Conceição (Sãozinha – 42) – mãe<br />
Ailson (23) – filho<br />
11. Ozires – pai<br />
Maria Inez (37) – mãe<br />
Selmo (19) – filho<br />
Sérgio (13) – filho<br />
Delmo (15) – filho<br />
Cleide (13) – filha<br />
Melina (10) – filha<br />
12. Pedro Baixinho (57) – pai<br />
Maria (50) – mãe<br />
Altair (31) – filho<br />
Antônio (20) – filho<br />
Geraldo (16) – filho<br />
Aparecida (15) – filha<br />
Aldeir (13) – filho<br />
Fazenda Criciúma<br />
(04 indivíduos / 01 família)<br />
1. Antonieta (84) – mãe<br />
Eva (55) – filha<br />
Jerry (25) – neto<br />
Lidiano (16) – neto<br />
Fazenda São José – Pindaíba<br />
(08 indivíduos / 01 família)<br />
1. José Francisco (Marreco – 44) – pai<br />
Vanda (40) – mãe<br />
Gleison (20) – filho<br />
Paulo (18) – filho<br />
Juliano (16) – filho<br />
114 Os números entre parênteses indicam a idade de cada indivíduo, no final de 1998, época do levantamento<br />
feito pela indigenista Vanessa Caldeira.
Reilson (16) – filho<br />
Denilson (10) – filho<br />
Lorena (07) – filha<br />
10. Almir (28) – pai<br />
Edileuza (21) – mãe<br />
Rodrigo (05) – filho<br />
Augusto (03) – filho<br />
Catiana (02) – filha<br />
Mariana (11 meses) – filha<br />
2. João Izabel (63) – pai<br />
Dilson (25) – filho<br />
Franço (14) – filho<br />
Fazenda São José – Fundinho<br />
(01 indivíduo / 01 família)<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 137<br />
1. José Cândido (Zé Candinho 82) – viúvo<br />
8.1.3. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL<br />
O Capão do Zezinho, principal concentração do grupo, se localiza no município de<br />
Martinho Campos, na margem esquerda do Rio Pará, região centro-oeste do Estado, a 15<br />
km do povoado de Ibitira, que por sua vez dista 180 km de Belo Horizonte e outros 15 km<br />
da cidade de Martinho Campos. Portanto, o vilarejo Kaxixó está a 195 km da capital do<br />
Estado. A estrada que liga o vilarejo a Ibitira apresenta um bom estado de conservação<br />
sendo facilmente transitável.<br />
O Capão do Zezinho consiste num pequeno vilarejo, com casas de alvenaria, água<br />
encanada e energia elétrica. Boa parte dos moradores dispõe de aparelhos de televisão e<br />
alguns até de antena parabólica. Toda a região é bem arborizada, havendo no vilarejo<br />
grande quantidade de árvores frutíferas. Um templo católico está sendo construído no<br />
centro, ao lado das duas únicas construções que não são de alvenaria: o Rancho ou Casa de<br />
Ritual e o rancho de festas, ambos cobertos de capim e sem paredes. O primeiro é<br />
destinado às suas danças tradicionais e missas, enquanto o segundo é destinado aos festejos<br />
e comemorações. Neste vilarejo têm ainda um edifício para funcionamento de uma escola,<br />
mas entretanto se encontra desativado. Nas proximidades do Capão do Zezinho há outros<br />
três lugarejos de posse dos Kaxixó, que é a Fazenda Criciúma, Pindaíba e Fundinhos, estes<br />
dois últimos na Fazenda São José.<br />
Os Kaxixó não possuem território demarcado, estando entre os grupos de Terras<br />
<strong>Indígena</strong>s a Identificar – conforme classificação do ISA (internet). Agora oficialmente<br />
reconhecidos como grupo étnico, seu próximo passo e principal luta é exatamente pela<br />
conquista de suas terras tradicionais, hoje sob posse de vários fazendeiros. Reivindicam<br />
uma área de 27.150 ha. (Mattos, 2000b.19), enquanto atualmente ocupam apenas 35,28<br />
hectares da seguinte forma distribuídos (Caldeira, 1999.30):
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 138<br />
LOCALIDADE MEDIDA SITUAÇÃO FUNDIÁRIA<br />
Capão do Zezinho (famílias Parte da terra regularizada Escritura em nome de<br />
de Edileuza, Ida, Geni,<br />
Geraldo, Nivandro e Djalma)<br />
Capão do Zezinho (famílias<br />
de Vó Chica, Zezinho,<br />
Divino, Zico, Pedro Maria e<br />
Pedro Baixinho)<br />
Fazenda Criciúma (família<br />
de D. Antonieta)<br />
Pindaíba<br />
(Zé Candinho)<br />
Fundinho<br />
(Marreco)<br />
Fundinho<br />
2,28 hectares<br />
Aproximadamente<br />
2 hectares<br />
(João Izabel)<br />
TOTAL 35,28 hectares<br />
Djalma Vicente de Oliveira<br />
Terra Devoluta<br />
01 hectare Terra Devoluta<br />
20 hectares Posse da Terra<br />
08 hectares Posse da Terra<br />
02 hectares Posse da Terra<br />
Como se pode deduzir, este território não é suficiente para o grupo, ainda que<br />
pequeno, produzir o suficiente para sua sobrevivência.<br />
8.1.4. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA<br />
Com a repressão e opressão que sofreram no decorrer da história o grupo perdeu<br />
totalmente a sua língua tradicional, sendo todos falantes do português. O senhor Djalma<br />
insiste que alguns ainda falam a língua e que quando obtiverem terras voltarão a aprender a<br />
mesma, mas isto parece muito improvável.<br />
8.1.5. RELIGIOSIDADE<br />
Quanto à religião, grande parte do grupo se identifica como católicos e na verdade<br />
o são. Segundo o senhor Djalma, desde a época do lendário Capitão Inácio, a religião<br />
tradicional foi proibida, assim como a língua e até o próprio nome da tribo 115 :<br />
115 Em entrevista do dia 18/03/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 139<br />
(...) foi o “governo”, o Capitão Inácio de Oliveira Campo. Ele matô, robô a terra,<br />
robô a língua, robô a religião, robô dança (...) aí trocô o nome, ninguém falava<br />
Kaxixó.<br />
Entretanto, assim como apenas camuflaram sua identidade étnica, o mesmo fizeram<br />
com sua religiosidade, inclusive praticando seus rituais às escondidas, até na década de<br />
1970 quando segundo o senhor Djalma “a religião católica foi instituída no grupo (...)<br />
pelos fazendeiros, com o objetivo de ‘acabar com a lei dos índios’” (Caldeira, 1999.44),<br />
obrigando-os a aprender a rezar:<br />
Então, tá tendo vinte e quatro anos que eles deu a idéia de acabar com as leis do<br />
índio e então levou nós para Divinópolis. Lá ensina a rezar, ensina a lei do branco.<br />
Lá nós foi estudar o quê que é lei de rei, desde da América do Norte, tudo.<br />
Aqui ele se refere ao curso de formação para Ministro de Eucaristia e Dirigentes de<br />
Culto, da CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, que ele e seu irmão<br />
Zezinho realizaram na década de 1980 na cidade de Divinópolis, oferecido em vinte e<br />
cinco módulos. Durante três anos eles foram mensalmente a Divinópolis, quando também<br />
tiveram acesso a leituras sobre a história do Brasil, entre outros temas. Parte do<br />
conhecimento histórico do senhor Djalma foi adquirido ali. Caldeira (1999.44) tece<br />
comentários ainda sobre as suas rezas num terreiro do Capão do Zezinho, chamado<br />
Cruzeiro:<br />
Os Kaxixó, durante o mês de maio, vão todas as noites ao Cruzeiro rezar. Levam a<br />
imagem de Nossa Senhora Aparecida, uma vela e, ao iniciar a reza, estouram fogos,<br />
acendendo uma fogueira. Cada noite um deles é o responsável pela leitura do<br />
evangelho. Ao final de cada reza, os Kaxixó que estão em outras localidades –<br />
como no estado de Goiás ou em Belo Horizonte – são lembrados. Pede-se proteção<br />
e saúde para cada família Kaxixó.<br />
Outra época tradicional é o dia de São Francisco de Assis (04/10), sendo a principal<br />
festa comemorativa do grupo. Para esta vêm pessoas de toda a região e até parentes de<br />
cidades distantes. Além das rezas, há comes e bebes com fartura, barraquinhas, e muito<br />
forró, que é o estilo musical mais popular da região.<br />
Entretanto, o grupo de dona Antonieta é bastante resistente ao catolicismo<br />
apresentando fortes sinais de sincretismo. Ao que parece, eles são descendentes diretos dos<br />
“jagunços” da Dona Joaquina, que por não serem batizados eram considerados pagãos, sem<br />
religião. Logo, praticam a invocação de espíritos em rituais próprios que eles chamam de<br />
“lei do índio” ou ainda “língua de Angüera”. Destes destaca-se o jovem Jerry, ex-cacique,<br />
neto da dona Antonieta, que insiste em praticar rituais mediúnicos, onde há manifestação
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 140<br />
de espíritos. Alguns chegam a “engolir cobras” no momentos destes rituais. 116 Foi o Jerry<br />
quem introduziu no grupo o nome Casa de Ritual para o Rancho, nome este que vai sendo<br />
adotado pela maioria. Há um Kaxixó chamado Manoel Peão, considerado por todos o pajé<br />
do grupo, por possuir “força e poder de cura”, mas este vive no povoado de Ibitira.<br />
8.1.5.1. ENTIDADES ESPIRITUAIS<br />
Da antiga comoslogia Kaxixó, duas entidades principais são ainda centrais na sua<br />
cosmovisão. A primeira é Jacy, a quem atribuem as qualidades de Deus. Jacy era o nome<br />
dado à lua por grupos Tupi na época do contato, sendo provável que os Kaxixó herdaram<br />
este nome dos “carijó” que vieram de São Paulo e o relacionaram com o Deus Verdadeiro,<br />
preservando-o até hoje. A este, faz oposição o terrível e malvado Angüera, nome que dão<br />
ao próprio Diabo. Da mesma forma, parece se tratar de alguma antiga entidade do grupo,<br />
da qual foi preservado o nome apenas, pois todos o definem como “o Capeta ou Demônio”.<br />
Os rito lá vai vortando, mais os que é católico segue a católica, agora aquês que<br />
num era católico aprendeu, cunhece quê que é Jesus Cristo (...) Jerry mesmo, que é<br />
o vice-cacique, puxa muito é na língua Angüera. Eu não tinha falado isso. Angüera<br />
na língua nossa, de índio, é o Capeta, é o demônio, uns chama de rabudo da língua<br />
branca, né? Então esses selvagem era danado pra puxar é nisso. Então quando o<br />
Jerry faz, num bate na turma bem aqui não, que ês puxa muito é na lei Angüera. 117<br />
Mas há ainda uma terceira classe de entidades presentes na cosmologia Kaxixó, que<br />
são os lendários Caboclos d’Água. Sobre estes Caldeira (1999.34) comenta:<br />
Seres fantásticos, os caboclos d’água representam a total rejeição ao contato com os<br />
“brancos”. Refugiando-se nas águas do rio Pará, eles são descritos como homens de<br />
estatura muito baixa, corpo coberto de pêlos e braços muito fortes. Habitando<br />
algumas locas às margens do rio, eles teriam aprendido a sobreviver tanto na terra<br />
quanto embaixo d’água (...).<br />
Descritos como homens que nadam como peixes, surgindo apenas para algumas<br />
pessoas, eles seriam possuidores de uma fala ou língua específica. Todavia, isto não<br />
teria impedido a comunicação entre eles e seus parentes Kaxixó, pois são capazes<br />
de se fazer entender ou de serem entendidos.<br />
Estes seres balançam as canoas das pessoas, no intuito de brincar com elas, e os<br />
Kaxixó teriam “cruzado” com eles nas águas do Rio Pará, compondo assim um grupo<br />
desconhecido. Desta forma, os Kaxixó atuais se consideram descendentes destes seres.<br />
8.1.5.2. DANÇAS TRADICIONAIS<br />
A principal dança dos Kaxixó é a chamada Dança do Jacaré, que tem sido pouco<br />
praticada mas ainda está vívida na memória de todo o povo. Entretanto, tudo indica que a<br />
116 Segundo o senhor Djalma, na entrevista do dia 18/03/02.<br />
117 Idem.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 141<br />
mesma possui apenas caráter folclórico, destituída do seu significado cerimonial. Sobre<br />
esta, vale citar as próprias palavras do senhor Djalma 118 :<br />
A dança do Jacaré é a nossa dança antes do 1500 (...) fica quatro de cá, não o tanto<br />
que tivé, se tivé trinta, ô quarenta, cinqüenta de cá, e for cem, cinqüenta de lá.<br />
Então ês fica de longe, só que num é igual Xavante que fica de lado. Aí, ês canta o<br />
Jacaré e quando fala, cá “jacaré”, e ês fala, “a lagoa secô e ocê teve que vortar”, que<br />
ês canta isse, aí os de lá vem e encontra no meio e ês dão uma vorta e os de cá passa<br />
pra lá e os de lá passa pra cá (...) ês num tá cantando não porque nois tá dexando<br />
demarcar a terra pra vortar esses 356 pra cá pra aí nois dançar Jacaré.<br />
Há algumas outras danças que deixaram de ser praticadas, mas que eles esperam<br />
voltar a praticá-las. Vale aqui citar também, a cerimônia de casamento que em alguns casos<br />
são realizadas. Geralmente os jovens casais se “juntam” simplesmente, mas alguns<br />
solicitam o casamento na “língua do Jacy”, sendo realizada uma cerimônia própria, sobre a<br />
qual não obtivemos maiores detalhes. Sabemos que mais de uma pessoa pode realizar,<br />
sendo uma destas o próprio senhor Djalma.<br />
8.1.5.3. LOCAIS SAGRADOS<br />
A alguns quilômetros do Capão do Zezinho, há uma gruta natural conhecida como<br />
Gruta da Nossa Senhora da Lapa, muito venerada por todo o grupo e também pela<br />
população regional. Segundo informação dos próprios Kaxixó e de moradores da região,<br />
esta gruta é enorme, cabendo muitas pessoas, e como foram depositadas ali imagens de<br />
santos católicos, é comum a realização de missas e rezas no local. Sobre esta, vale citar a<br />
breve descrição da arqueóloga Alenice Baeta (1999.69):<br />
Gruta localizada na Fazenda da Lapa, município de Martinho Campos. Trata-se de<br />
um ambiente de interesse histórico e etnográfico, já que é visitado periodicamente<br />
pelos moradores da localidade. No fundo da mesma foi erguido um altar com santos<br />
católicos.<br />
Ao chão foram observados fragmentos cerâmicos provavelmente do período<br />
histórico. Trata-se de uns cacos simples, sem decoração, parcialmente oxidados,<br />
apresentando brunidura na face externa. Em um dos suportes das paredes internas,<br />
há algumas incisões de pelo menos algumas décadas, representando uma igreja.<br />
Esta gruta, segundo depoimentos de alguns integrantes Kaxixó, em especial de<br />
Djalma Kaxixó, “era lugar que os índios Kaxixó se reuniam para rezar”, sendo até<br />
hoje um importante referencial da cultura e da história dos mesmos.<br />
O outro local é o Rancho ou Casa de Ritual construída no centro do vilarejo do<br />
Capão do Zezinho. Trata-se de um rancho com aproximadamente quatro metros de<br />
comprimento por dois e meio de largura, com três troncos de cada lado e três ao centro,<br />
118 Idem.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 142<br />
sem paredes, coberto de capim. Este foi construído recentemente, após a tentativa da Igreja<br />
Católica de construir ali um templo, em 1995. O grupo da Antonieta se opôs radicalmente<br />
a ponto dos ânimos se acirrarem e a discussão não chegar ao fim. Jerry então deu uma<br />
sugestão: “(...) nós temos nosso modelo de fazer nossa casa. Vamos fazer de nosso jeito a<br />
Casa de Ritual. De chão, barro batido, sapé e madeira, toda amarrada de cipó” (Soares,<br />
1995b).<br />
Neste Rancho passaram a ser realizados tanto rituais de invocação de espíritos,<br />
como missas, rezas e novenas. Os primeiros eram realizados pelo Jerry e seu grupo, que<br />
inclusive, segundo o senhor Djalma “num bate na turma bem aqui não”, ou seja, o grupo<br />
do Capão do Zezinho não gostava. Atualmente o Rancho está quase abandonado, sendo<br />
utilizado como depósito de arreios de animais e outros objetos diversos, e a Igreja Católica<br />
está construindo um templo de alvenaria ao lado daquele.<br />
8.1.6. ESTUDO DE PODER SOCIAL<br />
8.1.6.1. CACIQUE<br />
Eleito democraticamente, o cacique tem a responsabilidade de representar o povo<br />
nos contatos externos, bem como liderar as reuniões e tomadas de decisão. É uma função<br />
recente, pois somente depois que iniciaram a luta pelo reconhecimento e se reorganizaram<br />
em tribo, foi possível e tornou-se necessário uma liderança constituída.<br />
Como várias vezes citado, o atual cacique é o senhor Djalma Vicente de Oliveira,<br />
mais conhecido como “Seu Djalma”, o qual configura-se como o porta-voz da história<br />
Kaxixó. Sua história pessoal sintetiza a história de formação do grupo atual. Ele é filho de<br />
índia Kaxixó com fazendeiro, criado pelos índios e cresceu convivendo com os negros.<br />
Desta forma, teve acesso às várias fontes de informação acerca da história da região. Com<br />
uma memória extraordinária e um grande interesse em conhecer “os causos” relatados<br />
pelos mais velhos, tornou-se a principal referência para a compreensão da identidade<br />
Kaxixó. Reside no Capão do Zezinho, tem hoje 65 anos de idade, solteiro e é muito<br />
querido por todo o grupo. Sendo de cor branca e olhos claros, tem sua indianidade criticada<br />
por muitos da sociedade externa, entretanto, basta conversar com ele por alguns minutos<br />
para perceber a sua convicção de ser indígena.<br />
8.1.6.2. VICE-CACIQUE
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 143<br />
Tem a responsabilidade de responder pelo cacique na ausência do mesmo, bem<br />
como auxiliá-lo em todas as suas atividades. Atualmente a função é exercida pelo senhor<br />
Zezinho, de 67 anos, viúvo, irmão do senhor Djalma, também residente no Capão do<br />
Zezinho. Apesar de não possuir todo o conhecimento histórico do seu irmão e se tratar de<br />
um homem muito simples, também tem o apoio e respeito de todo o grupo. Ao contrário do<br />
irmão, é de pele negra e cabelos crespos, o que leva igualmente muitos da sociedade<br />
externa a criticar e duvidar da sua indianidade. Mas esta torna-se evidente no<br />
comportamento do mesmo e na forma de falar da sua própria identidade.<br />
8.1.6.3. CONSELHO TRIBAL<br />
Como na maioria dos grupos indígenas do Estado, além do cacique e vice-cacique<br />
há um Conselho, formado pelos anciãos do grupo, tanto homens como mulheres, ao qual<br />
cabe pesar as decisões a serem tomadas, principalmente em se tratando de articulações<br />
políticas tanto internas como externas do seu povo. Chamado simplesmente de<br />
“Liderança”, atualmente é formado pelos chefes de família Zezinho (José Vicente), Eva,<br />
Zé Francisco (Marreco), Vanda, João e Pedro (Baixinho)<br />
8.1.6.4. OUTRAS PESSOAS DE DESTAQUE<br />
Vale aqui destacar ao menos mais duas pessoas que gozam de grande credibilidade<br />
no grupo. Manoel Peão, apesar de residir na cidadela de Ibitira, é considerado o pajé dos<br />
Kaxixó por possuir poderes de cura – curador – e deter grande conhecimento dos seus<br />
rituais tradicionais.<br />
Apesar de bastante jovem, com apenas 28 anos, Jerry Adriane exerce grande<br />
influência em todo o povo, sendo bem quisto por muitos. Neto da dona Antonieta, tem<br />
demonstrado grande capacidade de articulação e discussão em torno da identidade étnica<br />
do seu povo com profissionais e instituições indigenistas, tendo exercido a função de vice-<br />
cacique por vários anos. É o autor das principais denúncias contra fazendeiros da região,<br />
tendo sido inclusive, vítima de um atentado em abril de 1993 (Caldeira, 1999.39). De pele<br />
vermelha-morena, cabelos e olhos negros, consideravelmente alto e com músculos<br />
avantajados, nos eventos de representação e em reuniões especiais usa um belo cocar e<br />
pinturas corporais que lhe dão uma aparência muito característica. Mas certamente a sua<br />
maior influência sobre o grupo passa pela religiosidade, pois ele pratica rituais envolvendo<br />
invocação de espíritos – língua de Angüera – sendo um pajé em potencial. Isto parece ter
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 144<br />
herdado da avó Antonieta que também possui “poderes” espirituais, mas evita falar sobre<br />
isso.<br />
8.1.7. OUTRAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS<br />
As pinturas corporais têm sido cada vez mais usadas, principalmente em datas ou<br />
locais especiais, como em congressos ou comemorações fora do seu território. Fazem<br />
principalmente riscos de cores diversas no rosto e os homens também no tórax.<br />
Interessante é que durante anos eles foram proibidos de se pintarem, mas segundo o senhor<br />
Djalma, “quando alguém do grupo morria, eles levantavam escondido a tampa do caixão, e<br />
pintavam o rosto da pessoa” (Baeta, 1999.62). Como enfeites usam principalmente, colares<br />
e pulseiras de madeira ou sementes, e cada líder um belo cocar.<br />
Têm produzido também bastante artesanato, alguns para uso pessoal, mas a<br />
maioria para comercialização. Neste aspecto desenvolvem algo bastante peculiar, que é a<br />
fabricação de peças de barro, geralmente enfeitadas com penas, como pequenos potes e<br />
semelhantes. Dos grupos de <strong>Minas</strong>, somente eles trabalham com barro, o que demonstra<br />
uma características bem particular. É evidente porém, que todas estas manifestações não<br />
possuem mais um fim de embelezamento pessoal, mas sim de reafirmação cultural.<br />
8.1.8. SOBREVIVÊNCIA<br />
Como o território que atualmente eles têm posse é pequeno e não unificado, sendo<br />
insuficiente para o abastecimento de todo o grupo, a maior parte dos Kaxixó são<br />
empregados de fazendas vizinhas, principalmente como vaqueiros e roceiros. Entretanto,<br />
mesmo com a insuficiência territorial, alguns praticam a agricultura familiar de<br />
subsistência, cultivando principalmente feijão, arroz, milho, algodão, mandioca, cará e<br />
amendoim, criando também animais de pequeno porte como porcos e galinhas.<br />
Duas famílias – Zico e Ozires – praticam a pesca no Rio Pará como sua principal<br />
fonte de subsistência, dispondo, entretanto, do mínimo de equipamentos, principalmente<br />
geladeiras, o que dificulta colorar seus produtos no mercado regional (Caldeira, 2001b.43).<br />
Outras famílias ainda se valem da aposentadoria dos mais idosos, como no caso do<br />
grupo da dona Antonieta. Ela é aposentada e sustenta seus dois netos Jerry e Lidiano, com<br />
o seu benefício. Jerry tem muita dificuldade em conseguir emprego na região por ser<br />
identificado como uma forte liderança indígena, principalmente após as várias denúncias<br />
contra fazendeiros.
8.1.9. RIQUEZA ARQUEOLÓGICA DO TERRITÓRIO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 145<br />
Após algumas denúncias por parte dos Kaxixó de fazendeiros destruindo sítios<br />
arqueológicos do seu território tradicional, foram iniciados levantamentos nos municípios<br />
de Martinho Campos e Pompéu, na região da Bacia do Baixo Rio Pará. Tais levantamentos<br />
iniciais foram feitos pela arqueóloga e historiadora da UFMG, Alenice Baeta, em 1995,<br />
sendo concluídos pelo arqueólogo Fabiano Lopes de Paula, do IEPHA – <strong>Instituto</strong> Estadual<br />
do Patrimônio Histórico e Artístico. Quinze sítios arqueológicos foram encontrados, sendo<br />
sete pré-coloniais e oito históricos, tendo sido percebidos sobretudo, grandes fragmentos<br />
cerâmicos e estruturas de fornos, além de instrumentos líticos polidos, tais como<br />
machadinhas, batedores, mão-de-pilão e quebra-cocos.<br />
Obviamente, os sítios arqueológicos pré-coloniais identificados e cadastrados na<br />
região historicamente apreendida pela comunidade Kaxixó, não podem ser<br />
diretamente atribuídos aos antepassados da mesma (...)<br />
entretanto,<br />
(...) a reapropriação de determinados espaços e da cultura material arqueológica por<br />
grupos em plena luta pelo reconhecimento oficial da sua identidade étnica, pode ser<br />
concebido como um elemento de revitalização do vínculo do grupo com a terra que<br />
habitam (Baeta, 1999.58-61).<br />
De qualquer forma, a identificação e comprovação destes sítios arqueológicos no<br />
território tradicional dos Kaxixó foi como uma injeção de ânimo na sua luta pelo<br />
reconhecimento étnico oficial, pois ocorreu exatamente após o resultado do primeiro laudo<br />
antropológico que lhes foi desfavorável (Paraíso, 1994.18).<br />
8.1.10. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
Não há qualquer trabalho evangélico junto ao grupo que, consequentemente,<br />
também não conta com nenhum convertido.<br />
8.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
Apesar de não haver barreira lingüística e a cultural ser bastante minimizada, os<br />
Kaxixó podem apresentar forte resistência à pregação do evangelho. Sendo um povo<br />
“emergente” o desejo de reafirmação étnica e cultural é muito grande, podendo resistir ao
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 146<br />
que vem de fora. Entretanto, é óbvio que o seu alto grau de integração com a cultura<br />
regional e o conhecimento, ainda que elementar, do evangelho pela vertente católica<br />
podem ser abridores de portas. Desta forma, as possibilidades de abordagem missionária<br />
são muitas, necessitando apenas de obreiros.<br />
8.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
A cidade de Martinho Campos seria uma opção, oferecendo uma boa estrutura e<br />
igrejas consideravelmente sólidas, mas dista 30 km. A cidade de Pompéu também seria<br />
uma boa opção, estando inclusive mais próxima. Entretanto, por se localizar na margem<br />
esquerda do Rio Pará, o acesso ao Capão do Zezinho, maior concentração Kaxixó, é<br />
dificultado pela travessia do referido rio. Para evitar esta travessia seria necessário dar uma<br />
volta inviável. Desta forma, a melhor opção seria então a cidadela de Ibitira, que sendo<br />
apenas um distrito de Martinho Campos, pequena e com pouca estrutura, é local de maior<br />
trânsito dos Kaxixó por distar apenas 15 km do território indígena.<br />
8.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
As igrejas evangélicas da região são na sua maioria pequenas e apresentam pouca<br />
consciência missionária. Ao que parece, as possibilidades de integração seriam com as<br />
igrejas Batista Nacional ou Assembléia de Deus de Martinho Campos. Talvez em Pompéu<br />
haja também algumas possibilidades, mas de modo geral são bastantes limitadas. Seria<br />
necessário um forte trabalho de conscientização.<br />
8.2.3. A QUESTÃO SINCRETISTA<br />
É preciso dar muita atenção a esta questão, e uma análise das práticas espíritas<br />
realizadas por alguns do grupo se faz necessária. É preciso entender até que ponto estes<br />
rituais demonstram traços de espiritismo ou animismo. É positivo o fato de muitos não<br />
gostarem e nem aceitarem estes rituais, preferindo se apegar apenas às rezas e novenas,<br />
mas ainda assim, este fenômeno precisa ser estudado.<br />
Pelo contexto histórico de opressão e perseguição o grupo nutre um grande desejo<br />
de libertação. Sendo assim, uma teologia de libertação solidamente bíblica deve gerar um<br />
impacto muito positivo neste povo.<br />
8.2.4. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS
8.2.4.1. ESCOLA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 147<br />
No Capão do Zezinho há um edifício destinado à escola, porém encontra-se<br />
fechado por falta de professores. Alguns poucos estudantes se deslocam até Ibitira num<br />
veículo cedido pela Prefeitura Municipal, outros estudam mesmo em casa. Atualmente há<br />
três professores em formação no Parque Estadual do Rio Doce, pelo Projeto UHITUP –<br />
Maria Aparecida, Fernanda e Gleison Humberto. Mas como sua cultura não apresenta tanta<br />
diferença da regional, qualquer profissional do ensino teria portas abertas para se integrar<br />
ao grupo Kaxixó.<br />
8.2.4.2. PESCARIA<br />
O Rio Pará é rico em peixes, apresentando uma excelente oportunidade tanto de<br />
subsistência como de comercialização. Precisam de incentivo e disponibilização de<br />
recursos e equipamentos simples, como refrigeradores e conservadores. Projetos de<br />
piscicultura também poderia dar bons resultados.<br />
8.2.4.3. ASSISTÊNCIA JURÍDICA<br />
Sua principal luta agora é por terras, e parece que esta irá se estender por alguns<br />
anos. Profissionais de Direito seriam de grande ajuda para o grupo que precisa se orientar<br />
sobre o que, e como fazer.<br />
8.2.4.4. EVANGELIZAÇÃO E DISCIPULADO<br />
Sem sombra de dúvidas as portas estão abertas para quem desejar chegar e pregar o<br />
evangelho, principalmente se iniciar pelo Capão do Zezinho que é onde está a maior<br />
concentração e demonstram-se mais abertos.
9. OS ARANÃ<br />
9.1. SITUAÇÃO SOCIOCULTURAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 148<br />
Nós, povo Aranã, lutamos tanto pela terra<br />
como pelo reconhecimento étnico.<br />
Raimundo Aranã 119<br />
Apontados historicamente como extintos, o povo Aranã é o mais recente grupo<br />
indígena “emergente” a despontar no cenário indígena de <strong>Minas</strong> Gerais. Com suas raízes<br />
num passado de opressão e resistência, lutam hoje pelo reconhecimento étnico oficial junto<br />
à FUNAI, em um processo de articulação e reorganização tribal recente mas bastante<br />
consistente, o que nos leva a incluí-los na lista dos grupos indígenas do Estado. Mesmo<br />
ainda não reconhecidos oficialmente, todo o movimento indigenista do Estado, bem como<br />
do Espírito Santo e Nordeste, já se refere a eles como indígenas de <strong>Minas</strong>, devido as muitas<br />
evidências da sua indianidade.<br />
Ainda desaldeados e dispersos por várias partes do país, as esperanças de obtenção<br />
do desejado reconhecimento étnico e posteriormente de terras para sua sobrevivência, vêm<br />
despertando o interesse de várias famílias do grupo a se unirem com aqueles que estão<br />
articulando o processo, aumentando assim as forças desta luta. O povo Aranã vê agora a<br />
possibilidade de resgatar, ao menos parte daquele antigo estilo de vida dos seus ancestrais<br />
que para os de hoje não passa de história e saudosismo. Vêem a possibilidade real de unir a<br />
“grande família” em um só território, onde possam resgatar traços perdidos da sua cultura e<br />
viver de forma comunitária, o que parece ser intrínseco à sua natureza.<br />
Na sua maioria trabalhadores do campo, agricultores de subsistência e agregados de<br />
fazendas, os Aranã jamais perderam a consciência de sua indianidade, mas por outro lado,<br />
desconheciam totalmente os direitos que a Constituição Brasileira lhes assegura enquanto<br />
indígenas. Somente com a chegada do grupo Pankararu para a região em 1994, eles se<br />
despertaram e tomaram consciência dos direitos conquistados pelos povos indígenas do<br />
119 Em Caldeira (2001a.7)
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 149<br />
país. A partir daí começou então a sua articulação, e com ajuda de ONG’s e pastorais estão<br />
inseridos hoje nos movimentos indígenas da região e país, cientes, entretanto, de que isto é<br />
apenas o começo de uma luta que certamente se estenderá ainda por alguns anos. Mas tudo<br />
isto gerou nos Aranã uma nova perspectiva de vida, um sentimento de reafirmação étnica e<br />
cultural, uma sensação de orgulho por ser indígena, o que antes lhes era pejorativo. Em<br />
2001, a Procuradoria Geral da República esteve no Vale do Jequitinhonha avaliando a<br />
situação e a FUNAI solicitou à ABA que fizesse um laudo antropológico visando o<br />
reconhecimento dos mesmos, o que está em andamento.<br />
9.1.1. COMPOSIÇÃO ÉTNICA<br />
O grupo que hoje articula seu reconhecimento étnico é o resultado da união de duas<br />
famílias principais, ambas da mesma região, que por décadas vinham compartilhando as<br />
mesmas convicções, alguns costumes, o mesmo território, e também sofrendo a mesma<br />
discriminação, sendo estigmatizados pela sociedade regional e principalmente explorados<br />
por fazendeiros. A família “Índio” tem sua origem indígena clara e incontestável, sendo<br />
fácil evidenciar sua indianidade não apenas pelas características socioculturais do grupo<br />
atual, mas também por sua linhagem genealógica que os liga à conhecida tribo Aranã do<br />
século XVIII. Já a família “Caboclo” tem uma origem não muito clara, pois são fruto do<br />
“cativeiro”, ou seja, de índios escravos que viviam a serviço dos poderosos da região, mas<br />
a sua indianidade é igualmente incontestável. Vivendo o mesmo drama e compartilhando a<br />
mesma consciência de serem diferentes, as duas famílias se uniram através de casamento<br />
dando origem assim ao atual grupo Aranã.<br />
9.1.1.1. ORIGEM ÉTNICA<br />
Faz-se necessário retornarmos à história para entendermos a origem étnica Aranã.<br />
Segundo a indigenista Geralda Soares 120 “o território tradicional deles era no município de<br />
Capelinha, no Alto Jequitinhonha – onde hoje é Malacacheta, Itambacuri, Poté – Vale do<br />
Rio Urupuca”. É provavelmente nesta região que até o século XVIII os Aranã habitavam,<br />
fazendo parte da famosa confederação dos Botocudos. O professo José Carlos Machado,<br />
escrevendo sobre a história de Capelinha se refere a eles:<br />
120 Em entrevista do dia 11/02/02. Originária desta região, Geralda retornou para o Vale do Jequitinhonha<br />
com os Pankararu em 1994, pois foi a principal articuladora da luta dos mesmos por terras. Tomando<br />
consciência da situação dos Aranã, se dispôs a realizar um levantamento da história dos mesmos que<br />
culminou na luta pelo reconhecimento étnico que hoje se desenvolve. Fixando residência na cidade de<br />
Araçuaí, a 37 km dos Aranã, ela tem se dedicado quase que exclusivamente à esta luta, como agente do<br />
GTME e CEDEFES.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 150<br />
(...) com a ferocidade do sangue botocudo nas veias, os Aranãs expulsaram as tribos<br />
mais mansas do Urupuca e Surubim e aí se estabeleceram. Mas não sobreviveram à<br />
luta com as tribos mais fortes na disputa por terras e alimentos. Além disso, o<br />
confronto com os colonos brancos e as doenças extinguiram completamente a tribo<br />
Aranãs (Oliveira.Internet).<br />
Mas vale citar também as palavras de Mattos (2000b.16) sobre a origem os mesmos<br />
e o contato com os colonizadores:<br />
O povo Aranã também tem sua origem na história dos Botocudos. Distinguia-se, no<br />
entanto, politicamente, de outros grupos Botocudos, conservando inclusive uma<br />
pequena variação dialetal, significativa da distância que mantinham<br />
estrategicamente como forma de reafirmarem sua diferença.<br />
Os Aranã foram aldeados pelos missionários capuchinhos em 1873, no Aldeamento<br />
Central Nossa Senhora da Conceição do Rio Doce, onde epidemias dizimaram a<br />
população. Alguns sobreviventes migraram para o Aldeamento de Itambacuri, de<br />
onde saíram os ancestrais dos Aranã de hoje para o trabalho em fazendas da região<br />
do Vale do Jequitinhonha.<br />
Soares 121 confirma estas informações e acrescenta que na grande revolta dos<br />
indígenas do aldeamento de Itambacuri 122 , quando os Pojixá flecharam alguns padres, os<br />
Aranã estavam envolvidos na revolta e como os demais sofreram a represália. O exército<br />
foi convocado e “fez uma limpeza étnica de Itambacuri até Campanário, matando todos os<br />
índios que encontravam na mata”. Era também comum naquela época o tráfico de crianças<br />
indígenas, sendo vendidas no litoral. Criaram então um asilo para meninas indígenas e não-<br />
indígenas órfãs, enquanto os meninos eram dados aos fazendeiros e colonos para serem<br />
criados como escravos. Uma família que vivia na região de Virgem da Lapa, trouxe um<br />
menino indígena de Itambacuri, ao qual deram o nome de Manoel. Este cresceu nesta<br />
região, se casou com uma indígena que possivelmente teria sido trazida também do<br />
aldeamento de Itambacuri (Oliveira.Internet) e com ela teve três filhos, fazendo algo<br />
totalmente inusitado na história indígena do Estado, e talvez do país: como prova da<br />
consciência de sua indianidade, afirmação étnica e protesto ao contexto de opressão que<br />
vivia “inseriu a denominação ‘Índio’ em seu nome, transformando essa palavra substantiva<br />
no patronímico de sua família” (Caldeira, 2000a.6) e passando a se identificar e ser<br />
identificado como Manoel Índio, ou “Mané Índio”.<br />
121 Idem.<br />
122 Próximo da cidade de Itambacuri, há um povoado chamado “Cachoeira dos Aranã”, em referência a este<br />
povo.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 151<br />
Um dos seus filhos, registrado como Pedro Inácio Figueiredo 123 , mas conhecido<br />
como Pedro Sangê, tornou-se capataz de uma grande fazenda chamada Campo, da família<br />
Campos, e foi além do seu pai na ousadia de reafirmar sua indianidade, pois registrou em<br />
cartório civil dez dos seus treze filhos com o sobrenome Índio – os do seu segundo<br />
casamento.<br />
Tanto Manoel como seu filho Sangê são lembrados como homens de grande<br />
rebeldia, tendo enfrentado o sistema de escravidão através de atos, como o de se<br />
autodenominar “Índio”, afirmando sua identidade indígena e demonstrando resistência à<br />
dominação. A imagem de Pedro Sangê é sempre associada ao estereótipo indígena, mas ele<br />
possui algumas habilidades que o tornava especial para a época, como comenta Caldeira<br />
(2001a.6):<br />
Descrito como homem de cabelos longos, que usava duas tranças, ele era muito<br />
respeitado por sua coragem e bravura. Todavia, ao contrário da maioria dos<br />
indígenas, Pedro possuía o domínio da leitura e da escrita, o que surpreendia e<br />
aumentava o respeito por ele, que também era sacristão de igreja, rezador,<br />
curandeiro, sapateiro e alfabetizador.<br />
Seu filho Pedro Índio de Souza, conhecido como “Gilmar” acrescenta com orgulho<br />
que seu pai era também padeiro, cozinheiro, costureiro, foi militar e tocava violão e<br />
sanfona 124 . Alfabetizou alguns dos seus filhos e ficou também conhecido pelas festas que<br />
organizava. Trabalhando em várias fazendas, foi na Fazenda Campo que ele permaneceu<br />
por mais tempo, constituindo assim a grande família Índio.<br />
Nesta mesma fazenda a família Índio conheceu a família Caboclo e com ela se<br />
uniu. Mattos (1998.14,15) classifica a expressão Índio como um patronímio, enquanto<br />
Cabloco como um cognome pejorativo, carregado de discriminação, indicando que os<br />
primeiros se apoderaram desta expressão como forma de reafirmar sua etnicidade,<br />
enquanto os outros receberam a expressão “caboclo”, ou “cabôco”, como é pronunciado na<br />
região, como um estigma de depreciação por parte da sociedade regional. Segundo ela,<br />
“este grupo familiar é historicamente identificado como mão-de-obra desclassificada das<br />
grandes fazendas da região”.<br />
123 O sobrenome “Figueiredo” provavelmente é por ter nascido e sido criado na fazenda da família<br />
Figueiredo, em Virgem da Lapa, que era uma das três maiores famílias de colonizadores da região – as outras<br />
era Murta e Freire. As três são descendentes de um mesmo inconfidente que se escondeu nesta região e criou<br />
um aldeamento.<br />
124 Em entrevista do dia 20/03/02. “Gilmar” é um dos filhos mais velhos de Pedro Sangê e reside há vários<br />
anos em Belo Horizonte com sua família que soma 73 pessoas. Conservando o sentimento comunitário, sua<br />
família reside quase toda nas proximidades da sua residência.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 152<br />
A família Caboclo vem da Fazenda Alagadiço, de propriedade da família Murta 125 ,<br />
onde o Coronel Murta “possuía, entre seus escravos, índios ‘comprados’ através de uma<br />
rede de tráfico de crianças que caracterizou a colonização daquela região”. Parece que esta<br />
família é o resultado da mistura de indígenas, provavelmente de vários grupos, com<br />
escravos africanos, pois geralmente a expressão “caboclo” tem sido empregada exatamente<br />
para índios que se miscigenaram com negros.<br />
O principal laço de união destas duas famílias se deu através do casamento de<br />
Joverdil Índio, filho de Sangê, mais conhecido como Jóvi, com Emiliana Cabocla, que fez<br />
questão de passar a assinar Índio, pois Caboclo não era assinatura, e também registrou<br />
todos seus filhos com este sobrenome. Daí, as famílias se uniram concentrando-se<br />
principalmente na fazenda Alagadiço, dando origem ao atual grupo Aranã.<br />
9.1.1.2. GRUPOS QUE COMPÕEM A FAMÍLIA ÉTNICA<br />
Se a hipótese dos Aranã pertencerem historicamente à confederação dos Botocudos<br />
for real – e há muita probabilidade que sim – então eles formam família com os Krenak,<br />
que são os tradicionais remanescentes Botocudos de <strong>Minas</strong> Gerais.<br />
9.1.2. DISTRIBUIÇÃO DEMOGRÁFICA<br />
Os Aranã articulados na luta pelo reconhecimento étnico oficial somam cerca de<br />
oitenta e cinco pessoas, espalhados nos municípios de Coronel Murta e Araçuaí, no Médio<br />
Vale do Jequitinhonha, ligados às famílias de Joverdil e Antônio Carlos, na Fazenda<br />
Alagadiço; João, Fazenda Campo; Rosa e Terezinha, na cidade de Araçuaí. Neste relatório<br />
mencionaremos várias vezes os outros grupos, mas estes mencionados são o foco do nosso<br />
levantamento.<br />
Há um grande número de parentes espalhados por várias partes do país, ligados a<br />
diferentes filhos de Sangê. Em São Paulo há um número considerável, ligado a Maria<br />
Amélia Índio; no Paraná há um outro grupo, ligado a José, filho do primeiro casamento de<br />
Sangê; em Pará de <strong>Minas</strong> também residem algumas famílias, através da Mazilte Índio; mas<br />
o maior grupo está na Grande Belo Horizonte, ligados principalmente a “Gilmar” e sua<br />
irmã Isabel, espalhados pelas proximidades da zona industrial, Juatuba, Betim e Caeté.<br />
Somente a família de “Gilmar” soma setenta e três pessoas. Estes porém não se interessam<br />
em retornar para o Vale do Jequitinhonha, pois de lá saíram há muitos anos, mas alguns<br />
sugeriram a aquisição de um território na região de Janaúba para se agruparem ali. Foram<br />
125 Descendentes do famoso Coronel Inácio Murta. A cidade de Coronel Murta recebeu este nome em sua<br />
homenagem.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 153<br />
feitas algumas reuniões com estas famílias, entretanto, é pouco provável que realmente se<br />
engajem na luta. Há outros de paradeiro desconhecido.<br />
9.1.3. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E SITUAÇÃO TERRITORIAL<br />
A principal concentração de famílias Aranã envolvidas na luta, está exatamente na<br />
Fazenda Alagadiço, situada no Município de Coronel Murta, na margem esquerda da<br />
rodovia que liga a referida cidade a Araçuaí. Dista apenas 7 km de Coronel Murta, 33 km<br />
de Araçuaí e cerca de 270 km de Belo Horizonte. A rodovia apresenta um bom estado de<br />
conservação.<br />
A Fazenda Alagadiço foi uma das propriedades da família Murta. Dona<br />
Marianinha, filha do Coronel Inácio Murta, herdou esta fazenda do seu pai e por não deixar<br />
descendentes doou a mesma à Igreja Católica em 1944. No início da década de 1990, o<br />
Bispo da Diocese de Araçuaí decidiu promover uma “reforma agrária” nas terras da<br />
Fazenda Alagadiço, titulando lotes de terra para as famílias de trabalhadores que lá<br />
habitavam. Foi nesta oportunidade que o grupo Pankararu foi beneficiado com 60 ha. de<br />
terra onde estabeleceu a aldeia Apukaré. As quatro famílias diretamente ligadas a Joverdil<br />
Índio – Jóvi – foram beneficiadas com 13 ha. da fazenda e seu irmão Antônio Carlos Índio<br />
arrendou um pedaço da mesma fazenda, ligado àquele do seu irmão, onde trabalha com sua<br />
família, facilitando assim a articulação do grupo e tentando resgatar o sistema de habitação<br />
comunitária 126 . Ali eles habitam em casas muito simples, mas de alvenaria, e enfrentam o<br />
problema de não terem acesso ao Rio Jequitinhonha, que banha aquela região.<br />
Já as famílias ligadas a João Índio, trabalham como agregados na Fazenda Campo,<br />
de propriedade da família Campos, hoje residentes na capital. Esta se localiza também no<br />
município de Coronel Murta porém na zona rural, sendo de difícil acesso. A única forma<br />
de chegar até lá é a cavalo, com muita atenção para não se perder no caminho. Ali habitam<br />
em choupanas muito simples, cobertas de palha, por eles mesmos construídas. É região<br />
árida, com escassez de água principalmente na época da seca que castiga a região.<br />
O desejo de todo o grupo é adquirir posse definitiva destas duas fazendas pois já se<br />
apoderaram delas como seu território tradicional. Entretanto, nem tudo é tão simples, pois<br />
faz-se necessário primeiro o reconhecimento étnico oficial por parte da FUNAI, o que<br />
demanda um laudo antropológico bem complexo favorável à sua indianidade. A ABA<br />
ficou responsável por este laudo e o CEDEFES está providenciando documento similar,<br />
com previsão de conclusão para o ano de 2002.<br />
126 Segundo Geralda Soares, em entrevista do dia 11/02/02.
9.1.4. SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 154<br />
Segundo Geralda Soares 127 , os Aranã falavam uma língua pertencente ao tronco<br />
Macro-Jê e família Botocudo, mas perderam totalmente, sendo falantes do português.<br />
9.1.5. RELIGIOSIDADE<br />
Sofrendo primeiramente o forçado processo de catequese pelos capuchinhos e<br />
posteriormente às proibições e imposições por parte dos fazendeiros, o grupo perdeu quase<br />
totalmente a sua religiosidade tradicional, sendo assimilados pelo catolicismo. Mas cada<br />
concentração de famílias têm demonstrado uma tendência religiosa bem particular.<br />
Desta forma, o grupo da Fazenda Alagadiço é evidentemente católico, sendo<br />
fortemente apegados à veneração de santos, ao culto a Maria e à prática de novenas. Estas<br />
novenas são famosas na região, quando se reúnem para cantar, rezar e fazer peregrinações<br />
de até três quilômetros em atitude de veneração a determinados santos. Na verdade, quase<br />
toda população regional, principalmente da zona rural, pratica estas novenas.<br />
As famílias da Fazenda Campo, apesar de também serem católicas, apresentam<br />
fortes sinais de sincretismo. Praticam alguns rituais que segundo eles foram ensinados pelo<br />
patriarca Pedro Sangê, a quem são atribuídos muitos conhecimentos cerimonias. Este<br />
sincretismo é compreensível, pois o próprio Sangê era sincretista, sendo ao mesmo tempo<br />
curandeiro 128 , benzedeiro e sacristão. Atualmente um dos filhos de Joverdil tem se tornado<br />
conhecido por seus poderes de cura e conhecimento de ervas medicinais.<br />
Já as famílias de Belo Horizonte são quase todas evangélicas, principalmente os<br />
descendentes diretos de “Gilmar”. Na sua maioria pertencem à Igreja do Evangelho<br />
Quadrangular, sendo alguns obreiros da mesma, como o próprio “Gilmar” e dois dos seus<br />
filhos. Um dos seus genros é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. Há evangélicos<br />
de outras igrejas, sendo todos pentecostais. Sobre as famílias de São Paulo, não obtivemos<br />
informações.<br />
9.1.6. ESTUDO DE PODER SOCIAL<br />
Desaldeados e espalhados por várias fazendas, os Aranã foram assimilados pela<br />
cultura regional perdendo o costume de possuir uma liderança do grupo. Como qualquer<br />
127 Idem.<br />
128 Vale aqui ressaltar, que o curandeiro no contexto regional não se limita a manusear ervas medicinais, mas<br />
envolve rituais geralmente de invocação de espíritos e “simpatias” para obter êxito nos tratamentos.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 155<br />
família da zona rural da região, o líder é cada chefe de família que exerce autoridade<br />
geralmente não apenas sobre seus filhos solteiros, mas também sobre os casados e<br />
respectivas famílias, incluindo noras e netos. Mas agora que começam a se agrupar,<br />
algumas pessoas estão tendo ascendência social, despontando assim lideranças. Na<br />
Fazenda Alagadiço, Joverdil e Antônio Carlos são os principais expoentes, por serem os<br />
mais idosos do grupo, mas Raimundo, filho deste último, também tem demonstrado<br />
capacidade de liderança e articulação. Enquanto isto, na Fazenda Campo é o próprio João<br />
quem exerce autoridade.<br />
Entretanto, na cidade de Araçuaí há duas Aranã, Rosa e Terezinha, filhas de Pedro<br />
Sangê, que apesar de serem mulheres são consideradas pelo povo de alguma forma como<br />
líderes. Estas conseguiram estudar e uma se tornou professora. Dado ao nível de formação,<br />
elas detêm maior capacidade de articulação e diálogo com entidades e pessoas envolvidas<br />
na luta, sendo portanto pessoas chaves para todo o grupo.<br />
9.1.7. PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS<br />
Apesar da dispersão eles mantiveram a consciência da sua indianidade, e talvez o<br />
que mais contribuiu para isto foram os encontros familiares. Periodicamente eles<br />
promovem o encontro de todas as famílias para se confraternizarem e firmar os laços<br />
fraternais. Estes encontros são motivos de festa e comemoração para todo o grupo que se<br />
alegra e aproveita para cantar, contar histórias e rezar. Esta é sem dúvida uma das<br />
principais manifestações culturais deste povo, pois evidencia o sentimento de “grande<br />
família”, se distinguindo como segmento diferenciado da sociedade regional.<br />
Nestes encontros, aproveitam ainda para fabricar e ingerir uma bebida muito<br />
peculiar das famílias Aranã, chamada de “chamego”. “Ela é feita a partir de uma planta<br />
corante, conhecida como ‘quiabinho’, garapa de cana e cachaça, como ensinou Pedro<br />
Sangê” (Mattos, 1998.19), e eles afirmam que ninguém fica bêbado ao ingeri-la, mas<br />
apenas “chamegoso”, daí o seu nome. Segundo Geralda Soares 129 , realmente a bebida<br />
possui baixo teor alcoólico. O próprio cultivo do “quiabinho” também é um manifestação<br />
cultural, pois é muito peculiar das suas famílias.<br />
Depois do movimento em busca do reconhecimento étnico, eles passaram também a<br />
produzir artesanato e a praticar a pintura corporal. Entretanto, isto é claramente uma<br />
tentativa de reafirmação cultural e não uma prática preservada. O contato com os<br />
Pankararu os tem influenciado bastante. O território dos mesmos está dividido<br />
129 Em entrevista do dia 11/02/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 156<br />
simplesmente por uma cerca, mantendo assim um próximo convívio e boas relações de<br />
amizade. Não conhecendo a região, pediram ajuda aos Aranã no cultivo da terra e assim<br />
iniciou uma relação que resultou na luta pelo reconhecimento étnico deste últimos.<br />
Os Pankararu procuraram os Aranã para se informarem do que e como se plantava<br />
nesta região, épocas de plantio e colheitas, de onde vinha a água, e começou assim<br />
uma articulação entre eles. Os Aranã, profundos conhecedores da região, inteiraram<br />
os Pankararu, e conscientes de serem índios também, começaram a se reunir com<br />
eles, participando de encontros, visitas, projetos, inclusive a se vestirem e pintarem<br />
como índios, o que não acontecia mais. 130<br />
Foi nestes encontros que conheceram a indigenista Geralda Soares a quem<br />
solicitaram um levantamento da sua história. Desta forma, os Pankararu têm exercido forte<br />
influência cultural sobre o grupo Aranã que anseia pelo resgate da sua cultura.<br />
9.1.8. SOBREVIVÊNCIA<br />
São agricultores de subsistência, vivendo assim do cultivo da terra. Plantam<br />
principalmente milho, feijão e melancia. Agora que produzem artesanato, sempre que<br />
podem procuram comercializá-los. Na Fazenda Campo, por ser bem isolada, vivem de<br />
forma muito peculiar. Sobre isto vale citar as palavras de Mattos (1998.19):<br />
Lá se planta, cria animais de pequeno porte e se caça. A água é pouca e a seca às<br />
vezes castiga a região. Quase autosuficientes, consomem o que podem produzir e<br />
vivem seu modo de vida sem depender da cidade. Os gêneros que precisam<br />
“importar” da cidade, como querosene das lamparinas, sal, etc., são adquiridos aos<br />
sábados, dia de feira, onde se vende ou troca mercadorias por eles produzida.<br />
9.1.9. PROBLEMAS SOCIAIS<br />
9.1.9.1. TERRAS<br />
A principal dificuldade dos Aranã é exatamente a falta de terras. Os da Fazenda<br />
Alagadiço não dispõem de território suficiente para produzir o necessário para a<br />
sobrevivência de todo o grupo, sem contar que parte da pequena terra que cultivam é<br />
arrendada. Os da Fazenda Campo, além de não terem posse da terra onde residem,<br />
enfrentam a mesma dificuldade de insuficiência territorial e agora estão com dificuldades<br />
também para plantar, pois os proprietários não mais permitem a utilização das áreas onde<br />
costumavam plantar à meia, temendo talvez a alegação de usucapião por parte da<br />
comunidade.<br />
130 Idem.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 157<br />
Eles precisam de terras suficientes para unirem todas as famílias interessadas, se<br />
reorganizando definitivamente em grupo. Somente desta forma poderão trabalhar<br />
efetivamente o resgate cultural e a reafirmação étnica que desejam. Um fato negativo é que<br />
o problema territorial é tão gritante para o grupo que às vezes dá-se uma impressão de<br />
estarem mais interessados na posse de terras do que na reorganização etnocultural, ainda<br />
que esta será conseqüentemente inevitável.<br />
9.1.9.2. SECA<br />
A seca castiga toda a região do Vale do Jequitinhonha que chega a ser conhecido<br />
erroneamente como “vale da miséria”, mas o caso particular dos Aranã da Fazenda<br />
Alagadiço tem o agravante de não possuírem acesso a nenhum rio. Seu território de cultivo<br />
é limitado ao norte por uma cadeia de montanhas com um considerável bosque no seu<br />
cume; ao oeste está o território Pankararu; a leste fazendas; e ao sul a rodovia que liga<br />
Araçuaí e Coronel Murta. O Rio Jequitinhonha dista menos de mil metros desta rodovia,<br />
mas há uma gleba impedindo o acesso dos mesmos.<br />
Desta forma, não podendo usufruir dos benefícios do Rio Jequitinhonha, em época<br />
de seca, eles se vêem em grande dificuldade até de sobrevivência. Trata-se de região muito<br />
quente, onde até os poucos animais sofrem com o calor e a falta de vegetação. Seria<br />
necessário um sistema de irrigação para facilitar a produção em épocas de seca, mas<br />
enquanto não obtiverem posse de terras isto é inviável.<br />
9.1.9.3. ESCOLA<br />
As crianças e adolescentes Aranã que desejassem estudar, teriam que percorrer a pé<br />
ou de bicicletas um trajeto de 7 km até a cidade de Coronel Murta, numa rodovia asfaltada<br />
e com considerável fluxo de veículos, o que constituiria uma situação de risco. Tinham que<br />
retornar à noite o que complicava ainda mais. Através da mediação da indigenista Geralda<br />
Soares, que presta serviços para o GTME, a Igreja Metodista alugou uma casa em Coronel<br />
Murta para o grupo que desejasse estudar, o que tem facilitado os estudos pelo menos dos<br />
adolescentes que podem permanecer na cidade.<br />
Entretanto, é evidente que isto não é o ideal, pois neste momento de reafirmação<br />
étnica e resgate cultural, mais do que nunca estes adolescentes deveriam estar com suas<br />
respectivas famílias. Não sendo ainda reconhecidos oficialmente, não podem se beneficiar<br />
dos programas de assistencialismo indígena, como a Escola <strong>Indígena</strong> Diferenciada.
9.1.9.4. DISCRIMINAÇÃO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 158<br />
Historicamente portadores dos estigmas “Índio” e “Cabloco”, são vistos por grande<br />
parte da sociedade regional como uma categoria social inferior. Apesar de ter membros do<br />
grupo de pele vermelha e cabelos lisos e longos, muitos possuem cor quase negra e cabelos<br />
crespos, dado a miscigenação com negros escravos, o que leva alguns a duvidarem da sua<br />
indianidade, influenciados pelo fantasia do “índio puro”. Outros, exatamente por não<br />
duvidarem da sua indianidade os discriminam, pois alimentam preconceitos contra os<br />
“índios”. Esta estigmatização vinha levando “alguns dos nomeados à tendência de eliminar<br />
o sobrenome, tão carregado de significados, das gerações subsequentes” (Mattos, 1998.12).<br />
Isto aconteceu durante anos principalmente nos residentes em cidades, mas vários da zona<br />
rural também eliminaram o sobrenome “Índio” dos seus filhos. Alguns não foram<br />
registrados com este sobrenome por que os cartórios não permitiram, como aconteceu com<br />
sete dos quatorze filhos do “Gilmar”, em Belo Horizonte.<br />
Desta forma, são vistos como mão-de-obra barata ou desclassificada das grandes<br />
fazendas da região, principalmente os da família Caboclo, que vêm de uma realidade<br />
histórica não tão antiga de escravidão. Com a chegada dos Pankararu e dos trabalhos da<br />
indigenista Geralda Soares, bem como o próprio movimento pelo reconhecimento dos<br />
Aranã, a população regional vem sendo conscientizada sobre a questão indígena, mas isto é<br />
um processo lento, que certamente perdurará por alguns anos.<br />
9.1.10. PRESENÇA EVANGÉLICA E/OU MISSIONÁRIA<br />
No grupo do Vale do Jequitinhonha engajado na luta pelo reconhecimento, não há<br />
evangélicos e nenhum trabalho missionário voltado a eles. A única presença evangélica se<br />
faz pelo trabalho do GTME, mas este se limita à assistência social, não se engajando em<br />
trabalhos de proclamação. A obreira do GTME, Geralda Soares, é católica 131 .<br />
9.2. POSSIBILIDADES DE ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
Sendo um povo “emergente” e ainda em processo de reconhecimento étnico, o<br />
desejo e necessidade de reafirmação étnica e cultural é muito grande, podendo levá-los a<br />
resistir ao que vem de fora. Sua tendência no momento pode ser mais de retornar às<br />
práticas de rituais, como acontece na Fazenda Campo, do que dar atenção a uma outra<br />
131 A obreira do GTME entre os Krenak, Marli Castro, também é católica (cf. 4.1.6.2. 2ª Parte).
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 159<br />
“crença”. Entretanto, é óbvio que o seu alto grau de integração com a cultura regional e o<br />
conhecimento do evangelho, ainda que elementar, pela vertente católica, podem ser<br />
abridores de portas, ampliando as possibilidades de abordagens missionárias.<br />
9.2.1. CENTROS ESTRATÉGICOS<br />
Tanto Coronel Murta como Araçuaí seriam boas opções, levando em consideração<br />
que a primeira apesar de distar apenas 7 km possui pouca infra-estrutura, enquanto Araçuaí<br />
já é bem mais estruturada. Inclusive, a indigenista Geralda Soares optou por residir nesta<br />
última cidade, onde possui maiores possibilidades de articulação.<br />
9.2.2. POSSIBILIDADES DE INTEGRAÇÃO COM IGREJAS<br />
DENOMINACIONAIS NÃO INDÍGENAS<br />
Araçuaí possui boas e bem estruturadas igrejas, como a Batista, Presbiteriana e<br />
Assembléia de Deus. Coronel Murta também possui algumas igrejas. A questão básica é a<br />
falta de consciência e visão missionária. Um intenso trabalho de conscientização seria<br />
necessário.<br />
9.2.3. POSSÍVEIS PROJETOS MISSIONÁRIOS<br />
9.2.3.1. ASSISTÊNCIA JURÍDICA<br />
Neste momento quando estão engajados na luta pelo reconhecimento étnico,<br />
precisam muito de orientação e assistência jurídica no processo de articulação e contatos<br />
com entidades e pessoas diversas. A luta por posse de terras também demandará muita<br />
ajuda jurídica, o que abre portas para profissionais da área. A indigenista Geralda Soares já<br />
faz um trabalho de apoio e a indigenista Vanessa Caldeira, do CEDEFES de Contagem,<br />
também tem atuado nesta área, mas a primeira é pedagoga e a segunda antropóloga.<br />
Alguém que possa dar este tipo de assistência a eles seria bem-vindo e por demais útil na<br />
luta dos Aranã.<br />
9.2.3.2. EDUCAÇÃO<br />
Não tendo uma escola no território, profissionais do ensino certamente teriam uma<br />
grande aceitação para trabalhar com as crianças, tanto na Fazenda Alagadiço como na<br />
Fazenda Campo. Talvez a necessidade desta última seja ainda mais gritante nesta área. A
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 160<br />
memória de Pedro Sangê como alfabetizador gera uma simpatia quase instintiva no grupo<br />
em relação a educadores. Isto precisa ser aproveitado.<br />
9.2.3.3. EVANGELISMO E DISCIPULADO<br />
Mas dado ao nível de influência da cultura externa e ao fato de falarem somente o<br />
português, nada impede uma abordagem direta de evangelismo. Uma possibilidade real e<br />
muito estratégica, seria o envio de um obreiro Aranã, do grupo de Belo Horizonte para<br />
trabalhar com o seu próprio povo. Em contato com “Gilmar”, conhecemos o seu filho<br />
Geraldo Magela, que é obreiro da Igreja do Evangelho Quadrangular, e fizemos a ele esta<br />
sugestão, que muito lhe agradou. Além dele, tem o próprio “Gilmar” e seu outro filho<br />
Pedro Paulo, que é missionário Quadrangular. Para tanto seria necessário treinamento do<br />
obreiro, pois todos eles são pessoas dedicadas mas sem qualquer treinamento bíblico-<br />
teológico. Seria necessário também o levantamento de sustento, pois dificilmente suas<br />
igrejas assumiriam a responsabilidade financeira, se bem que esta questão seria<br />
solucionada se o mesmo conseguisse emprego em um dos centros estratégicos. Como na<br />
região já existe a Igreja do Evangelho Quadrangular, o mesmo poderia trabalhar em<br />
parceria com a mesma.
TERCEIRA <strong>PARTE</strong><br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 161<br />
Uma Análise Missiológica das Abordagens<br />
Missionárias na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>
1. ABORDAGENS MISSIONÁRIAS<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 162<br />
As abordagens missionárias em qualquer ambiente indígena têm por objetivo, a<br />
posteriori, gerar transformações sociais as quais mostram-se necessárias segundo os<br />
critérios dos investigadores. Por esta razão, a atuação missionária entre indígenas tem sido<br />
por demais criticada por antropólogos, lingüistas, indigenistas e sertanistas, o que leva<br />
alguns, em reação a estas críticas, a crer na utopia de que o evangelho não muda a cultura.<br />
Isto tornou-se um “mito” no meio evangélico e, até mesmo missionário, que precisa ser<br />
combatido. Vale citar as palavras do missiólogo Ronaldo Lidório (2001a.29):<br />
O evangelho respeita a cultura entretanto é inocência missiológica afirmarmos que<br />
o evangelho não muda a cultura. A própria razão do evangelho vem com o<br />
pressuposto de transformação.<br />
Em contrapartida, é preciso também entender que “transformação” não é sinônimo<br />
de “destruição”, ou seja, o evangelho causa mudanças, mas não necessariamente destruição<br />
cultural. A idéia de que o trabalho missionário destrói a cultura indígena é outro “mito”<br />
alimentado e difundido por aqueles que criticam a atuação missionária. E aqui podemos<br />
novamente citar Lidório (2001a.29,30):<br />
“A ação missionária contribui para a destruição étnico-cultural”. Um grave engano.<br />
Começamos pelo movimento lingüístico onde o missionário lingüista grafa o<br />
idioma nativo e alfabetiza os indígenas em sua própria língua assegurando que esta<br />
língua materna não morrerá como aconteceu com mais de 35 grupos indígenas que<br />
falam apenas o português e com grave descaracterização cultural. Portanto não<br />
promovemos o etnocídio nem a etnofagia cultural.<br />
O resultado da abordagem missionária será sempre transformação, e é nesta<br />
perspectiva que queremos neste capítulo fazer uma breve análise das abordagens que já<br />
foram adotadas por missionários e agências junto aos indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais, tecendo<br />
algumas considerações que cremos ser relevantes para futuras abordagens. Vale ressaltar,<br />
que aqui estarão em foco as abordagens, as estratégias, e não a pessoa dos missionários<br />
que, sem exceção são servos fiéis que dedicaram e/ou dedicam suas vidas para que o reino<br />
seja expandido entre estes grupos indígenas do Estado.
2. ABORDAGEM LINGÜÍSTICA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 163<br />
A abordagem lingüística utiliza-se das técnicas ou ferramentas lingüístico-<br />
antropológicas para estabelecer um contato real e comunicativo com o povo, resultando<br />
geralmente em análise e grafia da língua materna, alfabetização e tradução bíblica. Trata-se<br />
de uma abordagem que exige muita responsabilidade, bem como capacidade técnica, sendo<br />
na maioria das vezes um trabalho de vários anos. Muita dedicação, paciência e integração<br />
social com o povo se faz necessário, pois não é possível fazer um estudo apenas<br />
lingüístico, é sim necessário uma compreensão macro-cultural.<br />
No Brasil <strong>Indígena</strong>, esta abordagem tem sido um dos principais instrumentos de<br />
preservação cultural nos vários grupos que recebem missionários lingüistas. Os primeiros<br />
trabalhos nesta área tiveram início ainda em 1928 com a Missão Caiuá, que atuando entre<br />
os Caiuá registraram seu idioma e criaram cartilhas de alfabetização, que vieram a se<br />
tornar instrumentos de preservação tanto lingüística como cultural. Em 1946, tiveram<br />
início os trabalhos da NTM – New Tribes Mission 132 e dez anos depois chegaram os<br />
missionários da WBT – Wycliffe Bible Translators e SIL – Summer Institute of<br />
Linguistics 133 (Souza, 1996.38,39), tendo este último, como um dos alvos principais,<br />
grupos indígenas que estavam sob ameaça de extinção. Sua abordagem consistia<br />
basicamente na análise lingüística, elaboração de cartilhas, educação na língua materna e<br />
tradução bíblica. Foi a partir do trabalho destes missionários que a abordagem lingüística<br />
passou a ser efetivamente adotada entre indígenas do Brasil. Grupos que outrora estavam<br />
em acelerado processo de extinção passaram a experimentar um considerável crescimento<br />
populacional.<br />
Na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>, o único grupo a receber esta abordagem foi os Maxakali, que<br />
em 1959 receberam, através do SIL, o casal de missionários lingüistas Harold e Frances<br />
132 Em 1953 criou razão social nacional como MNTB – Missão Novas Tribos do Brasil, incluindo brasileiros<br />
no seu rol de membros até se tornar totalmente nacional.<br />
133 Hoje Sociedade Internacional de Lingüística.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 164<br />
Popovich (cf. 3.1.6.1. 2ª Parte). Nesta época os Maxakali estavam em processo de<br />
extinção, como comenta a própria Frances Popovich 134 :<br />
O atual diretor da SIL no Brasil pediu que fossemos para os Maxakali, já que<br />
estavam em fase de extinção (havia apenas 197 remanescentes).<br />
Harold e Fances Popovich são americanos, na época ele formado em Zoologia<br />
Química-Física (1951) e ela em enfermagem psiquiátrica (1951) e enfermagem geral<br />
(1955). Fizeram o curso lingüístico de verão do SIL em duas etapas (1956 e 1957).<br />
Chegaram ao Brasil em março de 1958, estudaram português por dois meses no Rio de<br />
Janeiro e por três meses em Anápolis, se dirigindo para a aldeia Maxakali em fevereiro de<br />
1959, quando iniciaram o aprendizado da língua no método monolingüe. Em 1962 iniciam<br />
a tradução do Novo Testamento que seria concluída somente em 1979, impresso em 1980 e<br />
distribuído em 1981.<br />
2.1. ÁREAS DE ATUAÇÃO<br />
2.1.1. ANÁLISE DA LÍNGUA MATERNA<br />
Os Popovich foram os primeiros lingüistas a analisar a língua Maxakali, grafando a<br />
mesma que até então era ágrafe. Como os Maxakali não falavam – e até hoje a maioria não<br />
fala – o português, o método de aprendizado foi monolingüe, e segundo o próprio Harold<br />
Popovich (Antunes, 1999.ii), o processo não foi nada fácil:<br />
A Análise fonológica de Maxakali demorou por causa da sua complexidade.<br />
Levaram três anos para concluir enquanto a média é de seis meses. Começamos o<br />
estudo em 1959 e terminamos em 1962.<br />
A partir desta primeira análise, alguns outros lingüistas se aventuraram a estudar a<br />
língua Maxakali, mas todos usando como ponto de partida a análise realizada pelos<br />
Popovich.<br />
2.1.2. ELABORAÇÃO DE CARTILHAS<br />
O casal elaborou cinco cartilhas de aprendizado da língua, as quais foram<br />
posteriormente revisadas por outros lingüistas mas até hoje são usadas na alfabetização das<br />
crianças na Escola <strong>Indígena</strong> Diferenciada, implantada nas aldeias por iniciativa<br />
governamental.<br />
134 Em correspondência pessoal do dia 11/01/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 165<br />
Infelizmente, durante o trabalho de tradução não foi possível realizar um trabalho<br />
de alfabetização em maior escala, como novamente comenta o próprio Harold Popovich<br />
(Antunes, 1999.ii):<br />
Juntos com os índios Maxakali, desenvolvemos o primeiro conjunto de cartilhas.<br />
Somente uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever.<br />
Estas cartilhas são: cartilha 1 – Patap’; cartilha 2 – Kokex; cartilha 3 – Mõmõka; e<br />
cartilha 4 - Yãyã’ (Popovich, 1992a, b, c e d).<br />
2.1.3. TRADUÇÃO BÍBLICA<br />
Como já mencionado, o trabalho efetivo de tradução do Novo Testamento cobriu<br />
um período de dezessete anos (1962-1979), excluindo aqui o período de aprendizado,<br />
análise da língua e impressão. Foi um tempo árduo e de muito trabalho, com vários<br />
imprevistos e dificuldades, como enfermidades, revolta do povo contra fazendeiros, pouco<br />
interesse em aprender a ler e escrever, e ainda o estado de miséria do povo que vivia<br />
totalmente à margem da sociedade regional, sendo por ela discriminado. Várias campanhas<br />
de incentivo à leitura foram feitas, mas todas com pouco sucesso 135 .<br />
Ainda assim, o resultado foi uma tradução do Novo Testamento completo e de<br />
excelente qualidade. Mesmo depois de algumas décadas, tendo a língua sofrido<br />
consideráveis modificações ou evolução, os próprios Maxakali elogiam a tradução como<br />
ainda atual e compreensível a todos 136 .<br />
2.1.4. ASSISTÊNCIA DE SAÚDE<br />
Sendo a missionária Frances também enfermeira, além do trabalho lingüístico, ela<br />
atendia ao povo na área de saúde, fazendo curativos, aplicações e afins, sendo assim<br />
recordada como “mulher muito boa”. “Dona Francisca”, como era chamada e até hoje<br />
recordada por eles, se tornou conhecida em toda a região, principalmente nas fazendas<br />
vizinhas da aldeia, sendo procurada até por não-índios para atendimentos de saúde.<br />
O senhor Jorge Cardoso, mais conhecido como “Dodi”, hoje morador da cidade de<br />
Santa Helena, recorda com carinho quando naquela época ainda adolescente, recebeu<br />
cuidados da “Dona Francisca” num ferimento que teve na perna: “Sempre que olho para<br />
esta marca me lembro da Dona Francisca. Ela ainda é viva?” 137<br />
135 Segundo Frances Popovich. Idem.<br />
136 Zezinho Maxakali, em entrevista do dia 08/02/02.<br />
137 Em entrevista do dia 06/08/02.
2.2. EFEITOS POSITIVOS<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 166<br />
Reafirmação Lingüística – Reduzidos a um pequeno grupo, sofrendo forte pressão<br />
e influência externa, inclusive com não-indígenas vivendo com eles na aldeia, a tendência<br />
era perder totalmente a sua língua materna como aconteceu com quase todos os grupos<br />
indígenas do leste do país. Mas com o estudo lingüístico que foi realizado, bem como com<br />
o processo de tradução demandando informantes e revisores, a língua foi valorizada e o<br />
povo incentivado a preservá-la. Quando da distribuição do Novo Testamento foi feita uma<br />
campanha de alfabetização, numa parceira da SIL, FUNAI e UFJF – Universidade Federal<br />
de Juiz de Fora (1980-1984), tendo como um dos principais objetivos a preservação da<br />
língua materna (Antunes, 1999.v). Foi criado o curso de alfabetização bilíngüe, oferecido a<br />
vinte a quatro líderes Maxakali, que na sua maioria tornaram-se professores efetivos de<br />
suas aldeias, quando implantada a Escola <strong>Indígena</strong> Diferenciada em 1996. O povo passou a<br />
se orgulhar em falar uma língua própria, pois agora até a sociedade externa os admirava<br />
por isto, enquanto antes, era motivo de depreciação. Ao serem argüidos acerca dos<br />
benefícios desta abordagem, os próprios Maxakali não hesitam em apontar a questão<br />
lingüística como o principal legado dos missionários 138 .<br />
Preservação Étno-populacional – Em 1959 eram apenas cento e noventa e sete<br />
indivíduos, em acelerado processo de extinção, hoje são cerca de mil pessoas em acelerado<br />
processo de crescimento populacional. Vale lembrar que na década de 1960 eles estiveram<br />
totalmente abandonados pelos órgãos governamentais, pois o SPI estava em processo final<br />
de desestruturação (cf. 5.1. 1ª Parte). A FUNAI só veio dar uma maior assistência na<br />
década de 1970 (cf. 5.3. 1ª Parte) e as várias ONG’s e outros órgãos governamentais na<br />
década de 1980 (cf. 5.4.3. 1ª Parte). Sendo assim, a preservação étnica dos Maxakali deve-<br />
se em grande parte à atuação dos missionários, exatamente neste momento histórico de<br />
tamanha carência. A assistência de saúde em muito contribuiu para a repopulação,<br />
principalmente evitando a morte dos recém-nascidos, e a simples presença dos<br />
missionários na aldeia serviu de inibição à ação de fazendeiros e outros opressores<br />
externos sobre o povo.<br />
Aplicação Cultural do Termo Topa (Deus) – Até então, o termo Topa estava<br />
adormecido na sua cosmologia (cf. 3.1.4.2. 2ª Parte). Eles sempre creram na existência de<br />
Topa como criador de todas as coisas, mas não criam na possibilidade de reestabelecer<br />
relacionamento com Ele algum dia. Isto foi reavivado na memória cultural do povo,<br />
138 Nas entrevistas com Zezinho Maxakali (08/02/02) e Maria Diva (07/02/02).
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 167<br />
certamente trazendo expectativas e esperanças. Prova disto é o clamor que eles levantaram<br />
a Topa, em 1971, pedindo libertação dos espíritos opressores. Infelizmente, ao que parece<br />
faltou uma resposta a esta expectativa. O próprio uso do nome tribal para Deus foi por<br />
demais positivo, pois aponta uma valorização não apenas da língua mas também da<br />
cosmologia. Esta escolha foi muito feliz, pois a descrição que eles fazem de Topa confere<br />
com os atributos bíblicos de Deus.<br />
Reconhecimento do Trabalho Missionário na Ótica Lingüista-antropológica –<br />
Dado à qualidade e seriedade do trabalho realizado, mesmo os indigenistas, lingüistas e<br />
antropólogos mais críticos tem sido constrangidos a reconhecer a contribuição destes<br />
missionários ao povo Maxakali. Alguns têm omitido o trabalho deles, por não encontrar<br />
argumentos sólidos para crítica. Isto é positivo pois contribui para a mudança da visão dos<br />
profissionais das ciências humanas em relação aos missionários.<br />
2.3. EFEITOS NEGATIVOS<br />
Não resta dúvida de que o trabalho em foco alcançou com sucesso seu objetivo, que<br />
sempre foi a tradução do Novo Testamento. Mas analisando a abordagem como um todo,<br />
talvez possamos apontar alguns pontos negativos da mesma, não por deficiência dos<br />
missionários, mas pelas circunstâncias em si.<br />
Impossibilidade de Leitura – Como já citado, o próprio Harold menciona que<br />
“somente uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever”, ou seja, foi traduzido um Novo<br />
Testamento para não leitores. Infelizmente isto não é novidade, pois segundo Lidório<br />
(2001a.19), ainda hoje apenas trinta por cento dos missionários tradutores conseguem<br />
traduzir e alfabetizar ao mesmo tempo, ou seja, não sendo realizado trabalho em equipe as<br />
possibilidades de traduzir bíblias para não leitores são grandes. Com a campanha de<br />
alfabetização realizada na entrega do Novo Testamento, houve realmente uma valorização<br />
da língua por parte do povo, entretanto, neste processo houve também um intervalo de<br />
aproximadamente dez anos desde a saída do casal Popovich até a chegada de novos<br />
missionários. Neste período, uma forte influência de antropólogos, lingüistas e pedagogos<br />
foi exercida sobre todo o povo, levando-os a tratar com descaso o Novo Testamento. Se<br />
um número expressivo de indígenas tivesse sido alfabetizado durante o processo de<br />
tradução, poderia até ter sido criado núcleos de alfabetização nos vários agrupamentos
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 168<br />
residenciais, usando como primeira literatura o Novo Testamento. Isto poderia causar um<br />
impacto sem precedentes na história daquele povo.<br />
Desinteresse pelo Texto Sagrado – Sendo a abordagem feita por apenas um casal,<br />
não foi plantada uma igreja, sendo o trabalho de evangelização feito de forma bem<br />
asistemática, como comenta a própria Frances Popovich: “A orientação na fé se fez<br />
principalmente na mesa de tradução” 139 . Segundo ela, houve um mover de Deus sobre o<br />
povo, mas não chegou a ser organizada uma igreja:<br />
acrescenta:<br />
A gente testemunhou um movimento do Espirito Santo no meio dos Maxakali em<br />
1971. Que alguns se converteram não duvido, mas o que mais vi foram pessoas<br />
impressionadas com a realidade da existência de Deus. Eu nunca disse que o povo<br />
se converteu em grande número. Simplesmente não sei. 140<br />
Em outra correspondência, se referindo ao mesmo mover de Deus entre eles,<br />
(...) os Maxakali (durante uma ausência nossa do campo) clamou para Topa (Deus)<br />
pela libertação dos espíritos que oprimiam. Um grande numero reconheceu a<br />
realidade de Deus. 141<br />
Desta forma, o resultado foi um povo com Bíblia mas sem igreja, logo, o interesse<br />
de leitura desta Bíblia é pouquíssimo. Quando da distribuição em 1981, todas as famílias<br />
receberam um exemplar, mas atualmente, não mais que quinze pessoas conservam o Novo<br />
Testamento. Alguns por serem professores o utilizam muito esporadicamente para<br />
aperfeiçoar sua leitura – não mais que quatro – e outros o guardam como uma recordação<br />
do saudoso “amigo Aroldo”. Muitos exemplares foram vendidos ou doados,<br />
principalmente para pastores e “crentes” que visitam as aldeias e querem ter um exemplar<br />
do Novo Testamento Maxakali – talvez simplesmente para dizer: estive lá. Outros<br />
simplesmente foram destruídos por falta de interesse, ou ainda pela influência de<br />
antropólogos, lingüísticas e até mesmo missionários do CIMI que apontam o Novo<br />
Testamento como algo danoso à sua cultura. Numa correspondência pessoal a antropóloga<br />
Maria Hilda Paraíso, que exerce muita influência sobre os Maxakali, comentou: “graças a<br />
Deus, a única coisa para a qual os Maxakali usam a Bíblia, é para assento”.<br />
Como o trabalho de tradução é árduo e exige tempo, ainda hoje, em algumas<br />
agências, os missionários tradutores são orientados a não se envolverem com plantio de<br />
igrejas, pois correm o risco de não darem conta das duas coisas. O exemplo dos Maxakali<br />
deve servir como um alerta. É válido lembrar que depois de vinte anos de desinteresse por<br />
139 Em correspondência do dia 11/01/02.<br />
140 Em correspondência do dia 01/10/01.<br />
141 Na correspondência de 11/01/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 169<br />
uma Bíblia disponível na sua própria língua, é difícil motivar um povo como este à prática<br />
da leitura e estudo da mesma. É mais estratégico traduzir a Bíblia para línguas que já têm<br />
igrejas plantadas, como instrumento de amadurecimento da fé e auto-teologização. É<br />
preciso repensar a prioridade na ordem das abordagens missionárias.<br />
2.4. ALGUMAS SUGESTÕES<br />
Atualmente, dois dos oito grupos indígenas de <strong>Minas</strong> ainda poderiam ser alvos da<br />
abordagem lingüística. O deliberado esforço dos Krenak pelo resgate da língua materna<br />
(cf. 4.1.4. e 4.2.5.2. 2ª Parte), abre portas para a atuação de lingüistas. A sua língua ainda<br />
não foi devidamente analisada e grafada. A grafia por eles utilizada é uma adaptação do<br />
português, feita pelos próprios indígenas, sem qualquer critério lingüístico. Um estudo foi<br />
iniciado mas não pôde ser concluído por problemas de relacionamento da lingüista com o<br />
povo, deixando assim um precedente negativo. Mas com amizade, isto pode ser superado.<br />
Os Xukuru-Kariri é o outro grupo que pode ser alvo desta abordagem. O seu grande<br />
desejo de firmar novamente a língua materna como sinal de reafirmação étnico-cultural (cf.<br />
7.1.3. 2ª Parte), abre portas para um trabalho missionário de resgate lingüístico. No seu<br />
caso seria um pouco mais difícil, pois há poucos falantes e, pelo que parece, com pouca<br />
fluência, mas de qualquer forma é uma porta aberta.<br />
Não resta dúvidas de que a abordagem lingüística foi de grande importância e<br />
relevância para o povo Maxakali. As considerações aqui levantadas visam apenas chamar a<br />
atenção para o fato de que se a mesma houvesse sido conjugada com uma abordagem<br />
kerygmática, por exemplo, os efeitos positivos poderiam ser muito maiores.
3. ABORDAGEM KERYGMÁTICA 142<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 170<br />
Esta abordagem utiliza-se da transmissão de uma mensagem com conteúdo<br />
religioso e proposta espiritual a fim de gerar transformações na dimensão das convicções e<br />
práticas religiosas do povo, redundando numa conseqüente transformação sociocultural.<br />
Partindo do pressuposto de que o evangelho é supra-cultural, as transformações por ele<br />
causadas se configuram numa remissão da cultura que se encontra infestada de mazelas e<br />
deturpações introduzidas por espíritos malignos que dominam o povo através do engano.<br />
Ao contrário do que muitos pensam, os indígenas não vivem em clima de completa<br />
harmonia com a natureza e com o seu mundo espiritual (Souza, 2001). Os Maxakali, por<br />
exemplo, como são os mais arraigados em sua religiosidade tradicional, apresentando um<br />
complexo quadro religioso animista, praticam muitos rituais onde há danças e cânticos em<br />
abundância. A leitura feita por muitos é a seguinte: apesar das muitas dificuldades, é um<br />
povo feliz, pois vive cantando. Em conseqüência desse tipo de leitura, foi lançado um<br />
filme com o nome “Maxakali – Povo do Canto”, enaltecendo o espírito alegre deste povo.<br />
Entretanto, uma leitura mais crítica e profunda, revelaria que muitas das suas cantorias e<br />
danças indicam um estado de profunda tristeza e opressão, pois são feitas como<br />
apaziguamento da fúria dos espíritos ou agradecimento a eles. Ou seja, os grupos indígenas<br />
animistas ou sincretistas, vivem uma realidade espiritual de opressão e domínio das trevas,<br />
numa desesperada procura por redenção.<br />
A abordagem kerygmática visa proporcionar liberdade a estes povos através da<br />
pregação do evangelho, como único meio de libertação e redenção. Esta abordagem é<br />
ampla, podendo ser aplicada através de várias frentes de atuação ou ênfases estratégicas,<br />
mas via de regra com o objetivo de plantar uma igreja indígena. Na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>,<br />
constatamos a abordagem kerygmática entre os Maxakali, Xacriabá, Pataxó e mais<br />
recentemente entre os Krenak.<br />
142 De κηρυγμα – “proclamação”. Quanto às conceituações teológicas, ver PACKER (1966.36).
3.1. ÁREAS DE ATUAÇÃO<br />
3.1.1. ENSINO BÍBLICO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 171<br />
É também entre os Maxakali que esta frente de atuação se faz presente, através da<br />
equipe da MNTB (cf. 3.1.6.2/3. 2ª Parte). Usando como base o livro “Alicerces Firmes”,<br />
da referida Missão, a idéia é ensinar paulatinamente, de forma simples e muito consistente,<br />
os fundamentos da fé cristã, expondo todo o Antigo Testamento como alicerce do Novo,<br />
bem como a vida, ensino, sacrifício e ressurreição de Jesus, através de sessenta e oito<br />
lições que devem ser traduzidas para a língua materna e ensinadas ao povo, de forma<br />
cronológica, na expectativa de que com a compreensão da Bíblia, o Senhor os leve à<br />
conversão. Há todo um cuidado para evitar o sincretismo.<br />
Formada por dois casais de missionários, esta equipe já está atuando entre eles há<br />
dez anos. Após alguns anos trabalhando com os Zo’é no Pará e depois com os Pankararu<br />
em Pernambuco, o missionário Ronaldo Lima casou-se com a também missionária Kátia,<br />
vindo trabalhar como casal entre os Maxakali, em março de 1992. Ambos fizeram os<br />
cursos teológico e lingüístico oferecidos pela MNTB, e atualmente ele é o responsável pela<br />
tradução e ela pela elaboração de um dicionário da língua. O casal Adair e Zilene Gomes,<br />
após concluírem instituto bíblico e lingüístico da MNTB, formou equipe com aquele<br />
primeiro casal, em abril 1992. Ele é o responsável pela coleta de dados culturais e ela pela<br />
análise e descrição da cultura.<br />
Com visão específica de plantar igrejas, os dois casais foram introduzidos e<br />
apresentados à tribo pelo próprio Harold Popovich e iniciaram o aprendizado da língua e<br />
cultura. Até fevereiro de 2002 haviam traduzido 35 das 68 lições bíblicas do “Alicerces<br />
Firmes”, mas o processo efetivo de ensino bíblico através do estudo das referidas lições foi<br />
iniciado em meados de 2000 143 . Residindo em Batinga, na Bahia, concentraram esforços<br />
primeiramente na aldeia do Pradinho, mas, recentemente, voltaram seus esforços para a<br />
aldeia de Água Boa, que fica ainda mais distante.<br />
3.1.2. EVANGELISMO PESSOAL<br />
Novamente presente nos Maxakali, a abordagem kerygmática com ênfase no<br />
evangelismo pessoal foi utilizada pelo missionário João Maria Silva, da Igreja Assembléia<br />
de Deus de Belo Horizonte (cf. 3.1.6.5. 2ª Parte). Bacharel em teologia, após alguns anos<br />
trabalhando como obreiro na cidade de Entre Rios, interior de <strong>Minas</strong> Gerais, foi enviado<br />
143 Segundo o missionário Ronaldo Lima, em entrevista do dia 09/02/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 172<br />
pela referida igreja para trabalhar com os Maxakali de Água Boa, em agosto de 1999.<br />
Fixando residência em Santa Helena de <strong>Minas</strong>, a 12 km da aldeia, e posteriormente em<br />
Machacalis, a 24 km desta última, lá permaneceu até julho de 2001. Visitando a aldeia<br />
diariamente e depois semanalmente, seu trabalho consistiu em visitas às várias famílias<br />
testificando do evangelho em português, pois não aprendeu a língua, se limitando assim ao<br />
evangelismo dos poucos bilingües. Deixou o campo sem presenciar conversões 144 .<br />
Bem recentemente, o mesmo tipo de abordagem passou a ser adotada por um novo<br />
casal de missionários entre os Maxakali. Se trata de Agustinho (Aguigu) e Nelice<br />
Cipriano, enviados numa parceria de igrejas Presbiterianas e Assembléias de Deus,<br />
mediada pela Missão Horizontes em maio de 2002, com objetivo de plantar igrejas (cf.<br />
3.1.6.6. 2ª Parte). Residindo também em Santa Helena de <strong>Minas</strong>, começaram logo a<br />
evangelizar os indígenas que quase diariamente vão àquela cidade, pois não têm<br />
autorização para atuar na aldeia. O missionário Agustinho é índio Makuxi e isto causou um<br />
forte impacto no povo, pois perceberam que alguém pode perfeitamente ser cristão e<br />
continuar sendo índio. Em julho deste ano, o índio Zezinho Maxakali se entregou a Cristo<br />
com sua família 145 . Obviamente estes missionários apenas colheram o que há anos vinha<br />
sendo semeado, mas aponta um interessante fator que consideraremos mais à frente.<br />
Esta abordagem se faz presente também entre os Pataxó, através da atuação das<br />
Igrejas Assembléia de Deus e Pentecostal Missionária da cidade de Carmésia (cf. 5.1.9. 2ª<br />
Parte). Os obreiros locais de ambas as igrejas semanalmente visitam a aldeia dando<br />
assistência aos que já se decidiram por Jesus e realizando cultos evangelísticos nos lares. O<br />
evangelismo é feito de forma bem pessoal e informal, prezando pela amizade e confiança.<br />
Têm obtido bons resultados, pois cerca de trinta pessoas já se decidiram por Jesus 146 .<br />
A mesma abordagem ainda se faz presente entre os Krenak, também pela atuação<br />
da Assembléia de Deus, só que desta vez da cidade de Independência (cf. 4.1.7. 2ª Parte).<br />
Dado a forte resistência do grupo, irmãos voluntários desta igreja iniciaram um trabalho de<br />
evangelismo na aldeia mais isolada, de forma sorrateira e muito pessoal. Lentamente,<br />
alguns foram se interessando pelo evangelho e hoje já reúne cerca de vinte pessoas.<br />
3.1.3. CONFRONTO DE PODERES<br />
144 Entrevista do dia 20/01/02.<br />
145 Conforme correspondência pessoal da missionária Marlene Martins, de 08/07/02.<br />
146 Conforme entrevista com o Pr. Alvenir Costa, no dia 09/05/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 173<br />
Os Xacriabá têm sido há vários anos alvos da abordagem kerygmática com ênfase<br />
em confronto de poderes, ou, mais especificamente, libertação espiritual e curas divinas,<br />
através do trabalho de três igrejas locais de cidade vizinhas.<br />
A partir de um trabalho em São João das Missões, irmãos voluntários da<br />
Congregação Cristã no Brasil começaram a evangelizar os indígenas resultando em<br />
várias conversões. O trabalho teve continuidade e hoje somam cerca de noventa pessoas<br />
em oito aldeias diferentes, sendo assistidas por um obreiro voluntário, do vilarejo de<br />
Rancharia (cf. 2.1.6.1. 2ª Parte).<br />
Inicialmente sob a responsabilidade da sua sede na cidade de Manga, a Igreja<br />
Pentecostal Deus é Amor iniciou um trabalho em algumas aldeias, contando hoje com<br />
cerca de sessenta convertidos, sendo agora atendidos pelo obreiro da cidade de Itacarambi.<br />
Uma igreja pentecostal da cidade de São João das Missões chamada Alfa e Ômega também<br />
iniciou um pequeno trabalho na reserva, mas não podendo dar continuidade seus membros<br />
se transferiram para a referida Igreja Deus é Amor (cf. 2.1.6.2. 2ª Parte).<br />
Sob a responsabilidade da sede em Manga, obreiros da Assembléia de Deus<br />
iniciaram um trabalho em duas aldeias, há cerca de quatro anos, contando hoje com trinta e<br />
duas pessoas (cf. 2.1.6.3. 2ª Parte). Em cada aldeia ordenaram um diácono para liderar o<br />
trabalho, ambos pessoas simples e semi-analfabetas, mas de liderança, sendo<br />
supervisionados por um presbítero de Manga que dá assistência ao trabalho todas as<br />
quintas-feiras. Proibidos pela FUNAI de construir templo dentro da reserva, construíram<br />
um pequeno salão na outra margem do Rio São Francisco, fora do território indígena, mas<br />
perto das duas aldeias. Assim, os membros precisam apenas atravessar o rio para participar<br />
das várias reuniões semanais 147 .<br />
Todos os três trabalhos têm uma forte ênfase na libertação espiritual, por entender<br />
que o povo vive sob opressão maligna, sendo muitos possessos de espíritos imundos.<br />
Pratica-se com freqüência exorcismos e uma forte ênfase também é dada a curas divinas,<br />
como demonstração do poder de Deus, pois muitas vezes enfermidades são diagnosticadas<br />
como obra dos espíritos imundos.<br />
3.2. EFEITOS POSITIVOS<br />
147 Conforme entrevista com o Pr. Édson Campos, no dia 10/04/02.
3.2.1. ENSINO BÍBLICO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 174<br />
Valorização da Língua – Pelo fato dos missionários se comunicarem na língua<br />
materna do povo, os indígenas se sentem valorizados em ver um não-índio falando o seu<br />
idioma, gerando consequentemente boa receptividade tanto dos missionários como da<br />
mensagem por eles pregada. Isto aponta para o valor do aprendizado da língua por parte do<br />
missionário.<br />
Forum para Melhor Entendimento do Universo <strong>Indígena</strong> – Havendo um bom<br />
relacionamento de amizade entre missionários-indígenas, há liberdade para diálogo e<br />
compreensão cultural. Isto é significativo pois somente compreendendo a cosmovisão<br />
indígena o evangelho poderá ser apresentado de forma relevante para aquela cultura.<br />
Complementação Cosmológica – A consistência dos estudos que vêm sendo<br />
ministrados tem preenchido as lacunas da cosmologia tribal com verdades bíblicas. Por<br />
exemplo, os Maxakali não possuem um mito para a criação do homem 148 , mas em<br />
conseqüência do ensino acerca de Gênesis, alguns já começam a aceitar o relato bíblico da<br />
criação como verdadeiro, situando-o antes do seu mito do dilúvio 149 . Isto aponta a<br />
importância do estudo da cosmologia tribal, pois desta forma o evangelho vai se infiltrando<br />
na consciência étnico-cultural do povo.<br />
3.2.2. EVANGELISMO PESSOAL<br />
Impacto das Conversões Sobre o Restante do Povo – Especialmente entre os<br />
Pataxó e Krenak, com a conversão de alguns indígenas o restante do grupo tem percebido<br />
que é possível ser cristão sem deixar de ser indígena. Sendo possuidores de certo<br />
conhecimento do evangelho pela vertente católica romana, tem sido possível praticar um<br />
evangelismo que exige respostas, e estas estão sendo positivas.<br />
Impacto de Um Obreiro <strong>Indígena</strong> – É difícil avaliar a recente abordagem<br />
kerygmática junto aos Maxakali em termos de efeitos, pois está apenas no seu início, mas<br />
não podemos deixar de mencionar a conversão de Zezinho Maxakali juntamente com sua<br />
família. Em correspondência pessoal 150 a missionária Marlene Martins, aponta como fator<br />
propiciador a presença do recém-chegado missionário Agustinho (Aguigu), devido ao<br />
mesmo ser indígena também. Segundo ela, esse fato impactou fortemente a Zezinho<br />
Maxakali que apesar de ser um dos professores e líderes mais influentes de toda a tribo, e<br />
148 Sempre que interrogados sobre, remontam ao mito do dilúvio como sendo a origem dos Maxakali, mas o<br />
mesmo pressupõe a já existência de pessoas (ver Anexo 01: 2.1. O Dilúvio).<br />
149 Na entrevista com Maria Diva, do dia 07/02/02.<br />
150 De 08/07/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 175<br />
também um dos únicos realmente bilingüe, tinha um sério problema com álcool, bebendo<br />
constantemente. Com a chegada de Agustinho e a abordagem evangelística do mesmo,<br />
Zezinho parou de beber e depois de quinze dias sem experimentar álcool – fato até então<br />
inusitado – confessou a Jesus como Salvador e Senhor já testemunhando uma leveza em<br />
seu coração.<br />
Este fato nos aponta uma estratégia que precisa ser explorada no trabalho<br />
missionário entre indígenas do nosso país: obreiros indígenas trabalhando com os próprios<br />
indígenas. Obviamente se trata apenas da colheita de uma semeadura que vinha sendo feita<br />
no coração daquele homem, certamente desde os seus tempos de infância no convívio com<br />
os Popovich, e continuada através dos demais missionários, mas de qualquer forma este<br />
fato é por demais relevante. A comunicação estrangeiro ou nacional-nativo por melhor que<br />
seja jamais será igual à comunicação nativo-nativo. Vale aqui levantar a questão dos<br />
“índios citadinos” 151 . Talvez seja viável investir na evangelização destes indígenas que<br />
vivem em cidades, treiná-los como obreiros e enviá-los novamente aos seus respectivos<br />
povos como missionários, sob a supervisão de obreiros nacionais já experientes na área.<br />
Temos aqui também um caso clássico das três “ondas” missionárias (Souza,<br />
1996.36-37), ou seja, “estrangeira” – SIL com os Popovich; “nacional” – MNTB com os<br />
Lima e Gomes, Assembléia de Deus com o João Maria e Emanuel com a Marlene Martins;<br />
e “indígena” – Horizontes com os Cipriano. Observemos ainda, que as duas últimas<br />
“ondas” estão conjugadas, pois o casal Cipriano está atuando em parceria com Marlene<br />
Martins e os casais Lima e Gomes, pesando ainda o fato de serem apoiados por uma<br />
Missão nacional não-indígena. Isto é extraordinário, pois se conjugada toda a técnica<br />
estrangeira, com a experiência nacional e a capacidade nata indígena, podemos ter aí uma<br />
“grande onda”, forte o suficiente para, sob o mover de Deus, mudar a atual realidade<br />
indígena brasileira.<br />
3.2.3. CONFRONTO DE PODERES<br />
Redefinição Cosmológica – A ênfase no rompimento com as práticas sincréticas, a<br />
pregação que exige resposta decisória e a prática de exorcismos, tem redefinido a<br />
cosmologia Xacriabá, ao desmascarar os espíritos com os quais se relacionam<br />
demonstrando que estes são enganadores, manipuladores do mal.<br />
Expectativa de Libertação – Isso tem gerado esperanças no grupo, ao demonstrar<br />
que há possibilidade de libertação n’Aquele que é Todo-Poderoso. Não resta dúvidas que<br />
151 Termo antropológico recente usado para os indígenas que vivem em cidades.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 176<br />
as muitas respostas positivas e decisões por Jesus, têm sido propiciadas por esta<br />
expectativa de libertação, pois vivem sob opressão espiritual.<br />
Rompimento com o Animismo – Mesmo involuntariamente está presente nesta<br />
ênfase um princípio sugerido por Alan Tippet (Lewis, 1986.54) para o trabalho com grupos<br />
tribais: o princípio do “confronto”. Segundo ele, em grupos assim faz-se necessário um ato<br />
de rompimento com a antiga religiosidade, ou “ritual de separação”, que sirva como<br />
recordação de que aquelas antigas práticas e crenças ficaram para trás e agora é uma nova<br />
caminhada.<br />
3.3. EFEITOS NEGATIVOS<br />
3.3.1. ENSINO BÍBLICO<br />
Lentidão do Processo de Ensino – Levaram-se oito anos para que a efetiva<br />
comunicação do evangelho fosse iniciada. Obviamente vários fatores contribuíram para tal<br />
demora, como várias enfermidades, restrições, proibições e perseguição, mas de qualquer<br />
forma é preciso convir que foi lento. Além do que o próprio processo de ensino das lições é<br />
lento também, pois são ensinadas a famílias e não a todo o grupo. Toda esta lentidão acaba<br />
fazendo com que a mensagem tenha pouco impacto sobre o povo.<br />
Perda da Identidade Missionária – Depois de anos junto ao povo sem um<br />
trabalho sistemático de evangelização, a razão da presença dos missionários pode ficar<br />
distorcida na ótica indígena. Com a chegada dos missionários há uma expectativa por parte<br />
do povo sobre qual novidade estes lhes trarão. Se o evangelho não for apresentado de<br />
forma relevante como esta novidade, a mesma ficará subentendida como sendo qualquer<br />
outra atividade desenvolvida pelos missionários.<br />
Ausência de Resposta Bíblicas às Perguntas Culturais – O objetivo desta<br />
abordagem tem sido expor o conteúdo bíblico apenas, na expectativa de que a<br />
compreensão deste gere conversões, mas é necessário ir além e desenvolver uma teologia<br />
de respostas. Por exemplo: os meninos Maxakali para alcançarem a maioridade precisam<br />
necessariamente passar pelo ritual de iniciação, recebendo o seu yãmiy (espírito) sem o<br />
qual nunca serão aceitos nas reuniões dos homens nem poderão se casar (cf. 3.1.4.1.3. 2ª<br />
Parte). Se tornar-se cristão implica em abandonar os rituais, como os meninos se tornariam<br />
adultos no cristianismo? Perguntas como estas são levantadas culturalmente pela<br />
comunidade indígena e precisam de respostas para que a mensagem do evangelho seja
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 177<br />
relevante. Falta ainda um certo grau de agressividade. O evangelho não pode ser<br />
apresentado apenas para que se tome conhecimento. A mensagem de Jesus sempre exigiu<br />
uma resposta ativa e assim deve ser a mensagem missionária.<br />
3.3.2. EVANGELISMO PESSOAL E CONFRONTO DE PODERES<br />
Imaturidade Cristã - Como já mencionado é difícil avaliar a recente abordagem<br />
entre os Maxakali, mas entre os Pataxó e Krenak, bem como na ênfase de confronto de<br />
poderes entre os Xacriabá, falta exatamente um sólido programa de ensino bíblico e<br />
discipulado. Muita atenção tem sido dada à conversão e depois aos cultos que têm também<br />
uma ênfase mais evangelística ou libertação, tendo como resultado imaturidade da fé.<br />
Dependência de Liderança Não-indígena – Se pessoas estão se convertendo mas<br />
não estão crescendo na fé, logo, líderes indígenas não estão sendo treinados e<br />
consequentemente também não há indícios de uma auto-teologização. No caso dos<br />
Xacriabá, tem-se levantado alguns líderes indígenas, como o obreiro da Cristã no Brasil e<br />
os dois diáconos da Assembléia de Deus, mas não há qualquer tipo de treinamento destes<br />
líderes. Apesar de terem liderança, possuem um ínfimo conhecimento bíblico, podendo<br />
conduzir as igrejas para um nível ainda maior de imaturidade. Não há assim sinal de<br />
autoctonia com uma excessiva dependência de liderança não-indígena.<br />
Vale alertar também, que como uma sólida teologia bíblica não tem sido elaborada<br />
em resposta às perguntas culturais e existenciais do povo, há um risco de sincretismo<br />
animista-evangélico (Lidório, 1998.60) entre os Pataxó e Krenak, enquanto entre os<br />
Xacriabá este risco é muito pequeno, devido a atenção que é dada ao rompimento com a<br />
antiga religiosidade.<br />
Um ponto negativo comum na abordagem kerygmática é a falta de envolvimento<br />
com os problemas do povo. Faltam propostas de solução para os principais problemas<br />
enfrentados por estes grupo. Por exemplo, nada tem sido feito para sanar o analfabetismo<br />
dos Xacriabá (cf. 2.1.5.3. 2ª Parte), o alcoolismo Maxakali (cf. 3.1.5.2. 2ª Parte), o<br />
desgastado relacionamento dos Krenak com a sociedade regional, marcado pela<br />
discriminação (cf. 4.1.6.3. 2ª Parte), ou a produção agrícola na cansada terra Pataxó (cf.<br />
5.1.6.1. 2ª Parte). O principal efeito desta falta de envolvimento social é a compreensão<br />
limitada do evangelho, como uma mensagem puramente espiritual. Uma das<br />
características do animismo que basicamente todos os grupos mineiros ainda mantêm bem<br />
vívida, é a compreensão da religião como algo “utilitário e prático” e não como um<br />
conjunto de princípios que visam unir o homem a Deus (Lidório, 2001b.27). Desta forma,
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 178<br />
se não houver um envolvimento direto com os problemas por eles enfrentados, a<br />
mensagem fica pouco relevante e a compreensão distorcida. É preciso pensar num<br />
evangelho integral, que toque não apenas o espiritual, mas também o cotidiano.<br />
3.4. ALGUMAS SUGESTÕES<br />
Pelo menos mais duas principais áreas de atuação precisam ser agregadas a esta<br />
abordagem, em especial nos povos onde já existe um grupo de convertidos: discipulado e<br />
formação de líderes indígenas. Estes recém convertidos precisam ser conduzidos da<br />
imaturidade à maturidade cristã, e isto só pode acontecer através de um processo de<br />
discipulado, onde cristãos maduros acompanham os novos na fé, transmitindo-lhes através<br />
do ensino bíblico e da prática diária, os fundamentos da fé cristã. Somente com cristãos<br />
indígenas maduros estas igrejas se tornarão fortes o suficiente para evangelizarem o<br />
restante do povo. Este primeiro discipulado precisa ser feito pelos obreiros não-indígenas<br />
que estão atuando nestes grupos e assim o processo se torna natural com os demais que<br />
forem se convertendo. Nos grupos abordados, constatamos certa preocupação com esta<br />
questão apenas entre os Pataxó, no trabalho da Assembléia de Deus, mas ao que parece,<br />
não chega a ser efetivamente um discipulado, e sim um doutrinamento para batismo (cf.<br />
5.1.9.1. 2ª Parte).<br />
Cristãos maduros precisam ser conduzidos ao serviço e para isto faz-se necessário<br />
treinamento. É preciso investir nos convertidos com capacidade de liderança e clara<br />
vocação, para que estes se tornem os próprios líderes da igreja plantada no seu povo. Estas<br />
igrejas não podem continuar dependendo de obreiros não-indígenas que as visitem uma vez<br />
por semana. Um treinamento contextualizado à realidade do povo deve ser priorizado,<br />
habilitando indígenas a ministrar e liderar outros indígenas, rumo à autoctonia.<br />
Infelizmente não constatamos esta preocupação em nenhum grupo abordado. Os obreiros<br />
Xacriabá da Assembléia de Deus, foram ordenados deliberadamente como estratégia para<br />
“segurar” os demais convertidos 152 , não considerando a maturidade cristã destas pessoas,<br />
mas apenas o tempo de conversão e poder de influência (cf. 2.1.6.3. 2ª Parte).<br />
De modo geral, todos os oito grupos indígenas de <strong>Minas</strong> estão abertos a uma<br />
abordagem kerygmática direta, obviamente, podendo haver um menor ou maior grau de<br />
aceitação. Dos quatro grupos que não estão sendo alvos desta abordagem, com certeza dois<br />
estariam de portas abertas para missionários: Kaxixó (cf. 8.2. 2ª Parte) e Aranã (cf. 9.2. 2ª<br />
152 Em entrevista com o Pr. Édson Campos, no dia 10/04/02.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 179<br />
Parte). Ambos apresentam um quadro tanto religioso como sociocultural semelhante, se<br />
denominando católicos, porém com pequenos sinais de animismo, e lutando por terras, o<br />
que abre portas para todos que quiserem de alguma forma somar forças. Já os Pankararu<br />
(cf. 6.2. 2ª Parte) e os Xukuru-Kariri (cf. 7.2. 2ª Parte), provavelmente devem apresentar<br />
certa resistência inicial, mas prezando pela amizade e confiança mútua as restrições podem<br />
ser superadas. Ambos possuem forte influência católica, apesar de preservarem práticas e<br />
cosmovisão animista.<br />
Esta realidade sincretista animista-católico romana destes grupos precisa receber<br />
muita atenção. Hesselgrave (1995.301-305) aponta a necessidade de estratégias específicas<br />
para grupos assim, o que é muito significativo, pois no contexto brasileiro temos pensado<br />
em grupos católicos e animistas separadamente, enquanto a religiosidade da <strong>Minas</strong><br />
<strong>Indígena</strong> apresenta uma conjugação destes dois princípios, sendo ambos aceitos como<br />
verdadeiros em menor ou maior escala. Logo, ao planejar abordagens missionárias para<br />
estes grupos é preciso considerar os dois princípios religiosos ativos ao mesmo tempo.<br />
A abordagem kerygmática tem obtido bons resultados com efeitos muito positivos<br />
em todos os grupos abordados. Mas queremos chamar atenção novamente para a<br />
conjugação de abordagens, como um ideal estratégico. Se as três principais frentes de<br />
atuação – ensino bíblico, evangelismo pessoal e confronto de poderes – fossem<br />
conjugadas, com certeza os efeitos positivos seriam maximizados e os negativos<br />
minimizados. Melhor ainda seria uma conjugação com outra abordagem, como a socio-<br />
assistencial, por exemplo.
4. ABORDAGEM SOCIO-ASSISTENCIAL<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 180<br />
A abordagem socio-assistencial propõe a aproximação e legitimação tanto da<br />
pessoa do missionário quanto da mensagem transmitida por ele. Aproximação porque, via<br />
de regra, a forma mais viável de se contactar um grupo indígena tem sido oferecer-lhe algo<br />
material que o beneficie de alguma forma. Legitimação porque a mensagem do evangelho<br />
se traduz em ações práticas, visando abençoar o homem de forma integral, e não apenas<br />
espiritual. Nesta abordagem as necessidades sociais do grupo alvo são detectadas e uma<br />
proposta assistencial é viabilizada por iniciativa da agência e/ou missionário, servindo<br />
como meio de aproximação, mas não deixando por isto de ser uma ajuda legítima e<br />
sincera.<br />
Neste sentido, não têm sido poucas as críticas contra os programas assistenciais de<br />
missionários, alegando que os mesmos são “puramente instrumentais” (Wright, 2002.83),<br />
ou seja, são apenas meios para alcançar suas “segundas intenções”. Não há dúvida de que<br />
mesmo numa abordagem socio-assistencial o fim é a proclamação do evangelho para a<br />
glória de Deus, mas isto não tira a legitimidade do meio. Os programas assistenciais<br />
oferecidos a grupos indígenas por missionários têm sido instrumentos de grande bênção<br />
para muitos povos, que na sua maioria vivem abandonados ou mal assessorados pelos<br />
órgãos governamentais.<br />
Esta abordagem está presente apenas nos Maxakali, através de uma única frente de<br />
atuação – os serviços de enfermagem da missionária Marlene Martins. Enfermeira técnica,<br />
começou a trabalhar com os mesmos em dezembro de 1999, através da Missão Emanuel de<br />
Governador Valadares e da Terceira Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte. Aceita como<br />
enfermeira voluntária pela FUNASA, iniciou seu trabalho numa época quando ainda não<br />
havia uma equipe de saúde junto aos Maxakali, trabalhando assim sozinha por vários<br />
meses, na aldeia de Água Boa, a partir da cidade de Santa Helena de <strong>Minas</strong>, onde reside.<br />
Mesmo sendo jovem e solteira, logo adquiriu respeito e amizade da parte dos indígenas,<br />
tornando-se muito querida por todos eles. Sua visão é discipular alguns dos líderes, para
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 181<br />
que estes evangelizem aos demais, mas dado aos muitos afazeres, seu trabalho tem se<br />
limitado quase que somente à área de saúde, testemunhando do evangelho nas<br />
oportunidades que surgem. Por não falar a língua, sua comunicação se limita aos que<br />
entendem o português. A Missão Emanuel está tentando adquirir um terreno nas<br />
proximidades da aldeia, para sediar projetos de desenvolvimento social e congregar os<br />
convertidos. Tem também procurado trabalhar em parceria com a MNTB e Horizontes, até<br />
então não obtendo muito sucesso com esta primeira.<br />
4.1. EFEITOS POSITIVOS<br />
Treinamento de <strong>Indígena</strong>s – Agentes indígenas de saúde estão sendo treinados, e<br />
além de auxiliarem a enfermeira nas suas atividades, atuam junto ao povo com saúde<br />
preventiva. A atitude não tem sido de paternalismo, mas de incentivo aos indígenas a<br />
tomarem eles próprios as precauções e medidas devidas.<br />
Proposta de Solução a Um Problema Específico – Esta abordagem vai<br />
diretamente ao encontro de uma dificuldade social específica do povo (cf. 3.2.5.1. 2ª<br />
Parte), evocando portanto, o princípio da integralidade do evangelho. Algo prático é feito<br />
como demonstração de uma mensagem que toca a alma mas também o corpo, o que é<br />
significativo para um grupo animista cuja religiosidade possui fins utilitários.<br />
Integração social – Apesar de não residir na aldeia, a missionária atende de<br />
segunda a sexta, durante todo o dia, sendo assim a pessoa que passa maior tempo com eles,<br />
tendo como efeito a integração social, tão necessária para o êxito missionário. Ela participa<br />
dos principais acontecimentos do dia-a-dia do povo, sendo aceita como parte da<br />
comunidade. Por fim, podemos apontar o relacionamento de amizade desenvolvido entre a<br />
missionária e indígenas, gerando um ambiente de confiança. É bem verdade que às vezes é<br />
surpreendida por algumas incompreensões e ingratidão, especialmente após a conversão de<br />
Zezinho maxakali, mas sabe que possui a confiança do povo. Sua palavra tem autoridade,<br />
protocolada por um comportamento idôneo e sério.<br />
4.2. EFEITOS NEGATIVOS<br />
Perda da Tecnologia Nativa no Tratamento e Cura – Nenhum incentivo tem<br />
sido dado ao uso de ervas medicinais, por exemplo, que durante séculos foi o meio natural<br />
de tratamento utilizado pelos Maxakali. Há uma deficiência na preservação do
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 182<br />
conhecimento medicinal indígena, em detrimento do constante atendimento de saúde com<br />
tecnologia desconhecida. Com isto os rituais de cura são pouco praticados, o que<br />
entretanto, não chega a ser algo positivo, pois a causa não é o evangelho, e sim a<br />
dependência da assistência externa. Seria muito positivo não apenas o incentivo ao uso,<br />
mas também o aprendizado de manipulação da medicina natural.<br />
Comunicação Limitada - Pelo fato de não usar a língua materna a comunicação<br />
fica limitada aos poucos bilingües. Além de não conseguir se comunicar de forma efetiva<br />
com qualquer pessoa, não é possível transmitir as verdades do evangelho no português a<br />
um povo que mantêm como primeira e quase única a sua língua materna. Como são<br />
resistentes às influências externas, podem também resistir à mensagem do evangelho se<br />
esta for transmitida na língua da sociedade dominante. A devida valorização lingüística<br />
não foi dada.<br />
Compreensão Limitada da Cultura – Pelo fato de não haver um estudo cultural<br />
visando alcançar a cosmovisão do povo, a compreensão da cultura também é limitada. Isto<br />
é grave pois não é possível apresentar uma mensagem evangélica relevante para um povo<br />
sem a compreensão da sua cultura. Não é possível propor respostas culturalmente<br />
relevantes sem ter alcançado o nível dos significados e funções dos variados fenômenos da<br />
sua religiosidade.<br />
Perda da Identidade Missionária – A grande demanda pelo atendimento de saúde<br />
limita o tempo para a pregação efetiva do evangelho, e por isto, aos olhos do povo o<br />
trabalho assistencial acaba se tornando a razão da presença da missionária entre eles. A<br />
proclamação propriamente dita se tornou assistemática, reduzida a oportunidades<br />
esporádicas. Isto é agravado pelo fato de não haver um projeto específico de trabalho, com<br />
alvos claros e bem definidos, de onde se pretende chegar. Esta é uma dificuldade muito<br />
comum nos ministérios bi-ocupacionais, especialmente em contexto tribal animista. Sem<br />
objetivos bem definidos e delimitações de atuação, o trabalho assistencial pode se tornar<br />
um fim em si mesmo, quando não para o missionário, pelo menos para o povo, o que<br />
diminui o impacto da presença missionária, por confusão de identidade.<br />
5.3. ALGUMAS SUGESTÕES<br />
Certamente a abordagem socio-assistencial é a forma mais conveniente de se ter<br />
acesso aos grupos indígenas de <strong>Minas</strong>, tendo em vista as suas muitas necessidades sociais e
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 183<br />
as restrições impostas pela FUNAI. É lamentável o fato desta abordagem estar presente<br />
apenas entre os Maxakali, pois todos os oito grupos estariam com portas abertas para<br />
missionários desta área. Apenas para citar alguns exemplos, poderíamos apontar os<br />
Xacriabá que necessitam de assistência na área de saúde e alfabetização de adultos (cf.<br />
2.1.5.1. e 2.1.5.3. 2ª Parte), enquanto os Krenak (cf. 4.1.6.2. 2ª Parte) e Xukuru-Kariri (cf.<br />
7.2.4.2. 2ª Parte) precisam de suporte pedagógico para suas escolas; os Pataxó carecem de<br />
assistência na área de agronomia (cf. 5.2.6.3. 2ª Parte) e os Pankararu e na área de<br />
educação infantil (cf. 6.2.4.1. 2ª Parte), enquanto os Kaxixó (cf. 8.2.4.3. 2ª Parte) e Aranã<br />
(cf. 9.2.3.1. 2ª Parte) precisam de assistência jurídica na luta por terras. Ou seja, há um<br />
grande universo de oportunidades missionárias a partir da assistência social que precisam<br />
ser aproveitadas e bem usadas para que o evangelho seja efetivamente proclamado a estes<br />
grupos indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais.<br />
Apesar de termos apenas um exemplo de abordagem socio-assistencial na <strong>Minas</strong><br />
<strong>Indígena</strong>, fica evidente a sua relevância. As opções de frente de atuação são muitas,<br />
maximizando as possibilidades de trabalho missionário entre estes grupos. Mas vale<br />
novamente ressaltar que conjugando-se esta abordagem com a kerygmática, a<br />
probabilidade de efeitos positivos serão muito maiores. Não sendo conjugadas, a atuação<br />
missionária se limitará à presença da igreja, como nas “tradições” missionárias católica e<br />
ecumênica, também presentes na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>, e que agora serão vistas.
5. AS TRADIÇÕES MISSIONÁRIAS<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 184<br />
A esta altura cremos ser válido fazer uma breve consideração acerca das “tradições”<br />
missionárias (Scherer, 1991.32) 153 . As tradições católica e ecumênica tem se preocupado<br />
como poucas com a presença, ou seja, se fazer presente entre os indígenas através de<br />
ajudas humanitárias diversas; a tradição evangelical tem se preocupado mais com a<br />
proclamação, ou seja, a pregação ou comunicação efetiva do evangelho, se bem que, de<br />
forma ascendente, tem procurado um equilíbrio através dos programas assistenciais;<br />
enquanto a tradição pentecostal tem se preocupado quase exclusivamente com a<br />
proclamação. Na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> isto é facilmente percebido através das missões e suas<br />
respectivas ênfases.<br />
5.1. TRADIÇÃO CATÓLICA<br />
Faz-se presente através da atuação do CIMI entre os Maxakali. Criado em 1972,<br />
como órgão oficial da CNBB, sob forte influência do Concílio Vaticano II, particularmente<br />
da teoria dos “cristãos anônimos” de Karl Rahner (1989.368,369), o CIMI tem como um<br />
dos seus princípios básicos “uma mística missionária norteada pelo diálogo intercultural,<br />
inter-religioso e ecumênico” (CIMI, s.d.), não atuando e protestando contra quem atua com<br />
a proclamação do evangelho aos povos indígenas. Sua linha de atuação se limita à<br />
assistência social, como articulação por terra e programas assistenciais, ou seja, presença.<br />
5.2. TRADIÇÃO ECUMÊNICA<br />
Faz-se presente através da atuação do GTME entre os Krenak, Pankararu e Aranã.<br />
Criado em 1979 com a proposta de “repensar o conceito de missão e evangelização, trocar<br />
153 Geralmente são estudadas a tradição católica, ecumênica e evangelical, mas aqui acrescentamos a<br />
pentecostal, por entender que esta constitui uma abordagem à parte da evangelical.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 185<br />
idéias e experiências e estreitar laços de amizade, apoiando-se mutuamente”, numa<br />
parceria das igrejas Luterana, Metodista, Anglicana e Presbiteriana Independente, o GTME<br />
se definiu em 1988 “por um trabalho específico de apoio e solidariedade aos povos<br />
indígenas”, propondo limitar sua atuação às áreas de educação, saúde, economia,<br />
organização, assistência jurídica e articulação por terras (GTME, s.d.). Em <strong>Minas</strong>, atua<br />
entre os três povos mencionados através de duas obreiras católicas, sob a supervisão da<br />
Igreja Metodista de Governador Valadares, não se envolvendo com proclamação, mas<br />
apenas com presença.<br />
5.3. TRADIÇÃO EVANGELICAL<br />
Primeiramente se fez presente através da atuação da SIL e agora através da MNTB,<br />
Emanuel e Horizontes, entre os Maxakali. Apesar da tradição evangelical ser conhecida<br />
pela sua ênfase quase única na proclamação, neste caso vê-se certo equilíbrio, pois tanto<br />
na SIL como Emanuel, a ênfase de abordagem é exatamente a presença, contrabalançada<br />
pela proclamação via MNTB e Horizontes.<br />
5.4. TRADIÇÃO PENTECOSTAL<br />
Mesmo sem agência missionária, os pentecostais se fazem presentes através dos<br />
trabalhos de iniciativa de igrejas locais, junto aos Xacriabá, Pataxó e Krenak, bem como<br />
estiveram também entre os Maxakali. Neste caso, são o oposto das tradições católicas e<br />
ecumênicas, se preocupando exclusivamente com a proclamação.<br />
Biblicamente entendemos que o equilíbrio se faz necessário, pois o evangelho parte<br />
de um pressuposto de integralidade, sendo preciso abordar o homem no seu todo, de forma<br />
holística. É preciso cuidar da alma, mas também do corpo. É preciso cuidar da saúde, mas<br />
também da salvação. É preciso lutar pela libertação dos opressores sociais, mas também<br />
dos opressores espirituais. Jesus era “poderoso em obras e palavras” (Lc 24.19), “fazia e<br />
ensinava” (At 1.1), e portanto, para que nossas abordagens missionárias sejam bíblicas é<br />
necessário conjugar, a exemplo do Mestre, presença e proclamação.
CONCLUSÃO<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 186<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> – Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens<br />
Missionárias nos Grupos <strong>Indígena</strong>s de <strong>Minas</strong> Gerais, além de um relatório acadêmico é<br />
um desafio à Igreja brasileira no sentido de direcionar esforços para este bloco indígena<br />
que, mesmo aberto à atuação missionária, tem sido esquecido no movimento de<br />
evangelização transcultural e expansão da igreja. <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> apresenta um desafio<br />
não apenas de direcionar, mas também de somar esforços com os poucos missionários e<br />
igrejas locais que têm se sensibilizado e envolvido na evangelização destes povos, até<br />
agora esquecidos pela maioria das agências missionárias brasileiras.<br />
Uma das principais razões da omissão a este bloco indígena no movimento<br />
missionário, tem sido a ausência de informações sobre o mesmo. Não apenas nas igrejas,<br />
mas também em todo Estado de <strong>Minas</strong> Gerais e no Brasil de forma geral, poucos sabem da<br />
existência de oito grupos indígenas no território mineiro. A maioria tem ciência apenas de<br />
dois deles, Maxakali e Krenak, devido às campanhas pela regularização territorial dos<br />
mesmos que na década de 1990 alcançou conhecimento internacional. Ainda assim, são<br />
muitos os que ignoram a existência até destes dois grupos mais conhecidos. Não sabendo<br />
da sua existência e do desafio missionário que estes indígenas representam, pouco se fala<br />
neles, pouco se ora por eles e, consequentemente, poucos são enviados até eles.<br />
Uma das relevâncias deste relatório é que o pesquisador se propõe a enviar um<br />
documento de divulgação, com os principais dados destes grupos, para as principais igrejas<br />
do Estado de <strong>Minas</strong>, agências e juntas missionárias e mesmo para qualquer pessoa que se<br />
interessar. Se propõe ainda disponibilizar as informações na íntegra, para aqueles que<br />
desejarem conhecer a realidade da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> ou se envolver mais diretamente com a<br />
obra missionária para alcançar estes povos.<br />
Outro fator relevante, é que as informações aqui contidas poderão contribuir em<br />
muito para futuros missionários que desejarem atuar em qualquer um dos grupos indígenas<br />
de <strong>Minas</strong>. Uma questão cruciante no início de abordagens missionárias, é por onde, quando<br />
e como começar. Neste sentido, o levantamento sociocultural de cada grupo aqui
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 187<br />
registrado, bem como as estratégias de abordagem apontadas e indicações de<br />
possibilidades de trabalho, se constituem numa contribuição para novas estratégias de<br />
alcance no trabalho missionário entre estes povos.<br />
Uma abordagem missionária responsável, deve levar em consideração a cultura do<br />
povo alvo, envolvendo seus comportamentos, valores, língua, religiosidade e cosmovisão.<br />
Deve considerar a real situação social que ele vive, envolvendo questões de sobrevivência,<br />
liderança local, relacionamento com a sociedade externa e problemas sociais. Fatores como<br />
etnicidade, história cultural, centros de migração, níveis de receptividade e comunicação<br />
bilingüe, também precisam ser considerados. Ou seja, o conhecimento da situação<br />
sociocultural de um determinado grupo étnico, é de primária importância para a elaboração<br />
de uma proposta de abordagem missionária relevante direcionada ao mesmo. Assim sendo,<br />
afirmamos a hipótese desta pesquisa verdadeira, pois o levantamento sociocultural de cada<br />
grupo indígena de <strong>Minas</strong> Gerais pode contribuir para a elaboração de abordagens<br />
missionárias direcionadas aos mesmos.<br />
Como conclusão desta dissertação, três questões principais precisam ser aqui<br />
relembradas: a real situação destes grupos, as abordagens missionárias que já foram<br />
adotadas entre eles, e uma sugestão das possíveis abordagens futuras que seriam mais<br />
relevantes.<br />
1. Quanto à real situação da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>, se torna relevante e necessário apontar<br />
quatro aspectos principais: religioso, cultural, étnico e social. Como vimos, a <strong>Minas</strong><br />
<strong>Indígena</strong> foi submetida a um forçado processo de catequese católico romana ao longo de<br />
séculos, quando os missionários capuchinhos fundavam aldeamentos. Nesse processo,<br />
ajuntavam várias tribos diferentes em um determinado local, forçavam todas a aprender o<br />
português, proibiam os rituais nativos e obrigavam a participar dos rituais católicos. Muitos<br />
destes aldeamentos se tornaram povoados e até cidades, como por exemplo, Itambacuri e<br />
São João das Missões, permanecendo ainda por muitos anos sob forte influência do clero<br />
católico. Os grupos subjugados cederam às imposições católicas, alguns até aceitando o<br />
catolicismo como nova religião, mas não abriram mão dos seus valores religiosos mais<br />
profundos. Na sua cosmovisão nativa, o catolicismo foi reinterpretado a partir de uma base<br />
animista. Muitos ‘santos católicos’ apenas substituíram antigas entidades do universo<br />
espiritual indígena, ritos católicos substituíram rituais animistas e práticas nativas foram<br />
“catolicizadas”, ou seja, foram mudadas as formas, mas os significados permaneceram os
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 188<br />
mesmos. Houve uma mistura de dois princípios religiosos diferentes 154 , com a aceitação de<br />
ambos como verdadeiros, em maior ou menor escala. Desta forma, a <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
apresenta um quadro religioso de sincretismo animista-católico romano 155 . Esta<br />
realidade exige uma abordagem específica para grupos sincretistas, evocando o princípio<br />
do “rompimento”, pois do contrário o sincretismo pode aumentar mais ainda. No<br />
momento da evangelização, a exposição bíblica deve ser simples e objetiva, carecendo,<br />
entretanto, de muito ensino bíblico pós-conversão, pois do contrário será grande o risco de<br />
imaturidade na fé.<br />
Durante séculos, a <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> foi alvo de massacres, desapropriação territorial,<br />
dispersão, exílios, imposições e proibições. Os grupos que hoje existem, são sobreviventes<br />
de um dos mais bárbaros genocídios do território brasileiro. No entanto, a resistência<br />
exigiu deles muitas manobras, adaptações e concessões. O relacionamento e dependência<br />
da sociedade externa, e em especial da sociedade urbana, se intensificou tanto que resultou<br />
num quadro cultural de grande descaracterização. Muito da sua cultura tradicional se<br />
perdeu durante o processo. Muitos dos antigos costumes não mais existem. Quase todos os<br />
grupos perderam suas línguas maternas. Vários traços da sociedade externa hoje são<br />
comuns em suas aldeias. Tal realidade evoca o princípio de resgate cultural nas<br />
abordagens missionárias direcionadas a estes grupos. Os aspectos culturais benéficos,<br />
como o uso de ervas medicinais para tratamento de enfermos, o sentimento comunitário e<br />
de partilha, a produção artesanal e tantos outros, precisam ser valorizados, mesmo aqueles<br />
que estão caindo em desuso por causa da influência externa. Especial atenção deve ser<br />
dada ao resgate e reafirmação lingüística nos três grupos que preservam em menor ou<br />
maior escala suas respectivas línguas maternas.<br />
Considerados como uma sub-raça, atrasados, primitivos, os indígenas de <strong>Minas</strong><br />
Gerais sofreram um processo deliberado de assimilação por parte dos dominadores que<br />
usaram especialmente os religiosos católicos para alcançarem seus objetivos. Nos<br />
aldeamentos, além de ser ensinado o português como língua e imposto o catolicismo como<br />
religião, era fomentado o casamento de indígenas com negros e brancos, num processo<br />
forçado de miscigenação, como a melhor forma de acabar com a “raça” e manter a mão-de-<br />
obra barata ou até mesmo escrava. Em alguns casos, como os Xacriabá e Kaxixó, estes<br />
154 No caso do Xacriabá, há um terceiro elemento: espiritismo afro-brasileiro, introduzido no universo<br />
indígena através dos negros fugitivos e posteriormente libertos que acharam abrigo no território Xacriabá e<br />
com eles contraíram matrimônio.<br />
155 Podemos excetuar aqui os Maxakali, nos quais a influência católica romana é ínfima, prevalecendo o<br />
animismo.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 189<br />
casamentos se deram também de forma espontânea, pois muitos escravos e ex-escravos se<br />
refugiavam nos territórios indígenas. Como resultado, a <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> apresenta um<br />
quadro étnico de forte miscigenação. Assim como os indígenas do Nordeste, nossos<br />
indígenas também são classificados como “índios de segunda categoria”, “aculturados”,<br />
“caboclos”, “bugres”, o que evoca o princípio de reafirmação etno-cultural a ser<br />
trabalhado na abordagem missionária. Não apenas a cultura e língua do grupo, mas<br />
também a sua indianidade precisa ser considerada. A abordagem missionária pode<br />
contribuir para esta reafirmação étnica ao valorizar a indianidade do grupo, lutar contra a<br />
anomia 156 , conscientizar o grupo da sua identidade étnica, e mesmo conscientizar a própria<br />
população regional quanto à questão indígena, no sentido de reafirmar a sua identidade.<br />
Apesar das várias conquistas obtidas especialmente nas últimas três décadas, os<br />
grupos indígenas de <strong>Minas</strong> vivem à margem da sociedade externa, sofrendo privações e<br />
muitas necessidades. Na maioria, as terras são insuficientes para prover o necessário para a<br />
sobrevivência de todo o grupo. Os Xacriabá possuem terras suficientes, mas sofrem com a<br />
seca. Os Pataxó também possuem terras suficientes, mas estas estão desgastadas pelo<br />
prolongado cultivo de café. Em alguns grupos, como os Kaxixó e Aranã, os homens<br />
prestam serviços em fazendas vizinhas para manter suas família, mas nem sempre há vagas<br />
para todos. Como conseqüência, a dependência das cidades é cada vez maior, e as<br />
condições de obter subsistência cada vez menores. Muitos peregrinam pela região<br />
mendigando como os Maxakali, o que aumenta a intolerância e discriminação por parte da<br />
sociedade regional. Assim sendo, a <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> apresenta um quadro social de<br />
marginalização, o que evoca um princípio de ênfase assistencial nas abordagens<br />
missionárias. Numa realidade como esta, não basta pregar o evangelho, é preciso assistir o<br />
povo pelo menos nas suas principais necessidades. A pregação deve estar conjugada com<br />
projetos de desenvolvimento social, ou seja, faz-se necessário trabalhar tanto com<br />
proclamação como com presença.<br />
2. Quanto às abordagens missionárias adotadas na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>, foram<br />
constatadas três – lingüística, kerygmática e socio-assistencial – cada uma com suas<br />
respectivas frentes de atuação, pontos fortes e fracos, mas todas com o objetivo de ver o<br />
reino de Deus expandido entre os indígenas de <strong>Minas</strong> Gerais. A abordagem lingüística foi<br />
a primeira a se fazer presente, através da qual a língua Maxakali foi analisada e grafada, e<br />
elaboradas cartilhas de alfabetização que até hoje são usadas. Foi também oferecida<br />
assistência na área de saúde e realizada a tradução integral do Novo Testamento, como<br />
156 Termo sócio-antropológico para perda de identidade etnocultural.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 190<br />
principal legado desta abordagem. A língua foi valorizada, a população preservada e a<br />
etnicidade Maxakali reafirmada. Em contrapartida, uma igreja não foi plantada e apenas<br />
um pequeno grupo foi alfabetizado. Os Xukuru-Kariri e Krenak também precisam receber<br />
esta mesma abordagem e ter uma igreja plantada em seu meio.<br />
Presente em quatro grupos, a abordagem kerygmática apresenta diferentes frentes<br />
de atuação. Entre os Maxakali, sua ênfase principal tem sido o ensino bíblico através do<br />
método de lições cronológicas que cobrem da criação ao sacrifício de Cristo. Por ser lento<br />
e bastante passivo, o trabalho já se estende por dez anos, ainda sem constatar conversões.<br />
Entre os Pataxó e Krenak, a ênfase desta abordagem tem sido o evangelismo pessoal,<br />
através de amizade desenvolvida entre membros de igrejas locais de cidades vizinhas e os<br />
indígenas. Resultados positivos em termos de conversões tem sido alcançados, entretanto,<br />
não há qualquer orientação missiológica e estratégias missionárias definidas, como<br />
cuidados de contextualização, instrução destes convertidos e formação de liderança<br />
indígena. A abordagem kerygmática ainda está presente entre os Xacriabá, onde sua<br />
principal ênfase está no confronto de poderes, especialmente na libertação espiritual e<br />
curas divinas. O trabalho de evangelização é realizado também a partir de igrejas locais de<br />
cidades vizinhas, sendo o que apresenta melhores resultados em termos de conversões. De<br />
igual forma, não há nenhum orientação missiológica, carecendo especialmente de instrução<br />
bíblica e formação de líderes.<br />
Por fim, foi constatada a abordagem socio-assistencial entre os Maxakali.<br />
Oferecendo assistência social na área de saúde, especificamente enfermagem, tem sido<br />
uma demonstração prática do evangelho que vai de encontro às necessidade não apenas<br />
espirituais, mas também físicas do homem. No entanto, devido a alta procura e necessidade<br />
dos serviços de saúde, o tempo para a proclamação em si tem ficado bastante limitado, o<br />
que é agravado pelo fato de não falar a língua. É necessário ressaltar que os demais grupos<br />
ainda não receberam esse tipo de abordagem.<br />
Todas estas abordagens são louváveis, representando o esforço de servos fiéis que<br />
doaram e estão doando suas vidas na <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>. Entretanto, não podemos deixar de<br />
considerar que falta conjugação de esforços. Se a situação sociocultural de cada povo fosse<br />
considerada nas diferentes ênfases, ou mesmo se as diferentes abordagens fossem aplicadas<br />
em conjunto, de forma que uma complementasse a outra, os efeitos positivos certamente<br />
seriam maximizados em detrimento dos efeitos negativos. Por exemplo, se na abordagem<br />
kerygmática o evangelismo pessoal fosse realizado de forma mais agressiva, com<br />
confronto de poderes, e seguido de um sólido ensino bíblico, os resultados seriam
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 191<br />
diferentes. E se a abordagem kerygmática atuasse também com assistência social, ou a<br />
socio-assistencial atuasse também com evangelização, o impacto certamente seria maior.<br />
3. Quanto às abordagens missionárias que seriam mais relevantes na <strong>Minas</strong><br />
<strong>Indígena</strong>, não é tão simples arriscar uma única resposta, pois o campo em foco é amplo,<br />
com uma complexa e diversificada realidade sociocultural. Todavia, considerando os<br />
aspectos gerais mencionados anteriormente, este autor julga que o ideal seja uma<br />
conjugação das abordagens kerygmática e socio-assistencial, tendo como principais<br />
ênfases, o evangelismo pessoal com confronto de poderes, ensino bíblico com formação de<br />
liderança indígena, e assistência social, especialmente nas áreas da saúde e educação.<br />
Como é evidenciado neste relatório, as possibilidades de abordagens missionárias<br />
nestes grupos são muitas e diversificadas. Basicamente todos os oito grupos apresentam<br />
portas abertas na área de educação de crianças e adolescentes, e alguns também na área de<br />
alfabetização de adultos. Especialmente educadores e orientadores pedagógicos teriam<br />
facilidade em atuar nestes povos, com projetos de baixo custo, pois dado ao contexto<br />
social, instalações simples atenderiam à necessidade.<br />
Saúde é outra porta aberta em todos os grupos. Apesar do órgão governamental de<br />
saúde estar presente, mantendo inclusive equipes bem estruturadas em alguns povos, há<br />
sempre necessidade e vagas para mais profissionais. Enfermeiros, médicos e dentistas são<br />
os mais requisitados, com grande probabilidade de serem admitidos pelo governo, mas<br />
auxiliares e técnicos em enfermagem também teriam grandes chances.<br />
Agricultura, pecuária, agronomia e reflorestamento são possibilidades mais<br />
limitadas, mas sem dúvida existentes. Os Xukuru-Kariri carecem de orientação agrícola,<br />
por desconhecerem as terras mineiras; os Pataxó necessitam de orientação agronômica para<br />
revigorar as suas terras, desgastadas pelo prolongado cultivo de café; os Krenak precisam<br />
reflorestar seu território desmatado pelos fazendeiros que transformaram tudo em pasto<br />
para bovinos; os Maxakali estão solicitando doação de bovinos para produzirem leite e<br />
carne, entretanto, não possuem qualquer conhecimento de pecuária por serem tipicamente<br />
caçadores e coletores. Profissionais nestas áreas podem dar uma grande contribuição a<br />
estes grupos, enquanto lhes anunciam o evangelho.<br />
Os Xukuru-Kariri necessitam de auxílio lingüístico para reafirmar a sua língua<br />
materna. De igual forma os Krenak carecem de análise da sua língua que, apesar de antiga,<br />
ainda não foi alvo de um trabalho lingüístico relevante. Os dois grupos emergentes –<br />
Kaxixó e Aranã – precisam de assistência jurídica, especialmente na luta pela aquisição de<br />
terras. Estas são apenas algumas portas abertas para igrejas, missões e missionários que
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 192<br />
desejam conjugar proclamação com presença. Basicamente todos os oito grupos estão<br />
abertos para a pregação direta do evangelho e dado ao alto grau de contato com a<br />
civilização externa, são poucas as restrições dos órgãos governamentais. Em última<br />
análise, faltam apenas obreiros dispostos e disponíveis para aceitar este desafio e igrejas e<br />
agências com visão para enviá-los.<br />
Obviamente, este relatório não encerra o assunto, aliás, apenas inicia. Em momento<br />
algum o pesquisador teve a pretensão de esgotar a temática da <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>. Pelo<br />
contrário, a intenção foi disponibilizar material que fomente novas e mais extensas<br />
pesquisas. Apenas para citar algumas possibilidades e sugestões, a questão do sincretismo<br />
animista-católico romano destes grupos é um campo vastíssimo e que carece de um estudo<br />
específico; cada grupo em si, merece ser alvo de pesquisa específica, especialmente na<br />
questão cultural e religiosa; as razões da resistência Maxakali ao evangelho, durante<br />
décadas afins; o trabalho do casal Popovich entre os Maxakali seria uma pesquisa<br />
gratificante e certamente em muito contribuiria tanto no estudo de abordagens missionárias<br />
aos indígenas, quanto em técnicas de tradução bíblica e questões de vida missionária.<br />
Nesta dissertação estão dados disponíveis para futuras reflexões sobre a <strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong>,<br />
bem como para a elaboração de abordagens e estratégias específicas para cada grupo.
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25/07/02.<br />
ENTREVISTAS<br />
(Todas as entrevistas aqui listadas foram feitas in locu pelo próprio pesquisador.<br />
Com a exceção das devidamente indicadas, todas foram gravadas e o pesquisador<br />
tem em seu poder as respectivas fitas K7. A ordem alfabética aqui segue o nome ou<br />
cognome que aparece nas citações no texto.)<br />
ADAIR Gomes. Missionário entre os Maxakali, desde 1992, através da Missão Novas<br />
Tribos no Brasil. Batinga: 09/02/02 (não gravada).
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 200<br />
AILTON Krenak. Um dos principais líderes Krenak. Aldeia Barra do Eme: 07/05/02 (não<br />
gravada).<br />
ALVENIR da Silva Costa. Pastor da Igreja Assembléia de Deus da cidade de Carmésia,<br />
que dá assistência à aldeia Pataxó. Fazenda Guarani: 09/05/02 (não gravada).<br />
ANA Ribeiro. Viúva do Milguelsinho – conhecido como “amansador de índios” – morou<br />
por muitos anos na aldeia Maxakali em convívio direto com estes indígenas e com<br />
o casal de missionários Popovich. Conhecedora da sua religiosidade e costumes.<br />
Santa Helena de <strong>Minas</strong>: 06/02/02.<br />
BENVINA Vieira. Líder do grupo Pankararu de <strong>Minas</strong> Gerais. Aldeia Apukaré: 11/02/02.<br />
CLARISMÕN (Jânio). Vice-cacique Xukuru-Kariri. Aldeia Xukurú-Kariri: 19/03/02.<br />
DIVA, Maria. Uma das principais líderes Maxakali, eleita em 2000 vereadora do<br />
Município de Santa Helena de <strong>Minas</strong>. Santa Helena de <strong>Minas</strong>: 07/02/02.<br />
DJALMA Vicente de Oliveira. Cacique Kaxixó. Capão do Zezinho: 18/03/02.<br />
DODI (Jorge Cardoso dos Santos). Morador da cidade de Santa Helena de <strong>Minas</strong>, criado<br />
numa fazenda próxima à aldeia Maxakali, onde conviveu com estes indígenas e<br />
com o casal de missionários Popovich. Santa Helena de <strong>Minas</strong>: 06/02/02 (não<br />
gravada).<br />
ÉDSON Ferreira Campos. Pastor da Igreja Assembléia de Deus de Manga, responsável<br />
pelo trabalho da mesma entre os Xacriabá. Manga: 10/04/02.<br />
GILMAR Maxakali. Professor indígena e um dos principais líderes Maxakali. Aldeia<br />
Água Boa: 08/02/02.<br />
“GILMAR” (ou Pedro Inácio Índio). Um dos filhos de Pedro Sangê e principal progenitor<br />
do grupo Aranã de Belo Horizonte. Belo Horizonte: 20/03/02 (não gravada).<br />
HIM (ou Nego, ou ainda José Alfredo de Oliveira). Cacique Krenak. Aldeia do Eme:<br />
07/05/02.<br />
JOÃO Maria Silva. Ex-missionário entre os Maxakali na Aldeia Água Boa, através da<br />
Igreja Assembléia de Deus de Belo Horizonte. Teixeiras: 20/01/02.<br />
MARLENE Martins. Missionária entre os Maxakali da aldeia Água Boa, atuando como<br />
enfermeira. Enviada pela Terceira Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, através<br />
da Missão Emanuel de Governador Valadares. Santa Helena de <strong>Minas</strong>: 06/02/02.<br />
RODRIGÃO (Manoel Gomes de Oliveira). Cacique Xacriabá e vice-prefeito do Município<br />
de São João das Missões. São João das Missões: 09/04/02.<br />
RONADO e Kátia Lima. Missionários entre os Maxakali, desde 1992, através da Missão<br />
Novas Tribos no Brasil. Batinga: 09/02/02 (não gravada).
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 201<br />
SOARES, Geralda Chaves. Indigenista do CEDEFES e GTME, atualmente atuando entre<br />
os Aranã e Pankararu no Vale do Jequitinhonha. Araçuaí: 11/02/02.<br />
THYUNDAYBA. Cacique Pataxó e vereador do Município de Carmésia. Fazenda<br />
Guarani: 09/05/02.<br />
TOTÓ. Um dos mais idosos índios Maxakali, amigo do casal de missionários Harold e<br />
Frances Popovich. Aldeia Água Boa: 07/02/02.<br />
ZEZINHO (ou Zé Pirão). Professor indígena e um dos principais líderes Maxakali. Aldeia<br />
Água Boa: 08/02/02 (não gravada).
ANEXO 01:<br />
MITOS E LENDAS DA MINAS INDÍGENA<br />
1. XACRIABÁ<br />
1.1. YAYÁ, A ONÇA CABOCLA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 202<br />
Uma índia Xacriabá e sua filha estavam passeando. A mãe disse: estou com fome e<br />
com vontade de comer carne.<br />
A filha respondeu: eu vou lá. Vou matar uma vaca. Quando eu voltar correndo com<br />
a boca aberta, coloque esse ramo na minha boca.<br />
A moça sumiu e logo depois uma onça pulou em cima de uma novilha e a matou.<br />
Voltou correndo com a boca aberta para a mulher. A mulher teve medo e correu. A onça<br />
era a moça e nunca mais voltou a ser moça.<br />
Ela se escondia de dia e de noite saía e ia aos currais dos fazendeiros e matava a<br />
vaca. Os fazendeiros um dia entregaram o ferro de marcar o gado e a onça cabocla não<br />
comia mais o seu gado.<br />
1.2. UÍARA, A MÃE D’ÁGUA<br />
Registrado pelo antropólogo Romeu Sabará<br />
em 1976 (Paraíso, 1987.42)<br />
Dizia-se que numa paragem longínqua do Brasil, havia uma serra diferente das<br />
outras. Dizia-se que essa tal serra era toda verde, por ser de esmeralda toda ela. Os rios<br />
próximos, lagos, areias, os pássaros, as nuvens, até o próprio luar, tinham tons esverdeados<br />
por causa dos reflexos verdes da serra.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 203<br />
Esta serra maravilhosa ficava às margens da lagoa de Vaparuçu, longe, muito<br />
longe. As pedras verdes eram os cabelos de Uíara, a mãe d’água. Uma linda sereia de<br />
cabelos verdes e olhos azuis profundos. Possuía um palácio encantado e atraía, com seus<br />
lindos olhos e com sua linda beleza, todos os que a viam. Ela arrastava-os para as<br />
profundezas do mar. Nós não queríamos que a Uíara, chamada de mãe d’água, acordasse.<br />
A Lontra<br />
2. MAXAKALI<br />
2.1. O DILÚVIO<br />
Registrado por José dos Reis Xacriabá (Oliveira, 1997.62)<br />
Antigamente os Maxakali conversavam com Topa. E este era seu amigo. Topa<br />
visitava as suas aldeias. E deu para eles uma linda Lontra. Com ela, disse Topa, os<br />
Maxakali jamais passarão fome. Vocês, farão assim: "levarão a Lontra para o rio de modo<br />
que ela possa pescar peixes para vocês. Ela entrará no rio e de lá vai jogar na margem<br />
muitos peixes. Os Maxakali encherão os seus "terrê" (sacolas de embira) e levarão para a<br />
aldeia, onde os peixes serão repartidos e ninguém passará fome. Mas tem uma exigência:<br />
os três primeiros peixes que ela jogar na areia serão enormes e vocês os separarão para<br />
mim. E assim os Maxakali fizeram por muitos anos. Não havia fome em suas aldeias e eles<br />
viviam felizes.<br />
Um dia, porém, o genro de um dos mais velhos pediu ao sogro a lontra encantada<br />
para ir pescar. O sogro lhe contou toda a história e o trato com o Topa. E ele se foi para a<br />
beira do rio. Tudo ocorreu como fora combinado. A Lontra pulou no rio: Unch! Unch!<br />
Unch! Mergulhou de novo e jogou na margem três grandes peixes. Os peixes sagrados!<br />
Depois continuou a mergulhar e jogou mais peixes.<br />
Ao ver os três peixes grandes, o genro disse: Que nada! Vou levar esses três peixes<br />
para mim. E colocou-os no terrê. Também encheu as outras sacolas com os peixes<br />
pequenos. Terminado o seu trabalho, a Lontra subiu no barranco e começou a cheirar os<br />
peixes procurando os seus. Não os encontrando, pulou no rio... e desceu o rio abaixo.<br />
O Maxakali desesperado começou a gritar: Lontra! Lontra! Volte! Mas a Lontra não<br />
entendia a linguagem do Maxakali e ela foi embora para não mais voltar.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 204<br />
O Maxakali voltou para a aldeia com os peixes. Muito envergonhado, ele contou<br />
tudo para o mais velho. A aldeia inteira entrou em profundo estado de medo e tristeza, pois<br />
o mais velho disse: Você errou. Topa vai nos castigar, um grande castigo cairá sobre nós!<br />
O Dilúvio<br />
Anoiteceu. Os Maxakali preocupados, se recolheram em suas cabanas. E o tempo<br />
se escureceu. Uma chuva torrencial se abateu sobre a terra. Quando os Maxakali<br />
acordaram, as águas tinham apagado as fogueiras e uma enorme escuridão se fez.<br />
Desesperados, eles viram que a água chegava debaixo dos giraus (cama de vara). Juntaram<br />
seus poucos pertences e suas crianças e correram para cima das árvores. Ali a água os<br />
alcançava e eles eram derrubados na correnteza. Buscaram, então, a montanha mais alta. E<br />
aí também a água os alcançou... E assim morreram todos os Maxakali daquele tempo!<br />
Topa Salva um Maxakali<br />
O genro, no entanto, em meio a grande pavor, encontra um pedaço de pau oco e<br />
entra nele. Ele tapou as extremidades com areia e couro de veado e ali ficou por quarenta<br />
dias flutuando no grande mar de águas que se formara. Passada a tempestade, as águas<br />
baixaram e Topa quis ver como ficou a terra. E ele veio em forma de besouro (Mangangá)<br />
voando, voando... ZZZ! ZZZZ! ZZZ! Não sobrou nada, disse ele ao seu acompanhante.<br />
De repente. ouviu-se uma voz: Topa! Topa! Me tira daqui! Topa circulou o pau de<br />
onde saía a voz. Mandou seu acompanhante ir buscar um machadinho para cortar. Era<br />
inacreditável alguém ter escapado. Quando chegou o machadinho, Topa marcou o lugar<br />
para cortar! Aí não, disse a voz. Aí é minha perna. Como vou andar? E assim<br />
sucessivamente: a cabeça... como vou pensar? Os braços... como vou flechar? Até que o<br />
homem disse: aí pode cortar, pois Topa tinha marcado por cima da sua cabeça, no lugar da<br />
pele do veado. Topa retirou-o de dentro do pau. Fez uma fogueira e foi aquecendo-o,<br />
girando seu corpo em torno das labaredas, como quem assa carne. Que coisa horrível! O<br />
homem estava branco, magro e todo cagado. Fedia de longe.<br />
Depois que ele foi se recuperando, Topa alimentou-o com mel, amendoim,<br />
bananas, carne, frutas... e lhe disse: agora que você está bom vou levar você comigo, para o<br />
meu lugar (o Hamnoy), pois você está só. Mas o maxakali não quis ir: eu não sou Deus!<br />
Meu lugar é aqui! Disse Topa: então eu vou te ensinar a fazer uma armadilha para pegar<br />
uma mulher para você, pois você não suportará ficar só. E Topa ensinou-lhe a fazer um<br />
mundéu. E depois disso se foi.
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 205<br />
O maxakali seguia o conselho de Topa ao pé da letra. Armava sempre o mundéu na<br />
direção ensinada por Topa. Caíram ali vários bichos da floresta. Mas com nenhum o<br />
casamento dava certo. Até que caiu nele uma guariba. E ele se casou com ela. Quando<br />
nasceu, o filho era uma guaribinha. E como das outras vezes, ele a mandou embora, pois<br />
nascera bicho e não filho de gente.<br />
O Maxakali Encontra Gente e o Povo Renasce<br />
O maxakali se desesperava de tão só. Uma noite armou mais uma vez o mundéu na<br />
direção ensinada por Topa. E ouviu vozes: opa, essa voz... é voz de gente. Não é de bicho!<br />
Exclamou. E rápido seguiu pela mata em direção à voz. Viu então uma pequena cabana. Lá<br />
dentro viu uma veadinha (Mas essa era uma mulher, pois estava encantada). Ele chegou e<br />
bateu palma. Ela saiu à porta. Ele, respeitoso, ficou à distância com seu arco e flechas.<br />
- Bom-dia! O marido da senhora está em casa?<br />
- Não! Ele está trabalhando na roça.<br />
- Vou até lá! Disse ele, pois pensou que não ficaria bem ele ali sozinho com a mulher do<br />
outro.<br />
Ele se foi. Chegando na roça espiou... e viu um forte e grande veadão capinando a<br />
roça... todo suado. O maxakali pensou: vou matá-lo. Atirou suas flechas e zás! Flechou o<br />
homem e o matou. Jogou seu corpo no mato e retornou à casa da mulher.<br />
- Encontrou o meu marido? Perguntou a mulher.<br />
- Não, não o vi.<br />
- Então vamos esperá-lo.<br />
Ele se sentou do lado de fora da casa. Muito tempo se passou... O maxakali então se<br />
casou com a veadinha encantada. E daí nasceu esta gente Maxakali de hoje.<br />
2.2. QUANDO TOPA VIVIA NA TERRA<br />
Registrado por Geralda Soares (1995),<br />
na aldeia Pradinho.<br />
Antigamente Topa vivia na terra. Um dia ele cortou uma grande árvore e deixou o<br />
tronco caído no chão. Ao lado deste deitou o seu filho ainda bebê e afastou-se por algum<br />
tempo. A criança, quando se viu sozinha, começou a chorar. Neste momento alguns
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 206<br />
homens passaram ali por perto e encontraram o pequeno chorando. Um deles decidiu levar<br />
o bebê para que sua mulher o criasse.<br />
Ty, assim era o nome, mamou nesta mulher até crescer e saber de todas as coisas.<br />
Quando já tinha por volta de três anos, Ty pediu à seu yãyã – irmão da mãe – para esticar<br />
para ele um couro de cutia. Seu yãyã assim o fez. Ty amarrou este couro em seu pecoço<br />
sobre as costas e correu arrastando-o pelo chão no interior da casa. O barulho produzido<br />
pelo couro formou nuvens negras sob o teto da casa. Ty levantou os braços e relâmpagos<br />
saíram deles. Ele correu novamente pela casa arrastando o couro e uma chuva fina caiu no<br />
seu interior. Passaram-se os anos e Ty cresceu. Quando tinha por volta de dez anos, ele<br />
pediu novamente ao yãyã para esticar para ele o couro. Desta vez Ty pediu couro de veado.<br />
Seu yãyã atendeu o pedido e Ty amarrou no seu pescoço o couro do veado e repetiu o que<br />
fizera da primeira vez. Percorreu também os pátios externos das casas. Nuvens negras<br />
envolveram toda a aldeia. Ele levantou seus braços fazendo-os relampear e correu<br />
novamente pela aldeia. A chuva, então, caiu forte sobre as casas. Anos se passaram e Ty<br />
tornou-se um rapaz. Voltou a procurar o seu yãyã e fez o mesmo pedido. Agora o couro<br />
seria de um jaguar. Seu yãyã lhe entregou o couro pedido e Ty amarrou-o no pescoço como<br />
das outras vezes. Correu por toda a aldeia e pelo seu pátio externo – isto é, cruzou a Casa<br />
de Religião. Uma grande tempestade desabou sobre a aldeia e por toda a região próxima.<br />
Um dia seu yãyã foi à mata para tirar mel e Ty o acompanhou. Quando o tio se<br />
preparava para derrubar a árvore (forma tradicional Maxakali de tirar mel), Ty disse que<br />
ele próprio cortaria a árvore. Amarrou o couro de jaguar no pescoço e correu pela mata<br />
reunindo muitas nuvens negras no céu e, levantando os braços fez relampear, iniciando<br />
uma violenta tempestade e ventania. De repente, do céu veio um grande estrondo: um raio<br />
desceu à terra caindo ao lado dos dois homens e, de dentro deste, surgiu a mãe de Ty – a<br />
mulher de Topa – que reencontrara o filho por causa dos relâmpagos e da tempestade. Ela<br />
quebrou a árvore para o yãyã do rapaz e o levou de volta para o céu.<br />
3. KRENAK<br />
3.1. O TEMPO QUE DEUS ANDAVA NO MUNDO<br />
Registrado por Alvares (1992.207,208)
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 207<br />
Quando Deus andava no mundo, para ver quem era bom era quem era ruim, ele<br />
encontrou no meio da mata, uma aldeia e ficou prá saber se os índios eram bons ou ruins.<br />
Então Deus virou tamanduá que era manso, e eles o levaram pra casa. O tamanduá ficou lá.<br />
Os índios falaram para o tamanduá olhar os meninos. O tamanduá ficava e os índios iam<br />
caçar, pescar, e pegar raiz nativa, que se chama caratinga. Eles traziam, para o tamanduá,<br />
formigas. O tamanduá olhava para as formigas e ficava quieto, os índios ficaram<br />
assustados de ver o tamanduá falar.<br />
Aí os meninos perguntaram: você fala, tamanduá?<br />
O tamanduá respondeu: eu falo, mas não é pra vocês falarem com os outros não.<br />
Quando eles chegarem, vocês falam que eu comi as formigas.<br />
Eles chegaram com mais formigas para o tamanduá, o tamanduá falou para os<br />
meninos: eu quero mel, caratinga e beijú.<br />
Os meninos responderam ao tamanduá: você não é gente igual a nós, você é<br />
tamanduá. Tem que comer formigas.<br />
O tamanduá falou: eu não sou tamanduá.<br />
Quando os índios iam dormir, os meninos pegavam um gomo de bambú com mel e<br />
água, e caçavam caratinga para o tamanduá. Toda vez quando os índios chegavam com<br />
caça, os meninos davam para o tamanduá, até que Deus foi embora.<br />
tamanduá.<br />
Aí Deus falou para os meninos: aqui tem gente boa e gente ruim.<br />
Os meninos falaram que os outros índios não sabiam que ele era Deus, mas sim<br />
Aí Deus falou para os meninos: não vai falar nada para vocês, vocês vão ser índios<br />
bons e sabidos. Eu vou ajudar vocês em tudo que vocês precisarem eu ajudo. E Deus foi<br />
embora.<br />
4. PATAXÓ<br />
4.1. TXOPAI E ITÔHÃ (Deus e Céu)<br />
Registrado por Maurício Krenak (1997.32,33)<br />
Antigamente, na terra, só existiam bichos e passarinhos, macaco, caititu, veado<br />
tamanduá, anta, onça, capivara, cutia, paca, tatu, sarigüe, teiú... Cachichó, Cágado, quati,
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 208<br />
mutum, tururim, jacu, papagaio, aracuã, macuco, gavião, mãe-da-lua e muitos outros<br />
passarinhos.<br />
Naquele tempo, tudo era alegria. Os bichos e passarinhos viviam numa grande<br />
união. Cada raça de bicho e passarinho era diferente, tinha seu próprio jeito de viver a vida.<br />
Um dia, no azul do céu, formou-se uma grande nuvem branca, que logo se transformou em<br />
chuva e caiu sobre a terra. A chuva estava terminando e o último pingo de água que caiu se<br />
transformou em um índio.<br />
O índio pisou na terra, começou a olhar as florestas, os pássaros que passavam<br />
voando, a água que caminhava com serenidade, os animais que andavam livremente e<br />
ficou fascinado com a beleza que estava vendo ao seu redor. Ele trouxe consigo muitas<br />
sabedorias sobre a terra. Conhecia a época boa de plantar, de pescar, de caçar e as ervas<br />
boas para fazer remédios e seus rituais.<br />
Depois de sua chegada na terra, passou a caçar, plantar, pescar e cuidar da natureza.<br />
A vida do índio era muito divertida e saudável. Ele adorava olhar o entardecer, as noites de<br />
lua e o amanhecer. Durante o dia, o sol iluminava seu caminho e aquecia seu corpo.<br />
Durante a noite, a lua e as estrelas iluminavam e faziam suas noites mais alegres e bonitas.<br />
Quando era à tardinha, apanhava lenha, acendia uma fogueirinha e ficava ali olhando o ceu<br />
todo estrelado. Pela madrugada, acordava e ficava esperando clarear para receber o novo<br />
dia que estava chegando. Quando o sol apontava no céu, o índio começava o seu trabalho e<br />
assim ia levando sua vida, trabalhando e aprendendo todos os segredos da terra.<br />
Um dia, o índio estava fazendo ritual. Enxergou uma grande chuva. Cada pingo de<br />
chuva ia se transformar em índio. No dia marcado, a chuva caiu. Depois que a chuva parou<br />
de cair, os índios estavam por todos os lados. O índio reuniu os outros e falou: olha,<br />
parentes, eu cheguei aqui muito antes de vocês, mas agora tenho que partir.<br />
Os índios perguntaram: pra onde você vai?<br />
O índio respondeu: eu tenho que ir morar lá em cima no Itôhã, porque tenho que<br />
proteger vocês.<br />
Os índios ficaram um pouco tristes, mas depois concordaram: tá bom, parente, pode<br />
seguir sua viagem, mas não se esqueça do nosso povo.<br />
“Txopai”.<br />
Depois que o índio ensinou todas as sabedorias e segredos, falou: o meu nome é<br />
De repente, o índio se despediu dando um salto, e foi subindo... subindo... até que<br />
desapareceu no azul do céu, e foi morar lá em cima no “Itôhã”.<br />
Narrado e registrado pelo índio Kanátyo Pataxó (1997).
4.2. O CAMUNDERÊ<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 209<br />
O camunderê era um bicho muito cabeludo, e além de perigoso, também era<br />
assustador. Ele gostava de comer criança. Todas as noites ele aparecia. Quando chegava<br />
em uma casa, se tivesse criança, ele a devoraria e depois ia embora.<br />
Um certo dia, ele chegou em uma casa e um índio sábio, conhecedor dos segredos<br />
da mata, ao perceber a presença do monstro, pegou seu arco e flecha e, escondido, ficou<br />
tocaiando o bicho. Pois, até então, ninguém havia descoberto onde era que ficava sua boca.<br />
De repente, o bicho arrepiou os cabelos e já ia engolindo uma criança. No momento em<br />
que ele arrepiou os seus cabelos, o índio velho, pela primeira vez, viu a boca, que ficava<br />
nas proximidades do umbigo. De imediato, lançou sobre o umbigo do monstro uma flecha.<br />
O bicho, sem muita demora, tombou no chão, dando um estrondoso e assustador grito.<br />
Daquele dia em diante, acabou o camunderê, mas apesar de estar morto, até hoje<br />
existe assombração desse bicho perigoso.<br />
Registrado por Angthichay Pataxó (1997a.23)
ANEXO 02:<br />
MAPA DA MINAS INDÍGENA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 210
ANEXO 03:<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 211<br />
QUADRO DE VISUALIZAÇÃO DA MINAS INDÍNGENA
MINAS INDÍGENA<br />
Visualizando a Presença <strong>Indígena</strong> em <strong>Minas</strong> Gerais<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 212<br />
REMANESCENTES a MIGRATÓRIOS b EMERGENTES c<br />
POVO Xacriabá Maxakali Krenak Pataxó Pankararu<br />
Xukuru-<br />
Kariri<br />
Kaxixó Aranã<br />
MUNICÍPIO<br />
São João das<br />
Missões<br />
Santa Helena<br />
Bertópolis<br />
Resplendor Carmésia Coronel Murta Caldas<br />
Martinho<br />
Campos<br />
Coronel Murta<br />
Araçuaí<br />
REGIÃO<br />
Norte<br />
Vale do Rio São<br />
Francisco<br />
Nordeste<br />
Vale do Mucuri<br />
Sudeste<br />
Rio Doce<br />
Leste<br />
Vale do Aço<br />
Nordeste<br />
Médio Vale do<br />
Jequitinhonha<br />
Sul<br />
Centro<br />
Vale do<br />
Rio Pará<br />
Nordeste<br />
Médio Vale do<br />
Jequitinhonha<br />
TERRITÓRIO 53.014,92 ha. 5.293,13 ha. 3.983,09 ha. 3.270 ha. 68 ha. 101 ha. 35,25 ha. -<br />
POPULAÇÃO 7.000 1.000 230 300 20 70 60 85<br />
ALDEIAS 23 2 3 3 1 1 3 -<br />
ORIGEM MG MG MG BA PE AL<br />
Xukuru<br />
MG MG<br />
FAMÍLIA ÉTNICA Xerente<br />
Xavantes<br />
Pataxó<br />
Pataxó Hã-hã-hãe<br />
Aranã<br />
Maxakali<br />
Pataxó Hã-hã-hãe<br />
Pankararé<br />
Pakaru<br />
Kariri<br />
Kariri-Xocó<br />
Xokó<br />
- Krenak<br />
LÍNGUA Português Maxakali<br />
Português<br />
e Krenak<br />
Português Português<br />
Português<br />
e Kariri<br />
Português Português<br />
Sincretistas<br />
Sincretistas Sincretistas Sincretistas Sincretistas<br />
RELIGIOSIDADE Animistas- Animista Animistas- Animistas- Animistas- Animistas- Católicos Católicos<br />
Católicos<br />
Católicos Católicos Católicos Católicos<br />
NOME P/ DEUS Deus Topa Tupã Txopai Deus Dejuá-lhá Jacy Deus<br />
PRINCIPAIS<br />
ENTIDADES<br />
Yayá<br />
Hãmgãyãgnag<br />
Yãmixop<br />
Yãmiy<br />
Marét<br />
Nanitiong<br />
Krembá<br />
Hamãy<br />
Camunderê<br />
Praiás<br />
Apukaré<br />
? Angüera -<br />
LOCAIS<br />
SAGRADOS<br />
Terreiro Kuxex Kieme-Burúm -<br />
Poró<br />
Rancho<br />
Ouricuri - -<br />
IGREJA Sim d Não Sim e Sim f Não Não Não Não<br />
BÍBLIA - NT Não - - Não - -<br />
MISSIONÁRIO Não 7 g Não Não Não Não Não Não<br />
a Grupos originariamente mineiros que sobreviveram étnico-culturalmente ao processo de colonização/dizimação.<br />
b Grupos de outros Estados que migraram para <strong>Minas</strong> Gerais.<br />
c Grupos mineiros que desapareceram historiograficamente como etnias, mas se reorganizaram novamente lutando/adquirindo reconhecimento étnico oficial junto à FUNAI.<br />
d Congregação Cristã no Brasil, do povoado de Rancharia, com cerca de 90 pessoas, em oito aldeias; Deus é Amor, da cidade de Itacarambi, com cerca de 60 pessoas; e Assembléias de Deus, da cidade de Manga,<br />
com 32 pessoas, em duas aldeias. Ao todo são 23 aldeias, restando ao menos 10 sem igreja.<br />
e Assembléia de Deus, da cidade de Independência, com cerca de 20 pessoas.<br />
f Assembléia de Deus (cerca de 20 pessoas) e a Igreja Missionária Pentecostal (cerca de 10 pessoas), ambas da cidade de Carmésia.<br />
g Dois casais, da Missão Novas Tribos do Brasil, trabalhando com plantio de igrejas desde abril/92, uma missionária-enfermeira (dezembro/99), da Missão Emanuel, e agora um recente casal (maio/02) da Missão<br />
Horizontes. As primeiras conversões se deram em julho/02 – uma família.
ANEXO 04:<br />
D. João VI recebe<br />
denúncias contra os<br />
Botocudos que<br />
defendem seus<br />
territórios.<br />
Os Botocudos<br />
derrotam os<br />
invasores.<br />
Declaração de<br />
Guerra<br />
Formação de<br />
Milícias armadas<br />
para atacar os<br />
índios.<br />
Soldado índio ganha<br />
menos.<br />
A terra dos índios é<br />
divida entre os<br />
comandantes.<br />
CARTA RÉGIA DE 13/05/1808 157<br />
Declarada “Guerra Justa” contra os Botocudos<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 213<br />
Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, do meu Conselho, Governador e<br />
Capitão General da Capitania de <strong>Minas</strong> Gerais. Amigo. Eu o Principe<br />
Regente vos envio muito saudar. Sendo-me presentes as graves queixas<br />
que da Capitania de <strong>Minas</strong> Geraes têm subido à minha real presença, sobre<br />
as invasões que diariamente estão praticando os índios Botocudos,<br />
antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capitania,<br />
particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no mesmo<br />
desaguam e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquellas<br />
visinhanças e tem até forçado muitos proprietários a abandonal-as com<br />
grave prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam da mais barbara<br />
antropophagia, (...)<br />
(...) tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os<br />
meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilização<br />
e o reduzil-os a aldear-se e a gozarem dos bens permanentes de uma<br />
sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas Leis que regem os<br />
meus povos; e até havendo-se demonstrado, quão pouco util era o systema<br />
de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto que os<br />
pontos de defeza em uma tão grande e extensa linha não podiam bastar a<br />
cobrir o paiz: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem<br />
suspender os effeitos de humanidade que com elles tinha mandado<br />
praticar, ordenar-vos, em primeiro lugar.<br />
Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Regia, deveis<br />
considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra<br />
offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e<br />
que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de<br />
suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas<br />
de maneira tal que movidos do justo terror em sociedade, possam vir a ser<br />
vassallos uteis, como já o são as immensas variedades de Indios que nestes<br />
meus vastos Estados do Brazil se acham aldeados e gozam da felicidade<br />
que é consequencia necessaria do estado social.<br />
Em segundo logar sou servido ordenar-vos que formeis logo um Corpo de<br />
Soldados pedestres escolhidos e commandados pelos mesmos habeis<br />
Commandados que vós em parte propuzestes e que vão nomeados nesta<br />
mesma Carta Régia, os quaes terão o mesmo soldo que o dos Soldados<br />
Infantes; e sendo Indios domesticos, poderá diminuir-se o soldo a 40 réis,<br />
como se faz na guarnição dos Presidios dos Barretos e da Serra de S. João<br />
(...)<br />
(...) Em terceiro logar, ordeno-vos que façais distribuir em seis districtos,<br />
ou partes, todo o terreno infestado pelos Indios Botocudos, nomeados seis<br />
Commandantes destes terrenos, a quem ficará encarregada pela maneira<br />
157 Cópia desta Carta Régia se encontra, na íntegra, nos arquivos do CEDEFES.
Estratégia da<br />
guerra.<br />
Os índios<br />
aprisionados<br />
deveriam ser<br />
escravos por dez<br />
anos ou toda a vida.<br />
Quem matar mais<br />
terá salário maior.<br />
Fiscalização da<br />
perseguição aos<br />
índios.<br />
Controle do Rio<br />
Doce.<br />
Quem invadir mais<br />
terra fica dez anos<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 214<br />
que lhes parecer mais profunda, a guerra offensiva que convém fazer aos<br />
Indios Botocudos (...)<br />
(...) A estes Commandantes ficará livre o poderem escolher os soldados<br />
que julgarem proprios para essa qualidade de duro e aspero serviço, e em<br />
numero sufficiente para formarem diversas Bandeiras, com que hajam<br />
constantemente todos os annos na estação secca de entrar nos matos;<br />
ajudando-se reciprocamente não só as Bandeiras de cada Commandante,<br />
mas todos os seis Commandantes com as suas respectivas forças, e<br />
concertando entre si plano mais proficuo para a total redução de uma<br />
semelhante e atroz raça antropophaga. Os mesmos Commandantes serão<br />
responsaveis pelas funestas consequências das invasões à sua guarda, logo<br />
que contra elles se prove omissão, ou descuido:<br />
Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios<br />
Botocudos que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque; e<br />
que sejam entregues para o serviço do respectivo Commandante por dez<br />
annos, e todo o mais tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle<br />
empregal-os em seu serviço particular durante esse tempo e conserval-os<br />
com a devida segurança, mesmo em ferros, enquanto não derem provas do<br />
abandono de sua atrocidade e antropophagia.<br />
Em quarto logar, ordeno-vos que a estes Commandantes se lhes confira<br />
annualmente um augmento de soldo proporcional ao bom serviço que<br />
fizerem, regulado este pelo principio que terá mais meio soldo aquelle<br />
Commandante que no decurso de um anno mostrar, não sómente que no<br />
seu districto não houve invasão alguma de Indios Botocudos, nem de<br />
outros quaesquer Indios bravos, de que resultasse morte de Portugueses,<br />
ou destruição de suas plantações; mas que aprisionou e destruiu no mesmo<br />
tempo maior numero, do que qualquer outro Commandante (...)<br />
(...) Em quinto logar ordeno-vos que em cada tres mezes convoqueis uma<br />
Junta que será por vós presidida (...) na qual fareis conhecer do resultado<br />
de tão importante serviço; e me dará conta pela Secretaria do Estado de<br />
Guerra e Negocios Estrangeiros, de tudo o que tiver acontecido e for<br />
concernente a este objecto, para que se consiga a redução e civilização dos<br />
Indios Botocudos, si possível for, e a das outras raças de Indios que muito<br />
vos recommendo e podendo tambem a Junta propor-me tudo o que julgar<br />
conveniente para tão saudaveis e grandes fins, particularmente tudo o que<br />
tocar à pacificação, civilização e aldeação dos Indios (...)<br />
(...) Propondo-me igualmente por motivo destas saudaveis providencias<br />
contra os Indios Botocudos, preparar os meios convenientes para o futuro<br />
a navegação do Rio Doce, que faça a felicidade dessa Capitania, e<br />
desejando igualmente procurar, com a maior economia da minha Real<br />
Fazenda, meios para tão saudavel empreza; assim como favorecer os que<br />
quizerem ir povoar aquelles preciosos terrenos auriferos, abandonados<br />
hoje pelo susto que causam os Indios Botocudos (...)<br />
(...) vos ordeno que em todos os terrenos do Rio Doce actualmente
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 215<br />
sem pagar dízimo. infestados pelos Indios Botocudos, estabeleçais de accordo com a Junta da<br />
Fazenda, que os terrenos novamente cultivados e infestados pelos Indios,<br />
ficarão isentos por dez annos de pagarem dizimo a favor daquelles que os<br />
forem por em cultura de modo que se possa reputar permanente: que<br />
igualmente fique estabelecida por dez annos a livre exportação e<br />
importação de todos os generos de commercio que se navegarem pelo<br />
mesmo Rio Doce (...)<br />
Moratória para os<br />
grileiros da terra<br />
indígena durante<br />
seis anos.<br />
(...) que finalmente fique decretado, que concedo a todos os devedores da<br />
minha Real Fazenda que forem fazer semelhantes estabelecimentos de<br />
cultura e de trabalhos auriferos, a especial graça, de uma moratoria, que<br />
haja de durar seis annos da data desta minha Carta Régia, em cujo periodo<br />
não poderão ser inquietados por dividas que tenham contrahido com a<br />
minha Real Fazenda, (...)<br />
Dada no Palácio do Rio de Janeiro em 13 de maio de 1808<br />
Príncipe D. João VI
ANEXO 05:<br />
ÁLBUM DA MINAS INDÍGENA<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong> 216
<strong>Indígena</strong> Xacriabá<br />
Típico Casebre Xacriabá<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
216
<strong>Indígena</strong> Maxakali<br />
Palhoça Maxakali<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
217
Crianças Maxakali<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
À esquerda, Zezinho Maxakali e sua família cantando em uma<br />
igreja evangélica da região (convertido em julho de 2002).<br />
À direita, missionário Aguigu Cipriano (indígena Makuxi).<br />
Missão Horizontes – Maxakali (desde maio de 2002).<br />
218
Crianças Krenak<br />
Adolescentes Krenak<br />
às margens do Watu – Rio Doce<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
219
<strong>Indígena</strong>s Pataxó<br />
oferecendo seus<br />
artesanatos.<br />
À direita, o cacique<br />
Thyundayba.<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
<strong>Indígena</strong>s Pataxó<br />
com trajes<br />
especiais<br />
para o awê –<br />
dança<br />
tradicional.<br />
220
Ritual Pankararu<br />
Os homens de máscaras são os praiás (“encantados”)<br />
e as mulheres devem acreditar que são espíritos.<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
<strong>Indígena</strong>s Pankararu às margens do Rio Jequitinhonha<br />
221
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
222<br />
Warkanã D’Aruanâ<br />
Cacique Xukuru-Kariri<br />
Clarismõn<br />
Vice-cacique<br />
Xukuru-Kariri
<strong>Indígena</strong> Kaxixó<br />
Jerry Adriane, ex-cacique Kaxixó (em palestra)<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
223
<strong>Indígena</strong> Aranã<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Kuxex – Casa de Religião Maxakali.<br />
O local mais sagrado de toda a aldeia, proibido às mulheres.<br />
224
Kieme-Burúm – Casa de Religião Krenak<br />
Casa de Reuniões Pataxó<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
225
Rancho – Casa de Ritual Pankararu<br />
Casa de Ritual Kaxixó<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
226
Casa de Reuniões Aranã<br />
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Ao centro, Dra. Francês Popovich<br />
Missionária-lingüista entre os Maxakali de 1959-1981 – SIL<br />
227
<strong>Minas</strong> <strong>Indígena</strong><br />
Missionários Ronaldo e Kátia Lima e suas quatro filhas<br />
MNTB – Maxakali (desde abril de 1992)<br />
Missionária-enfermeira Marlene Martins<br />
Missão Emanuel – Maxakali (desde dezembro de 1999)<br />
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