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universidade estácio de sá mestrado em direito silvia araújo amorim ...

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ<br />

MESTRADO EM DIREITO<br />

SILVIA ARAÚJO AMORIM PEREIRA BARETTO<br />

O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO:<br />

CONFLITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

2008


SILVIA ARAÚJO AMORIM PEREIRA BARRETTO<br />

O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO:<br />

CONFLITO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS<br />

Dissertação apresentada como requisito<br />

para a obtenção do título <strong>de</strong> Mestre <strong>em</strong><br />

Direito Público, pela Universida<strong>de</strong> Estácio<br />

<strong>de</strong> Sá.<br />

Orientadora: Profa. Dra. Renata Braga Klevenhusen<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

2008<br />

1


A dissertação<br />

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÀO EM DIREITO<br />

O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO: CONFLITO DE PRINCÍPIOS<br />

CONSTITUCIONAIS<br />

elaborada por<br />

SILVIA ARAUJO AMORIM PEREIRA BARRETTO<br />

e aprovada por todos os m<strong>em</strong>bros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso <strong>de</strong> Mestrado<br />

<strong>em</strong> Direito como requisito parcial à obtenção do título <strong>de</strong><br />

MESTRE EM DIREITO<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 26 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008.<br />

BANCA EXAMINADORA<br />

________________________________________________<br />

Profa. Dra. Renata Braga Klevenhusen<br />

Presi<strong>de</strong>nte<br />

Universida<strong>de</strong> Estácio <strong>de</strong> Sá<br />

_________________________________________________<br />

Prof. Dr.Vicente <strong>de</strong> Paula Barretto<br />

Universida<strong>de</strong> Estácio <strong>de</strong> Sá<br />

___________________________________________________<br />

Profa. Dra.<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

2


Agra<strong>de</strong>ço à minha mãe, Evangelina, que s<strong>em</strong>pre me<br />

incentivou a estudar e me proporcionou essa possibilida<strong>de</strong>.<br />

À minha paixão, meu filho José Edgard, pela abdicação diária<br />

a que se propôs.<br />

À Professora Doutora Renata, pela condução da pesquisa e<br />

inúmeras verificações.<br />

Aos amigos que pu<strong>de</strong> fazer e que levarei para a vida.<br />

3


RESUMO<br />

Essa dissertação t<strong>em</strong> como objetivo analisar a colisão dos <strong>direito</strong>s fundamentais<br />

envolvidos <strong>em</strong> face da possibilida<strong>de</strong> jurídica ou não da realização do aborto do feto<br />

anencefálico. A anencefalia é um <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> fechamento do tubo neural durante a formação<br />

<strong>em</strong>brionária que provoca a inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida fora do útero materno. Mas o <strong>direito</strong> a vida é<br />

inviolável e sua proteção começa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção. A legislação infra constitucional prevê o<br />

crime <strong>de</strong> aborto, exceto nos casos <strong>de</strong> estupro e risco <strong>de</strong> vida da mãe. O aborto neste caso não<br />

está previsto. A manutenção da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um feto s<strong>em</strong> viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida infringiria o<br />

<strong>direito</strong> fundamental da mãe <strong>de</strong> escolha sua liberda<strong>de</strong> e autonomia. Inicialmente, analisa-se o<br />

conceito <strong>de</strong> vida, o início da vida humana e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> anencefalia. Verifica-se a tutela da<br />

vida humana intra-uterina, <strong>de</strong>finindo os <strong>direito</strong>s fundamentais e os <strong>direito</strong>s humanos, o <strong>direito</strong><br />

à vida, o <strong>direito</strong> da personalida<strong>de</strong> e a atribuição da personalida<strong>de</strong> civil. Analisa-se o aborto, a<br />

viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Discute-se o <strong>direito</strong> ao planejamento familiar previsto no artigo 226, da<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral, a Lei 9263/96, perpassando pelo critério da afetuosida<strong>de</strong>, pela liberda<strong>de</strong><br />

e a autonomia da gestante na escolha <strong>de</strong> manter ou não a gravi<strong>de</strong>z. Aborda-se a colisão <strong>de</strong><br />

<strong>direito</strong>s fundamentais no caso do aborto do anencéfalo, com o método da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong><br />

interesses no caso <strong>de</strong> princípios que se coli<strong>de</strong>m sob este fato, com base no princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong>.<br />

Palavras-chaves: Viabilida<strong>de</strong>. Pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> interesses. Dignida<strong>de</strong> da pessoa humana.<br />

Planejamento familiar. Gestante.<br />

4


ABSTRACT<br />

This thesis aims to analyze the collision of fundamental rights involved in legal or<br />

face the possibility of not completing the abortion of the foetus anencefálico. The<br />

anencephaly is a <strong>de</strong>fect of closing the neural tube during training <strong>em</strong>bryonic causing the<br />

unfeasibility of life outsi<strong>de</strong> the womb mother. But the right to life is inviolable and its<br />

protection begins from conception. The legislation provi<strong>de</strong>s below the crime of abortion,<br />

except in cases of rape and danger of life of the mother. Abortion in this case is not expected.<br />

The maintenance of pregnancy of a fetus without viability of life infringe the fundamental<br />

right to choose their mother's freedom and autonomy. Initially analyzes the concept of life, the<br />

beginning of human life and the <strong>de</strong>finition of anencephaly. There is a protection of human life<br />

intra-uterine, <strong>de</strong>fining fundamental rights and human rights, the right to life, the right of<br />

personality and allocation of civil personality. The article analyses the abortion, the viability<br />

of life. It discusses the right to family planning un<strong>de</strong>r Article 226, of the Fe<strong>de</strong>ral Constitution,<br />

Law 9263/96, perpassando by the criterion of afetuosida<strong>de</strong>, for freedom and autonomy of<br />

pregnant women in the choice of keeping or not a pregnancy. It is a collision of fundamental<br />

rights in the case of abortion anencéfalo, with the method of balance of interests in the case of<br />

principles which would colli<strong>de</strong> in this fact, un<strong>de</strong>r the principle of proportionality<br />

Keywords: Feasibility. Balancing of interests. Dignity of the human person. Family planning.<br />

Pregnant.<br />

5


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 6<br />

1 O INÍCIO DA VIDA HUMANA.................................................................................... 10<br />

1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS..................................................................................... 10<br />

1.2. A VIDA E A REPRODUÇÃO HUMANA.................................................................. 14<br />

1.3. ANENCEFALIA........................................................................................................... 21<br />

2 A TUTELA DA VIDA HUMANA INTRA-UTERINA............................................... 27<br />

2.1. DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DOS DIREITOS HUMANOS...................... 27<br />

2.2. O DIREITO À VIDA........ ........................................................................................... 36<br />

2.3. A VIDA COMO UM DIREITO DA PERSONALIDADE........................................... 41<br />

2.4 ATRIBUIÇÃO DA PERSONALIDADE CIVIL........................................................... 44<br />

2.5. ABORTO...................................................................................................................... 47<br />

2.6. VIABILIDADE COMO CRITÉRIO CARACTERIZADOR DO DIREITO À VIDA 54<br />

2.7. FETO ANENCÉFALO: EXISTÊNCIA DE VIDA?.................................................... 56<br />

3 A VIDA HUMANA E O PLANEJAMENTO FAMILIAR......................................... 60<br />

3.1. O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR....................................................... 60<br />

3.2. LEI 9263/96.................................................................................................................. 65<br />

3.3. AUTONOMIA DA GESTANTE.................................................................................. 68<br />

4 COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CASO DO ABORTO DO<br />

ANENCÉFALO..................................................................................................................<br />

75<br />

4.1. PONDERAÇÃO DE INTERESSES: PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.... 77<br />

4.2. OBJEÇÕES À APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO.................................................... 82<br />

4.3. ANÁLISE DOS ARGUMENTOS DA ADPF 54......................................................... 84<br />

4.4. APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO NO CASO DO FETO ANÉNCEFALO............. 89<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 98<br />

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................ 102<br />

6


INTRODUÇÃO<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico v<strong>em</strong> ocorrendo nas várias áreas do conhecimento,<br />

inclusive na medicina, e, conseqüent<strong>em</strong>ente, atrai a atenção dos aplicadores do Direito.<br />

Entretanto, algumas <strong>de</strong>scobertas não traz<strong>em</strong> somente benefícios aos seres humanos e à<br />

socieda<strong>de</strong>. Elas acabam provocando polêmicas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> monta, como no caso das más<br />

formações congênitas.<br />

A medicina fetal reconhece o nascituro como um paciente, inclusive submetendo-<br />

o, <strong>em</strong> certas situações e quando neces<strong>sá</strong>rio, a tratamento intra-uterino. O diagnóstico pré-natal<br />

<strong>de</strong>ve servir para o beneficio do nascituro, com a realização <strong>de</strong> tratamento preventivo <strong>de</strong><br />

doenças e enfermida<strong>de</strong>s. A questão que se <strong>de</strong>bate é a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> <strong>de</strong>feitos congênitos e<br />

anomalias incuráveis.<br />

Atualmente, t<strong>em</strong>-se discutido muito a possibilida<strong>de</strong> jurídica ou não da realização<br />

do aborto do feto anencefálico. A anencefalia consiste na malformação caracterizada pela<br />

ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente <strong>de</strong> <strong>de</strong>feito <strong>de</strong><br />

fechamento do tubo neural durante a formação <strong>em</strong>brionária. Trata-se <strong>de</strong> patologia fetal letal<br />

na maioria dos casos. Os fetos com anencefalia não possu<strong>em</strong> cérebro e, portanto, não têm<br />

como sobreviver fora do útero materno. A viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> forma autônoma é zero. A<br />

morte após o parto é imediata.<br />

Por outro lado, o <strong>direito</strong> à vida é o mais importante dos <strong>direito</strong>s fundamentais do<br />

hom<strong>em</strong>, pois é inerente à pessoa humana, já que <strong>de</strong>la <strong>de</strong>corr<strong>em</strong> todos os outros <strong>direito</strong>s<br />

humanos fundamentais. Por isso, a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, no seu artigo 5°, <strong>de</strong>clara que<br />

o <strong>direito</strong> à vida é inviolável. Além disso, é sabido que a vida humana começa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

concepção. Portanto, é nesse momento que t<strong>em</strong> início a sua proteção – e o Código Civil<br />

Brasileiro põe a salvo todos os <strong>direito</strong>s do nascituro.<br />

O Código Penal Brasileiro, na parte especial dos crimes contra a pessoa, prevê o<br />

aborto, prática proibida no or<strong>de</strong>namento jurídico, que po<strong>de</strong> ser espontâneo ou provocado,<br />

7


conforme verifica-se no artigo 124, exceto nos casos <strong>de</strong> estupro e risco <strong>de</strong> vida da mãe,<br />

também previstos no mesmo código, no artigo 128, I e II. O aborto <strong>de</strong>ve ser entendido como a<br />

interrupção pr<strong>em</strong>atura <strong>de</strong> um processo mórbido ou natural; é a interrupção da gravi<strong>de</strong>z pela<br />

morte do feto ou <strong>em</strong>brião, junto com os anexos ovulares.<br />

Diante disso, a realização do aborto <strong>em</strong> fetos anencefálicos estaria infringindo o<br />

<strong>direito</strong> fundamental à vida, mas, no caso da gravi<strong>de</strong>z ser mantida, on<strong>de</strong> se localizaria o <strong>direito</strong><br />

fundamental da mãe <strong>de</strong> escolher pela interrupção, a sua liberda<strong>de</strong> e autonomia <strong>de</strong> escolha?<br />

Ambos são consi<strong>de</strong>rados <strong>direito</strong>s fundamentais, pois reconhecidos, outorgados e protegidos<br />

pelo <strong>direito</strong> constitucional interno. Verifica-se, então, uma colisão <strong>de</strong> diretos fundamentais a<br />

ser<strong>em</strong> analisados e discutidos.<br />

O objetivo <strong>de</strong>sse trabalho, <strong>de</strong>senvolvido no âmbito do Curso <strong>de</strong> Mestrado <strong>em</strong><br />

Direito da Universida<strong>de</strong> Estácio <strong>de</strong> Sá, na linha <strong>de</strong> pesquisa “Diretos fundamentais e Novos<br />

Direitos”, correspon<strong>de</strong> à análise jurídica, com base nos princípios fundamentais, da<br />

admissibilida<strong>de</strong> ou não do aborto, nos casos <strong>em</strong> que o feto apresenta malformação<br />

incompatível com a vida, mais especificamente nas hipóteses <strong>de</strong> fetos portadores <strong>de</strong><br />

anencefalia.<br />

A relevância do presente estudo está baseada na contraposição <strong>de</strong> princípios<br />

fundamentais que envolv<strong>em</strong> o caso do aborto do anencéfalo, pois, <strong>de</strong> um lado, verifica-se o<br />

<strong>direito</strong> à vida do feto e, <strong>de</strong> outro, o <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> e à autonomia da mãe <strong>de</strong> manter ou não<br />

a gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>sse feto que não terá qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina.<br />

A metodologia utilizada para execução dos objetivos relativos a este trabalho foi à<br />

<strong>de</strong>dutiva, tendo a dissertação como subsídios diversas doutrinas referentes aos t<strong>em</strong>as<br />

abordados, especialmente livros, revistas, periódicos e publicações eletrônicas.<br />

Já a justificativa da escolha do t<strong>em</strong>a se dá pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprofundamento<br />

teórico acerca <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>a atual e <strong>de</strong> relevante importância no cenário jurídico nacional, qual<br />

seja o confronto <strong>de</strong> princípios constitucionais, b<strong>em</strong> como procurar esclarecer alguns pontos<br />

ainda muito divergentes na doutrina e na jurisprudência.<br />

Para tanto, <strong>em</strong> um primeiro momento, analisou-se o conceito <strong>de</strong> vida, a partir <strong>de</strong><br />

que momento se dá o início da vida humana e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> anencefalia.<br />

No segundo capítulo, verificou-se a tutela da vida humana intra-uterina. Desse<br />

modo, fez-se neces<strong>sá</strong>rio o entendimento dos conceitos dos <strong>direito</strong>s fundamentais e dos<br />

<strong>direito</strong>s humanos, passando ao conceito sobre o <strong>direito</strong> à vida, o <strong>direito</strong> da personalida<strong>de</strong> e a<br />

8


atribuição da personalida<strong>de</strong> civil garantidos no or<strong>de</strong>namento jurídico pátrio. Discutiu-se ainda<br />

sobre o aborto, a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida como critério caracterizador do <strong>direito</strong> à vida, para<br />

concluir que o feto anencéfalo, apesar da malformação, é um ser humano e possui vida.<br />

No terceiro capítulo, passou-se a discutir sobre o <strong>direito</strong> ao planejamento familiar<br />

previsto no artigo 226, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, r<strong>em</strong>etendo-se à analise da Lei 9263/96, que<br />

possibilitou a realização do planejamento familiar com base no critério da afetuosida<strong>de</strong>. Para<br />

terminar esse ponto, abordou-se a liberda<strong>de</strong> e a autonomia da gestante na escolha <strong>de</strong> manter<br />

ou não a gravi<strong>de</strong>z do feto anencéfalo.<br />

Por fim, no último capítulo, discutiu-se a colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais no caso<br />

do aborto do anencéfalo. Para tanto, analisou-se o método da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> interesses no<br />

caso <strong>de</strong> princípios que se coli<strong>de</strong>m sob o mesmo fato, com base no princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong>. Algumas objeções a este método da pon<strong>de</strong>ração são apresentadas. Na<br />

seqüência, passou-se à análise dos argumentos contidos da ADPF 54, que tramita atualmente<br />

no STF, contendo o pedido baseado na violação da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana <strong>em</strong> submeter<br />

a gestante a levar a termo uma gravi<strong>de</strong>z inviável.<br />

Por <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, discutiu-se a aplicação da pon<strong>de</strong>ração no caso do aborto do feto<br />

anencéfalo, possibilitando à mãe, com fundamento no <strong>direito</strong> fundamental à liberda<strong>de</strong>, à<br />

autonomia e à saú<strong>de</strong>, a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> optar pela interrupção ou pelo prosseguimento da<br />

gravi<strong>de</strong>z do feto anencéfalo.<br />

9


1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

1 O INÍCIO DA VIDA HUMANA<br />

A vida não se trata <strong>de</strong> um simples acontecimento biológico, pois tanto a vida<br />

como a morte geram, provocam um acontecimento simbólico, ou seja, possu<strong>em</strong> um sentido. A<br />

vida é algo completo e complexo, <strong>de</strong>vendo ser gozada <strong>em</strong> sua plenitu<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>svinculada <strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>po e, <strong>de</strong> certa forma, <strong>de</strong> condições. A vida é relacionar-se tanto com outros da mesma<br />

espécie, como também manter uma ligação com o meio <strong>em</strong> que se está inserido.<br />

A relação e a ligação <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser pautadas por atitu<strong>de</strong>s 1 e atos 2 consi<strong>de</strong>rados éticos,<br />

pois, somente assim, a socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá ser próspera e <strong>de</strong>senvolver-se <strong>de</strong> forma salutar. Mas<br />

como fazer isso, quando há várias posições, pensamentos, idéias sobre o que seja vida e<br />

morte? Quando se <strong>de</strong>termina que um ser está vivo ou morto? Há a limitação para a vida <strong>de</strong><br />

cada ser humano? A viabilida<strong>de</strong> é um critério que <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado?<br />

O judiciário brasileiro t<strong>em</strong> sido procurado pela socieda<strong>de</strong> para dirimir questões<br />

relativas à gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> fetos anencefálicos. A anencefalia é um <strong>de</strong>feito basico do ser humano,<br />

é uma malformação congenita que se caracteriza geralmente pela ausência total ou parcial do<br />

da abóboda craniana e, a massa encefalica é reduzida. Esta anomalia ocorre durante a fase<br />

<strong>em</strong>brionária e é proveniente <strong>de</strong> <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> fechamento do tubo neural, ocasionada pela falta <strong>de</strong><br />

ácido fólico . É uma patologia fetal letal. Os fetos com anencefalia não possu<strong>em</strong> condições <strong>de</strong><br />

sobreviver fora do útero materno e não há qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento ou reversão<br />

do quadro.<br />

Por sua vez, para a caracterização do aborto, pouco importa a interrupção<br />

pr<strong>em</strong>atura <strong>de</strong> um processo mórbido ou natural, dado que o aborto é a interrupção da gravi<strong>de</strong>z<br />

pela morte do feto ou <strong>em</strong>brião, junto com os anexos ovulares. Po<strong>de</strong> ser espontâneo ou<br />

provocado, mas é prática proibida no nosso or<strong>de</strong>namento jurídico, conforme verifica-se no<br />

1 Atitu<strong>de</strong>: termo amplamente <strong>em</strong>pregado hoje <strong>em</strong> dia <strong>em</strong> filosofia, sociologia e psicologia para indicar a<br />

orientação seletiva e ativa do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> face <strong>de</strong> uma situação ou um probl<strong>em</strong>a qualquer.<br />

2 Ato possui dois significados: primeiro, <strong>de</strong> ação, no sentido restrito e específico da palavra, como operação que<br />

<strong>em</strong>ana do hom<strong>em</strong> ou <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r específico <strong>de</strong>le; segundo, <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> que se realizou ou se vai realizando, do<br />

ser que alcançou ou está alcançando a sua forma plena e final, <strong>em</strong> contraposição ao que é possível.<br />

10


artigo 124, do Código Penal, exceto nos casos <strong>de</strong> estupro e risco <strong>de</strong> vida da mãe, também<br />

previsto no mesmo código, no artigo 128, I e II.<br />

Diante da legislação <strong>em</strong> vigor, a mãe <strong>de</strong> feto anencefálico estaria obrigada a<br />

manter a gravi<strong>de</strong>z pelo período <strong>de</strong> nove meses, até que o evento do nascimento ocorresse.<br />

Assim, on<strong>de</strong> se localizaria o <strong>direito</strong> fundamental da mãe <strong>em</strong> escolher ou optar pela interrupção<br />

<strong>de</strong>ste estado gravídico, baseado na sua liberda<strong>de</strong> e autonomia? É claro que o feto possui o<br />

<strong>direito</strong> a vida, mas a mãe <strong>de</strong>ste feto também possui <strong>direito</strong>s fundamentais que necessitam ser<br />

analisados. Nota-se uma colisão <strong>de</strong> diretos fundamentais a ser<strong>em</strong> analisados e discutidos, b<strong>em</strong><br />

como os princípios fundamentais envolvidos.<br />

Para tanto, a Constituição criou mecanismos, como a Argüição <strong>de</strong><br />

Descumprimento <strong>de</strong> Preceito Fundamental, prevista no artigo 102, parágrafo primeiro, Trata-<br />

se <strong>de</strong> um instrumento <strong>de</strong> fiscalização abstrata e controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>stina<br />

a proteger os preceitos fundamentais para dirimir, por ex<strong>em</strong>plo, a controvérsia existente no<br />

caso concreto da possibilida<strong>de</strong> ou não do aborto do feto anencéfalo, s<strong>em</strong> que este fato atente<br />

contra o princípio fundamental da vida.<br />

Diante da impossibilida<strong>de</strong> da realização do aborto no caso do feto anencéfalo, a<br />

Confe<strong>de</strong>ração Nacional dos Trabalhadores na Saú<strong>de</strong> ajuizou, junto ao STF, a ADPF N. 54, na<br />

qual se discute a legitimida<strong>de</strong> ou não da interrupção da gestação na referida hipótese. Tal ação<br />

possui, como “pedido principal”, a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126<br />

e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei N. 2848/40) e a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong><br />

inconstitucionalida<strong>de</strong> com eficácia erga omnes e efeito vinculante da interpretação <strong>de</strong> tais<br />

dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto <strong>em</strong> casos <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />

feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o <strong>direito</strong> subjetivo<br />

da gestante <strong>de</strong> se submeter a tal procedimento s<strong>em</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentação prévia <strong>de</strong><br />

autorização judicial ou qualquer outra forma <strong>de</strong> permissão específica do Estado.<br />

Essa ação ainda aguarda julgamento pelo STF. Contudo, outra ação que versa<br />

sobre t<strong>em</strong>a s<strong>em</strong>elhante está sendo discutida pela supr<strong>em</strong>a corte, fornecendo um horizonte<br />

sobre alguns pontos controversos na legislação brasileira e na doutrina. Ex<strong>em</strong>plo disto é a<br />

Ação Direta <strong>de</strong> Inconstitucionalida<strong>de</strong> (ADI) 3510, que discute a legalida<strong>de</strong> das pesquisas com<br />

células-tronco <strong>em</strong>brionárias. A ação foi ajuizada no STF pela procuradoria-geral da República<br />

e pedia a revogação <strong>de</strong> dispositivos da Lei 11.105/05, conhecida como Lei <strong>de</strong> Biossegurança,<br />

os quais permitiriam a realização <strong>de</strong> pesquisas com células-tronco <strong>em</strong>brionárias. Na prática,<br />

11


trata-se <strong>de</strong> realização ou não <strong>de</strong> pesquisas científicas com o uso das células-tronco<br />

<strong>em</strong>brionárias <strong>em</strong> laboratórios.<br />

O ponto basilar da ação ADPF N. 54, que trata do aborto do anencéfalo e tramita<br />

na supr<strong>em</strong>a corte brasileira, está na análise e <strong>de</strong>terminação do início da vida humana. O marco<br />

inicial sobre a existência ou não do ser humano é essencial na discussão sobre a possibilida<strong>de</strong><br />

ou não da realização do aborto do anencéfalo.<br />

No dia 28 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2008, o STF voltou a discutir na Ação Direta <strong>de</strong><br />

Inconstitucionalida<strong>de</strong> (ADI) 3510, que trata sobre a legalida<strong>de</strong> das pesquisas com células-<br />

tronco <strong>em</strong>brionárias e, para tanto, analisou o início da vida humana. O relator da ação votou a<br />

favor das pesquisas e qualificou como “perfeito” e “b<strong>em</strong> concatenado bloco normativo” o<br />

dispositivo <strong>em</strong> questão 3 .<br />

Para o relator, “a Constituição Fe<strong>de</strong>ral, quando se refere aos <strong>direito</strong>s e garantias<br />

constitucionais, fala do indivíduo pessoa, ser humano, já nascido, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando o estado<br />

<strong>de</strong> <strong>em</strong>brião e feto” 4 . Ele fundamentou seu voto <strong>em</strong> dispositivos da Constituição Fe<strong>de</strong>ral que<br />

garant<strong>em</strong> o <strong>direito</strong> à vida, à saú<strong>de</strong>, ao planejamento familiar e à pesquisa científica. Além<br />

disso, o ministro relator exarou consi<strong>de</strong>ração sobre a legislação infraconstitucional,<br />

esclarecendo que esta “cuidou do <strong>direito</strong> do nascituro, do ser que está a caminho do<br />

nascimento” 5 .<br />

O STF <strong>de</strong>cidiu, por maioria, no dia 29 <strong>de</strong> maio do presente ano, que as pesquisas<br />

com células-tronco <strong>em</strong>brionárias não violam o <strong>direito</strong> à vida, tampouco a dignida<strong>de</strong> da pessoa<br />

humana. O ministro Carlos Ayres Britto 6 fundamentou seu voto <strong>em</strong> dispositivos da<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral que garant<strong>em</strong> o <strong>direito</strong> à vida, à saú<strong>de</strong>, ao planejamento familiar e à<br />

pesquisa científica. Sustentou a tese <strong>de</strong> que, para existir vida humana, “é preciso que o<br />

<strong>em</strong>brião tenha sido implantado no útero humano” [grifos nossos]. Para ele, o zigoto<br />

(<strong>em</strong>brião <strong>em</strong> estágio inicial) é a primeira fase do <strong>em</strong>brião humano, a célula-ovo ou célula-<br />

mãe, mas representa uma realida<strong>de</strong> distinta da pessoa natural, porque ainda não t<strong>em</strong> cérebro<br />

formado.<br />

3 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 8 jun. 2008.<br />

4 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 8 jun. 2008.<br />

5 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 8 jun. 2008.<br />

6 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 3<br />

jun. 2008.<br />

12


A ministra Ellen Gracie 7 acompanhou o voto do Ministro Carlos Ayres Britto,<br />

dizendo que “N<strong>em</strong> se lhe po<strong>de</strong> opor a garantia da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, n<strong>em</strong> a garantia<br />

da inviolabilida<strong>de</strong> da vida, pois, segundo acredito, o pré-<strong>em</strong>brião não acolhido no seu ninho<br />

natural <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, o útero, não se classifica como pessoa” [grifos nossos]. Para a<br />

ministra a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoa é dada àquele “nascido com vida” [grifos nossos]. E completa<br />

dizendo: “Por outro lado, o pré-<strong>em</strong>brião também não se enquadra na condição <strong>de</strong> nascituro,<br />

pois a este, a própria <strong>de</strong>nominação o esclarece b<strong>em</strong>, se pressupõe a possibilida<strong>de</strong>, a<br />

probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vir a nascer, o que não acontece com esses <strong>em</strong>briões inviáveis ou <strong>de</strong>stinados<br />

ao <strong>de</strong>scarte”.<br />

De forma diversa, o ministro Menezes Direito 8 enten<strong>de</strong> que as pesquisas com as<br />

células-tronco po<strong>de</strong>m ser mantidas, mas s<strong>em</strong> prejuízo para os <strong>em</strong>briões humanos viáveis, ou<br />

seja, s<strong>em</strong> que sejam <strong>de</strong>struídos. Para ele “as células-tronco <strong>em</strong>brionárias são vida humana<br />

e qualquer <strong>de</strong>stinação <strong>de</strong>las à finalida<strong>de</strong> diversa que a reprodução humana viola o <strong>direito</strong> à<br />

vida” [grifos nossos].<br />

O ministro ainda disse que “A vida humana é autônoma, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

impulsos externos”; sustentou também que “O <strong>em</strong>brião é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fecundação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a união<br />

do núcleo do óvulo, um indivíduo humano, que será criança, adulto e velho, um indivíduo”.<br />

Portanto, segundo ele, a ciência <strong>de</strong>ve trabalhar para “fazer o b<strong>em</strong> a partir do b<strong>em</strong>, e não o b<strong>em</strong><br />

a partir do mal”.<br />

O ministro Marco Aurélio 9 apresentou seu voto no sentido <strong>de</strong> “que não há,<br />

quanto ao início da vida, baliza que não seja simplesmente opinativa, historiando<br />

conceitos, s<strong>em</strong>pre discordantes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong> até os dias <strong>de</strong> hoje” [grifos nossos]. Para<br />

ele, “o início da vida não pressupõe só a fecundação, mas a viabilida<strong>de</strong> da gravi<strong>de</strong>z, da<br />

gestação humana”. Observou também que “dizer que a Constituição protege a vida uterina já<br />

é discutível, quando se consi<strong>de</strong>ra o aborto terapêutico ou o aborto <strong>de</strong> filho gerado com<br />

violência”. E concluiu que “a possibilida<strong>de</strong> jurídica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do nascimento com vida”.<br />

7 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 3<br />

jun. 2008.<br />

8 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 3<br />

jun. 2008.<br />

9 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 3<br />

jun. 2008.<br />

13


O ministro Celso <strong>de</strong> Mello 10 enten<strong>de</strong>u que<br />

O luminoso voto proferido pelo <strong>em</strong>inente ministro Carlos Britto permitirá a esses<br />

milhões <strong>de</strong> brasileiros, que hoje sofr<strong>em</strong> e que hoje se acham postos à marg<strong>em</strong> da<br />

vida, o exercício concreto <strong>de</strong> um <strong>direito</strong> básico e inalienável que é o <strong>direito</strong> à busca<br />

da felicida<strong>de</strong> e também o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> viver com dignida<strong>de</strong>, <strong>direito</strong> <strong>de</strong> que ninguém,<br />

absolutamente ninguém, po<strong>de</strong> ser privado. [grifos nossos]<br />

Diante das colocações apresentadas por alguns ministros do STF no referido<br />

julgamento, evi<strong>de</strong>ncia-se o entendimento <strong>de</strong> que o início da vida ocorre com a fecundação do<br />

óvulo pelo espermatozói<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> a necessida<strong>de</strong> obrigatória <strong>de</strong> um local apropriado para que<br />

ele se <strong>de</strong>senvolva. Sob essa ótica, a partir <strong>de</strong>sse momento, já existiria um ser humano e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, a sua proteção seria inevitável. Nesse caso, qualquer ato praticado<br />

atentando contra este sujeito seria consi<strong>de</strong>rado um atentado contra a vida e, nessa situação,<br />

estaria configurado o aborto.<br />

Por outro lado, os ministros Carlos Ayres Britto, Ellen Gracie e Celso <strong>de</strong> Mello,<br />

que argumentam sobre necessida<strong>de</strong> não apenas da fecundação para que este aglomerado <strong>de</strong><br />

células seja consi<strong>de</strong>rado um ser humano, enten<strong>de</strong>m a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua implantação no útero<br />

ou o início da ativida<strong>de</strong> cerebral. Eles, enfim, se reportam à viabilida<strong>de</strong> ou não do <strong>em</strong>brião.<br />

Ora, nessa situação, somente seriam consi<strong>de</strong>rados abortos os atos praticados após a fixação do<br />

<strong>em</strong>brião no útero.<br />

Por fim, há <strong>de</strong> se comentar que, na análise dos argumentos contidos nos votos dos<br />

ministros do STF, paira ainda a controvérsia, ou seja, não existe uma posição unânime e<br />

pacífica sobre o instante exato do início da vida.<br />

1.2 A VIDA E A REPRODUÇÃO HUMANA<br />

Com o intuito <strong>de</strong> dar maior sentido ao trabalho e po<strong>de</strong>r respon<strong>de</strong>r ao probl<strong>em</strong>a já<br />

apresentado, se faz neces<strong>sá</strong>rio conceituar a palavra vida, apresentando suas várias acepções. O<br />

vocábulo vida possui inúmeros significados, dificultando por <strong>de</strong>mais um sentido pronto e<br />

acabado. Trata-se <strong>de</strong> assunto cuja conceituação é tida como inextrincável por muitos autores.<br />

Todavia, diligenciar-se-á no sentido <strong>de</strong> buscar diferentes concepções <strong>de</strong> tratadistas para iniciar<br />

esse <strong>de</strong>slin<strong>de</strong>.<br />

10 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 16 jun. 2008.<br />

14


Po<strong>de</strong>-se referir ao significado da palavra vida como sendo o processo <strong>em</strong> curso do<br />

qual os seres vivos são uma parte; ao espaço <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po entre o nascimento e a morte <strong>de</strong> um<br />

organismo; a condição <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> que nasceu e ainda não morreu; e aquilo que faz com<br />

que um ser vivo esteja vivo 11 .<br />

De acordo com o dicionário Houaiss 12 , a palavra vida é um substantivo f<strong>em</strong>inino<br />

que indica o modo <strong>de</strong> viver; conjunto <strong>de</strong> hábitos, proprieda<strong>de</strong> que caracteriza os organismos<br />

cuja existência evolui do nascimento até a morte, como ex<strong>em</strong>plo, os animais e vegetais. Sob o<br />

ponto <strong>de</strong> vista biológico, o mesmo dicionário apresenta o conceito <strong>de</strong> vida como um sist<strong>em</strong>a<br />

capacitado a submeter-se ao processo <strong>de</strong> evolução por seleção natural, que envolve<br />

replicação, mutação, ou ainda o conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e funções orgânicas que constitu<strong>em</strong> a<br />

qualida<strong>de</strong> que distingue o corpo vivo do morto 13 . Aponta-o como um conjunto das funções<br />

vitais que colocam o indivíduo <strong>em</strong> relação com o meio externo, que não necessita <strong>de</strong> um outro<br />

organismo, hospe<strong>de</strong>iro ou simbionte, para se <strong>de</strong>senvolver. Enfim, enten<strong>de</strong> que vivo é aquele<br />

organismo capaz <strong>de</strong> se mover livr<strong>em</strong>ente.<br />

Além disso, por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>rivação por extensão do seu sentido, po<strong>de</strong>-se<br />

enten<strong>de</strong>r o significado da palavra vida como o período compreendido entre o nascimento e a<br />

morte <strong>de</strong> um ser vivo. E, <strong>em</strong> um sentido figurado, o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> existência ou <strong>de</strong> funcionamento<br />

<strong>de</strong> uma coisa. Há ainda acepções correspon<strong>de</strong>ntes ao conjunto <strong>de</strong> seres vivos classificados do<br />

ponto <strong>de</strong> vista da espécie, do meio ambiente, da época etc; à motivação que anima a<br />

existência <strong>de</strong> um ser vivo, que lhe dá entusiasmo ou prazer; à alma, espírito impulso ou<br />

dinamismo que <strong>de</strong>termina o <strong>de</strong>senvolvimento, o progresso <strong>de</strong> alguma coisa; ao conjunto dos<br />

acontecimentos mais relevantes na existência <strong>de</strong> alguém; ao meio <strong>de</strong> subsistência ou sustento<br />

neces<strong>sá</strong>rio para manter a vida; ao relato <strong>de</strong> fatos da biografia <strong>de</strong> uma pessoa, qualquer um dos<br />

aspectos que integram o processo <strong>de</strong> viver <strong>de</strong> alguém. Metafisicamente, a vida é um processo<br />

constante <strong>de</strong> relacionamentos. 14<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que vida é a caraterística que certos fenômenos possu<strong>em</strong> <strong>de</strong> se<br />

produzir<strong>em</strong> ou <strong>de</strong> se gerar<strong>em</strong> por si mesmos. O ponto essencial do significado da palarava diz<br />

11 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 26 nov.<br />

2006<br />

12 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 26 nov.<br />

2006.<br />

13 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 26 nov.<br />

2006.<br />

14 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 26<br />

nov.2006.<br />

15


espeito ao fato <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r i<strong>de</strong>nticar se algo está vivo ou não. A caracterização do que é vida<br />

ou não implica o reconhecimento <strong>de</strong> um princípio ou <strong>de</strong> uma causa, ponto <strong>de</strong> acordo entre<br />

filósofos e cientistas 15 . Observa-se que, <strong>em</strong> certos níveis, a própria distinção entre o que é<br />

vida e o que não é torna-se muito difícil.<br />

Des<strong>de</strong> a Antiguida<strong>de</strong> 16 , os fenômenos relacionados à vida têm sido caracterizados<br />

pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto-reprodução, ou seja, na naturalida<strong>de</strong> com que os seres vivos se<br />

mov<strong>em</strong>, se nutr<strong>em</strong>, cresc<strong>em</strong>, se reproduz<strong>em</strong> e morr<strong>em</strong>. Para Platão 17 , a palavra vida está<br />

intimamente ligada à alma humana, colocando-a <strong>em</strong> um lugar superior e dipensando um<br />

tratamento à parte. Já para Aristoteles 18 , a vida é algo próprio dos animais, que possu<strong>em</strong> a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crescimento e <strong>de</strong>struição <strong>em</strong> si mesmos.<br />

Na época Cristã, São Tomás <strong>de</strong> Aquino afirmava que no hom<strong>em</strong> existe uma alma<br />

espiritual, unida ao corpo, mas transcen<strong>de</strong>ndo-o, porquanto além das ativida<strong>de</strong>s vegetativa e<br />

sensitiva, que são materiais, se manifestam nele ativida<strong>de</strong>s espirituais, atos do intelecto e atos<br />

<strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> 19 .<br />

Com Descartes 20 e Hobbes 21 , o conceito <strong>de</strong> vida passou a ser visto sob outro<br />

ângulo, surgindo a comparação do organismo vivo do hom<strong>em</strong> com a <strong>de</strong> uma máquina muito<br />

b<strong>em</strong> montada, apenas negando a existência da ligação entre a alma e a vida, como alegava<br />

Platão, enten<strong>de</strong>ndo que a vida po<strong>de</strong>ria se mover e <strong>de</strong>senvolver por si só.<br />

Na filosofia cont<strong>em</strong>porânea, Kant afirma que “a vida é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atuar<br />

segundo a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejar” 22 . Nota-se que, para esse filósofo, a existência da vida está<br />

ligada à vonta<strong>de</strong> humana.<br />

A própria medicina t<strong>em</strong> recorrido aos fenômenos vitais para caraterizar a vida. De<br />

um modo geral, consi<strong>de</strong>ra-se, tradicionalmente, que uma entida<strong>de</strong> é um ser vivo se exibir<br />

todos os fenômenos pelos quais se verifica o caráter <strong>de</strong> uma auto-regulação, pelo menos uma<br />

15 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988,<br />

p. 1001.<br />

16 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.<br />

17 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 20 jan. 2008.<br />

18 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 20 jan. 2008.<br />

19 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 20 jan. 2008.<br />

20 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 20 jan. 2008.<br />

21 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988,<br />

p. 1001.<br />

22 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.<br />

16


vez durante a sua existência. Estes fenômenos são o crescimento, o metabolismo, o<br />

movimento, a reprodução e a resposta a estímulos. O metabolismo significa o consumo,<br />

transformação e armazenamento <strong>de</strong> energia e massa. Já o crescimento, a absorção e<br />

reorganização <strong>de</strong> massa e a excreção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdício. O movimento é o movimento próprio ou<br />

movimento interno. A reprodução é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar entida<strong>de</strong>s s<strong>em</strong>elhantes a si mesma.<br />

Por fim, a resposta a estímulos inclui as capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> avaliar as proprieda<strong>de</strong>s do ambiente<br />

que a ro<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong> agir <strong>em</strong> resposta a <strong>de</strong>terminadas condições. 23<br />

O fato é que a vida está <strong>em</strong> constante movimento, acontecendo a todo instante<br />

diante da socieda<strong>de</strong>. Diniz <strong>de</strong>clara que a melhor estratégia para <strong>de</strong>finir a vida humana é a<br />

exclusão do contrário, do oposto, ou seja, é tudo aquilo que apenas um ser vivo po<strong>de</strong><br />

experimentar – ou: é um ser humano vivo aquele que não está morto 24 . Para a autora, é<br />

preciso estar vivo para ser pessoa e po<strong>de</strong>r ter <strong>direito</strong> à vida.<br />

Contudo, se faz mister <strong>de</strong>limitar o início da vida humana segundo a biologia. Um<br />

dos pontos mais controversos é o da caracterização do início da vida <strong>de</strong> uma pessoa. O<br />

estabelecimento <strong>de</strong> critérios biológicos sobre o início da vida <strong>de</strong> um ser humano, ou<br />

filosóficos, sobre o início da vida <strong>de</strong> uma pessoa, ou ainda, critérios sob aspectos legais é uma<br />

discussão difícil e <strong>de</strong>safiadora. Assim, para melhor compreensão do assunto, por se tratar <strong>de</strong><br />

matéria não apenas jurídica, se estabelecerá algumas noções, sob o ponto <strong>de</strong> vista da<br />

<strong>em</strong>briologia médica, com base <strong>em</strong> Moore 25 .<br />

Nesse ponto, faz-se neces<strong>sá</strong>rio esclarecer a significação dos verbetes fertilização e<br />

fecundação. Conforme o dicionário Michaelis 26 , as palavras fertilização e fecundação têm a<br />

mesma significação, ou seja, geração, reprodução. Mas sob o ponto <strong>de</strong> vista biológico, ambas<br />

apresentam como significado a união entre gameta masculino (espermatozói<strong>de</strong>) e gameta<br />

f<strong>em</strong>inino (ovo), com a fusão dos respectivos núcleos, formando o zigoto 27 , célula resultante,<br />

portanto, da união do ovócito ao espermatozói<strong>de</strong> durante a fertilização.<br />

23 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 20 jan. 2008.<br />

24 DINIZ, Débora. Aborto por anomalia fetal. 1. reimpr. Brasília: Letras Livres, 2004, p. 34.<br />

25 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004.<br />

26 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 30 abr. 2008.<br />

27 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004.<br />

17


Para Moore 28 “Um zigoto é o início <strong>de</strong> uma novo ser humano (ou seja, é um<br />

<strong>em</strong>brião)”. De acordo com o mesmo autor 29 , e ocorrendo na primeira s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong> gestação,<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento humano inicia-se na fertilização, mas vários eventos importantes<br />

acontec<strong>em</strong> antes da união do ovócito com o espermatozói<strong>de</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, a<br />

gametogênese. Os ovócitos são produzidos pelo ovário (ovogênese) e <strong>de</strong>le são<br />

expelidos durante a ovulação.<br />

Moore 30 ressalta que o processo <strong>de</strong> fertilização <strong>de</strong>mora, <strong>em</strong> média, 24 horas e é<br />

uma sequência complexa <strong>de</strong> eventos coor<strong>de</strong>nados, além <strong>de</strong> esclarecer que<br />

A fertilização é uma complexa sequência <strong>de</strong> eventos moleculares coor<strong>de</strong>nados que<br />

se inicia com o contato entre um espermatozói<strong>de</strong> e um óvócito e termina com a<br />

mistura dos cromossomas maternos e paternos na metáfase da primeira divisão<br />

mitótica do zigoto, um <strong>em</strong>brião unicelular.<br />

No caso humano, a célula reprodutora f<strong>em</strong>inina, <strong>de</strong>nominada óvulo, possui a<br />

coroa radiata, uma barreira para a penetração dos espermatozói<strong>de</strong>s, mas os gametas<br />

masculinos possu<strong>em</strong> na cabeça o acrossomo, que começa a liberar enzimas hidrolíticas ao<br />

entrar <strong>em</strong> contato com tais barreiras. Após vencê-las, ocorre a fusão entre as m<strong>em</strong>branas dos<br />

dois gametas. Imediatamente após a fecundação, as células foliculares glandulares, que<br />

envolv<strong>em</strong> a célula reprodutora f<strong>em</strong>inina, retra<strong>em</strong>-se, e liberta-se o conteúdo dos grânulos<br />

corticais, formando a m<strong>em</strong>brana <strong>de</strong> fecundação, a qual impedirá a entrada <strong>de</strong> outros<br />

espermatozói<strong>de</strong>s.<br />

Se a mulher estiver fora do período fértil, os espermatozói<strong>de</strong>s, geralmente, não<br />

têm qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrar sequer no útero, visto existir um muco cervical muito<br />

rico <strong>em</strong> fibras que impossibilita a entrada <strong>de</strong> espermatozói<strong>de</strong>s. Mas se ela se encontrar no<br />

período fértil, o colo do útero estará mais aberto e conterá um muco cervical mais fluido,<br />

permitindo que os espermatozói<strong>de</strong>s entr<strong>em</strong> e dirijam-se para as trompas ao encontro do<br />

ovócito, po<strong>de</strong>ndo ocorrer a fecundação.<br />

Após a fecundação (singamia), os núcleos dos dois gametas fun<strong>de</strong>m-se e forma-se<br />

o ovo ou o zigoto (cariogamia), <strong>de</strong>correndo daí uma nova associação <strong>de</strong> genes, que vai<br />

28 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p. 2.<br />

29 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 45.<br />

30 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 35.<br />

18


caracterizar o indivíduo por toda a sua vida, do ponto <strong>de</strong> vista genético. Em seguida, passa-se<br />

à fase <strong>em</strong>brionária, com uma duração aproximada <strong>de</strong> 16 s<strong>em</strong>anas, que se inicia ainda na<br />

trompa, com a divisão celular dando orig<strong>em</strong> à formação do <strong>em</strong>brião, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

se dirige para o útero. Moore <strong>de</strong>fine <strong>em</strong>brião 31 como “O ser hunamo <strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

durante os estágios iniciais. O período <strong>em</strong>brionário esten<strong>de</strong>-se até o final da oitava s<strong>em</strong>ana (56<br />

dias), quando os primórdios <strong>de</strong> todas as principais estruturas já estão presentes.”<br />

Chegando ao útero, a camada que envolve o <strong>em</strong>brião é <strong>de</strong>struída e este começa a<br />

crescer <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> do fornecimento <strong>de</strong> nutrientes pelas glândulas do endométrio 32 . O <strong>em</strong>brião<br />

começa a afundar no endométrio por ação <strong>de</strong> enzimas que libera, sendo, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

envolvido por outras células endométricas. Ocorre, assim, a nidação, ou seja, o início da<br />

gravi<strong>de</strong>z. Após a ocorrência do fenômeno da nidação, t<strong>em</strong> início a formação das estruturas<br />

<strong>em</strong>brionárias, como a placenta, o cordão umbilical, o saco aminiótico, que contém o líquido<br />

aminiótico que serve <strong>de</strong> proteção ao novo ser.<br />

Nota-se que todo esse processo é <strong>de</strong>senvolvido pelo próprio <strong>em</strong>brião formado. Por<br />

volta da quinta s<strong>em</strong>ana, a placenta passa a produzir os estrogênios e a progesterona para<br />

manter o endométrio. Essa fase t<strong>em</strong> seu término quando se verifica esboços dos diferentes<br />

órgãos do novo indivíduo. Segue-se a fase fetal, na qual ocorr<strong>em</strong>, essencialmente, o<br />

crescimento e a maturação dos órgãos, terminando, aproximadamente, ao fim <strong>de</strong> 40 s<strong>em</strong>anas,<br />

seguindo-se o nascimento.<br />

De acordo com Moore, a vida humana possui etapas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

dividindo-se nos períodos pré-natal (antes do nascimento) e pós-natal (após o nascimento) 33 .<br />

Para ele, “o nascimento é meramente um evento traumático durante o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

31 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 3.<br />

32 Endométrio: mucosa que reveste a pare<strong>de</strong> uterina, formado por fibras musculares lisas e estimulado por<br />

hormônios ováricos chamados estrogénio (poduzido pelos folículos) e progesterona (produzida pelo corpo lúteo<br />

ou amarelo), e que t<strong>em</strong> um aumento na sua espessura <strong>de</strong>vido à gran<strong>de</strong> concentração <strong>de</strong>ssses hormônios no<br />

sangue (ocorrendo o contrário na menstruação). É o endométrio que permite o alojamento do <strong>em</strong>brião na pare<strong>de</strong><br />

do útero (nidação). É ele também que, durante os primeiros meses <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, permite a formação da placenta,<br />

que proporciona, ao longo <strong>de</strong> toda a gestação, nutrientes, oxigénio, anticorpos e outros el<strong>em</strong>entos ao feto, b<strong>em</strong><br />

como elimina todos os produtos tóxicos resultantes do metabolismo, essencial à sobrevivência, saú<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do novo ser. Disponível on-line <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 20 jan 2008.<br />

33 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p. 2.<br />

19


esultante <strong>de</strong> mudanças <strong>de</strong> ambiente” 34 . Ressalta ainda que as principais alterações ocorr<strong>em</strong><br />

antes do nascimento, ou seja, na fase <strong>em</strong>brionária 35 .<br />

Dessa forma, Moore esclarece:<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>em</strong>brionario inicial é <strong>de</strong>scrito <strong>em</strong> estágios <strong>em</strong> razão do intervalo<br />

<strong>de</strong> t<strong>em</strong>po variável que o <strong>em</strong>brião leva para <strong>de</strong>senvolver certas características<br />

morfológicas. O estágio 1 do <strong>de</strong>senvolvimeto inicia-se na fertilização e o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>em</strong>brionário termina no estágio 23, que ocorre no 56° dia. O<br />

período fetal começa no 57° dia e termina quando o feto está fora do corpo da mãe.<br />

Os estágios do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>em</strong>brionário po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>terminados por ultrasonografia.<br />

36<br />

Diante do exposto, faz-se mister <strong>de</strong>ixar claro e <strong>de</strong> forma suscinta o conceito<br />

relacionado ao concepto, <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> forma generalista, que irá ser utilizado neste<br />

trabalho. Inicialmente, há a feduncação, a junção <strong>de</strong> gametas que resulta na formação <strong>de</strong> um<br />

zigoto, ou seja, a fertilização. Após, há a fase <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> <strong>em</strong>brionária, na qual se t<strong>em</strong> o<br />

<strong>em</strong>brião, e que ocorre da segunda à sétima s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong>pois da fecundação, quando este está<br />

<strong>em</strong> sua fase <strong>de</strong> diferenciação orgânica, ocorrendo diversas transformações e adquirindo uma<br />

estrutura cromossômica própria. Tal fase termina na oitava s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong>pois da fecundação. No<br />

<strong>de</strong>senvolvimento intra-uterino, a proxima fase é a do feto, que t<strong>em</strong> início após oito s<strong>em</strong>anas<br />

<strong>de</strong> vida <strong>em</strong>brionária e vai até o fim da gestação. Já a nidação correspon<strong>de</strong> ao momento <strong>em</strong><br />

que o <strong>em</strong>brião fixa-se no endométrio, mucosa que recobre a face interna do útero.<br />

A vida humana é o b<strong>em</strong> mais importante no mundo e sua proteção é inevitável e<br />

inquestionável. Essa vida está pautada <strong>em</strong> etapas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que chegam ao termo<br />

final, a morte. Contudo, nota-se que não existe um consenso cientifico e filosófico sobre o<br />

início da vida. Assim, o ponto crucial que se discute é qual o momento preciso do início da<br />

vida humana.<br />

Verificam-se duas situações: ou se consi<strong>de</strong>ra o início da vida quando da<br />

ocorrência da nidação, ou seja, da fixação do óvulo no útero materno, ou da concepção,<br />

fecundação do óvulo pelo espermatozói<strong>de</strong>. Se se consi<strong>de</strong>rar o começo da vida na nidação, os<br />

óvulos fecundados (in vitro) <strong>em</strong> laboratórios, por ex<strong>em</strong>plo, po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>scartados após certo<br />

período, por não possuir<strong>em</strong> vida humana. No caso da lei <strong>de</strong> biossegurança, o prazo é <strong>de</strong> três<br />

34 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 2.<br />

35 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />

36 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 3.<br />

20


anos para o <strong>de</strong>scarte. Se se tomar por ponto inicial da via a fecundação, o <strong>de</strong>scarte <strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>briões seria consi<strong>de</strong>rado um crime contra a vida, ou seja, homicídio.<br />

Na realida<strong>de</strong>, observa-se que não há consenso na ciência, na filosofia ou no <strong>direito</strong><br />

sobre o conceito <strong>de</strong> vida, mas teorias sobre o assunto para nortear as <strong>de</strong>cisões que sejam<br />

tomadas no âmbito judicial.<br />

1.3 ANENCEFALIA<br />

O núcleo da discussão do presente trabalho está baseado na contraposição do<br />

<strong>direito</strong> à vida do feto anancfálico e o <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> e à autonomia da mãe <strong>em</strong> manter ou<br />

não a gravi<strong>de</strong>z. Ocorre que, antes <strong>de</strong> se discutir que princípio fundamental <strong>de</strong>ve ter<br />

supr<strong>em</strong>acia, há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o que é a anencefalia e se um feto portador <strong>de</strong> tal<br />

anomalia possui ou não condições <strong>de</strong> vida extra-uterina.<br />

No final do século passado, uma nova área da medicina se <strong>de</strong>senvolveu e recebeu<br />

o nome <strong>de</strong> Medicina Fetal, com a função <strong>de</strong> diagnosticar malformações <strong>em</strong> fetos e, diante<br />

disso, passou-se a prestar atenção aos casos <strong>de</strong> fetos anencefálicos. Na atualida<strong>de</strong>, as<br />

<strong>de</strong>finições sobre esse assunto são fornecidas pela medicina. Com isso, verifica-se a<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um entrelaçamento entre as disciplinas para a obtenção <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão justa<br />

no caso da possibilida<strong>de</strong> ou não do aborto no feto anencéfalo.<br />

Segundo o médico José Aristo<strong>de</strong>mo Pinotti 37 , a anencefalia é resultado da falha <strong>de</strong><br />

fechamento do tubo neural, <strong>de</strong>corrente da interação entre fatores genéticos e ambientais,<br />

durante o primeiro mês <strong>de</strong> <strong>em</strong>briogênese, ou seja, é uma malformação congênita que se<br />

caracteriza geralmente pela ausência da abóbada craniana e massa encefálica reduzida. Po<strong>de</strong><br />

ser diagnosticada a partir <strong>de</strong> doze s<strong>em</strong>anas <strong>de</strong> gestação, fazendo uso <strong>de</strong> equipamentos<br />

mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> ultra-som. O reconhecimento da anencefalia é imediato. Não há ossos frontal,<br />

parietal 38 e occipital 39 . A face é <strong>de</strong>limitada pela borda superior das órbitas que contêm globos<br />

oculares salientes. O cérebro r<strong>em</strong>anescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é<br />

<strong>de</strong>formado. Ainda, <strong>de</strong> acordo com o médico acima mencionado, “As gestações <strong>de</strong> anencéfalos<br />

37 Professor Titular <strong>de</strong> Ginecologia da USP e Deputado Fe<strong>de</strong>ral. Disponível on-line <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 29 mai. 2007.<br />

38 Diz-se <strong>de</strong> ou cada um dos dois ossos curvos e achatados que se situam <strong>em</strong> ambos os lados do crânio,<br />

articulando-se entre si na sutura sagital e também com os ossos t<strong>em</strong>poral, frontal, occipital e esfenói<strong>de</strong>.<br />

39 Relativo a ou o próprio osso do occipúcio, e também da veia, do nervo e do músculo ditos occipitais.<br />

21


causam, com maior freqüência, patologias maternas como hipertensão e hidrâminio (excesso<br />

<strong>de</strong> líquido amniótico), levando as mães a percorrer<strong>em</strong> uma gravi<strong>de</strong>z com risco elevado”.<br />

Smith afirma sobre a anencefalia:<br />

A malformação primária que dá início a esta seqüência parece ser um <strong>de</strong>feito do<br />

fechamento do sulco neural ao se transformar <strong>em</strong> tubo neural, cuja fusão<br />

normalmente se encerra até o 28° dia <strong>de</strong> gestação. A anencefalia é <strong>de</strong>vida à falta <strong>de</strong><br />

fechamento da extr<strong>em</strong>ida<strong>de</strong> anterior do sulco neural. Resultam daí as seguintes<br />

conseqüências: 1) na falta <strong>de</strong> fusão, a porção anterior do encéfalo não se <strong>de</strong>senvolve<br />

completamente e ten<strong>de</strong> mais tar<strong>de</strong> a <strong>de</strong>generar; 2) a abóbada craniana não se<br />

<strong>de</strong>senvolve normalmente; 3) a face e o <strong>de</strong>senvolvimentos dos pavilhões auriculares<br />

sofr<strong>em</strong> alterações secundárias <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> variável, entre as quais figuram a fenda<br />

palatina, as anomalias freqüentes das vértebras cervicais e, <strong>em</strong> alguns casos, o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento incompleto do lobo anterior da hipófise. 40<br />

Trata-se <strong>de</strong> um <strong>de</strong>feito básico do ser humano, referente à falha no fechamento do<br />

sulco neural, durante a formação <strong>em</strong>brionária, sendo ausentes os dois h<strong>em</strong>isférios cerebrais,<br />

que po<strong>de</strong>m dar orig<strong>em</strong> à anencefalia – malformação fetal mais freqüent<strong>em</strong>ente relatada pela<br />

medicina – e a outras malformações secundárias.<br />

Durante a terceira ou quarta s<strong>em</strong>ana <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, entra-se na fase <strong>de</strong>nominada por<br />

Moore <strong>de</strong> neurula 41 , ou neuralização 42 , e se <strong>de</strong>senvolve o tubo neural a partir da placa neural.<br />

É o primeiro indício do sist<strong>em</strong>a nervoso. Uma vez que a placa neural dá orig<strong>em</strong> ao Sist<strong>em</strong>a<br />

Nervoso Central (SNT), formado pelo encéfalo e pela medula espinhal, surg<strong>em</strong> as pregas<br />

neurais e o início do tubo neural. Nessa fase, po<strong>de</strong>m surgir graves anomalias no encéfalo e<br />

medula espinhal. Com relação à neuralização anormal, Moore esclarece que:<br />

Os <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> tubo neural (DTN) constitu<strong>em</strong> as anomalias congênitas mais comuns.<br />

A incidência <strong>de</strong> DTN foi estimada <strong>em</strong> 16 por 10.000 nascimentos no leste dos<br />

Estados Unidos. A ausência parcial <strong>de</strong> encéfalo – a meroanencefalia ou anencefalia<br />

– é a mais grave DTN e é também a anomalia mais comum do SNC. Embora o<br />

termo anencefalia seja comumente usado, ele é um termo errôneo, pois o encéfalo<br />

não está completamente ausente. As evidências disponíveis suger<strong>em</strong> que o distúrbio<br />

primário (por ex<strong>em</strong>plo, uma droga teratogênica) afete o neuroecto<strong>de</strong>rma, resultando<br />

40 SMITH, David W. Síndromes <strong>de</strong> malformações congênitas. Aspectos genéticos, <strong>em</strong>briológicos e clínicos.<br />

Trad. Hil<strong>de</strong>gard Thi<strong>em</strong>ann Buckup. 3. ed. São Paulo: Manole, 1989, p.<br />

41 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p. 3.<br />

42 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p. 73.<br />

22


na ausência <strong>de</strong> fusão das pregas neurais e da formação do tubo neural, na região do<br />

encéfalo. 43<br />

Trata-se <strong>de</strong> patologia fetal letal na maioria dos casos, como já dito. Os fetos com<br />

anencefalia não possu<strong>em</strong> condições <strong>de</strong> sobreviver fora do corpo da mulher. Não há qualquer<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento ou reversão do quadro. O prognóstico nessas hipóteses é <strong>de</strong><br />

sobrevida <strong>de</strong> no máximo algumas horas após o parto, <strong>em</strong>bora haja relatos <strong>de</strong> crianças que<br />

sobreviveram por alguns dias e, excepcionalmente, por mais t<strong>em</strong>po.<br />

Luiz Celso Vilanova 44 , professor e chefe do setor <strong>de</strong> neurologia infantil da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Paulo, explica que, na anencefalia, uma parte do cérebro, o<br />

córtex cerebral, respon<strong>sá</strong>vel pelas funções mentais superiores, não chega a se formar. Existe<br />

apenas tronco cerebral, uma estrutura primitiva que coor<strong>de</strong>na reações a estímulos, batimentos<br />

cardíacos e respiração, entre outras funções. Segundo o professor, os fetos anencéfalos são<br />

incapazes <strong>de</strong> sentir, mas são capazes <strong>de</strong> reagir a estímulos, possuir reações reflexas, como<br />

aquelas típicas do estado vegetativo, s<strong>em</strong> traço <strong>de</strong> consciência. O médico afirma que <strong>em</strong>oções,<br />

sentimentos e pensamentos estão fora do horizonte do ser humano anencéfalo..<br />

Como já dito, a anomalia fetal po<strong>de</strong> ser diagnosticada, com muita precisão, a<br />

partir <strong>de</strong> doze s<strong>em</strong>anas <strong>de</strong> gestação, por meio <strong>de</strong> um exame <strong>de</strong> ultra-sonografia ou ecografia 45 ,<br />

quando é possível a visualização do segmento cefálico fetal. Uma vez verificada e confirmada<br />

a anomalia, inicia-se um longo e doloroso percurso para a mulher, e também para o pai da<br />

criança, que sab<strong>em</strong> que estão gerando um ser s<strong>em</strong> qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autonomia <strong>de</strong><br />

vida extra-uterina.<br />

Nos últimos anos, com os avanços tecnológicos que permit<strong>em</strong> exames<br />

consi<strong>de</strong>rados precisos para este tipo <strong>de</strong> malformação fetal, <strong>em</strong> face justamente <strong>de</strong>ssa precisão<br />

juízes têm dado autorizações para que a mulher com gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> feto anencéfalo possa efetuar<br />

a sua interrupção, com base na inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina.<br />

A maioria dos anencéfalos sobrevive, no máximo, 48 horas após o nascimento,<br />

não havendo qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento ou reversão natural do quadro que garanta<br />

ao bebê uma vida digna, já que estes pequenos seres não possu<strong>em</strong> nenhum dos cinco sentidos.<br />

Eles não vê<strong>em</strong>, não ouv<strong>em</strong>, não falam, não sent<strong>em</strong> gosto, n<strong>em</strong> sent<strong>em</strong> qualquer tipo <strong>de</strong><br />

43 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p. 76.<br />

44 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong> 20 jan. 2008.<br />

45 Método <strong>de</strong> diagnóstico que aproveita o eco produzido pelo som.<br />

23


sensação, seja dor ou prazer. Não possu<strong>em</strong> aspectos cognitivos. Além disso, estes fetos são<br />

totalmente <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> <strong>em</strong>oção.<br />

Entretanto, alguns recém-nascidos po<strong>de</strong>m sobreviver um pouco mais, como é o<br />

caso raro e excepcional da Marcela <strong>de</strong> Jesus, filha <strong>de</strong> agricultores da pequena cida<strong>de</strong> do<br />

interior do Estado <strong>de</strong> São Paulo, nascida <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2006, na Santa Casa <strong>de</strong><br />

Patrocínio Paulista, que até o presente momento sobrevive ligada a aparelhos, respira e se<br />

alimenta através <strong>de</strong> tubos.<br />

Este caso t<strong>em</strong> surpreendido médicos do mundo inteiro. A menina está sendo<br />

monitorada por médicos, respira e se alimenta através <strong>de</strong> tubos. Ela não t<strong>em</strong> o córtex cerebral,<br />

não possui a calota craniana e o espaço que seria ocupado pelo cérebro é preenchido por<br />

líquido, mas ela possui o tronco cerebral, respon<strong>sá</strong>vel pela respiração e pelos batimentos<br />

cardíacos. Desse modo, ela é capaz <strong>de</strong> segurar objetos e reconhecer a presença da mãe,<br />

características que a medicina não consegue justificar <strong>em</strong> um quadro <strong>de</strong> anencefalia. O caso<br />

<strong>de</strong>ssa menina já <strong>de</strong>safiou a medicina, é uma exceção e trouxe novos el<strong>em</strong>entos à discussão<br />

sobre o aborto <strong>de</strong> fetos anencéfalos.<br />

Incialmente, no caso acima, o diagnóstico foi <strong>de</strong> anecefalia, entretanto, segundo a<br />

pediatra Márcia Barcellos, o tronco cerebral <strong>de</strong> Marcela realiza algumas funções e ela interage<br />

com o ambiente, portanto, ela não apesenta uma anencefalia clássica, mas outro tipo <strong>de</strong><br />

anencefalia 46 . Ela nasceu com os olhos projetados para fora do rosto e, no lugar da testa e da<br />

cabeça, com uma massa <strong>de</strong> tecido mole s<strong>em</strong> forma e s<strong>em</strong> função. O tronco cerebral se<br />

responsabilizou pelas reações automáticas como piscar, sugar, apertar objetos, reagir à dor.<br />

Mas, na literatura medica clássica, um bebê <strong>em</strong> tais condições não <strong>de</strong>senvolve <strong>em</strong>oções,<br />

sentimentos e pensamentos.<br />

Conforme <strong>de</strong>clara a pediatra Márcia Barcellos,<br />

Ela é um bebê s<strong>em</strong> encéfalo, essa região do cérebro <strong>de</strong>la está preenchida por líquido,<br />

mas não é um ex<strong>em</strong>plo da anencefalia <strong>de</strong>scrita na literatura médica porque ela,<br />

<strong>de</strong> alguma maneira, ainda interage com a mãe, interage com o ambiente, seu tronco<br />

cerebral realiza funções. Um caso clássico da má-formação não teria sobrevivido por<br />

tanto t<strong>em</strong>po ou estaria vegetando, o que não é o caso <strong>de</strong>la <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que nasceu 47 [grifos<br />

nossos]<br />

46 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 3<br />

mai. 2008.<br />

47 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 3<br />

mai. 2008.<br />

24


Contudo, por meio <strong>de</strong> exame <strong>de</strong> ressonância magnética com boa <strong>de</strong>finição,<br />

verificou-se a presença <strong>de</strong> mesencéfalo, parte intermediária do cérebro que, para especialistas,<br />

é o principal indicativo ou prova <strong>de</strong> que o bebê não é anencéfalo. Além disso, Marcela t<strong>em</strong> a<br />

base do crânio formada, estrutura na parte <strong>de</strong> trás da cabeça (com pele e cabelos, inclusive),<br />

indícios <strong>de</strong> que não se trata <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> anencefalia. A parte <strong>de</strong> cima da cabeça da menina é<br />

recoberta por uma pele mais espessa e disforme, que se ass<strong>em</strong>elha a uma bolha. Em bebês<br />

anencéfalos, não existe nenhum revestimento, não há proteção <strong>de</strong> osso, pele ou qualquer tipo<br />

<strong>de</strong> m<strong>em</strong>brana, ficando essa parte do encéfalo totalmente exposta.<br />

A afirmaçao feita pela médica Márcia Barcelos, <strong>de</strong> que a menina Marcela não<br />

<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada anencéfala, coloca <strong>em</strong> discussão a precisão do exame <strong>de</strong> ultra-sonografia<br />

realizado durante a gravi<strong>de</strong>z para verificação das condições e formação do feto. Nessa<br />

perspectiva, não se po<strong>de</strong>ria consi<strong>de</strong>rá-lo totalmente seguro para diagnosticar anomalias fetais<br />

<strong>de</strong>sse tipo e, com isso, justificar a realização <strong>de</strong> aborto. No caso <strong>de</strong> Marcela, somente exames<br />

realizados após seu nascimento, contanto já com certo <strong>de</strong>senvolvimento e crescimento, é que<br />

se pô<strong>de</strong> verificar a extensão da anomalia.<br />

Aliado a isso, o caso <strong>de</strong> Marcela surpreen<strong>de</strong> o mundo médico porque a menina<br />

apresenta um comportamento nada usual para um bebê supostamente anencéfalo,<br />

manifestando dor, conseguindo sentar e chorar. O prognóstico ainda é <strong>de</strong>licado, pois, por<br />

meio da ressonância magnética já mencionada, constatou-se que a menina t<strong>em</strong> os nervos<br />

auditivos b<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvidos, sendo possível que ela interprete sons.<br />

Nos casos clássicos <strong>de</strong> fetos anecéfalos, o bebê nasce com estruturas do cérebro<br />

expostas, s<strong>em</strong> m<strong>em</strong>brana, o que impe<strong>de</strong> que sobreviva fora do útero materno. No caso <strong>de</strong><br />

Marcela, tudo indica um outro tipo <strong>de</strong> malformação, a encefalocele (<strong>de</strong>feito no fechamento do<br />

crânio), associada a uma microcefalia, redução do tecido nervoso. O fato é que essa menina<br />

não é anencéfala, pois ela t<strong>em</strong> parte do cérebro e possui algo com que faz com que viva,<br />

porque s<strong>em</strong> o encéfalo, ou algo que lhe subtituísse, ela não po<strong>de</strong>ria viver – só está vivendo<br />

porque t<strong>em</strong> algum tipo <strong>de</strong> estrutura ainda não especificada.<br />

Atualmente, Marcela se alimenta por sonda, <strong>em</strong>bora, às vezes, aceite umas<br />

colheradas <strong>de</strong> papinha, com auxilio <strong>de</strong> sua mãe. E usa o capacete <strong>de</strong> oxigênio, para se manter<br />

viva, ou seja, s<strong>em</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma vida autônoma.<br />

Diante <strong>de</strong>sse fato inédito, muitas mães se <strong>de</strong>param com a difícil <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> manter<br />

25


ou não a gravi<strong>de</strong>z, e, portanto, <strong>de</strong> realizar ou não o aborto, colocando <strong>em</strong> <strong>em</strong>bate dois<br />

princípios humanos fundamentais: a vida do feto versus a liberda<strong>de</strong> da mãe, incluindo a sua<br />

autonomia e saú<strong>de</strong> e, até mesmo, sua dignida<strong>de</strong>.<br />

É sob esse prisma que se efetiva a presente pesquisa. Para tanto, no próximo<br />

capítulo, tratar-se-á da tutela da vida humana intra-uterina, da personalida<strong>de</strong> jurídica, do<br />

aborto e da viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida do feto anencéfalo.<br />

26


2 A TUTELA DA VIDA HUMANA INTRA-UTERINA<br />

A vida é um <strong>direito</strong> fundamental do hom<strong>em</strong>, assim, o presente capítulo abordará<br />

os <strong>direito</strong>s fundamentais, seus aspectos conceituais e suas dimensões, envolvendo a orig<strong>em</strong>, a<br />

construção e o conceito dos <strong>direito</strong>s humanos fundamentais.<br />

2.1 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DOS DIREITOS HUMANOS<br />

A República Fe<strong>de</strong>rativa do Brasil possui seus fundamentos pautados nos<br />

princípios da república, do estado fe<strong>de</strong>rativo, do estado <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> <strong>direito</strong>, da soberania,<br />

da cidadania, na dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, e nos valores sociais do trabalho e da livre<br />

iniciativa, além do pluralismo político, da representativida<strong>de</strong> e separação dos po<strong>de</strong>res.<br />

Os <strong>direito</strong>s fundamentais po<strong>de</strong>m ser entendidos como o conjunto <strong>de</strong> normas e<br />

princípios que garant<strong>em</strong> uma vida digna, livre e igualitária, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente do credo, da<br />

raça, da orig<strong>em</strong>, da cor, da condição econômica ou do status social. São essenciais para o<br />

convívio e a sobrevivência do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>m ser observados como <strong>direito</strong>s <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesa do cidadão para a sua proteção, no caso <strong>de</strong> alguma lesão ou quando a esfera privada<br />

dos indivíduos é invadida. A dificulda<strong>de</strong> verificada resi<strong>de</strong> no momento <strong>em</strong> que estes diretos<br />

não estão positivados, ou não ating<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma direta o fato da atualida<strong>de</strong>.<br />

Os <strong>direito</strong>s fundamentais surgiram da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteger o hom<strong>em</strong> do po<strong>de</strong>r<br />

estatal, pois, por vezes, o Estado acabava por interferir na vida dos indivíduos. Uma das<br />

gran<strong>de</strong>s aspirações do liberalismo 48 foi a limitação do po<strong>de</strong>r. Apesar <strong>de</strong> exaltar a garantia dos<br />

<strong>direito</strong>s do hom<strong>em</strong> como razão <strong>de</strong> ser do Estado, exigia limites do po<strong>de</strong>r público, para coibir a<br />

interferência na esfera individual dos seus súditos. Na Europa dos séculos VXII e XVIII,<br />

surgiu uma visão mais humanista da política, redundante da nova concepção jusnaturalista dos<br />

48 Doutrina segundo a qual o melhor meio <strong>de</strong> salvaguardar a liberda<strong>de</strong> e os <strong>direito</strong>s da iniciativa particular é<br />

restringir o mais possível as atribuições do Estado.<br />

27


<strong>direito</strong>s do hom<strong>em</strong>. Assim, os <strong>direito</strong>s fundamentais surgiram da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteger o<br />

hom<strong>em</strong> do po<strong>de</strong>r estatal, a partir dos i<strong>de</strong>ais advindos do iluminismo daquela época.<br />

Originalmente, recebeu a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s naturais, pois essa categoria <strong>de</strong><br />

<strong>direito</strong>s era tida como universal e imutável, <strong>de</strong>corrente da própria natureza humana, enquanto<br />

criada à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> Deus ou enquanto um ser racional. Com a evolução<br />

histórica e a positivação <strong>de</strong>sses <strong>direito</strong>s, passou-se a preferir, nos países anglo-saxões e<br />

latinos, a expressão <strong>direito</strong>s do hom<strong>em</strong>. Contudo, na Segunda Guerra Mundial e com a<br />

fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), acabou-se substituindo a expressão<br />

mencionada por <strong>direito</strong>s humanos, uma vez que aquela não necessariamente cont<strong>em</strong>plava as<br />

mulheres.<br />

Como já dito, uma das causas do surgimento dos <strong>direito</strong>s fundamentais está ligada<br />

à opressão que o Regime Absolutista provocava <strong>em</strong> seus súditos, inicialmente <strong>de</strong>correndo dos<br />

dogmas cristãos, <strong>em</strong> que tudo era consi<strong>de</strong>rado vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, e, posteriormente, pela obra<br />

dos Racionalistas do século XVII, na qual a fonte a ser utilizada passou a ser a razão humana.<br />

As primeiras <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s, que aconteceram nos séculos XVIII e XIX,<br />

apresentam uma indisfarçável hostilida<strong>de</strong> contra o po<strong>de</strong>r, armando os indivíduos como meios<br />

<strong>de</strong> resistência contra o Estado. Sob esse prisma, surg<strong>em</strong> dois grupos <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s: o primeiro,<br />

das liberda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> oposições, serviu <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> oposição política, ex<strong>em</strong>plificado pela<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa, <strong>de</strong> reunião, entre outros; o segundo, das liberda<strong>de</strong>s limites,<br />

correspon<strong>de</strong> ao impedimento da ingerência do Estado na esfera íntima da vida humana.<br />

Diante disso, os <strong>direito</strong>s fundamentais passaram a ficar consubstanciados <strong>em</strong> documentos<br />

constitucionais – e <strong>de</strong>sse modo vieram a ser reconhecidos pela socieda<strong>de</strong>.<br />

As constituições escritas que se seguiram passaram, então, a cuidar <strong>de</strong>sses <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais. A atual Constituição Fe<strong>de</strong>ral, vigente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1988, enumera os <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais, mas não <strong>de</strong> forma exaustiva. Eles constitu<strong>em</strong> uma categoria jurídica voltada à<br />

proteção da dignida<strong>de</strong> humana <strong>em</strong> todas as suas dimensões – liberda<strong>de</strong>, necessida<strong>de</strong>s e<br />

preservação.<br />

Ao longo do t<strong>em</strong>po, os <strong>direito</strong>s fundamentais foram sendo agrupados <strong>em</strong> classes.<br />

Inicialmente, para a classificação dos <strong>direito</strong>s fundamentais, costumava-se recorrer ao critério<br />

das gerações, baseado numa or<strong>de</strong>m cronológica <strong>em</strong> que os diversos <strong>direito</strong>s foram sendo<br />

reconhecidos ao longo da história mo<strong>de</strong>rna. Tal divisão <strong>de</strong>ve ser interpretada tão-somente<br />

como um recurso metodológico para melhor compreensão <strong>de</strong> certos aspectos. Tal<br />

28


classificação é interessante para que se tenha uma noção da formação histórica do conjunto<br />

dos <strong>direito</strong>s humanos reconhecidos. Na medida <strong>em</strong> que cada geração foi reconhecida a partir<br />

<strong>de</strong> lutas políticas, essa classificação permite também que se tenha <strong>em</strong> mente as influências<br />

i<strong>de</strong>ológicas subjacentes a cada <strong>direito</strong>.<br />

Num segundo momento, mister se faz esclarecer a utilização do vocábulo<br />

“dimensão”, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> “geração”. Sarlet 49 esclarece muito b<strong>em</strong> a diferença existente<br />

entre os dois vocábulos, <strong>de</strong>monstrando seu <strong>de</strong>sapego ao termo “gerações”, b<strong>em</strong> como por<br />

parte da doutrina nacional, pois a utilização <strong>de</strong>ssa expressão traria a idéia <strong>de</strong> substituição<br />

gradativa <strong>de</strong> uma geração por outra. Já a utilização da expressão “dimensão” possui um<br />

carácter cumulativo <strong>em</strong> relação ao processo evolutivo e à natureza compl<strong>em</strong>entar dos <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais e sua indivisibilida<strong>de</strong> no contexto do <strong>direito</strong> constitucional interno. Assim, para<br />

esse autor, há uma relevância para a utilização da expressão “dimensão”, uma vez que a<br />

compreensão do conteúdo e das características dos <strong>direito</strong>s fundamentais <strong>de</strong>ve estar atrelada a<br />

uma visão panorâmica que gerará uma clareza maior. Sendo assim, o vocábulo será utilizado<br />

no presente trabalho.<br />

Bonavi<strong>de</strong>s 50 afirma que, inicialmente, na evolução dos <strong>direito</strong>s fundamentais,<br />

verificaram-se três dimensões <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s: da liberda<strong>de</strong>, da igualda<strong>de</strong> e da fraternida<strong>de</strong>. A<br />

doutrina atual i<strong>de</strong>ntifica cinco dimensões <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais, sendo que os dois últimos<br />

se relacionam aos chamados novos <strong>direito</strong>s, e tratam <strong>de</strong> assuntos que surgiram por meio do<br />

progresso tecnológico, <strong>em</strong> especial nos campos da medicina e da informática. Tal posição foi<br />

li<strong>de</strong>rada por Bobbio, e seguida também pelo próprio Bonavi<strong>de</strong>s.<br />

Os <strong>direito</strong>s fundamentais <strong>de</strong> primeira dimensão, baseados na doutrina liberal, é<br />

produto do pensamento liberal burguês do século XVIII, e está apoiado no <strong>direito</strong> que cada<br />

indivíduo possui frente ao Estado, mais especificamente como <strong>direito</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, <strong>em</strong> que seria<br />

estabelecida uma área <strong>de</strong> não intervenção do Estado, respeitando a autonomia individual dos<br />

seus súditos. São os <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, os primeiros a constar<strong>em</strong> do instrumento normativo<br />

constitucional, que apenas constitu<strong>em</strong> limitações ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> legislar.<br />

Segundo Rogério José Bento Soares do Nascimento, “A primeira geração<br />

correspon<strong>de</strong>ria a <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> (individuais e políticos) tendo por titular o indivíduo,<br />

são oponíveis ao Estado e cont<strong>em</strong>plam faculda<strong>de</strong>s e atributos da pessoa, <strong>direito</strong> <strong>de</strong> resistência<br />

49 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos <strong>direito</strong>s fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,<br />

p. 47.<br />

50 BONAVIDES, Paulo. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 563.<br />

29


ou <strong>de</strong> oposição perante o po<strong>de</strong>r público” 51 . De acordo com o exposto, <strong>direito</strong>s fundamentais<br />

<strong>de</strong> primeira dimensão são apresentados como <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> cunho negativo, consi<strong>de</strong>rando-se o<br />

<strong>direito</strong> à vida, à liberda<strong>de</strong>, à proprieda<strong>de</strong>, à igualda<strong>de</strong> formal (perante a lei) e a algumas<br />

garantias processuais, <strong>de</strong>vido processo legal, habeas corpus, <strong>direito</strong> <strong>de</strong> petição 52 .<br />

Após a conquista e a confirmação dos <strong>direito</strong>s fundamentais <strong>de</strong> primeira<br />

dimensão, surgiram os <strong>direito</strong>s fundamentais <strong>de</strong> segunda dimensão. De acordo com<br />

Bonavi<strong>de</strong>s 53 , esses <strong>direito</strong>s nasceram abraçados ao princípio da igualda<strong>de</strong>. Nessa fase, houve<br />

um redirecionamento do po<strong>de</strong>r do Estado, no sentido <strong>de</strong> atendimento às necessida<strong>de</strong>s mínimas<br />

da pessoa humana. Tais <strong>direito</strong>s, <strong>em</strong> contraposição aos negativos, são <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong><br />

positivos, pois estão voltados a aten<strong>de</strong>r aos <strong>direito</strong>s sociais, culturais e econômicos, b<strong>em</strong> como<br />

aos <strong>direito</strong>s coletivos ou <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>s, introduzidos no constitucionalismo das distintas<br />

formas <strong>de</strong> Estado Social <strong>de</strong>pois que germinaram por obra da i<strong>de</strong>ologia e da reflexão<br />

antiliberal do século passado.<br />

Assim, a segunda dimensão envolve os <strong>direito</strong>s da igualda<strong>de</strong>, no que se refere aos<br />

<strong>direito</strong>s sociais, econômicos e culturais, <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> aspirações igualitárias, inicialmente<br />

vinculadas aos Estados marxistas e social-<strong>de</strong>mocratas, que dominaram o período pós II<br />

Guerra Mundial, marcando o advento do Estado-social. Essa dimensão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s têm como<br />

objetivo garantir aos indivíduos condições materiais consi<strong>de</strong>radas imprescindíveis para o<br />

pleno gozo dos <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> primeira dimensão e, por isso, exig<strong>em</strong> do Estado intervenções na<br />

or<strong>de</strong>m social segundo critérios <strong>de</strong> justiça distributiva 54 , conforme comentado acima.<br />

O que distingue esses <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> segunda dimensão é sua dimensão positiva, pois<br />

visam a propiciar o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> participar do b<strong>em</strong>-estar social, cuidam <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> por<br />

intermédio do Estado e caracterizam-se por outorgar<strong>em</strong> ao indivíduo <strong>direito</strong>s a prestações<br />

sociais estatais, como assistência social, saú<strong>de</strong>, educação, trabalho, liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sindicalização, <strong>direito</strong> a férias.<br />

Assim como os <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> primeira geração, os <strong>direito</strong>s da igualda<strong>de</strong> reportam-se<br />

51 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> legislar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lúmen Júris,<br />

2004, p. 70.<br />

52 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos <strong>direito</strong>s fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,<br />

p. 48.<br />

53 BONAVIDES, Paulo. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 564.<br />

54 A teoria da justiça <strong>de</strong> John Rawls segue sendo a mais importante tentativa, neste século, <strong>de</strong> acomodar as<br />

exigências que <strong>de</strong>rivam dos valores centrais da tradição política oci<strong>de</strong>ntal – liberda<strong>de</strong>, igualda<strong>de</strong>, solidarieda<strong>de</strong> e<br />

auto-respeito – <strong>em</strong> uma visão normativa que t<strong>em</strong> cre<strong>de</strong>nciais liberais genuínas.<br />

30


à pessoa individual. 55 Nessa perspectiva, “A segunda geração integraria os <strong>direito</strong>s da<br />

igualda<strong>de</strong> (sociais, culturais e econômicas), exigindo do Estado <strong>de</strong>terminadas prestações<br />

materiais, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre acessíveis, por ausência ou carência <strong>de</strong> meios materiais.”, <strong>de</strong> acordo<br />

com Nascimento 56 .<br />

Após as lutas pelo <strong>direito</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e o anseio <strong>de</strong> satisfação das necessida<strong>de</strong>s<br />

mais básicas do ser humano, vieram os <strong>direito</strong>s fundamentais <strong>de</strong> terceira dimensão, baseados<br />

na consciência <strong>de</strong> um mundo dividido entre nações <strong>de</strong>senvolvidas e sub<strong>de</strong>senvolvidas. Nota-<br />

se a preocupação com o <strong>de</strong>stino da humanida<strong>de</strong>, dadas as diferenças encontradas.<br />

Nessa fase, busca-se uma outra dimensão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais, até então<br />

<strong>de</strong>sconhecida, uma geração <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s que se baseia na solidarieda<strong>de</strong>, completando o tripé<br />

basilar da Revolução Francesa: liberda<strong>de</strong>, igualda<strong>de</strong> e fraternida<strong>de</strong>. Assim, os <strong>direito</strong>s <strong>de</strong><br />

terceira dimensão são os <strong>direito</strong>s da fraternida<strong>de</strong> ou solidarieda<strong>de</strong>, envolvendo o <strong>direito</strong> à paz,<br />

ao <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, à posse comum do patrimônio comum da humanida<strong>de</strong>, o<br />

<strong>direito</strong> ao meio ambiente. Segundo Bonavi<strong>de</strong>s 57 , “Trata-se daquela que se assenta na<br />

fraternida<strong>de</strong>”.<br />

Esses <strong>direito</strong>s são conhecidos como <strong>direito</strong>s transindividuais, possu<strong>em</strong> um teor <strong>de</strong><br />

universalida<strong>de</strong>, não se <strong>de</strong>stinando especificamente à proteção dos interesses <strong>de</strong> um indivíduo,<br />

mas sim <strong>de</strong> um grupo ou <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado Estado. São também observados como <strong>direito</strong>s<br />

coletivos ou difusos, relacionados aos t<strong>em</strong>as <strong>de</strong> meio ambiente e <strong>de</strong>senvolvimento, da paz, da<br />

comunicação e do patrimônio comum da humanida<strong>de</strong>.<br />

É mister fazer referência a uma corrente nova que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a existência <strong>de</strong> uma<br />

quarta dimensão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais, li<strong>de</strong>rada no Brasil pelo respeitável Paulo<br />

Bonavi<strong>de</strong>s. De acordo com Sarlet 58 , essa quarta dimensão seria o resultado da globalização<br />

dos <strong>direito</strong>s fundamentais, no sentido da universalização no plano institucional, que<br />

correspon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira institucionalização do Estado Social. Seria composta pelos <strong>direito</strong>s à<br />

<strong>de</strong>mocracia, à informação, o <strong>direito</strong> ao pluralismo. Conforme Bonavi<strong>de</strong>s 59 , “São <strong>direito</strong>s da<br />

55 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos <strong>direito</strong>s fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,<br />

p. 50.<br />

56 NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Abuso do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> legislar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lúmen Júris,<br />

2004, p. 70.<br />

57 BONAVIDES, Paulo. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 569.<br />

58 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos <strong>direito</strong>s fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998,<br />

p. 52.<br />

59 BONAVIDES, Paulo. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 571.<br />

31


quarta geração <strong>direito</strong> à <strong>de</strong>mocracia, à informação e o <strong>direito</strong> ao pluralismo”.<br />

Além <strong>de</strong>sses, também se <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar os <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> manipulação genética,<br />

relacionados à biotecnologia e à bioengenharia, que cuidam <strong>de</strong> questões sobre a vida e a<br />

morte, sendo que estes pontos requer<strong>em</strong> uma discussão ética prévia. Tais <strong>direito</strong>s, chamados<br />

<strong>de</strong> novos <strong>direito</strong>s, ainda exib<strong>em</strong> uma quinta dimensão, a qual envolve os <strong>direito</strong>s relativos à<br />

realida<strong>de</strong> virtual, fruto do <strong>de</strong>senvolvimento da cibernética, implicando no rompimento <strong>de</strong><br />

fronteiras como atualmente estamos habituados a ver, dados o <strong>de</strong>senvolvimento e a<br />

diss<strong>em</strong>inação da internet.<br />

As quatro primeiras dimensões <strong>de</strong> <strong>direito</strong>, <strong>de</strong> acordo com Nascimento 60 , foram<br />

cont<strong>em</strong>pladas pelo ministro Celso <strong>de</strong> Mello no pleno do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, sendo que<br />

tal voto não sofreu oposição, o que <strong>de</strong>monstra sua aceitação. Entretanto, Manoel G. Ferreira<br />

Filho critica essa divisão, salientando que po<strong>de</strong>rá acarretar vulgarização e <strong>de</strong>svalorização dos<br />

<strong>direito</strong>s fundamentais.<br />

Ora, o assunto do presente trabalho diz respeito à contraposição <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais do feto anencéfalo, cuja vida extra-uterina é improvável, e o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong><br />

da mãe e do pai também. Envolve, portanto, uma clara e nítida contraposição <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais. De um lado, o <strong>direito</strong> do feto <strong>em</strong> se manter no ventre materno, sendo quase<br />

nula a sua possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida externa, possuindo apenas breve expectativa <strong>de</strong> vida; <strong>de</strong> outro<br />

lado, a mãe, que, suportando os nove meses <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, correrá riscos à sua saú<strong>de</strong>, sofrerá<br />

<strong>de</strong>sgastes psicológico e <strong>em</strong>ocional <strong>em</strong> face a uma expectativa <strong>de</strong> vida frustrada e tendo<br />

afrontada sua dignida<strong>de</strong>, sua liberda<strong>de</strong> e sua autonomia. Desse modo, os <strong>direito</strong>s fundamentais<br />

envolvidos na questão principal <strong>de</strong>sse trabalho refer<strong>em</strong>-se aos <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> primeira dimensão,<br />

que entrariam <strong>em</strong> <strong>em</strong>bate entre si <strong>de</strong> forma vertiginosa.<br />

Entretanto, há que se comentar sobre os <strong>direito</strong>s humanos, os quais não vigoraram<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> s<strong>em</strong>pre. Eles têm sua orig<strong>em</strong> histórica na Grécia, <strong>em</strong>bora houvesse uma noção<br />

rudimentar <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais já no Egito Antigo, na Mesopotâmia, na Índia. Não<br />

obstante, foi com os gregos que os <strong>direito</strong>s humanos ganharam status filosófico. Os primeiros<br />

filósofos gregos, os chamados pré-socráticos, aqueles que, como o nome sugere, são<br />

anteriores a Sócrates, tinham a crença radical <strong>de</strong> que por trás da multiplicida<strong>de</strong> e mudança<br />

incessante das aparências, existia uma realida<strong>de</strong> oculta invariável: a physis, a natureza.<br />

60 NASCIMENTO. Rogério José Bento Soares do. Abuso do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> legislar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lúmen Júris,<br />

2004, p. 70.<br />

32


Na verda<strong>de</strong>, o povo grego contribuiu fort<strong>em</strong>ente com o t<strong>em</strong>a <strong>direito</strong>s humanos, no<br />

que se refere às idéias, como as <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, política, racionalida<strong>de</strong>, princípios <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong><br />

universal e dignida<strong>de</strong> humana. Outros povos da Antigüida<strong>de</strong> não chegaram à idéia <strong>de</strong> uma<br />

natureza por trás das aparências, porque acreditavam que essa realida<strong>de</strong> última era Deus ou os<br />

<strong>de</strong>uses. É na órbita pré-socrática, com os estóicos, que surge a idéia <strong>de</strong> leis eternas, imutáveis,<br />

ligadas à natureza humana, cuja concepção conduz às idéias <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong><br />

naturais. Essa nova perspectiva leva ao resultado prático, uma vez que se passou a verificar a<br />

supr<strong>em</strong>acia do <strong>direito</strong> natural sobre o <strong>direito</strong> positivo.<br />

Com o Cristianismo, um novo mo<strong>de</strong>lo social surgiu baseado na igualda<strong>de</strong> e na<br />

fraternida<strong>de</strong> entre os homens, <strong>de</strong> modo que a pessoa passou a ter um valor intrínseco, o valor<br />

da essência. Nota-se que foi a doutrina cristã que mais valorizou a pessoa humana. Criou-se o<br />

vínculo entre o indivíduo e a divinda<strong>de</strong>, superando a concepção do Estado como única<br />

unida<strong>de</strong> perfeita. O hom<strong>em</strong>-cidadão foi substituído pelo hom<strong>em</strong>-pessoa na escola <strong>de</strong> Santo<br />

Agostinho. Greco Filho 61 afirma que “O <strong>direito</strong> natural era manifestação pura da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Deus, à qual os <strong>direito</strong>s terrenos <strong>de</strong>veriam submeter-se”. Contudo, não houve<br />

instrumentalização às garantias ou mecanismo <strong>de</strong> proteção aos <strong>direito</strong>s da pessoa humana.<br />

Na seqüência,surge, então, a Escola do Direito Natural, que abandonou toda a<br />

fundamentação religiosa que preconizava a natureza humana. Na Europa, <strong>em</strong>erge “uma<br />

tradição <strong>de</strong> garantias do indivíduo, que propiciou o surgimento da doutrina contratualista, a<br />

qual inverteu a fonte e a orig<strong>em</strong> do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus para os próprios homens” 62 . De acordo com<br />

Abbagnamo 63 , a doutrina do contratualismo “reconhece como orig<strong>em</strong> ou fundamento do<br />

Estado (ou, <strong>em</strong> geral, da comunida<strong>de</strong> civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre<br />

seus m<strong>em</strong>bros”. Nessa doutrina, verifica-se que a vonta<strong>de</strong> é a base fundamental da socieda<strong>de</strong>.<br />

É exatamente nessa fase da história que aparece o conceito <strong>de</strong> Contrato Social e<br />

que se verifica uma primeira aproximação, <strong>de</strong> forma mais mo<strong>de</strong>rna, aos <strong>direito</strong>s humanos.<br />

Nesse período, os indivíduos passaram a pactuar comportamentos e condutas individuais e<br />

coletivas, renunciando a alguns <strong>direito</strong>s <strong>em</strong> prol da preservação <strong>de</strong> outros, como a vida, a<br />

proprieda<strong>de</strong>, a liberda<strong>de</strong>, a igualda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma a saír<strong>em</strong> <strong>de</strong> um estado primitivo. Com isso,<br />

61 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberda<strong>de</strong>s: <strong>direito</strong>s individuais na Constituição <strong>de</strong><br />

1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 27.<br />

62 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 28<br />

63 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988,<br />

p. 205.<br />

33


tais <strong>direito</strong>s preservados vincular-se-iam a todo sist<strong>em</strong>a estatal e social, tornando-se eternos e<br />

inalienáveis, e existindo, para o Direito Natural, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> seu reconhecimento<br />

pelo Estado, já que estavam diretamente relacionados à essência do hom<strong>em</strong>.<br />

Em face <strong>de</strong>ssas influências, surg<strong>em</strong> a Revolução Francesa e a Declaração dos<br />

Direitos do Hom<strong>em</strong> e do Cidadão <strong>de</strong> 1789, marcos dos <strong>direito</strong>s humanos. A burguesia, como<br />

nova classe social, ascen<strong>de</strong>; o hom<strong>em</strong> passa a ser visto como centro do universo; instaura-se<br />

um forte apelo à razão natural, consi<strong>de</strong>rando como base não mais Deus, mas o próprio<br />

indivíduo. Com isso, surge uma nova concepção jurídica, baseada no jusnaturalismo, com<br />

princípios da igualda<strong>de</strong> formal e da universalida<strong>de</strong> do <strong>direito</strong>, carcaterizando a preocupação<br />

com a construção <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos sólidos, efetivadores dos <strong>direito</strong>s humanos.<br />

Des<strong>de</strong> então, a evolução dos <strong>direito</strong>s do hom<strong>em</strong> consolidou-se por meio <strong>de</strong><br />

concepções liberais, até 1914, data da I Guerra Mundial – e, após a guerra, por uma<br />

concepção mais social da liberda<strong>de</strong>. Depois da II Guerra Mundial, <strong>em</strong> especial com a<br />

Declaração Universal dos Direitos do Hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong> 1948, foram enumerados os <strong>direito</strong>s que<br />

todos os seres humanos possu<strong>em</strong> e, conseqüent<strong>em</strong>ente, houve uma enormida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

documentos exarados sobre o assunto, tanto no âmbito nacional, como no internacional. A<br />

partir <strong>de</strong>sse momento, nota-se uma alteração com relação à situação dos Direitos Humanos no<br />

Direito Constitucional nacional, b<strong>em</strong> como no Direito Internacional.<br />

A Comissão <strong>de</strong> Direitos Humanos, principal órgão das Nações Unidas sobre a<br />

matéria, foi incumbida <strong>de</strong> elaborar uma Carta Internacional <strong>de</strong> Direitos. Em 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 1948, iniciou-se a discussão sobre os Direitos Humanos, que alcançou seu apogeu com a<br />

aprovação, <strong>em</strong> Paris, da "Declaração Universal dos Direitos do Hom<strong>em</strong>", indicando, <strong>em</strong> seu<br />

artigo 1°, que "todos os homens nasc<strong>em</strong> livres e iguais <strong>em</strong> dignida<strong>de</strong> e <strong>direito</strong>s. São dotados<br />

<strong>de</strong> razão e consciência e <strong>de</strong>v<strong>em</strong> agir <strong>em</strong> relação uns aos outros com espírito <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong>".<br />

Tais princípios revitalizam os pressupostos da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana e do<br />

respeito à integrida<strong>de</strong>. Foi esse o documento que <strong>de</strong>finiu os <strong>direito</strong>s humanos e as liberda<strong>de</strong>s<br />

fundamentais pela primeira vez na esfera internacional. A partir daí, notou-se o <strong>de</strong>staque por<br />

parte da Comissão <strong>de</strong> Direitos Humanos da ONU, no sentido da chamada internacionalização<br />

e universalização dos <strong>direito</strong>s humanos, tendo sido o ápice <strong>de</strong> tal conferência o<br />

reconhecimento da universalização dos <strong>direito</strong>s <strong>de</strong>finidos na Declaração dos Direitos<br />

Humanos <strong>de</strong> 1948.<br />

Sob esse viés, os Direitos Humanos <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ser interesse particular e<br />

34


exclusivo do Estado, passando a ser matéria <strong>de</strong> interesse internacional e objeto próprio <strong>de</strong><br />

regulamentação do Direito Internacional. E a ONU firmou-se como uma instituição<br />

internacional, formada por 192 Estados soberanos, cujos propósitos são: manter a paz e a<br />

segurança no mundo, fomentar relações cordiais entre as nações, promover o progresso social,<br />

melhores padrões <strong>de</strong> vida e <strong>direito</strong>s humanos, tornando-se a mais ve<strong>em</strong>ente divulgadora e<br />

enunciadora <strong>de</strong>sses <strong>direito</strong>s pelo mundo.<br />

Rogério Gesta Leal conceitua tal <strong>direito</strong>, no seguinte sentido:<br />

O conceito <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s humanos é, pela tradição no Oci<strong>de</strong>nte, tratado principalmente<br />

pelo marco do <strong>direito</strong> constitucional e do <strong>direito</strong> internacional, cujo propósito é<br />

construir instrumentos institucionais à <strong>de</strong>fesa dos <strong>direito</strong>s dos seres humanos<br />

contra os abusos do po<strong>de</strong>r cometidos pelos órgãos do Estado, ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que busca a promoção <strong>de</strong> condições dignas <strong>de</strong> vida humana e <strong>de</strong> seu<br />

<strong>de</strong>senvolvimento […] isso proporciona uma das bases importantes a saber: que os<br />

<strong>direito</strong>s humanos diz<strong>em</strong> respeito tanto ao hom<strong>em</strong>, quanto ao cidadão; que os <strong>direito</strong>s<br />

humanos proteg<strong>em</strong> o indivíduo que não está <strong>em</strong> conflito com o Estado, pois existe<br />

unicamente através <strong>de</strong> seus órgãos [grifos nossos] 64<br />

O mesmo autor 65 esclarece que os <strong>direito</strong>s humanos se apresentam como uma<br />

questão filosófica e política, intimimante ligada à forma como as socieda<strong>de</strong>s atuais os<br />

encaminham, <strong>de</strong>limitam e, principalmente, proteg<strong>em</strong>.<br />

Destarte, a expressão "Direitos Humanos" atualmente possui vários significados,<br />

sendo que, num Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito, <strong>de</strong>ve ser entendida como o conjunto<br />

institucionalizado <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s e garantias do ser humano, cujas finalida<strong>de</strong>s básicas são o<br />

respeito à sua dignida<strong>de</strong>, por meio <strong>de</strong> sua proteção contra o arbítrio do po<strong>de</strong>r estatal, e o<br />

estabelecimento <strong>de</strong> condições mínimas <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong>senvolvimento da personalida<strong>de</strong> humana.<br />

Esse <strong>direito</strong> também está fundamentado na preservação da vida sob o aspecto da integrida<strong>de</strong><br />

física, moral e social.<br />

Sob esse prisma, os <strong>direito</strong>s humanos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser vistos como uma <strong>de</strong>claração mais<br />

minuciosa daquilo que se enten<strong>de</strong> por “dignida<strong>de</strong>”, e é justo que os homens reconheçam-se<br />

uns aos outros. Os <strong>direito</strong>s humanos nasceram como <strong>direito</strong> fundamental à liberda<strong>de</strong>, e foram<br />

se ampliando e esten<strong>de</strong>ndo com a reivindicação dos <strong>direito</strong>s chamados econômico-sociais. O<br />

<strong>direito</strong> ao trabalho, a um salário digno, à educação, à cultura, ao lazer, a um nível <strong>de</strong> vida<br />

64 LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos no Brasil: <strong>de</strong>safios à <strong>de</strong>mocracia. Porto Alegre: Livraria do<br />

Advogado; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997, p. 19.<br />

65 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 68.<br />

35


a<strong>de</strong>quado à protecção da saú<strong>de</strong> constitui uma especificação mais concreta do <strong>direito</strong> geral e<br />

abstrato à igualda<strong>de</strong>, estando, nesses <strong>direito</strong>s, a base fundamental para a vivência saudável na<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática. Os chamados Direitos Humanos são as raízes <strong>de</strong> todos os <strong>direito</strong>s,<br />

inclusive do bio<strong>direito</strong> 66 .<br />

Ressalta-se que, <strong>em</strong> geral, as normas constitucionais dos países do bloco<br />

Oci<strong>de</strong>ntal, proclamadas no século XX, introduziram os princípios protetivos dos <strong>direito</strong>s<br />

humanos nas regras jurídicas expressas. Essa positivação princípiológica estruturou os<br />

dispositivos jurídicos relativos aos <strong>direito</strong>s humanos, e, quando positivados, transformaram-se<br />

<strong>em</strong> Direitos Fundamentais. Ou seja, a consagração <strong>de</strong>sses <strong>direito</strong>s humanos<br />

constitucionalmente no or<strong>de</strong>namento jurídico adquiriu a <strong>de</strong>signação Direitos Fundamentais.<br />

Diante disso, resumidamente, a expressão <strong>direito</strong>s humanos é uma forma sintética<br />

<strong>de</strong> referência aos <strong>direito</strong>s fundamentais da pessoa humana, àqueles que são essenciais à<br />

pessoa humana, que precisa ser respeitada como pessoa. São aqueles neces<strong>sá</strong>rios para a<br />

satisfação das necessida<strong>de</strong>s humanas fundamentais.<br />

2.2 O DIREITO À VIDA<br />

Em razão da importância do <strong>direito</strong> fundamental à vida, nesse it<strong>em</strong> serão<br />

analisados o seu <strong>de</strong>senvolvimento histórico, a sua conceituação e a proteção na Constituição<br />

Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, o seu enquadramento no rol dos <strong>direito</strong>s fundamentais e <strong>direito</strong>s humanos.<br />

O século XX foi abatido por várias i<strong>de</strong>ologias que, juntamente com um gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico, provocaram violentas guerras. Após a II Gran<strong>de</strong> Guerra,<br />

buscando a paz mundial <strong>de</strong> forma sólida, a Ass<strong>em</strong>bléia Geral das Nações Unidas aprovou a<br />

Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirmando <strong>direito</strong>s iguais e inalienáveis a todos,<br />

fundamentados na liberda<strong>de</strong>, na justiça e no estabelecimento da paz no mundo.<br />

Num Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> <strong>direito</strong>, no qual o povo escolhe seus representantes<br />

para <strong>de</strong>cidir<strong>em</strong> os caminhos e <strong>de</strong>stinos da nação, on<strong>de</strong> há investidura e alternância no po<strong>de</strong>r, e<br />

66 Bio<strong>direito</strong>: “<strong>de</strong>nominação atribuída à disciplina no estudo do Direito, integrada por diferentes matérias, que<br />

trata da teoria, legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana <strong>em</strong> face dos<br />

avanços da Biologia, da Biotecnologia e da Medicina” 66 . Éo ramo do Direito que se associa à Bioética,<br />

estudando as relações jurídicas entre o Direito e os avanços tecnológicos conectados à medicina; peculiarida<strong>de</strong>s<br />

relacionadas ao corpo, à dignida<strong>de</strong> da pessoa humana. Bio<strong>direito</strong> se associa a cinco matérias: Bioética, Direito<br />

Civil, Direito Penal, Direito Ambiental, Direito Constitucional. BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord.).<br />

Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 101.<br />

36


conseqüente respeito ao pluralismo, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>legado aos representantes não é absoluto,<br />

conhecendo-se várias limitações, <strong>de</strong>ntre as quais a previsão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s e garantias individuais<br />

e coletivos.<br />

Os <strong>direito</strong>s fundamentais consagrados nas cartas magnas necessitam ser<br />

respeitados por todos, mas, algumas vezes, não o são. Como conseqüência, verificam-se as<br />

garantias. Bonavi<strong>de</strong>s 67 ressalta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferenciar <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> garantia, <strong>em</strong> que pese<br />

o fato <strong>de</strong> muitos dicionários confundir<strong>em</strong> seus significados. Direitos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser entendidos<br />

como os bens, que são inerentes à vida, como a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> praticar ou não algum ato,<br />

po<strong>de</strong>ndo ser também as vantagens previstas na norma constitucional. Desse modo, são<br />

principais, enquanto as garantias <strong>de</strong>stinam-se a assegurar a fruição <strong>de</strong>sses bens e, por isso,<br />

são acessórias e adjetivas. Assim, <strong>direito</strong>s fundamentais são aqueles consi<strong>de</strong>rados<br />

indispen<strong>sá</strong>veis à pessoa humana, neces<strong>sá</strong>rios para assegurar a todos uma existência digna e<br />

livre. Portanto, po<strong>de</strong>m receber o nome <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s humanos fundamentais. E <strong>de</strong>ntre esses está<br />

o <strong>direito</strong> à vida.<br />

O <strong>direito</strong> à vida é inerente à pessoa humana, posto que <strong>de</strong>le <strong>de</strong>corr<strong>em</strong> todos os<br />

<strong>de</strong>mais <strong>direito</strong>s humanos fundamentais. Por isso, a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988 <strong>de</strong>clara que<br />

o <strong>direito</strong> à vida é inviolável. Ives Gandra da Silva Martins enten<strong>de</strong>-o como inerente à pessoa<br />

humana, no sentido <strong>de</strong> ser um <strong>direito</strong> não criado pelo Estado, mas pelo mesmo reconhecido,<br />

dado que pertence ao ser humano não por evolução histórico-axiológica, mas pelo simples<br />

fato <strong>de</strong> ter nascido 68 . Nota-se aí um viés jusnaturalista.<br />

A Convenção Americana sobre Direitos do Hom<strong>em</strong> (Pacto <strong>de</strong> São José da Costa<br />

Rica), promulgada no Brasil pelo Decreto N° 678/92, é lei no Brasil. Dispõe o Art. 1.2: “Para<br />

os efeitos <strong>de</strong>sta Convenção, pessoa é todo ser humano”. Também dispõe o Art. 4.1: “Toda<br />

pessoa t<strong>em</strong> <strong>direito</strong> a que se respeite sua vida. Esse <strong>direito</strong> estará protegido pela lei e, <strong>em</strong> geral,<br />

a partir do momento da concepção. Ninguém po<strong>de</strong> ser privado da vida arbitrariamente”.<br />

Observa-se que está sendo dado o mesmo sentido, com a mesma amplitu<strong>de</strong>, à expressão ser<br />

humano e à palavra pessoa, e protegendo o <strong>direito</strong> à vida expressamente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção.<br />

A Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, seguindo o mesmo rumo da Declaração<br />

Universal dos Direitos Humanos, proclama, no seu Art. 3 o , o <strong>direito</strong> à vida: “Toda pessoa t<strong>em</strong><br />

<strong>direito</strong> à vida, à liberda<strong>de</strong> e à segurança pessoal”. Diz o artigo 5° da Constituição que “Todos<br />

67 BONAVIDES, Paulo. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 526.<br />

68 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro <strong>de</strong><br />

Extensão Universitária, 2005, p. 182.<br />

37


são iguais perante a lei, s<strong>em</strong> distinção <strong>de</strong> qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e<br />

aos estrangeiros resi<strong>de</strong>ntes no País a inviolabilida<strong>de</strong> do <strong>direito</strong> à vida, à liberda<strong>de</strong>, [...]”.<br />

No Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito Brasileiro, ninguém po<strong>de</strong> ser privado <strong>de</strong> sua<br />

vida, não se po<strong>de</strong> retirar a vida <strong>de</strong> nenhum ser humano, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>terminar trabalhos forçados ou<br />

pena <strong>de</strong> morte. Diante disso, verifica-se que este <strong>direito</strong> fundamental foi <strong>de</strong>vidamente<br />

reconhecido pelo Estado e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a sua proteção é inevitável, já que se trata <strong>de</strong><br />

um b<strong>em</strong> indisponível. Sendo assim, tanto o aborto como a eutanásia e a tortura <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser<br />

vistos como uma infração ao <strong>direito</strong> natural da vida, apesar do primeiro ser previsto pela<br />

legislação infraconstitucional brasileira <strong>em</strong> dois casos específicos e excepcionais.<br />

Alguns <strong>direito</strong>s fundamentais não se ligam a toda e qualquer pessoa, sendo<br />

neces<strong>sá</strong>rias algumas condições para a sua ocorrência, mas há outros que são <strong>de</strong> todos os<br />

homens. Mo<strong>de</strong>rnamente, os <strong>direito</strong>s fundamentais estão indissoluvelmente ligados à noção <strong>de</strong><br />

limitação do po<strong>de</strong>r. Os <strong>direito</strong>s fundamentais constitu<strong>em</strong> gênero, abrangendo as seguintes<br />

espécies: Direitos Individuais, Coletivos, Sociais, Nacionais e Políticos.<br />

Os <strong>direito</strong>s fundamentais são consi<strong>de</strong>rados absolutos, mas apenas no sentido <strong>de</strong><br />

estar<strong>em</strong> situados no mais alto patamar <strong>de</strong> hierarquia, posto que gozariam <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong><br />

absoluta sobre qualquer interesse coletivo 69 . Contudo, essa afirmação não po<strong>de</strong> mais ser aceita<br />

s<strong>em</strong> qualquer questionamento, já que os <strong>direito</strong>s fundamentais po<strong>de</strong>m sofrer limitações<br />

quando enfrentam outros valores também <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m constitucional, inclusive <strong>de</strong> outros <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais.<br />

Verifica-se que a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>direito</strong> à vida possui um alcance muito amplo, pois<br />

envolve privacida<strong>de</strong>, integrida<strong>de</strong> e também o <strong>direito</strong> à existência. Além disso, outros <strong>direito</strong>s<br />

também enquadrados no rol dos <strong>direito</strong>s fundamentais são conexos a este, como o <strong>direito</strong> à<br />

liberda<strong>de</strong>, à igualda<strong>de</strong>, à dignida<strong>de</strong>, à segurança, à proprieda<strong>de</strong>, à alimentação, ao vestuário,<br />

ao lazer, à educação, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.<br />

Conforme a tutela jurisdicional, o <strong>direito</strong> à vida é inviolável e protegido, alcançado o <strong>direito</strong><br />

individual <strong>de</strong> estar vivo, b<strong>em</strong> como o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> uma vida digna e justa.<br />

O <strong>direito</strong> à vida como um <strong>direito</strong> fundamental é reconhecido pelo Estado e <strong>de</strong>sse<br />

modo qualquer fato ou ato que se manifeste contrário à vida <strong>de</strong>ve ser expurgado da socieda<strong>de</strong>.<br />

Neste rol, enquadram-se o aborto e a eutanásia, no tocante às violações do <strong>direito</strong> natural à<br />

vida.<br />

69 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 230.<br />

38


Reitera-se que o foco do presente trabalho correspon<strong>de</strong> aos <strong>direito</strong>s individuais –<br />

<strong>em</strong> especial o <strong>direito</strong> à vida do feto anencéfalo e o <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> e à autonomia da mãe –,<br />

que po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados os valores para a proteção e dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, b<strong>em</strong><br />

como para a existência <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> livre e <strong>de</strong>mocrática. Contudo, Men<strong>de</strong>s 70 <strong>de</strong>ixa claro<br />

que “Os <strong>direito</strong>s individuais enquanto <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> hierarquia constitucional somente po<strong>de</strong>m ser<br />

limitados por expresssa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei<br />

ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata).”<br />

Assim, tanto a Constituição como lei infraconstitucional po<strong>de</strong>m limitar e ou restringir um<br />

<strong>direito</strong> fundamental, sendo ambas consi<strong>de</strong>radas legais, posto que possu<strong>em</strong> autorização<br />

constitucional para tanto. Mas o seu núcleo essencial <strong>de</strong>ve ser protegido, <strong>em</strong> que pese o<br />

legislador brasileiro não ter <strong>de</strong>finido expressamente o seu significado.<br />

Apesar disso, a idéia <strong>de</strong> núcleo essencial sugere a existência clara <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos<br />

centrais ou essenciais. Nesse trabalho, utiliza-se a idéia <strong>de</strong> que o núcleo essencial dos <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais seria medido caso a caso, mediante o processo <strong>de</strong> pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens 71 , com<br />

base no princípio da proporcionalida<strong>de</strong>, analisando o mínimo insuscetível <strong>de</strong> limitação,<br />

restrição ou redução.<br />

O Direito necessita ter um posicionamento sobre o momento inicial da vida<br />

humana, para manter a segurança jurídica. Desse modo, avalia-se qual das concepções é mais<br />

a<strong>de</strong>quada aos seus princípios e objetivos fundamentais, s<strong>em</strong> a negação <strong>de</strong> fatos que são<br />

absolutamente comprovados. Essa análise baseia-se, então, <strong>em</strong> matéria técnica e não jurídica.<br />

O Direito brasileiro s<strong>em</strong>pre se apoiou nos conceitos biológicos <strong>de</strong> concepção, gravi<strong>de</strong>z,<br />

nascimento, aborto, para falar sobre a vida humana. Contudo, é possível extrair do sist<strong>em</strong>a<br />

jurídico um posicionamento objetivo, racional e coerente com as mo<strong>de</strong>rnas concepções<br />

biológicas, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado os princípios fundamentais que são basilares.<br />

Conforme a análise do caput do Art. 5 ° da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, o <strong>direito</strong> à vida<br />

t<strong>em</strong> seu início a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozói<strong>de</strong>, resultando <strong>em</strong> um ovo ou<br />

zigoto. Aliado a isso, a carta magna dá mesmo sentido e mesma amplitu<strong>de</strong> à expressão ser<br />

humano e à palavra pessoa, e protege <strong>de</strong> forma expressa e clara o <strong>direito</strong> à vida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

concepção. Assim, todo feto no ventre materno e também aqueles que se encontram <strong>em</strong><br />

laboratórios são seres humanos e <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser protegidos e tutelados. Entretanto, verificam-se<br />

70 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 292.<br />

71 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.<br />

39


outras teorias que <strong>de</strong>terminam diferent<strong>em</strong>ente o início da vida, proporcionando subsídios<br />

outros para o aplicador do <strong>direito</strong>.<br />

Uma <strong>de</strong>la é a teoria da nidação. Após a fecundação, o zigoto inicia um processo<br />

<strong>de</strong>nominado clivag<strong>em</strong>, que “é a série <strong>de</strong> divisões celulares motóticas do zigoto, que resultam<br />

na formação das primeiras células <strong>em</strong>brionárias – os blastômeros” 72 . Trata-se <strong>de</strong> uma massa<br />

sólida com 12 a 15 blastômeros, chamada <strong>de</strong> mórula. Segundo Moore, o nome mórula se <strong>de</strong>ve<br />

à s<strong>em</strong>elhança com a amora. Este estágio ocorre entre 3 a 4 dias após a fecundação,<br />

coincidindo com a entrada <strong>de</strong>ssa massa no útero. Após a entrada da mórula no útero, ela<br />

forma no seu interior uma cavida<strong>de</strong> com líquido, <strong>de</strong>nominada cavida<strong>de</strong> blastocística. Com o<br />

aumento <strong>de</strong>sse fluido no seu interior, separa-se <strong>em</strong> duas partes, uma que recebe o nome <strong>de</strong><br />

trofoblasto, dando orig<strong>em</strong> à placenta, e outra <strong>de</strong>nominada massa celular interna, que será o<br />

primórdio <strong>de</strong> um <strong>em</strong>brião. Passados dois dias, o blastocisto fixa-se, a<strong>de</strong>re ao endométrio,<br />

m<strong>em</strong>brana mucosa que reveste o útero, e se implanta. Em torno <strong>de</strong> 6 dias, o período <strong>de</strong> pré-<br />

implantação do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>em</strong>brionário, o blastocisto começa a se proliferar e, por volta<br />

do sétimo dia, o blastocisto já está implantado e se alimentando do tecido 73 . Essa corrente<br />

enten<strong>de</strong> que só há vida quando do término da nidação, no décimo quarto dia, posto que, antes<br />

disso, só se t<strong>em</strong> uma massa celular que dará orig<strong>em</strong> ao <strong>em</strong>brião. Somente com a formação do<br />

<strong>em</strong>brião é que se teria um verda<strong>de</strong>iro ser humano, no sentido ontológico <strong>de</strong> pessoa. 74 . Os<br />

a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong>ssa teoria subenten<strong>de</strong>m a necessida<strong>de</strong> e existência do útero materno, <strong>de</strong> um local<br />

específico, para que exista um ser humano.<br />

Outra teoria sobre o início da vida é a da formação ou início da ativida<strong>de</strong> do<br />

sist<strong>em</strong>a cerebral. Tal teoria enten<strong>de</strong> que a vida só começaria a se <strong>de</strong>senvolver a partir <strong>de</strong> 15<br />

dias da fecundação, com a formação do sist<strong>em</strong>a nervoso central. Essa corrente enten<strong>de</strong> ser <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> relevância a ativida<strong>de</strong> nervosa como parte do processo vital. A própria legislação<br />

brasileira <strong>de</strong>termina o término da vida quando cessa a ativida<strong>de</strong> elétrica do encéfalo, mas não<br />

utilizou o mesmo critério para <strong>de</strong>terminar o início da vida.<br />

Diante <strong>de</strong>ssas colocações relativas às teorias existentes sobre o início da vida, b<strong>em</strong><br />

como da análise tanto da Constituição Fe<strong>de</strong>ral como do atual Código Civil, observa-se que o<br />

72 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p. 2.<br />

73 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p. 43-45.<br />

74 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 101.<br />

40


or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiro reconhece alguns <strong>direito</strong>s ao nascituro, como a vida, a<br />

integrida<strong>de</strong> física e a honra, mas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>svinculada do evento nascimento.<br />

Por outro lado, <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com o Código Civil Brasileiro, n<strong>em</strong> todo ser<br />

humano possui personalida<strong>de</strong> jurídica, pois a aquisição <strong>de</strong>sse atributo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

acontecimento, o nascimento com vida, <strong>em</strong> que pese o fato <strong>de</strong> os <strong>direito</strong>s dos nascituros<br />

estar<strong>em</strong> salvaguardados. Moreira 75 argumenta que o vocábulo “<strong>direito</strong>s” po<strong>de</strong> ser entendido<br />

como “interesses”. De qualquer forma, torna-se neces<strong>sá</strong>rio abordar a personalida<strong>de</strong> jurídica, o<br />

que será feito no próximo it<strong>em</strong>.<br />

2.3 A VIDA COMO UM DIREITO DA PERSONALIDADE<br />

Conforme já dito, a vida humana começa na concepção, isto é, no momento <strong>em</strong><br />

que o espermatozói<strong>de</strong> entra <strong>em</strong> contato com o óvulo, formando o zigoto. Portanto, é nesse<br />

momento que <strong>de</strong>ve se iniciar a sua proteção sob o ponto <strong>de</strong> vista do Estado. Nesse sentido,<br />

reconhecendo que a vida começa na concepção, o Código Civil Brasileiro, <strong>em</strong> consonância<br />

com o que afirmam a Constituição Fe<strong>de</strong>ral e o Pacto <strong>de</strong> São José da Costa Rica, <strong>em</strong> seu Art.<br />

2° preceitua: “A personalida<strong>de</strong> civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a<br />

lei põe a salvo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção, os <strong>direito</strong>s do nascituro” [grifos nossos].<br />

Nota-se que a lei põe a salvo todos os <strong>direito</strong>s do nascituro, <strong>em</strong>bora alguns<br />

autores, como Washington <strong>de</strong> Barros Monteiro e Teixeira <strong>de</strong> Freitas, a<strong>de</strong>ptos da teoria da<br />

personalida<strong>de</strong> condicional, não lhe concedam personalida<strong>de</strong>, posto que a sua obtenção só<br />

ocorrerá com o nascimento com vida. Mesmo assim, todo e qualquer ataque à vida intra-<br />

uterina ou sua eliminação <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser entendidos como uma violação ao <strong>direito</strong> humano<br />

fundamental da vida.<br />

Bittar 76 consi<strong>de</strong>ra os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong> como “os diretos reconhecidos à<br />

pessoa humana tomada <strong>em</strong> si mesma e <strong>em</strong> suas projeções na socieda<strong>de</strong>, previstos no<br />

or<strong>de</strong>namento jurídico exatamente para a <strong>de</strong>fesa dos valores inatos 77 no hom<strong>em</strong>, como a vida, a<br />

75 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro <strong>de</strong><br />

Extensão Universitária, 2005, p. 115.<br />

76 BITTAR, Carlos Alberto. Os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 1.<br />

77 Inato: que pertence ao ser <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu nascimento; inerente, natural, congênito Ex.: talento. Disponível online<br />

<strong>em</strong> : . Acesso <strong>em</strong>: 15 <strong>de</strong>z.<br />

2007.<br />

41


higi<strong>de</strong>z física, a intimida<strong>de</strong>, a honra, a intelectualida<strong>de</strong> e outros tantos”. E ainda, o mesmo<br />

autor 78 indica: “São <strong>direito</strong>s ínsitos na pessoa, <strong>em</strong> função da sua própria estruturação física,<br />

mental e moral”. Assim, é possível enten<strong>de</strong>r que os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong> são aqueles que<br />

têm por objeto os atributos físicos e psíquicos da pessoa natural.<br />

Esse <strong>direito</strong>, como conjunto <strong>de</strong> caracteres do próprio indivíduo inerentes à pessoa<br />

humana e ligados <strong>de</strong> forma permanente – portanto, po<strong>de</strong>res que o hom<strong>em</strong> exerce sobre a sua<br />

própria pessoa –, é consi<strong>de</strong>rado um <strong>direito</strong> irrenunciável e intransmissível. E todo indivíduo<br />

t<strong>em</strong> <strong>de</strong> controlar o uso <strong>de</strong> seu corpo, nome, imag<strong>em</strong>, aparência ou quaisquer outros aspectos<br />

constitutivos <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

Verificam-se na doutrina duas correntes sobre os fundamentos jurídicos dos<br />

<strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>. A corrente positivista consi<strong>de</strong>ra os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong><br />

aqueles reconhecidos pelo Estado e não aceitam a existência dos <strong>direito</strong>s inatos; a corrente<br />

jusnaturalista consi<strong>de</strong>ra como <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong> aqueles exercidos naturalmente pelo<br />

hom<strong>em</strong>, como verda<strong>de</strong>iros atributos inerentes 79 à condição humana. Nesse ponto, por ser<strong>em</strong><br />

consi<strong>de</strong>rados <strong>direito</strong>s inatos, <strong>de</strong> acordo com Bittar 80 , caberia ao Estado apenas reconhecê-los e<br />

sancioná-los no plano do <strong>direito</strong> positivo.<br />

De acordo com Bittar 81 , “por <strong>direito</strong>s do hom<strong>em</strong>, ou da personalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

enten<strong>de</strong>r-se aqueles que o ser humano t<strong>em</strong> <strong>em</strong> face <strong>de</strong> sua própria condição. São – como<br />

anotados – os <strong>direito</strong>s naturais, ou inatos, impostergáveis, anteriores ao Estado e inerentes à<br />

natureza livre do hom<strong>em</strong>”. Desse modo, mesmo que o Estado não os cont<strong>em</strong>ple na legislação,<br />

<strong>em</strong> face <strong>de</strong> sua natureza, <strong>de</strong>verão ser respeitados e seguidos.<br />

Os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>, como <strong>direito</strong>s ínsitos à pessoa, possu<strong>em</strong><br />

características próprias, conforme discorre Gagliano 82 <strong>de</strong> forma sucinta. Eles são absolutos:<br />

sua oponibilida<strong>de</strong> erga omnes e indisponíveis, seus efeitos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser impostos a todos e a<br />

78 BITTAR, Carlos Alberto. Os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 5.<br />

79 Inerente: que existe como um constitutivo ou uma característica essencial <strong>de</strong> alguém ou <strong>de</strong> algo, que só existe<br />

<strong>em</strong> relação a um sujeito, a uma maneira <strong>de</strong> ser que é intrínseca a este. Disponível on-line <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 15 <strong>de</strong>z. 2007.<br />

80 BITTAR, Carlos Alberto. Os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 7.<br />

81 BITTAR, Carlos Alberto. Os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 23.<br />

82 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> civil. Parte geral. 8. ed. rev., atual. e reform. São Paulo:<br />

Saraiva, 2006, v. 1, p.145<br />

42


coletivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>verá respeitá-los; possu<strong>em</strong> a característica da generalida<strong>de</strong>, refer<strong>em</strong>-se a todas<br />

as pessoas; são extrapatrimoniais – a princípio, verifica-se ausência <strong>de</strong> conteúdo patrimonial<br />

direto; sua indisponibilida<strong>de</strong> abarca a intransmissibilida<strong>de</strong>, pois não po<strong>de</strong>m ser abdicados, e a<br />

irrenunciabilida<strong>de</strong>, pois não po<strong>de</strong>m ser cedidos a outros. São ainda consi<strong>de</strong>rados<br />

imprescritíveis, impenhoráveis e vitalícios.<br />

Com tais características, e baseado na tría<strong>de</strong> corpo/mente/espírito, Gagliano 83<br />

classifica os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> três grupos no tocante à sua proteção, <strong>em</strong>bora não<br />

se possa consi<strong>de</strong>rar isso <strong>de</strong> forma taxativa. O primeiro grupo diz respeito à vida e à<br />

integrida<strong>de</strong> física; o segundo grupo, à integrida<strong>de</strong> psíquica e às criações intelectuais; e o<br />

terceiro grupo, à integrida<strong>de</strong> moral.<br />

O <strong>direito</strong> à vida, como já dito anteriormente, é um dos <strong>direito</strong>s mais importantes,<br />

sendo que a sua falta inibe a efetivação <strong>de</strong> qualquer outro dos <strong>direito</strong>s fundamentais pleiteados<br />

pelos homens. Além disso, <strong>de</strong>staca-se como um dos atributos mais importantes dos <strong>direito</strong>s da<br />

personalida<strong>de</strong>. Os dois conceitos se un<strong>em</strong>, vida e personalida<strong>de</strong> se fun<strong>de</strong>m <strong>de</strong> tal forma que<br />

quase se tornam indissolúveis <strong>em</strong> uma análise conceitual e fática, pois a vida só t<strong>em</strong> sentindo<br />

quando existe a personalida<strong>de</strong>. Ambos, no entanto, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser <strong>de</strong>senvolvidos com dignida<strong>de</strong>.<br />

Não há como discutir que o titular do <strong>direito</strong> à personalida<strong>de</strong> é o ser humano,<br />

sendo que os <strong>direito</strong>s do nascituro também são ressalvados pela lei, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção,<br />

incluindo-se aí, portanto, os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong> do feto. Ainda, os <strong>direito</strong>s da<br />

personalida<strong>de</strong> estão vinculados <strong>de</strong> forma indissociável ao reconhecimento da dignida<strong>de</strong><br />

humana, qualida<strong>de</strong> neces<strong>sá</strong>ria para o <strong>de</strong>senvolvimento das potencialida<strong>de</strong>s físicas, psíquicas e<br />

morais.<br />

O <strong>direito</strong> à vida como um <strong>direito</strong> à personalida<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong> o <strong>direito</strong> que todo<br />

indivíduo consi<strong>de</strong>rado <strong>em</strong> si mesmo t<strong>em</strong> ao alcançar o seu <strong>de</strong>senvolvimento pessoal,<br />

intelectual, espiritual e material. Desse modo, <strong>de</strong> acordo com Szaniawski 84 , o <strong>direito</strong> à vida<br />

não existe por si só, como um <strong>direito</strong> especial <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>. Ele está vinculado à<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. O simples fato <strong>de</strong> dizer que a pessoa t<strong>em</strong> vida não basta, é neces<strong>sá</strong>rio que<br />

ela seja vivida dignamente. Esse autor aponta:<br />

83 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.<br />

84 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalida<strong>de</strong> e sua tutela. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista<br />

dos Tribunais, 2005, p.157.<br />

43


O <strong>direito</strong> à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida consiste no <strong>direito</strong> <strong>de</strong> todo indivíduo po<strong>de</strong>r levar uma<br />

vida digna, uma vez que não se po<strong>de</strong> admitir um <strong>direito</strong> à vida isento <strong>de</strong> uma<br />

mínima qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. A pessoa que não possui boa qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida não está<br />

exercendo verda<strong>de</strong>iramente seu <strong>direito</strong> à dignida<strong>de</strong> humana. Estas reflexões<br />

conduziram o atual pensamento jurídico a sustentar que o princípio da dignida<strong>de</strong> da<br />

pessoa humana, ao ser efetivamente exercido, acaba <strong>de</strong> sofrer uma parcial diluição<br />

<strong>em</strong> seu valor absoluto. O valor absoluto do princípio é abalado quando concorre com<br />

outros <strong>direito</strong>s fundamentais, especialmente quando confronta com as liberda<strong>de</strong>s,<br />

com as liberda<strong>de</strong>s públicas e econômicas. 85<br />

Nesse ponto, Szaniawski esbarra no ponto-chave do presente trabalho: a tensão<br />

entre o <strong>direito</strong> à vida do feto anencefálico e o <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> manutenção ou não da<br />

gravi<strong>de</strong>z pelos pais. Como dito anteriormente, não basta viver, não basta manter uma gravi<strong>de</strong>z<br />

<strong>de</strong> um feto s<strong>em</strong> nenhuma expectativa <strong>de</strong> vida extra-uterina, s<strong>em</strong> que haja qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.<br />

Esse autor ainda menciona que “o <strong>direito</strong> à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida é constituído sobre o princípio<br />

da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, sendo abarcado também pelo <strong>direito</strong> à auto<strong>de</strong>terminação do<br />

indivíduo, pelo <strong>direito</strong> à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pessoal, pelo <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong>, pelo <strong>direito</strong> <strong>de</strong> constituir<br />

uma família e pelo <strong>direito</strong> <strong>de</strong> acesso a um patrimônio mínimo” 86 .<br />

Para tanto, se faz mister verificar a partir <strong>de</strong> que momento o feto possuiria a<br />

personalida<strong>de</strong> civil, ponto a ser comentado no próximo it<strong>em</strong>.<br />

2.4 ATRIBUIÇÃO DA PERSONALIDADE CIVIL<br />

O início da atribuição da personalida<strong>de</strong> é um t<strong>em</strong>a que suscita inúmeros <strong>de</strong>bates<br />

entre os juristas brasileiros. Almeida e Chinelato apresentam e <strong>de</strong>stacam três teorias<br />

fundamentais na doutrina brasileira para <strong>de</strong>terminar o início da personalida<strong>de</strong> jurídica: a<br />

natalista, a da personalida<strong>de</strong> condicional e a concepcionista 87 . As autoras esclarec<strong>em</strong>:<br />

85 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 157.<br />

86 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 158.<br />

A primeira sustenta que a personalida<strong>de</strong> começa no nascimento com vida. A<br />

segunda afirma que a personalida<strong>de</strong> começa com a concepção, com a condição do<br />

nascimento com vida (doutrina da personalida<strong>de</strong> condicional ou concepcionista<br />

imprópria); a terceira consi<strong>de</strong>ra que o início da personalida<strong>de</strong> se inicia com a<br />

concepção. 88<br />

87 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 145<br />

88 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 145.<br />

44


A primeira <strong>de</strong>las, a teoria natalista – também chamada <strong>de</strong> a teoria da<br />

potencialida<strong>de</strong> da pessoa –, consi<strong>de</strong>ra o <strong>em</strong>brião um ser humano <strong>em</strong> potencial, posto que, na<br />

primeira fase intra-uterina, o <strong>em</strong>brião possui autonomia “<strong>em</strong>brionária”, não como ser humano,<br />

n<strong>em</strong> biológica. Ainda serão neces<strong>sá</strong>rios os nove meses <strong>de</strong> gestação para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

a<strong>de</strong>quado e <strong>em</strong> condições imprescindíveis para a formação <strong>de</strong>sse ser humano 89 . Para essa<br />

doutrina, a personalida<strong>de</strong> t<strong>em</strong> início a partir da concepção, sendo que o nascituro não t<strong>em</strong><br />

qualquer <strong>direito</strong> antes do nascimento. Tal fato po<strong>de</strong> ser observado <strong>em</strong> acórdãos dos tribunais<br />

brasileiros que negam in<strong>de</strong>nização pela morte do nascituro. Para essa teoria, como também<br />

para o Código Civil, o nascituro teria então apenas uma expectativa <strong>de</strong> <strong>direito</strong>, já que ainda<br />

lhe falta o fato do nascimento com vida, apenas ficando a salvo <strong>direito</strong>s patrimoniais 90 .<br />

Almeida e Chinelato, mencionando Antonio Junqueira <strong>de</strong> Azevedo 91 , a<strong>de</strong>pto<br />

<strong>de</strong>ssa teoria, enten<strong>de</strong> que o nascituro possui <strong>direito</strong>s, como o <strong>direito</strong> à vida e da personalida<strong>de</strong>,<br />

mas que é uma pessoa ontologicamente que ainda não t<strong>em</strong> personalida<strong>de</strong>. O começo da<br />

personalida<strong>de</strong> possui como marco inicial o nascimento com vida. Desse modo, o <strong>em</strong>brião<br />

possui uma expectativa <strong>de</strong> <strong>direito</strong> 92 .<br />

Por sua vez, a teoria da personalida<strong>de</strong> condicional enten<strong>de</strong> que o nascituro,<br />

pessoa <strong>em</strong> formação, é pessoa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção, sob a condição do nascimento com vida, ou<br />

seja, é neces<strong>sá</strong>rio que ocorra o nascimento com vida, posto que a aquisição da personalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa condição suspensiva. Daí, se o nascimento não for com vida, o feto não terá<br />

personalida<strong>de</strong>, não será consi<strong>de</strong>rado pessoa e não terá <strong>direito</strong>s, apenas capacida<strong>de</strong> sucessória,<br />

caracterizando uma exceção.<br />

Por fim, Conti relata a teoria concepcionista, a qual consi<strong>de</strong>ra a personalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> qualquer condição suspensiva, ou seja, ao<br />

nascimento com vida. Ela <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o <strong>em</strong>brião <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado como pessoa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

momento da concepção 93 , como algo distinto da mãe e com uma autonomia genética<br />

89 MEIRELLES, Jussara Maria Leal <strong>de</strong>. A vida <strong>em</strong>brionária e a sua proteção jurídica. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Renovar, 2000.<br />

90 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 146<br />

91 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 172<br />

92 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> civil. Parte geral. 8. ed. rev., atual. e reform. São Paulo:<br />

Saraiva, 2006, v. 1, p. 82.<br />

93 CONTI, Matil<strong>de</strong> Carone Slaibi. Bio<strong>direito</strong>: a norma da vida. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense, 2004, p. 12<br />

45


iológica própria. Para essa teoria, a proteção jurídica à vida do nascituro existe na sua<br />

plenitu<strong>de</strong> antes do nascimento e a proteção dos <strong>direito</strong>s do nascituro t<strong>em</strong> aplicação vasta <strong>em</strong><br />

vários campos do <strong>direito</strong>, como o civil, o penal e o constitucional 94 . São a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong>ssa teoria<br />

Ives Granda da Silva Martins e Renata Braga Klevenhusen.<br />

Almeida e Chinelato, seguidora <strong>de</strong>ssa teoria, afirma que:<br />

a personalida<strong>de</strong> do nascituro não é condicional; apenas certos efeitos <strong>de</strong> certos<br />

<strong>direito</strong>s <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do nascimento com vida, notadamente os <strong>direito</strong>s patrimoniais<br />

materiais, como doação e herança. Nesses casos, o nascimento com vida é el<strong>em</strong>ento<br />

do negócio jurídico que diz respeito à sua eficácia total, aperfeiçoando-a. 95<br />

A referida autora 96 enten<strong>de</strong> que a personalida<strong>de</strong> do nascituro existe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

concepção e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do evento nascimento, posto que se trata da atribuição <strong>de</strong> um status. É<br />

uma condição <strong>de</strong>svinculada do nascimento com vida, não se <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r como algo<br />

condicional, apenas seus efeitos e <strong>direito</strong>s resultantes da personalida<strong>de</strong> é que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>riam do<br />

nascimento com vida.<br />

Desse modo, somente os <strong>direito</strong>s patrimoniais, como doação e herança, ficariam<br />

condicionados ao nascimento com vida e, assim, um fato social gera efeitos patrimoniais a<br />

ser<strong>em</strong> zelados pelo legislador. A autora indica <strong>de</strong> forma muito clara e explicativa que, para os<br />

a<strong>de</strong>ptos da teoria natalista, não seria admissível aceitar qualquer tipo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização ao feto,<br />

já que sua personalida<strong>de</strong> só começa com o nascimento com vida e, até lá, ele não é<br />

consi<strong>de</strong>rado pessoa.<br />

Por fim, <strong>em</strong> concordância com a respeitável autora acima citada, por enten<strong>de</strong>r que<br />

pessoa e personalida<strong>de</strong> civil constitu<strong>em</strong> um binômio, sendo impossível a sua dissociação, “o<br />

nascituro t<strong>em</strong> <strong>direito</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento da concepção, e não expectativas <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s” 97 .<br />

Consi<strong>de</strong>rando os diversos aspectos que envolv<strong>em</strong> a vida humana, po<strong>de</strong>-se afirmar<br />

que a Constituição Fe<strong>de</strong>ral protege todas as formas <strong>de</strong> vida, com seu duplo aspecto, ou seja, o<br />

<strong>direito</strong> <strong>de</strong> nascer e o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver-se e sobreviver, inclusive na fase uterina. Essa<br />

proteção é verificada ao longo da carta magna, mas, <strong>em</strong> especial, no capítulo relativo aos<br />

94 ALMEIDA, Silmara; CHINELATO, J. A.. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p.172.<br />

95 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 169.<br />

96 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 166<br />

97 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 175.<br />

46


<strong>direito</strong>s e garantias fundamentais.<br />

A proteção ao <strong>direito</strong> à vida foi tratada, também, pela Convenção Sobre os<br />

Direitos da Criança, realizada pela Ass<strong>em</strong>bléia Geral das Nações Unidas, <strong>em</strong> 20 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 1989, ratificada pelo Brasil <strong>em</strong> 24 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1990, b<strong>em</strong> como pelo Estatuto da<br />

Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/90). No Art. 7° do ECA fica explícita a proteção à<br />

vida e à saú<strong>de</strong> da criança e do adolescente, sendo que a sua efetivação <strong>de</strong>ve ser realizada por<br />

meio <strong>de</strong> políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o <strong>de</strong>senvolvimento sadio e<br />

harmonioso <strong>de</strong>sse ser humano. Ressalta a mesma lei que a vida e o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

criança <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ocorrer <strong>em</strong> condições dignas <strong>de</strong> existência, e, para tanto, a lei também assegura<br />

o atendimento pré e perinatal, incluindo o apoio alimentar à gestante. Ao Estado também<br />

compete proce<strong>de</strong>r a exames visando ao diagnóstico <strong>de</strong> anormalida<strong>de</strong>s no metabolismo do<br />

recém-nascido e, principalmente, prestar orientação aos pais, tanto médicas como jurídicas,<br />

nos casos especiais, como o do feto anencéfalo.<br />

Analogicamente ao ECA, a criança portadora <strong>de</strong> anomalias, e aí se inclui a<br />

anencefalia, <strong>de</strong>ve receber atendimento especializado e integral por intermédio do Sist<strong>em</strong>a<br />

Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, garantido, assim, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para<br />

promoção, proteção e recuperação da saú<strong>de</strong>.<br />

Desse modo, todo feto concebido possui o <strong>direito</strong> à vida, <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado<br />

pessoa e, conseqüent<strong>em</strong>ente, possui o atributo da personalida<strong>de</strong> civil, <strong>de</strong>vendo ser garantido a<br />

ele todo e qualquer benefício que a socieda<strong>de</strong> e o Estado possam oferecer, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente<br />

ou não do seu nascimento.<br />

2.5 ABORTO<br />

O aborto será abordado no presente it<strong>em</strong>, <strong>em</strong> razão da sua ligação com a t<strong>em</strong>ática<br />

da tutela da vida intra-uterina.<br />

A prática do aborto n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre foi objeto <strong>de</strong> incriminação, sendo comum a sua<br />

realização entre os povos antigos, como hebreus e gregos 98 . Dava-se fim à gestação com ervas<br />

abortivas, objetos cortantes, aplicação <strong>de</strong> pressão no abdômen. Na antiga Roma, as legislações<br />

não cuidavam do aborto, pois consi<strong>de</strong>ravam o produto da concepção como parte do corpo da<br />

98 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualida<strong>de</strong>, transsexualida<strong>de</strong>, transplantes. 2.<br />

ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 23.<br />

47


mulher e não como ser autônomo, <strong>de</strong> modo que a mulher que abortava nada mais fazia que<br />

dispor do próprio corpo 99 . Posteriormente, o aborto passou a ser consi<strong>de</strong>rado uma lesão ao<br />

<strong>direito</strong> à prole. Com o Cristianismo, o aborto passou efetivamente a ser reprovado no meio<br />

social.<br />

A história conta 100 que, na Ida<strong>de</strong> Média, havia uma divergência sobre a<br />

incriminação do aborto. Para Santo Agostinho, o aborto só seria consi<strong>de</strong>rado um <strong>de</strong>lito se o<br />

feto fosse animado, o que ocorreria quarenta ou oitenta dias após a concepção, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo<br />

também do sexo do mesmo, masculino ou f<strong>em</strong>inino. Nota-se que o t<strong>em</strong>a do aborto é antigo,<br />

complexo e gera muitas polêmicas. Apesar do <strong>direito</strong> fundamental à vida estar <strong>de</strong> forma clara<br />

e simples garantido na carta magna e a vida do feto ser o b<strong>em</strong> jurídico tutelado, mister se faz<br />

ressalvar que também há a vida da mãe a ser tutelada, b<strong>em</strong> como as arestas físicas e psíquicas<br />

que envolv<strong>em</strong> a vida <strong>de</strong> qualquer ser humano, <strong>em</strong> especial das que se encontram nesse estado<br />

especial.<br />

Conceituar o termo aborto não é uma tarefa muito simples, tendo <strong>em</strong> vista não ser<br />

um conceito uniforme entre os juristas e médicos. Aborto é um substantivo masculino, que,<br />

no âmbito da medicina, po<strong>de</strong> ser entendida como ação ou efeito <strong>de</strong> abortar; abortamento,<br />

interrupção pr<strong>em</strong>atura <strong>de</strong> um processo mórbido ou natural, ou ainda feto pr<strong>em</strong>aturamente<br />

expelido. Segundo Mirabete 101 , “aborto é a interrupção da gravi<strong>de</strong>z com a <strong>de</strong>struição do<br />

produto da concepção. É a morte do ovo (até três s<strong>em</strong>anas <strong>de</strong> gestação), <strong>em</strong>brião (<strong>de</strong> três<br />

s<strong>em</strong>anas a três meses) ou do feto (após três meses) não implicando necessariamente a sua<br />

expulsão”. Chaves 102 conceitua o aborto como “a interrupção voluntária da gravi<strong>de</strong>z, com a<br />

expulsão do feto, provocada pela gestante ou por terceiro, com ou s<strong>em</strong> consentimento <strong>de</strong>la, e<br />

a conseqüente morte do produto da concepção”.<br />

Damásio <strong>de</strong> Jesus 103 faz a distinção entre os termos aborto e abortamento (aborto<br />

provocado), salientando que “a palavra abortamento t<strong>em</strong> maior significado que aborto. Aquela<br />

indica a conduta <strong>de</strong> abortar: esta, o produto da concepção cuja gravi<strong>de</strong>z foi interrompida”.<br />

99 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />

100 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 28 jun.<br />

2008.<br />

101 MIRABETE, Julio Fabbini. Manual <strong>de</strong> <strong>direito</strong> penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 92<br />

102 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualida<strong>de</strong>, transsexualida<strong>de</strong>, transplantes. 2.<br />

ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 23.<br />

103 JESUS, Damásio E. <strong>de</strong>. Direito Penal. Parte Especial. Dos crimes contra a pessoa. Dos Crimes contra o<br />

patrimônio. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 115.<br />

48


Mirabete 104 também apresenta essa diferença, indicando que “prefer<strong>em</strong> alguns o termo<br />

abortamento para a <strong>de</strong>signação do ato <strong>de</strong> abortar, uma vez que a palavra aborto se referiria<br />

apenas ao produto da interrupção da gravi<strong>de</strong>z”. Diz ainda que outros autores enten<strong>de</strong>m ser<br />

aborto, o termo legal, melhor, por ser corrente na linguag<strong>em</strong> popular e cotidiana.<br />

De acordo com Moore 105 , o aborto significa uma interrupção pr<strong>em</strong>atura do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento e a expulsão do concepto 106 do útero, ou expulsão <strong>de</strong> um <strong>em</strong>brião ou <strong>de</strong> um<br />

feto antes <strong>de</strong> se tornar viável, ou seja, capaz <strong>de</strong> viver fora do útero, resultando na sua morte.<br />

Isso po<strong>de</strong> ocorrer <strong>de</strong> forma espontânea ou artificial, provocando o final da gestação e, como<br />

conseqüência, o fim da vida do feto. Exist<strong>em</strong> diferentes classificações <strong>de</strong> aborto, as quais são<br />

tratadas a seguir.<br />

O Código Penal regula sete figuras <strong>de</strong> aborto 107 . Damásio <strong>de</strong> Jesus 108 os classifica<br />

como sendo natural, aci<strong>de</strong>ntal, criminoso e legal ou permitido. Ressalta-se, contudo, que o<br />

aborto natural e o aci<strong>de</strong>ntal não são consi<strong>de</strong>rados crimes. No primeiro caso, também chamado<br />

<strong>de</strong> espontâneo, ocorre a interrupção da gravi<strong>de</strong>z naturalmente, s<strong>em</strong> qualquer intervenção<br />

humana, e é mais comum durante a terceira s<strong>em</strong>ana após a fertilização, <strong>em</strong> função da saú<strong>de</strong> da<br />

gestante ou <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do ovo 109 . Cerca <strong>de</strong> 15% das gestações<br />

terminam <strong>em</strong> aborto <strong>de</strong>sse tipo, freqüent<strong>em</strong>ente durante as primeiras doze s<strong>em</strong>anas. O aborto<br />

aci<strong>de</strong>ntal é <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> um aci<strong>de</strong>nte sofrido pela gestante, como, por ex<strong>em</strong>plo, a queda <strong>de</strong><br />

uma escada 110 . Dentre os abortos legais ou permitidos no Art. 128 do Código Penal Brasileiro,<br />

verificam-se os tipos elencados, apresentados a seguir.<br />

Na primeira meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1950, médicos já alertavam que certos casos,<br />

como o da gravi<strong>de</strong>z extra-uterina, nos quais a gestante corre sérios riscos <strong>de</strong> vida, o nascituro<br />

104 MIRABETE, Julio Fabbini. Manual <strong>de</strong> <strong>direito</strong> penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 93.<br />

105 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p.7.<br />

106 O <strong>em</strong>brião e seus anexos ou m<strong>em</strong>branas associadas. O concepto inclui todas as estruturas <strong>em</strong>brionárias e<br />

extra-<strong>em</strong>brionárias que se <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> a partir do zigoto. Portanto, inclui o <strong>em</strong>brião e também a parte<br />

<strong>em</strong>brionária da placenta e suas m<strong>em</strong>branas associadas.<br />

107 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualida<strong>de</strong>, transsexualida<strong>de</strong>, transplantes. 2.<br />

ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 29.<br />

108 JESUS, Damásio E. <strong>de</strong>. Direito Penal. Parte Especial. Dos crimes contra a pessoa. Dos Crimes contra o<br />

patrimônio. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 155.<br />

109 Do ponto <strong>de</strong> vista da biologia, ovo é o mesmo que zigoto. É uma célula que se forma após a fusão do núcleo<br />

do óvulo (pronúcleo f<strong>em</strong>inino, haplói<strong>de</strong>) com o núcleo do espermatozói<strong>de</strong> (pronúcleo masculino, haplói<strong>de</strong>) por<br />

cariogamia, o que dá orig<strong>em</strong> à célula diplói<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominada ovo ou zigoto<br />

110 MOORE, Keith L. Embriologia clínica. Trad. Maria das Graças Fernan<strong>de</strong>s Sales. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Elsevier,<br />

2004, p.7.<br />

49


não t<strong>em</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobreviver, posto que não é viável. Desse modo, para salvaguardar a<br />

vida da mãe, realiza-se a intervenção cirúrgica para a retirada do feto. Contudo, tal conduta<br />

está fundada no estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, que é uma exclu<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ilicitu<strong>de</strong>, na qual o legislador<br />

opta pela proteção da vida da mãe <strong>em</strong> face da vida do feto.<br />

Desse modo, esse tipo <strong>de</strong> aborto também é conhecido como aborto legal,<br />

respaldado na lei, baseado nos princípios fundamentais e individuais, a saber: a vida do feto e<br />

a vida da gestante. Além do motivo acima comentado que permite a sua realização, po<strong>de</strong>-se<br />

ressaltar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preservar a saú<strong>de</strong> física ou mental da mulher, para dar fim a uma<br />

gestação que resultaria numa criança com probl<strong>em</strong>as congênitos, os quais seriam fatais ou<br />

associados a graves enfermida<strong>de</strong>s, ou, ainda, para reduzir seletivamente o número <strong>de</strong> fetos, a<br />

fim <strong>de</strong> minorar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> riscos associados a gestações múltiplas. Em qualquer dos<br />

itens elencados, somente o médico po<strong>de</strong>rá prescrever e realizar o aborto.<br />

Salles Junior 111 esclarece: “Deve ser executado por médico. Na falta <strong>de</strong>sse, por<br />

terceira pessoa, amparada no estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>em</strong> favor <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>.O médico <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

acerca da necessida<strong>de</strong>”. Como última observação sobre esse tipo <strong>de</strong> aborto, é dispen<strong>sá</strong>vel a<br />

concordância da gestante ou do representante legal, tendo <strong>em</strong> vista o imimente perigo <strong>de</strong> vida<br />

que a gestante po<strong>de</strong> sofrer.<br />

O aborto sentimental também é conhecido como aborto ético ou humanitário. Está<br />

previsto na legislação brasileira, mais especificamente no inciso II do Art. 128 do Código<br />

Penal, no qual não se pune o médico que o realizar, posto que a gravi<strong>de</strong>z é <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong><br />

estupro. A vítima teve a sua honra ofendida <strong>de</strong>vido ao atentado sexual e procura se livrar da<br />

maternida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>sejada 112 . Contudo, ressalta-se a necessida<strong>de</strong> pr<strong>em</strong>ente do consentimento da<br />

gestante, quando esta for capaz civilmente, ou do seu representante legal, quando ainda não<br />

atingida a capacida<strong>de</strong>.<br />

A fundamentação para a realização <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> aborto, segundo Chaves 113 resi<strong>de</strong><br />

no conflito <strong>de</strong> interesses que se origina entre a vida do feto e a liberda<strong>de</strong> da mãe,<br />

especialmente as cargas <strong>em</strong>otivas, morais e sociais que <strong>de</strong>rivam da gravi<strong>de</strong>z e da maternida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> modo que não lhe é exigível outro comportamento. Sob esse aspecto, seria <strong>de</strong>sumano<br />

111 SALLES JUNIOR, Romeu <strong>de</strong> Almeida. Curso completo <strong>de</strong> <strong>direito</strong> penal. 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva,<br />

2000, p. 188.<br />

112 CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualida<strong>de</strong>, transsexualida<strong>de</strong>, transplantes. 2.<br />

ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 31.<br />

113 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 31.<br />

50


impor à mulher carregar por nove meses <strong>em</strong> seu ventre um ser que não foi feito com um<br />

mínimo <strong>de</strong> amor, carinho e afeto, sendo que, quando do seu nascimento, este ser só lhe traria<br />

recordações <strong>de</strong> horror, medo e pavor vividos.<br />

Além disso, crianças não <strong>de</strong>sejadas possu<strong>em</strong> um nível <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> inferior às<br />

outras crianças, incluindo probl<strong>em</strong>as que se mantêm mesmo quando adultas. Entre esses<br />

probl<strong>em</strong>as, inclu<strong>em</strong>-se doenças e morte pr<strong>em</strong>atura, pobreza, probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

escolar, <strong>em</strong>ocional e psicológico, que acabam gerando, como consequência, baixa auto-<br />

estima, abandono escolar, necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apoio psiquiátrico, s<strong>em</strong> falar nas consequências<br />

sociais que tal ser humano po<strong>de</strong> vir a provocar, como a <strong>de</strong>linquência juvenil, abuso <strong>de</strong><br />

menores, entre outros.<br />

O fato é que a justificativa básica para a realização do aborto <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong><br />

estupro é a garantia da integrida<strong>de</strong> fisica e psíquica da mulher. Para que esse tipo <strong>de</strong> aborto<br />

seja realizado, faz-se neces<strong>sá</strong>rio o consentimento da gestante, ou daquele que a represente.Por<br />

outro lado, a lei não exige autorização judicial.<br />

Já o aborto eugênico é a interrupção da gravi<strong>de</strong>z quando há a suspeita <strong>de</strong> que o<br />

feto possui graves anomalias transmitidas pelos pais. Esse tipo <strong>de</strong> aborto é indicado quando se<br />

verifica riscos fundados <strong>de</strong> que o <strong>em</strong>brião ou feto seja portador <strong>de</strong> anomalias genéticas <strong>de</strong><br />

qualquer natureza ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>feitos físicos e psíquicos <strong>de</strong>correntes da gravi<strong>de</strong>z. É realizado para<br />

impedir que a criança nasça com <strong>de</strong>formida<strong>de</strong> ou enfermida<strong>de</strong> incurável. Não é previsto <strong>em</strong><br />

nossa legislação no tocante à sua permissão, portanto, se realizado, seria consi<strong>de</strong>rado ilícito. A<br />

palavra eugenia é apropriada para indicar a produção <strong>de</strong> boa prole, visando ao melhoramento<br />

da raça <strong>de</strong> acordo com a sua significação.<br />

Segundo Chaves 114 , o conceito do aborto eugênico foi <strong>de</strong>svirtuado e<br />

<strong>de</strong>smoralizado pelos nazistas ao utilizá-lo sob a alegação <strong>de</strong> higiene racial, a fim <strong>de</strong> manter a<br />

“raça” ariana. Esse tipo <strong>de</strong> aborto, não confundível com o terapêutico, faz l<strong>em</strong>brar as práticas<br />

nazistas <strong>de</strong> "purificação da raça", consi<strong>de</strong>radas execráveis; os especialistas que as incluíam<br />

<strong>em</strong> seus objetivos e <strong>em</strong> suas práticas vieram a ser caçados para ser<strong>em</strong> con<strong>de</strong>nados como os<br />

mais abomináveis criminosos contra a humanida<strong>de</strong>.<br />

Exist<strong>em</strong> diversos fatores capazes <strong>de</strong> provocar lesões no feto, e uma <strong>de</strong>las seria a<br />

ingestão <strong>de</strong> drogas, como a talidomida, utilizada para o tratamento do mal <strong>de</strong> Hansen, que<br />

provocou o nascimento <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> crianças com ausência congênita <strong>de</strong> m<strong>em</strong>bros<br />

114 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 33.<br />

51


superiores e inferiores (braços e pernas). Além disso, há as doenças infecciosas, como a<br />

hepatite, a rubéola e outras transmitidas por animais domésticos. Realmente, com o aborto<br />

eugênico, preten<strong>de</strong>-se impedir que nascituros venham a sofrer, por fatores diversos,<br />

<strong>de</strong>formações físicas ou anomalias psicofísicas, verificadas no exame pré-natal, ou que, por<br />

doença da mãe, corr<strong>em</strong> o risco <strong>de</strong> nascer<strong>em</strong> <strong>de</strong>feituosos ou doentes. Só teriam <strong>direito</strong> <strong>de</strong><br />

nascer os nascituros normais, isentos <strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>feito ou distúrbio da saú<strong>de</strong>.<br />

Diante <strong>de</strong> situações <strong>de</strong>sse tipo, <strong>em</strong> que o feto não terá condição <strong>de</strong> sobrevida fora<br />

do útero materno, consubstanciada <strong>em</strong> laudos médicos, verifica-se, <strong>em</strong> situações fáticas,<br />

pedidos ao po<strong>de</strong>r judiciário para autorizar a realização do aborto. Contudo, isso não t<strong>em</strong> sido<br />

cont<strong>em</strong>plado pelo <strong>direito</strong> infraconstitucional para os casos <strong>de</strong> anencefalia do feto como uma<br />

das hipóteses <strong>de</strong> aborto legal, pelo fato <strong>de</strong> ser uma afronta à lei maior.<br />

De qualquer sorte, o aborto po<strong>de</strong> ser entendido como a morte <strong>de</strong> uma criança no<br />

ventre <strong>de</strong> sua mãe, a sua <strong>de</strong>struição produzida durante qualquer momento da etapa <strong>em</strong> que<br />

este se encontra no ventre materno, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fecundação, a concepção (união do óvulo com o<br />

espermatozói<strong>de</strong>), até o momento prévio ao nascimento. Apesar das várias <strong>de</strong>finições dos<br />

doutrinadores sobre o que seja o aborto, é neces<strong>sá</strong>rio ressaltar o conceito oferecido pela<br />

medicina.<br />

Na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Moore sobre o que seja o aborto, apresenta-se o termo<br />

viabilida<strong>de</strong>, ou seja, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o ser humano se <strong>de</strong>senvolver fora do útero materno e<br />

<strong>de</strong> forma autônoma, t<strong>em</strong>a a ser abordado no próximo it<strong>em</strong>. Enten<strong>de</strong>-se que cabe à medicina<br />

conceituar e <strong>de</strong>terminar o que seja o aborto. Desse modo, também se faz neces<strong>sá</strong>rio o<br />

entendimento sobre o feto ser ou não viável, ou seja, ter ou não possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver fora do<br />

útero materno, s<strong>em</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> aparelhos e equipamentos, <strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>senvolver <strong>de</strong> forma sadia, a ponto <strong>de</strong> atingir a sua capacida<strong>de</strong> plena <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> forma digna.<br />

Como já mencionado anteriormente, a Constituição Brasileira protege o <strong>direito</strong> à<br />

vida e este <strong>de</strong>ve ser entendido como o <strong>direito</strong> à existência humana, que surge <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

momento da concepção, como marco inicial da vida, sob o ponto <strong>de</strong> vista jurídico. Consi<strong>de</strong>ra-<br />

se que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento da concepção se t<strong>em</strong> vida e, portanto, a eliminação do feto seria<br />

impossível, consi<strong>de</strong>rada um crime, um ilícito diante da lei maior, e ninguém po<strong>de</strong> retirar a<br />

vida <strong>de</strong> alguém.<br />

O Código Penal consi<strong>de</strong>ra o aborto como crime <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1940, mas prevê a<br />

interrupção da gestação <strong>em</strong> situações específicas: risco <strong>de</strong> vida da mãe e gravi<strong>de</strong>z resultante<br />

52


<strong>de</strong> estupro. Com isso, observa-se uma relativização do princípio da vida, <strong>em</strong> especial, da vida<br />

intra-uterina, nos casos acima mencionados.<br />

Apesar disso, a realização do aborto nos casos não previstos pelo Código Penal,<br />

s<strong>em</strong> que se constitua um ilícito penal, ainda não é possível. Mas como tratar então a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> aborto no caso <strong>de</strong> fetos anencéfalos, os quais, segundo a<br />

medicina, não possu<strong>em</strong> qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina? A realização do aborto,<br />

nesse caso específico, <strong>de</strong>ve ser analisada pela pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> valores e princípios, entre o<br />

<strong>direito</strong> da vida do feto e a autonomia da mãe.<br />

Barcellos 115 <strong>de</strong>fine pon<strong>de</strong>ração como sendo “a técnica jurídica <strong>de</strong> solução <strong>de</strong><br />

conflitos normativos que envolv<strong>em</strong> valores ou opções políticas <strong>em</strong> tensão insuperáveis pelas<br />

formas hermenêuticas tradicionais”. A ativida<strong>de</strong> da pon<strong>de</strong>ração é a otimização da aplicação<br />

dos princípios quando se encontram contrapostos, <strong>em</strong> posição adversa. Observa-se que a<br />

pon<strong>de</strong>ração é forma <strong>de</strong> análise não apenas <strong>de</strong> enunciados normativos ou normas, mas também<br />

a verificação <strong>de</strong> todos os argumentos que envolv<strong>em</strong> o fato <strong>em</strong> si. Barcellos 116 enten<strong>de</strong> que a<br />

pon<strong>de</strong>ração acaba por confundir-se com a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação, e que a interpretação<br />

envolveria a pon<strong>de</strong>ração.<br />

Diante disso, quando ocorre a colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais, como no caso da<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aborto do feto anencéfalo, <strong>em</strong> que a vida do feto se contrapõe ao <strong>direito</strong> da<br />

mãe à liberda<strong>de</strong>, à sua autonomia <strong>de</strong> escolha quanto à manutenção da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um feto<br />

consi<strong>de</strong>rado inviável pela medicina, cabe a utilização da pon<strong>de</strong>ração com vistas a se obter<br />

uma solução para o caso concreto. Destarte, como já dito anteriormente, faz-se neces<strong>sá</strong>ria<br />

uma análise do que seja a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, próximo t<strong>em</strong>a a ser discutido.<br />

115 BARCELLOS. Ana Paula <strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>ração, racionalida<strong>de</strong> e ativida<strong>de</strong> jurisdicional. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Renovar,<br />

2005, p. 23.<br />

116 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 27.<br />

53


2.6 VIABILIDADE COMO CRITÉRIO CARACTERIZADOR DO DIREITO À VIDA<br />

Como já mencionado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras linhas <strong>de</strong>sse trabalho, a anencefalia é<br />

uma malformação congênita <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>feito no fechamento do tubo neural, ou<br />

seja, a ausência <strong>de</strong> um h<strong>em</strong>isfério cerebral ou <strong>de</strong> ambos, o que impe<strong>de</strong> a sobrevivência do feto<br />

fora do útero. O feto anencéfalo possui apenas o tronco cerebral, motivo pelo qual não<br />

mantém relação com o mundo exterior, não apresenta qualquer tipo <strong>de</strong> consciência n<strong>em</strong> sente<br />

dor. Também chamada <strong>de</strong> acefalia, po<strong>de</strong> ser diagnosticada precoc<strong>em</strong>ente através <strong>de</strong> um<br />

exame <strong>de</strong> ultra-sonografia, por volta <strong>de</strong> doze s<strong>em</strong>anas <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z.<br />

De acordo com o presi<strong>de</strong>nte do Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Medicina, Dr. Edson <strong>de</strong><br />

Oliveira Andra<strong>de</strong> 117 , um feto anencefálico t<strong>em</strong> chance estatística <strong>de</strong> praticamente 100% <strong>de</strong><br />

morrer durante a primeira s<strong>em</strong>ana após o seu nascimento, mesmo que esteja ligado a<br />

aparelhos mecânicos que possam prolongar <strong>de</strong> forma relativa a sua vida. Determinar o<br />

momento inicial <strong>de</strong> vida, como já se comentou anteriormente, não é tarefa fácil, tendo <strong>em</strong><br />

vista as inúmeras posições e marcos existentes na biologia e na medicina. Da mesma forma,<br />

<strong>de</strong>terminar o instante <strong>de</strong> morte também não é tranqüilo. A situação se mostra mais <strong>de</strong>licada<br />

quando se trata <strong>de</strong> feto com malformações congênitas, como no caso dos fetos anencefálicos.<br />

As discussões médicas e jurídicas sobre o início ou término da vida s<strong>em</strong>pre estiveram <strong>em</strong><br />

pauta.<br />

O momento final da vida se faz importante na atualida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> especial no tocante<br />

ao transplante <strong>de</strong> órgãos. De acordo com a medicina, há dois tipos <strong>de</strong> morte: a morte<br />

encefálica e a morte clínica. A morte encefálica 118 consiste na cessação da ativida<strong>de</strong> elétrica<br />

do principal órgão do corpo humano, mesmo que o tronco cerebral esteja t<strong>em</strong>porariamente<br />

funcionando; a morte clínica, por sua vez, t<strong>em</strong> um conceito mais rígido, exigindo algo mais,<br />

como a parada da ativida<strong>de</strong> cardíaca <strong>de</strong> forma irreversível e a parada respiratória.<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente da i<strong>de</strong>ntificação do momento da morte <strong>de</strong> um ser humano, já é<br />

claro que a falta do córtex cerebral do feto anencéfalo não é fato suficiente para ser<br />

reconhecida a morte encefálica, mas é fato notório que o feto não conseguirá sobreviver após<br />

117 Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 9 jun. 2008.<br />

118 ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond <strong>de</strong>. Anencefalia e aborto. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 324,<br />

27 mai. 2004. Disponível on-line <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 9 jun.<br />

2008.<br />

54


<strong>de</strong>sligar-se do útero materno <strong>em</strong> razão <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>ficiência. A vida fora do útero materno é,<br />

portanto, inviável 119 .<br />

Mas do que se trata vida viável? O que significa a viabilida<strong>de</strong>? Sob o aspecto<br />

etimológico 120 , o vocábulo viável po<strong>de</strong> ser entendido como sendo o bom estado dos caminhos<br />

<strong>de</strong>stinados à circulação. Para a biologia 121 , viável é aquele capaz <strong>de</strong> viver, crescer, germinar<br />

ou se <strong>de</strong>senvolver, referindo-se tanto à s<strong>em</strong>ente como ao <strong>em</strong>brião. Já para a obstetrícia, é<br />

apresentar o suficiente <strong>de</strong>senvolvimento e a conveniente regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conformação para as<br />

exigências da vida extra-uterina (diz-se do feto) 122 . Por fim, ainda para a medicina, a<br />

significação da palavra viável – ou a viabilida<strong>de</strong> do feto – diz respeito à apresentação <strong>de</strong><br />

suficiente <strong>de</strong>senvolvimento e à conveniente regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conformação para as exigências<br />

da vida extra-uterina 123 , ou seja, a aptidão normal <strong>de</strong> se manter vivo por um certo t<strong>em</strong>po.<br />

Bourguet comenta a posição do Comitê Consultivo Nacional <strong>de</strong> Ética francês<br />

sobre a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> um feto ou <strong>em</strong>brião, reconhecendo-o como uma pessoa <strong>em</strong><br />

potencial. Para o Comitê, “todos os estágios <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do zigoto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

fecundação do óvulo até o estágio da maturação que permite uma vida autônoma” 124 . Para<br />

Bourguet, a interpretação feita pelo dito comitê sobre a viabilida<strong>de</strong> humana é “o limiar<br />

significativo da personalida<strong>de</strong> por inteiro, isto é, […] a aquisição, pelo feto, <strong>de</strong> uma vida<br />

autônoma <strong>em</strong> relação a mãe” 125 .<br />

O critério da viabilida<strong>de</strong> é neces<strong>sá</strong>rio para possibilitar ou não a atuação <strong>de</strong> uma<br />

pessoa no mundo <strong>de</strong> forma autônoma. Para Bourguet, “a viabilida<strong>de</strong> não é um acontecimento<br />

como o nascimento, mas um estágio abstrato que r<strong>em</strong>ete ao mesmo t<strong>em</strong>po ao próprio<br />

<strong>de</strong>senvolvimento fetal e às nossas possibilida<strong>de</strong>s técnicas” 126 . O mesmo autor faz uma<br />

119 BARBATO JR., Roberto. O aborto dos fetos anencéfalos: o <strong>direito</strong> e a realida<strong>de</strong> atual. Revistas dos<br />

Tribunais, ano 96, volume 865, p. 437.<br />

120 Disponível on-line <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 9 jun. 2008.<br />

121 Disponível on-line <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 9 jun. 2008.<br />

122 Disponível on-line <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 9 jun. 2008.<br />

123 Disponível on-line <strong>em</strong>: .<br />

Acesso <strong>em</strong>: 9 jun. 2008.<br />

124 BOURGUET, Vincent. O ser <strong>em</strong> gestação. Reflexões bioéticas sobre o <strong>em</strong>brião humano. Trad. Nicolas Nymi<br />

Campanário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 109<br />

125 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 110.<br />

126 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 111.<br />

55


diferenciação sobre as significações da viabilida<strong>de</strong> e da maturida<strong>de</strong>, esclarecendo que um feto<br />

po<strong>de</strong> ser imaturo, mas viável, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo daí as técnicas médicas utilizadas.<br />

Diante do colocado acima, cabe manifestação no seguinte sentido: viabilida<strong>de</strong><br />

significa o <strong>de</strong>senvolvimento neces<strong>sá</strong>rio do ser humano para a vida extra-uterina, <strong>de</strong> forma<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e autônoma. Quando se reflete sobre autonomia, refere-se aos critérios<br />

apresentado pelo filósofo Kant: a pessoa autônoma é aquela que vive e se mantém s<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> outro ou <strong>de</strong> qualquer técnica do mundo atual e, com isso, após o evento do<br />

nascimento, passa por todas as fases <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento até atingir o último estágio da vida<br />

humana, ou seja, a morte.<br />

Nessa perspectiva, conclui-se que a anencefalia é uma malformação congênita que<br />

gera a inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida humana extra-uterina <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e autônoma.<br />

2.7 FETO ANENCÉFALO: EXISTÊNCIA DE VIDA?<br />

A probl<strong>em</strong>ática <strong>de</strong>sse ponto está <strong>em</strong> respon<strong>de</strong>r à questão relativa ao fato <strong>de</strong> o feto<br />

anencéfalo possuir ou não vida. Diante do que foi relatado até o presente momento, não se<br />

trata <strong>de</strong> tarefa simples. Parte-se do princípio <strong>de</strong> que o significado da palavra vida <strong>de</strong> um ser<br />

vivo envolve o período compreendido entre o seu nascimento e a sua morte, l<strong>em</strong>brando que<br />

há o período intra-uterino. Não se questiona a afirmação <strong>de</strong> que a vida humana t<strong>em</strong> início por<br />

meio da concepção, ou seja, da fecundação, cerca <strong>de</strong> quatorze dias após o início do último<br />

ciclo mestrual. Contudo, como já comentado anteriormente, é possível encontrar, tanto na<br />

doutrina médica como na doutrina jurídica, a idéia <strong>de</strong> que a vida humana <strong>de</strong>veria iniciar com<br />

o início da função cerebral 127 .<br />

Diante do exposto, cabe a questão: para o <strong>direito</strong>, quando começa a vida? Qual o<br />

seu marco inicial? Muitos juristas enten<strong>de</strong>m que a vida t<strong>em</strong> seu início na fecundação, sendo o<br />

<strong>em</strong>brião consi<strong>de</strong>rado um ser humano. Desse modo, consi<strong>de</strong>ra-se um crime qualquer ato que<br />

atinja este sujeito, mesmo que no útero materno, pois o Art. 5° da Constituição garante a<br />

“inviolabilida<strong>de</strong> do <strong>direito</strong> à vida”. Além disso, a proteção do <strong>direito</strong> à vida, com relação<br />

àquele ser humano já nascido, também é clara no mesmo artigo, sendo esse <strong>direito</strong><br />

consi<strong>de</strong>rado o mais importante dos <strong>direito</strong>s fundamentais do hom<strong>em</strong>, pois é inerente à pessoa<br />

humana.<br />

127 Ação natural e própria do cérebro.<br />

56


Não há também como questionar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tutelar o nascituro, sob o<br />

prisma legal, já que a sua vida intra-uterina, ou a expectativa <strong>de</strong> vida extra-uterina, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

da manutenção da gravi<strong>de</strong>z por parte, principalmente, da mãe, na medida <strong>em</strong> que o feto é<br />

hipossuficiente. Desse modo, o Código Civil colocou a salvo os diretos do feto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

nasça com vida, e garantiu a proteção jurídica para que tenha condições <strong>de</strong> vir ao mundo e<br />

tornar-se um indivíduo capaz <strong>de</strong> ampliar suas potencialida<strong>de</strong>s.<br />

Por outro lado, o judiciário passou a receber pedidos <strong>de</strong> aborto para os casos dos<br />

fetos anencefálicos. Como já dito, a anencefalia é a malformação congênita do sist<strong>em</strong>a<br />

nervoso central, na qual o encéfalo não se <strong>de</strong>senvolve e a calota craniana está ausente, ficando<br />

a massa cerebral mal-<strong>de</strong>senvolvida e exposta. Além disso, como resultado da falha <strong>de</strong><br />

fechamento do tubo neural, i<strong>de</strong>ntificando-se apenas um resíduo do tronco encefálico,<br />

diagnosticada a partir <strong>de</strong> doze s<strong>em</strong>anas <strong>de</strong> gestação, o ser humano não possuirá consciência,<br />

cognição, vida relacional, comunicação, afetivida<strong>de</strong> e <strong>em</strong>otivida<strong>de</strong>. Como o feto anencéfalo<br />

não t<strong>em</strong> a estrutura encefálica neces<strong>sá</strong>ria à realização das ativida<strong>de</strong>s que possibilitarão a<br />

manutenção <strong>de</strong> uma respiração autônoma e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> outras funções essenciais à<br />

sua existência, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina é r<strong>em</strong>ota, praticamente nula.<br />

Martins esclarece que:<br />

No caso do anencéfalo, permanece a questão sobre se se trata <strong>de</strong> vida humana,<br />

como colocam aqueles que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua supressão. Sabe-se que,<br />

no momento da concepção, pela fecundação do óvulo pelo espermatozói<strong>de</strong>, o<br />

<strong>em</strong>brião que surge passa a ter um código genético distinto da mãe, o que mostra-se<br />

trata-se <strong>de</strong> ser diferente da mãe e não mero apêndice do organismo f<strong>em</strong>inino. Se a<br />

ciência chega para <strong>de</strong>monstrar essa realida<strong>de</strong> (como o fez o Prof. Jerôme Lejeune,<br />

<strong>de</strong>scobridor da síndrome <strong>de</strong> Down), não é possível se preten<strong>de</strong>r dizer que não se está<br />

diante <strong>de</strong> uma vida humana, pois <strong>de</strong> dois gametas humanos não proce<strong>de</strong>m macacos<br />

ou elefantes. 128<br />

Ocorre que a anencefalia “é <strong>de</strong>finida na literatura médica como a má-formação<br />

fetal congênita por <strong>de</strong>feito do fechamento do tubo neural durante a gestação, <strong>de</strong> modo que o<br />

feto não apresenta os h<strong>em</strong>isférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco<br />

encefálico” 129 . Para Diniz e Ribeiro,<br />

128 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro<br />

<strong>de</strong> Extensão Universitária, 2005, p. 177.<br />

129 BEHRMAN, Richard E.; KLIEGMAN, Robert M. e JENSON, Hal B.. Nelson/Tratado <strong>de</strong> pediatria. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.<br />

57


Conhecida vulgarmente como “ausência <strong>de</strong> cérebro”, a anomalia importa na<br />

inexistência <strong>de</strong> todas as funções superiores do sist<strong>em</strong>a nervoso central – respon<strong>sá</strong>vel<br />

pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetivida<strong>de</strong> e <strong>em</strong>otivida<strong>de</strong>.<br />

Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração,<br />

as funções vasomotoras e a medula espinhal 130 .<br />

Segundo Barroso, “Como é intuitivo, a anencefalia é incompatível com a vida<br />

extra-uterina, sendo fatal <strong>em</strong> 100% dos casos. Não há controvérsia sobre o t<strong>em</strong>a na literatura<br />

científica ou na experiência médica” 131 . Partindo-se do princípio que o início da vida ocorre<br />

por meio da fecundação, é inquestionável a existência <strong>de</strong> vida intra-uterina do feto anencéfalo,<br />

pois se trata <strong>de</strong> um ser biologicamente vivo, composto <strong>de</strong> células e tecidos. Contudo, há<br />

aqueles que enten<strong>de</strong>m que a vida se encerra com a morte encefálica e, diante disso, esse feto<br />

não teria vida, posto que lhe faltaria a ativida<strong>de</strong> cerebral, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> da sua malformação.<br />

Como se trata <strong>de</strong> uma anomalia fetal grave, sendo que alguns médicos consi<strong>de</strong>ram o feto<br />

como um “natimorto cerebral”, a vida extra-uterina é inviável. O que muitos discut<strong>em</strong>, tanto<br />

juristas como biomédicos, é a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse feto fora do útero materno, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> uma vida saudável e digna. Há muita discussão sobre o aspecto da viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida<br />

extra-uterina in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da mãe.<br />

Para fins <strong>de</strong>ste trabalho, enten<strong>de</strong>-se que o feto, mesmo sendo anencéfalo, <strong>de</strong>ve ser<br />

consi<strong>de</strong>rado um ser humano e vivo. Por outro lado, cabe ressaltar que o presente trabalho não<br />

visa a discutir ou concluir sobre ponto inicial da vida, para aí justificar a sua proteção. O<br />

trabalho está voltado para os argumentos constitucionais, a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> princípios e valores<br />

que envolv<strong>em</strong> o <strong>direito</strong> à vida do feto <strong>de</strong> se manter vivo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ventre materno até o<br />

momento do nascimento, e o <strong>direito</strong> da gestante <strong>de</strong> não precisar manter a gravi<strong>de</strong>z, passando<br />

pela angústia, pelo sofrimento, por riscos à própria saú<strong>de</strong>, sofrendo a afronta ao seu <strong>direito</strong> <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha e autonomia e, principalmente, à sua dignida<strong>de</strong>.<br />

Nessa situação, Martins 132 enfoca a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> analisar “o principal valor e o<br />

<strong>direito</strong> mais fundamental” a ser protegido. Mais uma vez, coloca-se a importância da<br />

manutenção da vida humana, na sua completu<strong>de</strong> e com dignida<strong>de</strong>. Para o neurologista Clóvis<br />

130 DINIZ, Débora. Aborto por anomalia fetal. 1º reimpr.Brasilia, Letras Livres, 2004, p. 101.<br />

131 BARROSO, Luis Roberto. T<strong>em</strong>as <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Renovar, 2005, t. 3, p. 562.<br />

132 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin; Centro<br />

<strong>de</strong> Extensão Universitária, 2005, p. 177.<br />

58


Francesconi, do serviço <strong>de</strong> neurologia do HCPA e professor da UFRGS, os simples atos <strong>de</strong><br />

respirar e manter o coração batendo não constitu<strong>em</strong> a integralida<strong>de</strong> do ser humano.<br />

Diante do apresentado, apesar <strong>de</strong> algumas posições adversas, observa-se uma<br />

certa unanimida<strong>de</strong> <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> que o feto anencéfalo é um ser humano <strong>em</strong> gestação e que<br />

possui vida; entretanto, s<strong>em</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento completo, integral e<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte fora do útero materno, ou seja, s<strong>em</strong> viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina.<br />

59


3 A VIDA HUMANA E O PLANEJAMENTO FAMILIAR<br />

O legislador do início do século XX certamente não imaginava que a ciência<br />

pu<strong>de</strong>sse se <strong>de</strong>senvolver a ponto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar com precisão a partenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um filho, ou a<br />

doença congênita <strong>de</strong> um feto ainda no ventre materno.<br />

Com as transformações sociais ocorridas nos últimos anos, a Constituição Fe<strong>de</strong>ral<br />

<strong>de</strong> 1988, baseada no modus vivendi atual, tratou <strong>de</strong> modo inovador o assunto que trata da<br />

família, da criança, do adolescente e do idoso, criando um capítulo próprio. Assim, o objetivo<br />

<strong>de</strong>ssa seção é analisar os limites do <strong>direito</strong> ao planejamento familiar, com o fim <strong>de</strong> se<br />

investigar se o or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiro cont<strong>em</strong>pla a liberda<strong>de</strong> da gestante ou do casal<br />

<strong>de</strong> interromper a gestação fora das hipóteses previstas pelo legislador.<br />

Diante disso, nota-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> analisar a filiação, fruto da procriação<br />

humana, parte integrante da familia. A filiação, por se tratar <strong>de</strong> fato natural na maioria da<br />

vezes, é um fato jurídico do qual <strong>de</strong>corr<strong>em</strong> inúmeros efeitos, como a criação da familia.<br />

Alguns <strong>de</strong>sses efeitos serão abordados neste capítulo.<br />

3.1 O DIREITO AO PLANEJAMENTO FAMILIAR<br />

Na atual carta magna, promulgada <strong>em</strong> 1988, foi <strong>de</strong>scrita, no Art. 226 133 , entre<br />

outros conceitos vinculados a esse ponto, a concepção <strong>de</strong> família e <strong>de</strong>terminada a sua proteção<br />

especial <strong>em</strong> função <strong>de</strong> ser a base da socieda<strong>de</strong>. Assim, a família po<strong>de</strong> ser entendida como a<br />

comunida<strong>de</strong> natural composta <strong>de</strong> pais e filhos, aos quais são imputados <strong>direito</strong>s e <strong>de</strong>veres<br />

recíprocos.<br />

133 Art. 226. A família, base da socieda<strong>de</strong>, t<strong>em</strong> especial proteção do Estado. § 7º – Fundado nos princípios da<br />

dignida<strong>de</strong> da pessoa humana e da paternida<strong>de</strong> respon<strong>sá</strong>vel, o planejamento familiar é livre <strong>de</strong>cisão do casal,<br />

competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício <strong>de</strong>sse <strong>direito</strong>, vedada<br />

qualquer forma coercitiva por parte <strong>de</strong> instituições oficiais ou privadas.<br />

60


De acordo com a doutrina clássica civilista, o conceito <strong>de</strong> família po<strong>de</strong> ser<br />

entendido <strong>em</strong> sentido amplo, como parentesco, ou seja, o conjunto <strong>de</strong> pessoas unidas por<br />

vínculo jurídico <strong>de</strong> natureza familiar, e <strong>em</strong> sentido restrito, no qual família compreen<strong>de</strong> o<br />

núcleo formado por pais e filhos que viv<strong>em</strong> sob o pátrio po<strong>de</strong>r ou po<strong>de</strong>r familiar. Já no texto<br />

constitucional <strong>de</strong> 1988, o conceito <strong>de</strong> família foi ampliado para efeito <strong>de</strong> proteção do Estado,<br />

sendo reconhecido como entida<strong>de</strong> familiar também a união estável 134 entre hom<strong>em</strong> e mulher,<br />

propiciando a sua conversão <strong>em</strong> casamento. Nesse ponto, a Constituição também reconheceu<br />

a família monoparental, ou seja, a entida<strong>de</strong> familiar formada apenas por um dos pais, pai ou<br />

mãe, e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, anteriormente consi<strong>de</strong>rada “ilegítima” por não estar organizada<br />

segundo a lei 135 .<br />

Mas n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre esse protótipo <strong>de</strong> família existiu. Segundo Barreto, “No <strong>direito</strong><br />

ronamo, as relações familiares colocavam casal, filhos, servos e escravos sob uma única<br />

autorida<strong>de</strong>: a do pater familias” 136 . Já no Direito Canônico, a família passou a ser<br />

matrimonializada. Nota-se que a família clássica estava baseada na hierarquia e no<br />

autoritarismo, e a norma jurídica que cuidava <strong>de</strong>sse assunto servia como instrumento para<br />

<strong>de</strong>terminar a inferiorização <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seus m<strong>em</strong>bros e a exclusão <strong>de</strong> outros 137 . Com base<br />

nesse pensamento arcaico, verificou-se o padrão patriarcal monogâmico, sendo que essa<br />

forma <strong>de</strong> construção familiar <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhou um papel <strong>de</strong> impluso à criação da prole e ao<br />

exercício do po<strong>de</strong>r paterno 138 .<br />

No curso da história, fenômenos sociais acabaram por provocar a alteração <strong>de</strong>sse<br />

preceito <strong>de</strong> simples monogamia para criação da prole com a idéia <strong>de</strong> produção para auferir<br />

valores e criar fortuna. A criação da familia, sua subordinação e manutenção vinculadas a<br />

laços <strong>de</strong> sangue, passou à idéia também <strong>de</strong> educação dos filhos.<br />

Contudo, com a crise sofrida pela burguesia, outra alteração na estrutura da<br />

família foi verificada, passando a ter como atributo essencial a economia própria, ou seja, a<br />

possbilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> seus m<strong>em</strong>bros <strong>de</strong> manter o seu sustento. Com isso, a autorida<strong>de</strong><br />

dos pais sobre qualquer m<strong>em</strong>bro que tivesse condições <strong>de</strong> se manter economicamente<br />

134 Convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo <strong>de</strong> constituir família.<br />

135 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Direito <strong>de</strong> família. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:<br />

Saraiva, 2006, v. 4, p. 166.<br />

136 BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord). Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p.<br />

314.<br />

137 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />

138 VENOSA, Silvio da Salvo. Direito civil: <strong>direito</strong> <strong>de</strong> família. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 3.<br />

61


terminava – e, por conseqüência, a simples obediência dos filhos. A família passa a ser, então,<br />

apenas uma entida<strong>de</strong> cultural.<br />

Gonçalves 139 comenta que o Código Civil <strong>de</strong> 1916 regulava a família constituída<br />

unicamente pelo casamento, sob o mo<strong>de</strong>lo patriarcal e hierarquizado, sendo que, com o<br />

<strong>de</strong>correr do t<strong>em</strong>po, um novo enfoque foi sendo <strong>de</strong>senvolvido e novos el<strong>em</strong>entos, anexados às<br />

relações familiares.<br />

Diante da alteração fática social, da construção <strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> valores,<br />

<strong>de</strong>scatando-se os vínculos afetivos no seio familiar, a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988 realizou<br />

gran<strong>de</strong>s modificações no <strong>direito</strong> <strong>de</strong> família, sendo aí abordados novos horizontes. Por meio da<br />

análise do parágrafo 7° do Art. 226 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, é possível extrair dois<br />

posicionamentos que merec<strong>em</strong> comentários especiais no tocante à criação e à manuenção da<br />

família na atualida<strong>de</strong>. O primeiro, relativo ao planejamento familiar, está fundamentado nos<br />

princípios da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana e da partenida<strong>de</strong> respon<strong>sá</strong>vel; o segundo, à<br />

liberda<strong>de</strong> dada ao casal <strong>de</strong> planejar a sua família.<br />

Planejar o próprio núcleo familiar, sua formação e <strong>de</strong>senvolvimento baseia-se no<br />

princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana. A limitação da natalida<strong>de</strong> é relativa à dignida<strong>de</strong>,<br />

qualida<strong>de</strong> intrínseca ao ser humano, que faz com que ele seja merecedor <strong>de</strong> respeito e<br />

consi<strong>de</strong>ração por parte da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> todos seus m<strong>em</strong>bros, b<strong>em</strong> como do Estado. A<br />

dignida<strong>de</strong> da pessoa humana é um atributo da pessoa humana que <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong><br />

forma individual. Tal conceito envolve <strong>direito</strong>s fundamentais capazes <strong>de</strong> assegurar proteção a<br />

qualquer pessoa quanto a qualquer ato que seja consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong>gradante ou <strong>de</strong>sumano, b<strong>em</strong><br />

como garantir condições mínimas para uma vida saudável.<br />

Dessa forma, toda pessoa que possuir condições <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> forma<br />

autônoma 140 e respon<strong>sá</strong>vel terá o <strong>direito</strong> à dignida<strong>de</strong>. Observa-se, aqui, que <strong>de</strong>cisões<br />

autônomas somente são possíveis e aceitáveis por seres humanos consi<strong>de</strong>rados capazes, sendo<br />

que, para aqueles que não atingiram tal condição, seu <strong>de</strong>stino está condicionado às <strong>de</strong>cisões<br />

<strong>de</strong> seus representantes.<br />

Um ser humano não po<strong>de</strong> ser tratado como “coisa”, pois ao lado <strong>de</strong>le se verifica<br />

139 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Direito <strong>de</strong> família. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:<br />

Saraiva, 2006, v. 4.<br />

140 Autonomia é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se autogovernar. No âmbito da filosofia, segundo Kant (1724-1804), capacida<strong>de</strong><br />

apresentada pela vonta<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> se auto<strong>de</strong>terminar segundo uma legislação moral por ela mesma<br />

estabelecida, livre <strong>de</strong> qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão<br />

ou uma inclinação afetiva incoercível.<br />

62


outro ser humano, com vida humana, com vonta<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>sejos, com as mesmas necessida<strong>de</strong>s e<br />

valores éticos, já que são universais. Conforme Sarlet 141 , muitos <strong>direito</strong>s fundamentais<br />

encontram seu fundamento na regra da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana. Como principal objeto<br />

<strong>de</strong> reconhecimento e proteção, esse princípio foi consi<strong>de</strong>rado um guia para toda a or<strong>de</strong>m<br />

constitucional. A constituição <strong>de</strong> 1988 referiu-se a ele, adotando-o como fundamento da<br />

forma <strong>de</strong> governo, ou seja, a República e o Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito.<br />

Diante disso, o princípio <strong>em</strong> questão possui a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> princípio fundamental,<br />

não sendo consi<strong>de</strong>rado apenas nos <strong>direito</strong>s fundamentais, mas <strong>em</strong> toda a or<strong>de</strong>m jurídica<br />

nacional, pois possui característica <strong>de</strong> princípio constitucional. Assim consi<strong>de</strong>rado, é princípio<br />

constitucional, e o conteúdo verificado no seu centro, no seu bojo, vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do processo<br />

<strong>de</strong> pon<strong>de</strong>ração para a verificação <strong>de</strong> valores, o qual o aplicador do <strong>direito</strong> terá que realizar<br />

para a sua aplicabilida<strong>de</strong> e efetivida<strong>de</strong>.<br />

A dignida<strong>de</strong> da pessoa humana está vinculada ao <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong>, tanto física como<br />

psíquica, da mãe do feto anencéfalo, como também ao <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> que reverterá na<br />

autonomia da mãe quanto à própria limitação da natalida<strong>de</strong> que o artigo acima comenta. A<br />

dignida<strong>de</strong> da mulher quanto à escolha ou não <strong>de</strong> ter filhos diz respeito ao planejamento<br />

familiar, <strong>em</strong> especial a escolha <strong>de</strong> ter ou não um filho anencéfalo, objeto central <strong>de</strong>ste<br />

trabalho.<br />

Outro ponto a ser analisado no planejamento familiar diz respeito à paternida<strong>de</strong><br />

respon<strong>sá</strong>vel. Tanto a paternida<strong>de</strong> como a maternida<strong>de</strong> são <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> do casal, e não<br />

do Estado. Ao Estado compete propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício<br />

<strong>de</strong>sse <strong>direito</strong>, ou seja, o exercício efetivo da paternida<strong>de</strong> e/ou da maternida<strong>de</strong>, proibindo<br />

qualquer forma <strong>de</strong> coerção por parte <strong>de</strong> qualquer instituição oficial ou privada 142 . Diante<br />

disso, enten<strong>de</strong>-se que cabe ao casal a escolha dos critérios e do modo <strong>de</strong> agir quanto à sua<br />

família. Portanto, por esse entendimento, com base no parágrafo 7° do Art. 226 da<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral, seria da escolha do casal a manutenção ou não da gravi<strong>de</strong>z do<br />

anencéfalo.<br />

O termo paternida<strong>de</strong> é utilizado <strong>de</strong> forma genérica na doutrina jurídica para<br />

expressar a relação <strong>de</strong> pai e <strong>de</strong> mãe referent<strong>em</strong>ente a seus filhos, pressupondo um nexo<br />

141 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignida<strong>de</strong> da pessoa e <strong>direito</strong>s fundamentais na Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988.<br />

4. ed. rev. Atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 69.<br />

142 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 1327.<br />

63


iológico ou genético entre eles. Esse termo também convoca os pais a assumir uma realida<strong>de</strong><br />

familiar concreta, na qual os vínculos <strong>de</strong> afeto se sobrepõ<strong>em</strong> aos vínculos biológicos.<br />

Por outro lado, conforme Bulos 143 , a paternida<strong>de</strong> respon<strong>sá</strong>vel r<strong>em</strong>ete também a<br />

outros aspectos: o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> alimentar e a submissão compulsória ao exame <strong>de</strong> DNA para<br />

comprovação da paternida<strong>de</strong>, já que a maternida<strong>de</strong> é aparente. Reconhecida a paternida<strong>de</strong>,<br />

cria-se a obrigação <strong>de</strong> alimentar e <strong>em</strong> caráter <strong>de</strong>finitivo, s<strong>em</strong>pre analisando o binômio da<br />

necessida<strong>de</strong> e possibilida<strong>de</strong> das partes envolvidas. Além disso, tendo <strong>em</strong> vista que as<br />

liberda<strong>de</strong>s públicas são relativas, e até mesmo <strong>em</strong> função do princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa<br />

humana, nada po<strong>de</strong> obstar a realização do exame <strong>de</strong> DNA, seja por meio da coleta <strong>de</strong> sangue,<br />

saliva ou fio <strong>de</strong> cabelo. Destarte, não se po<strong>de</strong> utilizar <strong>de</strong> métodos evasivos com o possível pai,<br />

ou seja, algo que discrepa das garantias constitucionais implícitas e explícitas, como o<br />

princípio da intimida<strong>de</strong> e da intangibilida<strong>de</strong> do corpo humano para a realização <strong>de</strong> tal exame.<br />

É neces<strong>sá</strong>rio comentar sobre a liberda<strong>de</strong> do casal <strong>em</strong> planejar a sua própria<br />

família. A liberda<strong>de</strong> humana, como <strong>direito</strong> fundamental, baseia-se no livre arbítrio. O hom<strong>em</strong><br />

se sujeita às leis objetivas das quais ele mesmo é o criador, <strong>em</strong> função das suas relações<br />

sociais. Assim, a cada instante ele po<strong>de</strong> fazer uso <strong>de</strong>las e, até mesmo, transformá-las com o<br />

intuito <strong>de</strong> beneficiar-se. Verifica-se aí efetivação do princípio <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Segundo Silva 144 ,<br />

o conceito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> humana <strong>de</strong>ve ser entendido como “um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atuação do hom<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> busca da realização pessoal, <strong>de</strong> sua felicida<strong>de</strong>”.<br />

A exigência mundial <strong>de</strong> respeito e consi<strong>de</strong>ração aos <strong>direito</strong>s fundamentais,<br />

incluindo o <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> e à autonomia, é verificada <strong>em</strong> várias situações <strong>de</strong> encontros<br />

mundiais, além das manifestações realizadas pelos próprios organismos internacionais, como<br />

a ONU. Desse modo, o fato <strong>de</strong> se ter ou não filhos faz parte do planejamento familiar e está<br />

vinculado estritamente à vonta<strong>de</strong> das partes envolvidas, ou seja, à autonomia e ao livre-<br />

arbítrio do casal, não sendo possível n<strong>em</strong> admissível que o Estado intervenha <strong>em</strong> tal <strong>de</strong>cisão,<br />

mas apenas que proporcione meios para assegurar a criação, o <strong>de</strong>senvolvimento e a<br />

manutenção da família <strong>de</strong> forma digna.<br />

Por fim, no mesmo sentido, caberia ao casal a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> manter ou não a<br />

gestação <strong>de</strong> um feto anencéfalo. De qualquer sorte, para a análise do t<strong>em</strong>a <strong>de</strong>ste trabalho, faz-<br />

143 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />

144 SILVA, José Afonso. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,<br />

2006.<br />

64


se mister verificar a Lei 9263/96, que tratou especificamente do planejamento familiar, objeto<br />

do próximo it<strong>em</strong>.<br />

3.2 LEI 9263/96<br />

A Lei 9263/96 é a norma jurídica infraconstitucional que veio dar oportunida<strong>de</strong><br />

não só a casais, mas também a homens e mulheres solteiros, <strong>de</strong> realizar o planejamento<br />

familiar como um instrumento <strong>de</strong> tornar a vida <strong>em</strong> família mais respon<strong>sá</strong>vel e, principalmente,<br />

afetuosa.<br />

Analisando a história, verifica-se que a maternida<strong>de</strong> apresentou uma carga cultural<br />

no instituto da família, b<strong>em</strong> como uma superiorida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r masculino sobre o f<strong>em</strong>inino <strong>de</strong><br />

forma pública. Essa superiorida<strong>de</strong> masculina e a conseqüente inferiorida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina foram<br />

justificadas pela menor força física e pela maternida<strong>de</strong> da mulher. Contudo, as manifestações<br />

culturais ocorridas principalmente na segunda meta<strong>de</strong> do século XX levaram à pregação <strong>de</strong><br />

práticas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> no exercício da sexualida<strong>de</strong>, as quais estavam relacionadas diretamente<br />

ao corpo da mulher.<br />

Por outro lado, fatores sociais e econômicos, como a pobreza e a miséria, fizeram<br />

vir à tona o “planejamento familiar” 145 , t<strong>em</strong>a que se encontra ligado aos <strong>direito</strong>s reprodutivos,<br />

os quais se vinculam ao livre exercício da sexualida<strong>de</strong> e da reprodução humana. A postura<br />

reprodutiva do hom<strong>em</strong>, vinculada ao <strong>direito</strong> <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>, e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> livre <strong>de</strong>cisão<br />

do casal quanto ao número <strong>de</strong> filhos e o espaçamento entre eles estão baseadas na preservação<br />

e estimulação da auto-estima <strong>de</strong> cada indivíduo, tanto no que refere ao hom<strong>em</strong> quanto à<br />

mulher, com base no princípio fundamental da igualda<strong>de</strong> proclamado na Constituição Fe<strong>de</strong>ral.<br />

Os <strong>direito</strong>s reprodutivos e sexuais da mulher estão especialmente ligados à<br />

condução <strong>de</strong> questões pessoais, relacionadas ao exercício da sexualida<strong>de</strong> e da procriação.<br />

Desse modo, hom<strong>em</strong> e mulher, gozando <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> reprodutiva, po<strong>de</strong>m exercer seu <strong>direito</strong> <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong> sexual no campo da reprodução humana. Gama 146 comenta a <strong>de</strong>finição fornecida<br />

pela Organização Mundial da Saú<strong>de</strong> sobre saú<strong>de</strong> reprodutiva: trata-se <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> b<strong>em</strong>-<br />

145 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípio da patermida<strong>de</strong> respon<strong>sá</strong>vel. Revista <strong>de</strong> Direito Privado,<br />

São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 5, n. 18, abr./jun. 2004, p. 22.<br />

146 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 23.<br />

65


estar físico, mental e social, e não <strong>de</strong> mera ausência <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s ou doenças, <strong>em</strong> todos os<br />

aspectos relacionados ao sist<strong>em</strong>a reprodutivo e suas funções e processos.<br />

Alguns dispositivos da Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988 relacionam-se <strong>de</strong> forma<br />

direta com o planejamento familiar, como parágrafo 7° do Art. 226. Por esse dispositivo,<br />

reconhece-se, <strong>de</strong> forma clara e ampla, a importância do Estado <strong>em</strong> atuar nessa área <strong>de</strong> forma<br />

preventiva, no que se refere à informação, ao ensino e à educação das pessoas sobre as<br />

técnicas para o exercício dos <strong>direito</strong>s reprodutivos, e também <strong>de</strong> forma promocional, no<br />

sentido <strong>de</strong> <strong>em</strong>pregar recursos para proporcionar a opção <strong>de</strong> escolha do casal <strong>em</strong> ter ou não os<br />

filhos. Com isso, nota-se claramente que o planejamento familiar correspon<strong>de</strong> à livre <strong>de</strong>cisão<br />

do casal e ressalta-se que a responsabilida<strong>de</strong> pela paternida<strong>de</strong> compete ao casal, e não ao<br />

Estado.<br />

Tal fato foi reconhecido pelo <strong>direito</strong> brasileiro <strong>de</strong> forma explícita, tanto que <strong>em</strong><br />

1996 foi aprovada a Lei 9.263, cujo ponto principal diz respeito ao planejamento familiar<br />

exercido não só pelo casal, mas também por aquele hom<strong>em</strong> ou mulher que <strong>de</strong>seje<br />

individualmente constituir uma família. A referida lei apresenta no seu Art. 2° o conceito <strong>de</strong><br />

planejamento familiar como “conjunto <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> regulamentação da fecundida<strong>de</strong> que<br />

garanta <strong>direito</strong>s iguais <strong>de</strong> constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo<br />

hom<strong>em</strong> ou pelo casal”. O termo fecundida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser entendido como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

produção, faculda<strong>de</strong> reprodutora 147 .<br />

Observa-se que a referida lei não t<strong>em</strong> um caráter <strong>de</strong> controle <strong>de</strong>mográfico, n<strong>em</strong><br />

tampouco procura apoiar a prática do aborto ou da eugenia, muito menos se reporta ao fato da<br />

mulher estar no mercado <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> forma efetiva. Sua finalida<strong>de</strong> está fundada no <strong>direito</strong> à<br />

saú<strong>de</strong> e à liberda<strong>de</strong> e na autonomia do casal <strong>em</strong> <strong>de</strong>finir o tamanho da prole e a oportunida<strong>de</strong><br />

que julgar mais apropriada <strong>em</strong> ter filhos 148 . A lei preten<strong>de</strong> efetivar os princípios fundamentais<br />

consubstanciados na carta magna, principalmente os princípios da liberda<strong>de</strong>, da paternida<strong>de</strong><br />

respon<strong>sá</strong>vel e da dignida<strong>de</strong> humana.<br />

A Lei 9.263 cuida das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> assistência à concepção, com a adoção <strong>de</strong><br />

métodos e técnicas que não coloqu<strong>em</strong> <strong>em</strong> risco a vida e a saú<strong>de</strong> das pessoas. Contudo, as<br />

novas tecnologias na área da reprodução humana – e, nesse ponto, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>-se incluir exames<br />

147 MACHADO, Paulo Affonso L<strong>em</strong>e; PERROTTI, Maria Regina Machado; PERROTTI, Marcos Antonio.<br />

Direito do Planejamento familiar. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 87, v. 749, mar. 1988, p. 49.<br />

148 DINIZ, Maria Helena. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> civil brasileiro. Direito <strong>de</strong> Família. São Paulo: Saraiva, 2007, p.<br />

142.<br />

66


pré-natais <strong>de</strong> ultra-sonografia –, <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser utilizadas, observando o princípio da dignida<strong>de</strong> da<br />

pessoa humana.<br />

Os avanços científicos e tecnológicos a que recorre a mãe durante o período <strong>de</strong><br />

gravi<strong>de</strong>z, visando a <strong>de</strong>tectar anomalias genéticas, <strong>em</strong> especial a anencefalia, <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

possibilitar aos pais a <strong>de</strong>cisão consciente e respon<strong>sá</strong>vel da manutenção ou não da gestação até<br />

seu término, ou seja, o nascimento. Desse modo, se efetiva o princípio da dignida<strong>de</strong> humana,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não haja a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida do feto após o nascimento.<br />

Gama 149 comenta que a paternida<strong>de</strong> respon<strong>sá</strong>vel prevista na lei ora discutida,<br />

quando trata da reprodução, se funda também na responsabilida<strong>de</strong> individual e social do<br />

hom<strong>em</strong> e da mulher, quando do exercício da liberda<strong>de</strong> inerente à sexualida<strong>de</strong>. Os pais <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

priorizar o b<strong>em</strong>-estar físico, psíquico e espiritual da criança. Ainda, segundo este autor 150 , “ao<br />

<strong>direito</strong> individual da mulher <strong>de</strong> exercer sua sexualida<strong>de</strong> e optar pela maternida<strong>de</strong> se<br />

contrapõ<strong>em</strong> as responsabilida<strong>de</strong>s individuais e sociais que ela assume ao se tornar mãe”. Tal<br />

afirmação não po<strong>de</strong> ser entendida <strong>de</strong> modo absoluto quando se trata da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> feto<br />

anencéfalo, pois, como já dito, dois princípios constitucionais estão envolvidos: a vida do feto<br />

e a liberda<strong>de</strong> e autonomia da mãe <strong>em</strong> manter ou não a gravi<strong>de</strong>z até seu término, ressaltando<br />

também o princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana. A consciência sobre a paternida<strong>de</strong><br />

envolve não só o aspecto voluntário da <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> procriar, mas também os efeitos posteriores<br />

ao nascimento do filho, como a responsabilida<strong>de</strong> pela formação e pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

sua personalida<strong>de</strong>, que surtirão efeitos na fase adulta.<br />

Nesse ponto, caberia a atuação preventiva do Estado, no sentido <strong>de</strong> fornecer<br />

informações e recursos que dê<strong>em</strong> condições aos pais <strong>de</strong> saber as conseqüências <strong>de</strong> seus<br />

comportamentos individuais, <strong>em</strong> especial quando se trata <strong>de</strong> um feto anencéfalo, após cujo<br />

nascimento é nula a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se manter vivo. Como se sentiria uma mãe nessa<br />

situação: carregar no ventre, por nove meses, uma criança que, com certeza, falecerá logo<br />

após seu nascimento?<br />

O <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha, ou seja, a autonomia da vonta<strong>de</strong> da gestante<br />

quanto a manter ou não a gravi<strong>de</strong>z até o seu término é a discussão que será analisada no<br />

próximo it<strong>em</strong>.<br />

149 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípio da patermida<strong>de</strong> respon<strong>sá</strong>vel. Revista <strong>de</strong> Direito Privado,<br />

São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 5, n. 18, abr./jun. 2004, p. 30.<br />

150 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />

67


3.3 AUTONOMIA DA GESTANTE<br />

Como já dito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras linhas do presente trabalho, o <strong>direito</strong> à vida é o<br />

mais importante dos <strong>direito</strong>s fundamentais do hom<strong>em</strong>, pois é inerente à individualida<strong>de</strong> da<br />

pessoa humana, posto que é <strong>de</strong>le que <strong>de</strong>corr<strong>em</strong> todos os outros <strong>direito</strong>s humanos<br />

fundamentais. Por isto, o Art. 5° da Constituição Fe<strong>de</strong>ral afirma que todos os seres humanos<br />

são iguais perante a lei, s<strong>em</strong> distinção <strong>de</strong> qualquer natureza, garantindo a inviolabilida<strong>de</strong> do<br />

<strong>direito</strong> à vida e do <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong>, entre outros. É o ocupante da posição <strong>de</strong> primazia,<br />

como b<strong>em</strong> maior, tanto na esfera natural do hom<strong>em</strong>, como também na esfera jurídica.<br />

Diante disso, verifica-se que o <strong>direito</strong> fundamental “vida” foi <strong>de</strong>vidamente<br />

reconhecido pelo Estado e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a sua proteção é inevitável, já que se trata <strong>de</strong><br />

um b<strong>em</strong> indisponível. Sendo assim, o aborto e a eutanásia <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser vistos como uma<br />

infração ao <strong>direito</strong> humano natural da vida, apesar do primeiro ter previsão<br />

infraconstitucional 151 <strong>em</strong> casos específicos e excepcionais, no sentido <strong>de</strong> assegurar o próprio<br />

<strong>direito</strong> à vida.<br />

Com o <strong>de</strong>senvolvimento da <strong>de</strong>mocracia no século XX, baseada nos princípios da<br />

igualda<strong>de</strong> e, principalmente, da liberda<strong>de</strong>, o t<strong>em</strong>a aborto voltou à tona como uma exigência do<br />

<strong>direito</strong> que t<strong>em</strong> a mulher <strong>de</strong> exercer sua autonomia <strong>em</strong> relação à gestação e, com isso, <strong>em</strong><br />

diversos países o <strong>direito</strong> ao aborto foi legalizado. Posições favoráveis e contrárias à realização<br />

do aborto acabaram por assumir uma luta <strong>de</strong> princípios: <strong>de</strong> um lado, o princípio a favor da<br />

vida; <strong>de</strong> outro, o princípio a favor da livre escolha.<br />

A batalha travada no caso do aborto é muito mais princípiológica e ética do que<br />

propriamente jurídica. Em se tratando <strong>de</strong> uma discussão ética, faz-se mister compreen<strong>de</strong>r os<br />

pressupostos que envolv<strong>em</strong> o fato, lastreados, principalmente, na reflexão e no diálogo.<br />

Segundo Barreto 152 , o diálogo sobre o aborto significou um aprendizado <strong>de</strong><br />

esclarecimentos das próprias posições e <strong>de</strong> compreensão da posição contrária, b<strong>em</strong> como a<br />

construção <strong>de</strong> pressupostos e princípios para a criação <strong>de</strong> uma metodologia <strong>de</strong> diálogo<br />

151 Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto neces<strong>sá</strong>rio I – se não há outro meio <strong>de</strong> salvar<br />

a vida da gestante; Aborto no caso <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z resultante <strong>de</strong> estupro II – se a gravi<strong>de</strong>z resulta <strong>de</strong> estupro e o<br />

aborto é precedido <strong>de</strong> consentimento da gestante ou, quando incapaz, <strong>de</strong> seu representante legal.<br />

152 BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord.). Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p.<br />

20.<br />

68


espeitoso sobre o aborto. Por meio <strong>de</strong>sse diálogo, chegou-se à conclusão <strong>de</strong> que as duas<br />

posições envolvidas no caso do aborto são irreconciliáveis. Contudo, <strong>em</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>mocrática, a melhor posição adotada por seus m<strong>em</strong>bros são a participação nas discussões<br />

com clareza e pertinência dos seus próprios argumentos e, principalmente, o respeito à<br />

posição contrária.<br />

Assim, a possibilida<strong>de</strong> do aborto do feto anencéfalo merece um diálogo <strong>de</strong> forma<br />

clara e envolvente. Habermas 153 afirma que, “Com a rejeição <strong>de</strong> uma gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada, o<br />

<strong>direito</strong> da mulher <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação coli<strong>de</strong> com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção do <strong>em</strong>brião”. No<br />

rol dos <strong>direito</strong>s fundamentais, verifica-se o <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong>. A palavra liberda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser<br />

entendida como o estado da pessoa livre e isenta <strong>de</strong> restrição externa ou coação física ou<br />

moral, ou o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> exercer livr<strong>em</strong>ente a sua vonta<strong>de</strong>, ou, ainda, in<strong>de</strong>pendência, autonomia.<br />

Sob o ponto <strong>de</strong> vista filosófico, há várias concepções <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, distintas umas das outras.<br />

As teorias da liberda<strong>de</strong> diz<strong>em</strong> respeito à metafísica e à ética, à filosofia política,<br />

assunto que v<strong>em</strong> sendo amplamente tratado nos vários segmentos da socieda<strong>de</strong> e quetionados<br />

por todos os homens, visto que o entendimento maior que se t<strong>em</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> é que seja algo<br />

bom, s<strong>em</strong> amarras. De acordo com Barreto 154 , no século XX, “o conceito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> vai ser<br />

probl<strong>em</strong>atizado <strong>de</strong> forma singular pelo existencialismo”. Tal colocação se baseia na idéia da<br />

essência humana, <strong>de</strong> que o hom<strong>em</strong> possui total responsabilida<strong>de</strong> sobre o sentido <strong>de</strong> sua vida,<br />

como resultado <strong>de</strong> suas escolhas e <strong>de</strong>cisões, não havendo mais ninguém a qu<strong>em</strong> se possa<br />

transferir a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ato pessoal, tornando-se totalmente respon<strong>sá</strong>vel pela sua<br />

<strong>de</strong>finição como sujeito.<br />

Abbagnano 155 apresenta para o termo liberda<strong>de</strong> três significados fundamentais: o<br />

primeiro, auto<strong>de</strong>terminação, no sentido <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> limites; o segundo, necessida<strong>de</strong>, mas<br />

baseado também na auto<strong>de</strong>terminação; e o terceiro, possibilida<strong>de</strong> ou escolha, mas limitada ou<br />

condicionada. A liberda<strong>de</strong>, analisada <strong>de</strong> uma maneira negativa, significa ausência <strong>de</strong><br />

submissão 156 , <strong>de</strong> servidão e <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação, po<strong>de</strong>ndo ser qualificada como a in<strong>de</strong>pendência<br />

153 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 22.<br />

154 BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord.). Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p.<br />

537.<br />

155 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988,<br />

p. 605.<br />

156 Ato ou efeito <strong>de</strong> submeter (-se) a condição <strong>em</strong> que se é obrigado a obe<strong>de</strong>cer; sujeição, subordinação;<br />

disposição para obe<strong>de</strong>cer, para aceitar uma situação <strong>de</strong> subordinação; docilida<strong>de</strong>, obediência, subalternida<strong>de</strong>.<br />

Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 27 jan.<br />

2008.<br />

69


do ser humano. Em t<strong>em</strong>pos mais antigos, procurava-se por liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>masiadamente, como<br />

na época da escravidão, ou ao final da II Gran<strong>de</strong> Guerra, quando a tortura e a violência<br />

atingiram a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma tão atroz. De maneira positiva, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>signa a<br />

autonomia e a espontaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ser humano, consi<strong>de</strong>rado um indivíduo racional, ou seja,<br />

aquele que possui a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> raciocinar, <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> pon<strong>de</strong>rar, <strong>de</strong><br />

julgar, enfim, inteligente 157 . A liberda<strong>de</strong> sob esse prisma qualifica e constitui a condição dos<br />

comportamentos humanos voluntários, <strong>de</strong>senvolve as potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada um e aproxima<br />

o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> si mesmo, motivando-o a ter alta auto-estima 158 .<br />

Men<strong>de</strong>s 159 comenta que “Liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong> formam dois el<strong>em</strong>entos essenciais<br />

do conceito <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, que o constituinte erigiu à condição <strong>de</strong><br />

fundamentos do Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito e vértice do sist<strong>em</strong>a dos <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais”. O mesmo autor 160 explana ainda que “As liberda<strong>de</strong>s são proclamadas,<br />

partindo-se da perspectiva da pessoa humana como ser <strong>em</strong> busca da auto-realização,<br />

respon<strong>sá</strong>vel pela escolha dos meios aptos para realizar as suas potencialida<strong>de</strong>s”. Não há como<br />

negar que a <strong>de</strong>mocracia está intimamente ligada ao <strong>direito</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.<br />

Nesse sentido, Silva 161 esclarece que é no regime <strong>de</strong>mocrático que se realizam os<br />

<strong>direito</strong>s humanos fundamentais e é na <strong>de</strong>mocracia que a liberda<strong>de</strong> encontra campo <strong>de</strong><br />

expansão. Nota-se que a liberda<strong>de</strong>, no sentido <strong>de</strong> resultado <strong>de</strong> escolhas e <strong>de</strong>cisões, só t<strong>em</strong><br />

sentido enquanto tiver como foco principal o hom<strong>em</strong>, ou seja, enquanto a pessoa humana for a<br />

<strong>de</strong>stinatária direta <strong>de</strong>sse <strong>direito</strong> fundamental.<br />

A cada momento, o hom<strong>em</strong> amplia seus conhecimentos e domina mais a natureza<br />

e as relações sociais. É <strong>em</strong> um cenário <strong>de</strong>mocrático que o ser humano, ultrapassando os<br />

obstáculos por meio da liberda<strong>de</strong>, dispõe <strong>de</strong> meios neces<strong>sá</strong>rios para alcançar a felicida<strong>de</strong><br />

pessoal.<br />

A <strong>de</strong>claração universal dos diretos do hom<strong>em</strong>, <strong>de</strong> 1948, já proclamava nos seus<br />

artigos 1° e 3° o <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong>. A Constituição brasileira não po<strong>de</strong>ria ser diferente e, no<br />

157 Capacida<strong>de</strong> mental <strong>de</strong> raciocinar, planejar, resolver probl<strong>em</strong>as, abstrair e compreen<strong>de</strong>r idéias e linguagens,<br />

apren<strong>de</strong>r.<br />

158 Avaliação subjetiva que uma pessoa faz <strong>de</strong> si mesma.<br />

159 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.<br />

349.<br />

160 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />

161 SILVA, José Afonso. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,<br />

2006.<br />

70


seu Art. 5° e incisos seguintes, positiva esse <strong>direito</strong> nas suas diversas ramificações ou<br />

modalida<strong>de</strong>s, como Direito <strong>de</strong> Resposta, Art. 5°, V; Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Consciência; Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Expressão da Ativida<strong>de</strong> Intelectual; Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Culto, <strong>de</strong> Cátedra, <strong>de</strong> Informação<br />

Jornalística, Científica e Artística; Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Locomoção; Liberda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Expressão<br />

Coletivas (reunião, associação); Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ação Profissional.<br />

Outra peculiarida<strong>de</strong> sobre a liberda<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>ve comentar é a liberda<strong>de</strong> interna<br />

e a liberda<strong>de</strong> externa. A primeira, também chamada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> subjetiva, liberda<strong>de</strong><br />

psicológica ou moral, é caracterizada pelo livre-arbítrio 162 , como manifestação da vonta<strong>de</strong> no<br />

mundo interior do hom<strong>em</strong>. Quando o sujeito se vê entre duas possibilida<strong>de</strong>s opostas, po<strong>de</strong>rá<br />

<strong>de</strong>cidir <strong>de</strong> acordo com a sua vonta<strong>de</strong>. É o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> escolha que estaria baseado nas mais<br />

profundas sensações e <strong>em</strong>oções. São aquelas consi<strong>de</strong>radas mais puras e intactas, pois são<br />

oriundas da alma humana. Já a liberda<strong>de</strong> externa, ou a <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> objetiva,<br />

significa a exteriorização livre <strong>de</strong> um querer interno do hom<strong>em</strong>. Para Silva 163 , “liberda<strong>de</strong><br />

consiste na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação consciente dos meios neces<strong>sá</strong>rios à realização da<br />

felicida<strong>de</strong> pessoal”.<br />

A dificulda<strong>de</strong> que se verifica é quando a exteriorização da liberda<strong>de</strong> atinge a<br />

outros, i<strong>de</strong>ntificados como indivíduos mais fracos ou <strong>de</strong>sprotegidos. Assim, há a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um Estado para limitar essa liberda<strong>de</strong> <strong>em</strong> função <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>, mas s<strong>em</strong> obstaculizá-la. Desse<br />

modo, nota-se que a faculda<strong>de</strong> que uma pessoa possui <strong>de</strong> fazer ou não fazer alguma coisa<br />

envolve o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> escolher segundo sua própria vonta<strong>de</strong>, não se tratando, assim, <strong>de</strong> um<br />

<strong>direito</strong> absoluto.<br />

No âmbito da teoria política clássica dos liberais 164 , John Rawls rel<strong>em</strong>bra a<br />

priorida<strong>de</strong> do princípio da liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a idéia do liberalismo político s<strong>em</strong> a<br />

realização <strong>de</strong> excessos individuais praticados pelo liberalismo econômico. Esse pensador<br />

atirticulou o conceito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> negativa com a exigência <strong>de</strong> maior igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

distribuição das riquezas produzidas. Tal teoria foi criticada por aqueles consi<strong>de</strong>rados<br />

comunitaristas 165 , pois enfatizam as várias i<strong>de</strong>ntidaes culturais e sociais com contraposição à<br />

162 Possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir, escolher <strong>em</strong> função da própria vonta<strong>de</strong>, isenta <strong>de</strong> qualquer condicionamento, motivo<br />

ou causa <strong>de</strong>terminante.<br />

163 SILVA, José Afonso. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,<br />

2006, p. 233.<br />

164 BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord.). Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006.<br />

165 A<strong>de</strong>ptos do movimento clássico do liberalismo.<br />

71


idéia do sujeito universal e abstrato. Contudo, Habermas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma posição intermediária<br />

sobre a liberda<strong>de</strong>, no sentido dos indivíduos ser<strong>em</strong> autores e participantes da or<strong>de</strong>m jurídica.<br />

O <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser entendido com o Princípio da Legalida<strong>de</strong>,<br />

enunciado na Constituição Fe<strong>de</strong>ral no Art. 5°, II 166 , pois, no atual sist<strong>em</strong>a jurídico, somente<br />

leis po<strong>de</strong>m limitar a liberda<strong>de</strong> individual do ser humano. Contudo, esse princípio r<strong>em</strong>ete à<br />

idéia <strong>de</strong> ação livre e ética, ou seja, aquela oriunda da alma. Com isso, aparece a autonomia ou<br />

o princípio da autonomia da vonta<strong>de</strong>.<br />

O conceito <strong>de</strong> autonomia, filosoficamente, confun<strong>de</strong>-se com o <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>,<br />

consistindo na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um indivíduo <strong>de</strong> tomar suas próprias <strong>de</strong>cisões, com base <strong>em</strong> sua<br />

razão individual. Mas esse termo <strong>de</strong>ve ser entendido como indicação <strong>de</strong> concessão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

por parte da alguém ou <strong>de</strong> um governo para outr<strong>em</strong>. Barreto 167 apresenta inicialmente como<br />

conceito <strong>de</strong> autonomia o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>terminar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outro po<strong>de</strong>r.<br />

Já para Kant 168 , um dos filósofos que mais se preocupou com a autonomia<br />

pessoal, ser livre é ser autônomo, isto é, a liberda<strong>de</strong> se explica pela vonta<strong>de</strong>. Para ele, a<br />

autonomia está baseada na vonta<strong>de</strong>, na liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> aproveitar, s<strong>em</strong> bloqueios. A utilização<br />

do livre-arbítrio <strong>de</strong>ve ser feita <strong>de</strong> forma pura, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>pendência ou vinculação a leis. Desse<br />

modo, um sujeito com autonomia é aquele que age s<strong>em</strong> intervenções <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>, porém atua<br />

<strong>de</strong> forma clara com relação ao seu conhecimento e consciência. Para esse filósofo, a<br />

autonomia da vonta<strong>de</strong> é a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar a si mesmo a sua própria lei. Nesse sentido,<br />

enten<strong>de</strong>-se autonomia como a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação.<br />

Interessante a reflexão <strong>de</strong> Fabriz 169 no tocante ao princípio da automonia. Para ele,<br />

esse princípio encontra seus limites <strong>de</strong> atuação livre e autônoma com relação à colocação no<br />

fim da própria vida, <strong>de</strong>vendo, assim, ser relativizado <strong>em</strong> função do princípio maior, que é o <strong>de</strong><br />

preservar a vida. Por outro lado, o princípio da autonomia privada do indivíduo diz respeito à<br />

166 Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, s<strong>em</strong> distinção <strong>de</strong> qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e<br />

aos estrangeiros resi<strong>de</strong>ntes no País a inviolabilida<strong>de</strong> do <strong>direito</strong> à vida, à liberda<strong>de</strong>, à igualda<strong>de</strong>, à segurança e à<br />

proprieda<strong>de</strong>, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais <strong>em</strong> <strong>direito</strong>s e obrigações, nos termos <strong>de</strong>sta<br />

Constituição; II – ninguém será obrigado a fazer ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer alguma coisa senão <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei; […].<br />

167 BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord.). Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p.<br />

76.<br />

168 Immanuel Kant ou Emanuel Kant (Königsberg, 22 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1724 – Königsberg, 12 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />

1804): filósofo al<strong>em</strong>ão geralmente consi<strong>de</strong>rado como o último gran<strong>de</strong> filósofo dos princípios da era mo<strong>de</strong>rna,<br />

indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes.<br />

169 FABRIZ, Daury César. Bioética e <strong>direito</strong>s fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao bio<strong>direito</strong>.<br />

Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.<br />

72


capacida<strong>de</strong> da pessoa autogovernar, escolher, dividir, avaliar, s<strong>em</strong> restrições, qualquer tipo <strong>de</strong><br />

restrição, seja ela interna ou externa.<br />

Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberar sobre seus objetivos<br />

pessoais e <strong>de</strong> agir na direção <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>liberação. Respeitar a autonomia é valorizar a<br />

consi<strong>de</strong>ração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução <strong>de</strong> suas<br />

ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras pessoas, aqui subentendidas<br />

como hom<strong>em</strong> ou mulher individualizado.<br />

O hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o curso <strong>de</strong> sua vida para atingir seu b<strong>em</strong>-<br />

estar e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a dignida<strong>de</strong>. Como a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana é um dos<br />

pressupostos do Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito, o princípio da autonomia <strong>de</strong>ve ser entendido<br />

como um princípio <strong>de</strong>mocrático, no qual a vonta<strong>de</strong> e o consentimento livres do indivíduo<br />

<strong>de</strong>v<strong>em</strong> constar como fatores prepon<strong>de</strong>rantes para a sua efetivida<strong>de</strong>.<br />

O princípio da autonomia da vonta<strong>de</strong> implica responsabilida<strong>de</strong>, atos <strong>de</strong> escolha,<br />

<strong>de</strong>vendo-se respeitar a vonta<strong>de</strong>, os valores morais e as crenças <strong>de</strong> cada ser humano que<br />

pertença àquele grupo social. Apesar disto, Habermas 170 <strong>de</strong>fine “o princípio liberal <strong>de</strong> que<br />

todos os cidadãos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ter a mesma chance <strong>de</strong> moldar sua própria vida <strong>de</strong> maneira<br />

autônoma”.<br />

Deve-se ressaltar que o presente trabalho não preten<strong>de</strong> tratar da <strong>de</strong>fesa da livre<br />

realização do aborto no país, ou da sua legalização perante criações ou alterações <strong>de</strong> leis<br />

infraconstitucionais. Propõe, sim, uma discussão sobre os <strong>direito</strong>s fundamentais que<br />

envolv<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>a.<br />

Diniz asseva que,<br />

Para muitos pesquisadores da bioética, o argumento do conflituo <strong>de</strong> interesse entre a<br />

mulher e o feto é absolutamente nulo, indiferente ao fato <strong>de</strong> o <strong>em</strong>brião po<strong>de</strong>r ser, <strong>em</strong><br />

outras situações <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> alguma moralida<strong>de</strong>. O que se preten<strong>de</strong> garantir é a<br />

autonomia das pessoas para <strong>de</strong>liberar sobre suas próprias vidas, e no caso do<br />

aborto, a garantia <strong>de</strong> que as mulheres que não consi<strong>de</strong>ram o aborto amoral <strong>de</strong>vam ter<br />

condições sociais e sanitárias <strong>de</strong> realizá-lo se assim <strong>de</strong>sejar<strong>em</strong>, ao passo que<br />

mulheres que consi<strong>de</strong>ram o aborto imoral <strong>de</strong>vam ser livres para jamais o<br />

realizar<strong>em</strong>. 171 [grifos nossos]<br />

170 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho da uma eugenia liberal? Trad. Karina<br />

Jannimi. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 35.<br />

171 DINIZ, Débora. Aborto por anomalia fetal. 1. reimpr. Brasilia: Letras Livres, 2004, p. 42.<br />

73


Nesse sentido, reporta-se ao aborto sentimental, permitido nos casos resultantes <strong>de</strong><br />

estupro, <strong>em</strong> que a gravi<strong>de</strong>z é fruto <strong>de</strong> ato in<strong>de</strong>sejado e o aborto é uma saída para solucionar o<br />

mal ocorrido. Neste ponto, o b<strong>em</strong> jurídico tutelado é a liberda<strong>de</strong> sexual da mulher, sob o<br />

aspecto da sua auto<strong>de</strong>terminação.<br />

Nos casos <strong>de</strong> malformação fetal, que levaria à impossibilida<strong>de</strong> incondicional da<br />

vida extra-uterina, o impedimento à gestante da opção pela interrupção da gravi<strong>de</strong>z seria um<br />

contra-senso frente ao princípio da liberda<strong>de</strong> e autonomia da mulher. Cabe a ela o <strong>direito</strong> <strong>de</strong><br />

escolha sobre a manutenção ou não da gestação, respeitando-se o princípio da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

escolha e autonomia da mulher. Além disso, há que se ressaltar a compreensão mo<strong>de</strong>rna da<br />

socieda<strong>de</strong> pautada na autonomia dos indivíduos. Cabe ao Direito o papel <strong>de</strong> garantir a cada<br />

um dos indivíduos o <strong>direito</strong> à privacida<strong>de</strong> e a autonomia <strong>em</strong> suas <strong>de</strong>cisões pessoais, para a<br />

condução <strong>de</strong> sua própria vida.<br />

Para Barreto 172 , os <strong>direito</strong>s fundamentais do hom<strong>em</strong>, baseados no <strong>direito</strong> à<br />

liberda<strong>de</strong>, fonte da autonomia, são preexistentes à or<strong>de</strong>m constitucional, e são inalienáveis,<br />

imprescritíveis, impenhoráveis e intributáveis, <strong>de</strong>vendo ser consi<strong>de</strong>rados instrumentos<br />

basilares para a verificação e efetivação do princípio da dignida<strong>de</strong> humana. A dignida<strong>de</strong><br />

humana exige respeito tanto pelos indivíduos quanto pelo Estado, <strong>de</strong> acordo com a sua<br />

história e valores normativos.<br />

172 BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord.). Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006.<br />

74


4 COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS<br />

NO CASO DO ABORTO DO ANENCÉFALO<br />

A eventual realização do aborto <strong>de</strong> feto anencéfalo envolve uma série <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais que, por vezes, chocam-se entre si e acabam gerando uma insegurança <strong>em</strong><br />

relação a qual dos <strong>direito</strong>s fundamentais envolvidos <strong>de</strong>ve ser seguido ou prevalente. Esse é<br />

consi<strong>de</strong>rado um caso difícil, pois se, <strong>de</strong> um lado, há o <strong>direito</strong> do feto <strong>de</strong> se manter vivo no<br />

ventre materno até o evento do nascimento, mesmo que s<strong>em</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-<br />

uterina, <strong>de</strong> outro, há a liberda<strong>de</strong> da mãe <strong>de</strong> escolher manter ou não a sua gravi<strong>de</strong>z, ciente <strong>de</strong><br />

que, quando do nascimento do seu filho, ele morrerá por falta <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida<br />

autônoma.<br />

Nota-se que existe incerteza para a sua solução, porque ou exist<strong>em</strong> várias normas<br />

que <strong>de</strong>terminam atuações distintas para o fato, ou as normas existentes no or<strong>de</strong>namento<br />

jurídico são contraditórias, ou inexiste norma exatamente aplicável ao fato. Em razão disso,<br />

faz-se neces<strong>sá</strong>rio recorrer aos princípios fundamentais.<br />

Surge, então, outra dificulda<strong>de</strong>, quando tais <strong>direito</strong>s ou princípios fundamentais se<br />

contrapõ<strong>em</strong> sobre o mesmo ponto. Esse tipo <strong>de</strong> fato é <strong>de</strong>nominado por Dworkin 173 como hard<br />

cases, também chamados <strong>de</strong> casos duvidosos. Entretanto, para ele há uma resposta correta. A<br />

colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais é um dos mais difíceis e apaixonantes t<strong>em</strong>as do <strong>direito</strong><br />

constitucional da atualida<strong>de</strong>, não sendo possível uma simples aplicação da norma jurídica ou<br />

uma simples interpretação. Exige do intérprete, do operador do <strong>direito</strong>, a difícil tarefa <strong>de</strong><br />

harmonização <strong>de</strong> valores <strong>em</strong> conflito, primordiais para o ser humano, pois, <strong>em</strong> se tratando <strong>de</strong><br />

casos difíceis ou duvidosos, a solução não é a conseqüência <strong>de</strong> um enquadramento normativo,<br />

além do que não há uma única solução.<br />

A discussão travada entre os <strong>direito</strong>s fundamentais do hom<strong>em</strong> ou da pessoa<br />

173 DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberda<strong>de</strong>s e individuais. Trad. Jefferson Luiz<br />

Camargo. São Paulo: Marins Fontes, 2003.<br />

75


humana toma corpo quando os <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> duas partes entram <strong>em</strong> colisão. Conforme<br />

Nascimento 174 , po<strong>de</strong> haver colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais entre si e colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais com outros <strong>direito</strong>s públicos ou coletivos. Para resolver conflitos <strong>de</strong>ssa monta,<br />

há vários critérios e métodos a ser<strong>em</strong> utilizados para uma <strong>de</strong>cisão justa.<br />

Moraes afirma que:<br />

O conflito ente <strong>direito</strong>s e bens constitucionalmente protegidos resulta do fato <strong>de</strong> a<br />

Constituição proteger certos bens jurídicos (saú<strong>de</strong> pública, segurança, liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

imprensa, integrida<strong>de</strong> territorial, <strong>de</strong>fesa nacional, família, idosos, índios etc.), que<br />

po<strong>de</strong>m vir a envolver-se numa relação <strong>de</strong> conflito ou colisão. Para solucionar-se esse<br />

conflito, compatibilizando-se as normas constitucionais, a fim <strong>de</strong> que todas tenham<br />

aplicabilida<strong>de</strong>, a doutrina aponta diversas regras <strong>de</strong> hermenêutica constitucional <strong>em</strong><br />

auxílio ao intérprete. 175<br />

Verifica-se, assim, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> hermenêutica 176 ,<br />

entre outros, <strong>em</strong> que um <strong>direito</strong> se sobrepõe ao outro, s<strong>em</strong> que uma norma seja excluída do<br />

or<strong>de</strong>namento jurídico. Entretanto, enten<strong>de</strong>-se que o método mais a<strong>de</strong>quado para a situação ora<br />

comentada, ou seja, a existência <strong>de</strong> uma autêntica colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais, seria a<br />

pon<strong>de</strong>ração dos bens envolvidos, buscando a prevalência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les, com o sacrifício<br />

mínimo dos <strong>direito</strong>s que se coli<strong>de</strong>m. Dev<strong>em</strong>-se buscar critérios, b<strong>em</strong> como a construção <strong>de</strong><br />

teoria que justifique a <strong>de</strong>cisão, a opção <strong>de</strong> um <strong>direito</strong> perante o outro. Para tanto, enten<strong>de</strong>-se<br />

que a melhor maneira seria recorrer à pon<strong>de</strong>ração dos princípios.<br />

A partir disso, faz-se neces<strong>sá</strong>ria a análise da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> interesses envolvidos<br />

que permeiam o assunto <strong>em</strong> tela, com o intuito <strong>de</strong> tomar uma posição acerca do t<strong>em</strong>a, b<strong>em</strong><br />

como a verificação dos critérios <strong>de</strong> resolução existentes.<br />

174 ALEXY, apud NASCIMENTO, 2004, p. 73.<br />

175 MORAES, Alexandre <strong>de</strong>. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 45.<br />

176 Qualquer técnica <strong>de</strong> interpretação. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2.<br />

ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p.497.<br />

76


4.1 PONDERAÇÃO DE INTERESSES: PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE<br />

A discussão sobre a possibilida<strong>de</strong> da interrupção da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> feto anencéfalo<br />

está pautada <strong>em</strong> argumentos constitucionais. Os princípios que envolv<strong>em</strong> esse fato ating<strong>em</strong><br />

tanto às mães <strong>de</strong> alto po<strong>de</strong>r aquisitivo, que po<strong>de</strong>m realizar o aborto <strong>em</strong> clínicas particulares,<br />

mas <strong>de</strong> forma ilícita e clan<strong>de</strong>stina, já que tal prática não é permitida pela legislação, como às<br />

menos favorecidas. Em que pese diferenças sob o aspecto econômico, as reflexões sobre o<br />

assunto <strong>de</strong>v<strong>em</strong> estar pautadas nos princípios, quando a norma positiva não aten<strong>de</strong> ao fato<br />

concreto.<br />

Como já dito, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras linhas do presente trabalho, o <strong>direito</strong> à vida é o<br />

mais importante dos <strong>direito</strong>s fundamentais do hom<strong>em</strong>, pois é inerente à pessoa humana. Por<br />

isto, o Art. 5° da Constituição Fe<strong>de</strong>ral afirma que todos os seres humanos são iguais perante a<br />

lei, s<strong>em</strong> distinção <strong>de</strong> qualquer natureza, garantindo inviolabilida<strong>de</strong> do <strong>direito</strong> à vida e ao<br />

<strong>direito</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, entre outros. É o ocupante da posição <strong>de</strong> primazia, como b<strong>em</strong> maior,<br />

tanto na esfera natural do hom<strong>em</strong>, como também na esfera jurídica. Contudo, não <strong>de</strong>ve ser<br />

entendido como absoluto.<br />

A atenção da doutrina constitucional mo<strong>de</strong>rna está voltada, na atualida<strong>de</strong>, para as<br />

colisões <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais ou para os conflitos <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s com valores constitucionais,<br />

como no caso do aborto do feto anencéfalo, <strong>em</strong> que duas posições protegidas como <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais diferentes (vida do feto versus liberda<strong>de</strong> e autonomia da mãe) atuam sobre o<br />

mesmo fato.<br />

O <strong>direito</strong> fundamental, um <strong>direito</strong> prima facie, <strong>em</strong> confronto com outro <strong>direito</strong><br />

enseja a pon<strong>de</strong>ração com vistas a estabelecer uma preferência. Assim, como já dito, os<br />

<strong>direito</strong>s fundamentais não são absolutos ou ilimitados, encontrando seus limites <strong>em</strong> outros<br />

<strong>direito</strong>s fundamentais que também se encontram consagrados na carta magna, sendo que, por<br />

vezes, a escolha <strong>de</strong> um <strong>de</strong>ve ce<strong>de</strong>r a interesses prepon<strong>de</strong>rantes. É o caso do aborto do<br />

anencéfalo, no qual o <strong>direito</strong> à vida do feto se contrapõe ao <strong>direito</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e autonomia<br />

da mãe. Diante disso, inicialmente, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>-se analisar as normas jurídicas <strong>em</strong> dois gran<strong>de</strong>s<br />

grupos: o dos princípios e o das regras.<br />

As regras correspon<strong>de</strong>m às normas que exig<strong>em</strong>, proíb<strong>em</strong> ou permit<strong>em</strong> alguma<br />

coisa, como requisitos quanto à atitu<strong>de</strong> do indivíduo na socieda<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> um fato da vida<br />

cotidiana. A regra jurídica é um critério <strong>de</strong> qualificação, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e <strong>de</strong> conduta, aplicável da<br />

forma como está prescrita. Assim, quando se verifica conflito <strong>de</strong> uma regra com outra, a<br />

77


solução está baseada no termo da valida<strong>de</strong> da regra, posto que duas normas não po<strong>de</strong>m<br />

conviver simultaneamente no or<strong>de</strong>namento jurídico 177 . Desse modo, somente uma <strong>de</strong>las será<br />

consi<strong>de</strong>rada válida, e a outra <strong>de</strong>verá ser retirada do or<strong>de</strong>namento jurídico, pois será inválida.<br />

Por sua vez, os princípios são ensinamentos básicos e gerais que <strong>de</strong>limitam <strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve partir <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> algo. São <strong>de</strong>terminações para que certo b<strong>em</strong> jurídico seja<br />

satisfeito e protegido 178 . Princípios jurídicos são os pilares, alicerces, as bases do<br />

or<strong>de</strong>namento, eles traçam as orientações, as diretrizes que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser seguidas por todo o<br />

Direito, por isso são mandados <strong>de</strong> otimização. Além disso, os princípios informam as normas<br />

jurídicas concretas, como ex<strong>em</strong>plo das normas contidas na Constituição Fe<strong>de</strong>ral. Contudo, a<br />

literalida<strong>de</strong> da norma po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>satendida pelo aplicador do <strong>direito</strong>, quando viola um<br />

princípio que, no caso específico, é consi<strong>de</strong>rado importante.<br />

As regras traz<strong>em</strong> a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> certa situação, baseada num fato e, com relação<br />

aos princípios, há uma referência direta a valores. Assim, se po<strong>de</strong> dizer que as regras se<br />

fundamentam nos princípios, os quais não se fundamentam diretamente <strong>em</strong> nenhuma ação,<br />

pois <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da regra concretizadora, ou seja, da norma positivada para a eventual<br />

produção <strong>de</strong> efeitos. Nota-se que os princípios possu<strong>em</strong> um grau <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong><br />

incomensuravelmente maior do que as regras.<br />

No caso <strong>de</strong> eventual confronto <strong>de</strong> princípios que incidam sobre a mesma situação,<br />

<strong>de</strong>ve-se buscar a conciliação entre eles, s<strong>em</strong> que nenhum seja excluído do or<strong>de</strong>namento<br />

jurídico. Desse modo, Men<strong>de</strong>s 179 coloca que “Para solucionar o conflito, hão <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar<br />

as circunstâncias no caso concreto, pesando-se os interesses <strong>em</strong> conflito, no intuito <strong>de</strong><br />

estabelecer que princípio há <strong>de</strong> prevalecer naquelas condições específicas, segundo um<br />

critério <strong>de</strong> justiça prática”. O mesmo autor ainda comenta que “As situações <strong>de</strong> <strong>em</strong>bates entre<br />

princípios po<strong>de</strong>m assumir tanto a forma <strong>de</strong> colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais, como a <strong>de</strong><br />

conflito entre um <strong>direito</strong> fundamental e um outro valor consagrado na Constituição” 180 .<br />

Sabe-se que as situações <strong>de</strong> colisão <strong>de</strong> princípios, também <strong>de</strong>nominadas conflito<br />

<strong>de</strong> <strong>direito</strong>s, surg<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre que se encontram dois valores ou bens, regularmente e<br />

simultaneamente tutelados pela or<strong>de</strong>m constitucional, numa situação concreta, como é a<br />

177 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 2.ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />

178 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.<br />

179 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 274.<br />

180 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 276.<br />

78


verificada no caso do aborto do feto anencéfalo. Assim, a Constituição Fe<strong>de</strong>ral não po<strong>de</strong><br />

conter normas constitucionais que se contrari<strong>em</strong> e, <strong>de</strong> fato, não contém. Porém, no caso dos<br />

<strong>direito</strong>s fundamentais, po<strong>de</strong>rá haver uma aparente contradição entre os mesmos, <strong>em</strong> que,<br />

então, propõe-se a utilização da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> princípios.<br />

No caso concreto <strong>de</strong> colisão <strong>de</strong> princípios, a <strong>de</strong>cisão será dada <strong>em</strong> função <strong>de</strong> um<br />

princípio que tenha maior peso relativo, s<strong>em</strong> a invalidação ou exclusão do outro princípio com<br />

peso menor. Cabe ao po<strong>de</strong>r judiciário, excluindo-se o po<strong>de</strong>r executivo, pronunciar-se sobre<br />

qualquer questão, <strong>em</strong> especial nas hipóteses <strong>de</strong> colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais que ocorr<strong>em</strong><br />

no caso concreto, como o tratado no presente trabalho. Para tanto, <strong>de</strong>ve-se fazer uso da<br />

pon<strong>de</strong>ração, levando-se <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração outros fatores. Tal juízo <strong>de</strong> pon<strong>de</strong>ração a ser<br />

realizado liga-se ao princípio da proporcionalida<strong>de</strong>.<br />

A solução na colisão dos <strong>direito</strong>s fundamentais, inicialmente, não <strong>de</strong>ve ocorrer<br />

por meio <strong>de</strong> uma hierarquia <strong>de</strong> princípios, pois a or<strong>de</strong>m constitucional não é hierárquica.<br />

Steinmtetz 181 <strong>de</strong>fine pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens como “método que consiste <strong>em</strong> adotar uma <strong>de</strong>cisão<br />

<strong>de</strong> preferência entre os <strong>direito</strong>s e bens <strong>em</strong> conflito; o método que <strong>de</strong>terminará qual o <strong>direito</strong> ou<br />

b<strong>em</strong> e <strong>em</strong> que medida prevalecerá solucionará a colisão”. O mesmo autor ainda l<strong>em</strong>bra que,<br />

para a hipótese <strong>de</strong> colisão, a interpretação constitucional não é suficiente, sendo neces<strong>sá</strong>ria a<br />

produção <strong>de</strong> uma norma mediante a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens, no sentido <strong>de</strong> equilibrar e or<strong>de</strong>nar os<br />

<strong>direito</strong>s ou bens conflitantes <strong>de</strong> forma concreta.<br />

Por outro lado, a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens não po<strong>de</strong> ser confundida com a<br />

interpretação, pois a pon<strong>de</strong>ração possui pressupostos básicos para a sua realização, segundo<br />

Steinmtetz 182 . O autor comenta que o primeiro pressuposto diz respeito à “colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou otimização <strong>de</strong><br />

um implica a afetação, a restrição ou até mesmo a não realização do outro”. O segundo<br />

pressuposto refere-se à “inexistência <strong>de</strong> uma hierarquia abstrata, a priori, entre os <strong>direito</strong>s <strong>em</strong><br />

colisão, isto é, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma regra <strong>de</strong> prevalência <strong>de</strong>finitiva ex ante,<br />

prescindindo das circunstâncias do caso concreto”.<br />

O exercício da pon<strong>de</strong>ração ou a operacionalização da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>ve levar <strong>em</strong><br />

conta o grau <strong>de</strong> interferência sobre o <strong>direito</strong> pretendido. A pon<strong>de</strong>ração po<strong>de</strong> ser realizada tanto<br />

181 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais e princípio da proporcionalida<strong>de</strong>. Porto<br />

Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 140.<br />

182 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p.142.<br />

79


pelo juiz como pelo legislador para a solução do caso concreto 183 . Além disso, é importante<br />

l<strong>em</strong>brar que a prevalência <strong>de</strong> um <strong>direito</strong> sobre o outro é <strong>de</strong>terminado <strong>em</strong> função do caso<br />

concreto por meio da aplicação do princípio da proporcionalida<strong>de</strong> 184 .<br />

No tocante ao conceito do princípio da proporcionalida<strong>de</strong>, não há um consenso<br />

exato. Algumas vezes, ele equivale ao termo razoabilida<strong>de</strong>; outras vezes, é utilizado no<br />

sentido do princípio da proporcionalida<strong>de</strong>. No Brasil, o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Fe<strong>de</strong>ral t<strong>em</strong><br />

utilizado a expressão razoabilida<strong>de</strong>. De qualquer forma, o que se nota é que tal princípio serve<br />

para a averiguação da constitucionalida<strong>de</strong> ou não <strong>de</strong> leis que venham a interferir na órbita da<br />

liberda<strong>de</strong> humana.<br />

Men<strong>de</strong>s 185 ressalta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise dos componentes da realida<strong>de</strong> da vida<br />

que estão sendo abrangidos, ou seja, a observância das questões cotidianas. Para tanto, faz-se<br />

neces<strong>sá</strong>ria uma autocompreensão da pessoa humana, como mencionado por Larenz 186 .<br />

Entretanto, percebe-se a dificulda<strong>de</strong>, na prática, <strong>em</strong> distinguir ou separar a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong><br />

bens e o princípio da proporcionalida<strong>de</strong>, havendo uma unida<strong>de</strong> entre eles. Mas, com relação à<br />

a posição majoritária na doutrina, Steinmetz aponta o que segue:<br />

Consi<strong>de</strong>ra-se que a pon<strong>de</strong>ração concreta <strong>de</strong> bens, na colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais, realiza-se mediante o controle <strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> sentido<br />

amplo, <strong>de</strong> modo especial ou propriamente dito por meio do princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> sentido estrito, o terceiro subprincípio constitutivo do<br />

princípio da proporcionalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> sentido amplo. Assim, o princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> sentido amplo compreen<strong>de</strong> a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens. 187<br />

No século XX, o princípio da proporcionalida<strong>de</strong> tomou posição <strong>de</strong> relevância no<br />

<strong>direito</strong>, como técnica <strong>de</strong> controle dos limites aos diretos fundamentais 188 . Dele <strong>em</strong>ana as<br />

idéias <strong>de</strong> justiça, eqüida<strong>de</strong>, bom senso, prudência, mo<strong>de</strong>ração, justa medida, proibição <strong>de</strong><br />

excessos, <strong>direito</strong> justo e valores afins. Esse princípio, entendido como um mandamento <strong>de</strong><br />

otimização do respeito máximo a todo <strong>direito</strong> fundamental, <strong>em</strong> situação <strong>de</strong> conflito com outro<br />

183 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />

184 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais e princípio da proporcionalida<strong>de</strong>. Porto<br />

Alegre: Livraria do Advogado, 2001.<br />

185 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />

186 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do <strong>direito</strong>. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.<br />

187 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais e princípio da proporcionalida<strong>de</strong>. Porto<br />

Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 44-45.<br />

188 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />

80


princípio, na medida do possível, <strong>de</strong>termina que, para alcançar o fim <strong>de</strong>sejado, o meio<br />

utilizado <strong>de</strong>ve ser proporcional, s<strong>em</strong> excesso. Por isso, ele é constituído por três outros<br />

princípios parciais ou subprincípios: o da a<strong>de</strong>quação, o da necessida<strong>de</strong> (ou exigibilida<strong>de</strong> ou<br />

indispensabilida<strong>de</strong>) e o da proporcionalida<strong>de</strong> <strong>em</strong> sentido estrito.<br />

Também <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> princípio da idoneida<strong>de</strong> ou da conformida<strong>de</strong>, o<br />

subprincípio da a<strong>de</strong>quação <strong>de</strong>termina que o meio a ser aplicado ao caso concreto <strong>de</strong>ve ser<br />

a<strong>de</strong>quado ao fim pretendido. Steinmetz 189 esclarece que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre haverá um único meio<br />

idôneo, a<strong>de</strong>quado para a realização do controle da constitucionalida<strong>de</strong>, apenas se verificará o<br />

meio mais apto, útil, apropriado para se obter o resultado perseguido.<br />

O segundo subprincípio da necessida<strong>de</strong> comentado por Steinmetz 190 é conhecido<br />

também por princípio da exigibilida<strong>de</strong>, da indispensabilida<strong>de</strong>, da intervenção mínima, o qual<br />

<strong>de</strong>termina a escolha do meio menos gravoso ao exercício do <strong>direito</strong> fundamental, ou seja, a<br />

medida a ser tomada só po<strong>de</strong> ser admitida quando for efetivamente neces<strong>sá</strong>ria.<br />

Por fim, o último dos subprincípios que compl<strong>em</strong>entam o princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong> é o princípio da proporcionalida<strong>de</strong> propriamente <strong>em</strong> sentido estrito.<br />

Segundo Steinmetz, ele exige que na relação meio-fim haja uma reciprocida<strong>de</strong> razoável, uma<br />

correspondência, ou seja, a justa medida, impedindo que sejam adotadas medidas legais<br />

restritivas <strong>de</strong>sproporcionais.<br />

Diante disso, nota-se que todos esses subprincípios <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser observados para a<br />

solução <strong>de</strong> conflito <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais, sendo certo que o princípio da proporcionalida<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong> ser utilizado para sopesar que <strong>direito</strong> <strong>de</strong>ve ser resguardado <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outro<br />

<strong>direito</strong> fundamental baseado no caso concreto. Como já dito, o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Fe<strong>de</strong>ral t<strong>em</strong><br />

feito uso <strong>de</strong>sse princípio como instrumento para a solução <strong>de</strong> colisão entre <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais, sob a expressão “razoabilida<strong>de</strong>”. Entretanto, a Supr<strong>em</strong>a Corte t<strong>em</strong> ressaltado a<br />

existência <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> outros meios <strong>de</strong> provas também válidos 191 .<br />

Contudo, qual seja a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> um <strong>direito</strong> fundamental, observada<br />

pelos juízes ou tribunais, cabe observar s<strong>em</strong>pre o princípio da dignida<strong>de</strong> humana como basilar<br />

<strong>de</strong> todo or<strong>de</strong>namento jurídico, posto que a dignida<strong>de</strong> é um valor maioral e supr<strong>em</strong>o do ser<br />

189 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais e princípio da proporcionalida<strong>de</strong>. Porto<br />

Alegre: Livraria do Advogado, 2001.<br />

190 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m.<br />

191 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.<br />

81


humano, e <strong>de</strong>le todos os outros princípios são <strong>de</strong>correntes.<br />

Nota-se, na doutrina e na jurisprudência, que n<strong>em</strong> todos os aplicadores do <strong>direito</strong><br />

são favoráveis à utilização <strong>de</strong>sse princípio e, no ponto a seguir, verificar-se-ão alguns pontos<br />

contrários à sua utilização.<br />

4.2 OBJEÇÕES À APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO<br />

A doutrina e a jurisprudência não negam a existência do princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong>, n<strong>em</strong> tampouco a sua difusão no or<strong>de</strong>namento jurídico. Contudo, é possível<br />

verificar algumas objeções contra ele. Não se trata <strong>de</strong> uma negação ou inexistência, mas uma<br />

divergência quanto ao seu fundamento normativo.<br />

Steinmetz <strong>de</strong>dica, <strong>em</strong> seu livro “Colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais e princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong>”, um capítulo às objeções ao princípio da proporcionalida<strong>de</strong>, ressaltando<br />

três pontos. O primeiro refere-se à ameaça à separação dos po<strong>de</strong>res, ou seja, o exame e a<br />

aplicação do princípio da proporcionalida<strong>de</strong> nos <strong>direito</strong>s fundamentais seria uma ameaça ao<br />

equilíbrio entre o po<strong>de</strong>r legislativo e o po<strong>de</strong>r judiciário, pois acarretaria um enfraquecimento<br />

do legislativo.<br />

Ele comenta a posição <strong>de</strong> outros autores sobre o assunto, como Schmidt, que<br />

enten<strong>de</strong> que o uso e <strong>em</strong>prego do princípio da proporcionalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam instaurar uma<br />

ditadura. Trata-se <strong>de</strong> alerta e observação extr<strong>em</strong>amente úteis, contudo não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

resolver um conflito entre <strong>direito</strong>s fundamentais postos no texto constitucional, sob a alegação<br />

da separação dos po<strong>de</strong>res.<br />

A segunda objeção relatada pelo autor acima citado diz respeito à violação dos<br />

princípios da segurança jurídica e da igualda<strong>de</strong>. Dev<strong>em</strong> ser entendidos como imperiosos no<br />

<strong>direito</strong> o tratamento igualitário e a previsibilida<strong>de</strong> das <strong>de</strong>cisões. Entretanto, diferença <strong>de</strong><br />

tratamento não significa discriminação, l<strong>em</strong>brando aqui o princípio da isonomia. Quanto à<br />

segurança jurídica, ressalta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir o princípio da legalida<strong>de</strong> e não a<br />

previsibilida<strong>de</strong> e exatidão da <strong>de</strong>cisão que o juiz irá tomar.<br />

82


A última objeção relatada por Steinmetz – e talvez a mais grave <strong>de</strong>las – diz<br />

respeito à metodologia utilizada na pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens. Segundo o autor 192 , “As objeções<br />

metodológicas põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> questão a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens enquanto método, enquanto<br />

procedimento racional”. Nota-se aqui o objetivo claro <strong>em</strong> refutar a utilização da pon<strong>de</strong>ração<br />

<strong>de</strong> bens que induza a valores subjetivos, não controláveis dos órgãos superiores, a um<br />

subjetivismo irracional, o que provocaria um esvaziamento do conteúdo material dos <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais. Apesar disso, há que se comentar que a pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens é um procedimento<br />

racional e válido para a colisão <strong>de</strong> princípios e <strong>direito</strong>s fundamentais, com a utilização <strong>de</strong><br />

todos os argumentos possíveis, inclusive jurídicos.<br />

No julgamento ocorrido no dia 28 <strong>de</strong> maio do presente ano, no STF, da Ação<br />

Direta <strong>de</strong> Inconstitucionalida<strong>de</strong> (ADI) 3510, que discutiu a legalida<strong>de</strong> das pesquisas com<br />

células-tronco <strong>em</strong>brionárias, o ministro Eros Grua iniciou sua manifestação no seguinte<br />

sentido:<br />

Tenho reiteradamente insistido que o intérprete do <strong>direito</strong> não se limita a<br />

compreen<strong>de</strong>r textos que participam do mundo do <strong>de</strong>ver ser; há <strong>de</strong> interpretar<br />

também a realida<strong>de</strong>, os movimentos dos fatores reais do po<strong>de</strong>r, compreen<strong>de</strong>r o<br />

momento histórico no qual as normas da Constituição e as <strong>de</strong>mais,<br />

infraconstitucionais, são produzidas, vale dizer, o momento da passag<strong>em</strong> da<br />

dimensão textual para a dimensão normativa. 193<br />

S<strong>em</strong> sair do t<strong>em</strong>a do presente trabalho e do ponto <strong>em</strong> questão, o Ministro Gilmar<br />

Men<strong>de</strong>s se manifestou na mesma ação no seguinte sentido, fazendo referência a uma <strong>de</strong>cisão<br />

do tribunal al<strong>em</strong>ão:<br />

Na jurisprudência do Tribunal Constitucional al<strong>em</strong>ão, a utilização do princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong> como proibição <strong>de</strong> proteção <strong>de</strong>ficiente po<strong>de</strong> ser encontrada na<br />

segunda <strong>de</strong>cisão sobre o aborto (BverfGE 88, 203, 1993). O<br />

Bun<strong>de</strong>sverfassungsgericht assim se pronunciou: “O Estado, para cumprir com seu<br />

<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> proteção, <strong>de</strong>ve <strong>em</strong>pregar medidas suficientes <strong>de</strong> caráter normativo e<br />

material, que lev<strong>em</strong> a alcançar – aten<strong>de</strong>ndo à contraposição <strong>de</strong> bens jurídicos – uma<br />

proteção a<strong>de</strong>quada, e como tal, efetiva (proibição <strong>de</strong> insuficiência).<br />

[…]<br />

É tarefa do legislador <strong>de</strong>terminar, <strong>de</strong>talhadamente, o tipo e a extensão da proteção. A<br />

Constituição fixa a proteção como meta, não <strong>de</strong>talhando, porém, sua configuração.<br />

No entanto, o legislador <strong>de</strong>ve observar a proibição <strong>de</strong> insuficiência […].<br />

192 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais e princípio da proporcionalida<strong>de</strong>. Porto<br />

Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 199.<br />

193 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>:<br />

30 jun. 2008.<br />

83


Consi<strong>de</strong>rando-se bens jurídicos contrapostos, neces<strong>sá</strong>ria se faz uma proteção<br />

a<strong>de</strong>quada. Decisivo é que a proteção seja eficiente como tal. As medidas tomadas<br />

pelo legislador <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser suficientes para uma proteção a<strong>de</strong>quada e eficiente e, além<br />

disso, basear-se <strong>em</strong> cuidadosas averiguações <strong>de</strong> fatos e avaliações racionalmente<br />

sustentáveis […]. 194<br />

Diante do exposto, observam-se a aceitação e a utilização clara do princípio da<br />

proporcionalida<strong>de</strong> pela Supr<strong>em</strong>a Corte Brasileira para a solução <strong>de</strong> casos complicados, <strong>em</strong><br />

especial, quando se verifica a colisão <strong>de</strong> princípios.<br />

4.3 ANÁLISE DOS ARGUMENTOS DA ADPF 54<br />

A Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, no Art. 102, § 1°, dispõe que “A argüição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental, <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong>sta Constituição, será apreciado pelo<br />

Supr<strong>em</strong>o Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, na forma da lei”. Observa-se, assim, que a legislação pátria<br />

instituiu mais um instrumento <strong>de</strong> fiscalização abstrata e controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, que<br />

se <strong>de</strong>stina a proteger os preceitos fundamentais. Entretanto, tratava-se <strong>de</strong> uma norma<br />

constitucional <strong>de</strong> eficácia limitada, que <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong> lei estabelecendo a forma <strong>de</strong> apreciação.<br />

Em 03 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1999, foi editada, pelo Congresso Nacional, a Lei N°<br />

9.882, que regulamentou a argüição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental (ADPF).<br />

Essa ação po<strong>de</strong> ser proposta por aqueles mencionados no Art. 103, I a IX, da Constituição<br />

Fe<strong>de</strong>ral, abrangendo somente os atos do Po<strong>de</strong>r Público, <strong>de</strong> qualquer natureza, sejam<br />

normativos ou não, inclusive as omissões.<br />

Silva assim <strong>de</strong>fine preceitos fundamentais:<br />

Preceitos fundamentais não é expressão sinônima <strong>de</strong> princípios fundamentais. É<br />

mais ampla, abrange a essas e todas as prescrições que dão o sentido básico do<br />

regime constitucional, como são, por ex<strong>em</strong>plo, as que apontam para a autonomia dos<br />

Estados, do Distrito Fe<strong>de</strong>ral e especialmente as <strong>de</strong>signativas <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s e garantias<br />

fundamentais. 195<br />

194 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>:<br />

30 jun. 2008.<br />

195 SILVA, José Afonso. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,<br />

2006, p. 559.<br />

84


Nota-se que preceitos fundamentais se difer<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais. Ferrari 196<br />

esclarece: “os preceitos englobam os <strong>direito</strong>s e garantias fundamentais da Constituição, b<strong>em</strong><br />

como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, <strong>de</strong> forma a consagrar maior<br />

efetivida<strong>de</strong> às previsões constitucionais”.<br />

O Art. 1° da Constituição Fe<strong>de</strong>ral consagra a forma fe<strong>de</strong>rativa do Estado; o voto<br />

direto, secreto, universal e periódico; a separação dos po<strong>de</strong>res; os <strong>direito</strong>s e garantias<br />

individuais, sendo vedada a <strong>de</strong>liberação <strong>de</strong> proposta <strong>de</strong> <strong>em</strong>enda ten<strong>de</strong>nte a abolir qualquer um<br />

<strong>de</strong>sses princípios (Art. 60, § 4°), vigas-mestras do Estado D<strong>em</strong>ocrático Brasileiro.<br />

A esses princípios ligam-se outros e, como conseqüência, gera-se a estabilida<strong>de</strong><br />

da or<strong>de</strong>m jurídica nacional, proporcionando preceitos como a soberania, a cidadania, a<br />

dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, a família, o matrimônio, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoção, <strong>de</strong><br />

expressão, <strong>de</strong> pensamento, os valores sociais do trabalho, a livre iniciativa, o pluralismo<br />

político, a distribuição <strong>de</strong> competências entre a União, os Estados, o Distrito Fe<strong>de</strong>ral e os<br />

Municípios. Doutrinadores como Gilmar Ferreira Men<strong>de</strong>s atestam a dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> conceituá-<br />

los, mas esse autor ressalta que alguns estão enunciados <strong>de</strong> maneira explícita na Constituição.<br />

Correa:<br />

Sobre o conceito <strong>de</strong> preceito, Ferrari 197 recorre às palavras do Ministro Oscar Dias<br />

Cabe exclusivamente e soberanamente ao STF conceituar o que é <strong>de</strong>scumprimento<br />

<strong>de</strong> preceito fundamental <strong>de</strong>corrente da Constituição, porque promulgado o texto<br />

constitucional é ele o único, soberano e <strong>de</strong>finitivo intérprete, fixando quais são os<br />

preceitos fundamentais, obediente a um único parâmetro – a or<strong>de</strong>m jurídica<br />

nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los [...]<br />

Diante disso, conclui-se que “preceitos fundamentais” é expressão que abrange<br />

mais do que princípios fundamentais, pois o instituto tutela a lesão e a ameaça <strong>de</strong> lesão <strong>de</strong> ato<br />

<strong>em</strong>anado <strong>de</strong> qualquer um dos po<strong>de</strong>res, <strong>de</strong> forma que s<strong>em</strong>pre será possível a argüição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental (ADPF), para preservar ou prontamente restabelecer<br />

a efetivida<strong>de</strong> do princípio constitucional da segurança jurídica.<br />

O objeto da argüição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental (ADPF) é fazer<br />

cessar o <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental por ato do Po<strong>de</strong>r Público, posteriormente<br />

196 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong>. 5. ed. rev., atual. e<br />

ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 434.<br />

197 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 440.<br />

85


<strong>de</strong>clarado inconstitucional ou incompatível com a Constituição, se tratar <strong>de</strong> ato<br />

administrativo, ou, ainda, ato do Po<strong>de</strong>r Judiciário, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se comprove a controvérsia<br />

judicial relevante.<br />

De acordo com o Art. 1° da Lei 9.882/99, a nova ação t<strong>em</strong> por objeto “evitar ou<br />

reparar lesão a preceito fundamental, resultante <strong>de</strong> ato do po<strong>de</strong>r público” e “quando for<br />

relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo fe<strong>de</strong>ral,<br />

estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição”. Compete ao Supr<strong>em</strong>o Tribunal<br />

Fe<strong>de</strong>ral (STF) o processamento e o julgamento da argüição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito<br />

fundamental, tendo como paradigma a Constituição Fe<strong>de</strong>ral. No âmbito estadual, tendo como<br />

paradigma a Constituição Estadual, o controle po<strong>de</strong> ser exercido pelo Tribunal <strong>de</strong> Justiça do<br />

Estado, caso haja previsão <strong>de</strong>sse instituto na respectiva Constituição do Estado.<br />

A Lei 9.882/99 estabeleceu três hipóteses <strong>de</strong> cabimento da argüição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental (ADPF), a saber: para evitar lesão a preceito<br />

fundamental resultante <strong>de</strong> ato do Po<strong>de</strong>r Público; para reparar lesão a preceito fundamental<br />

resultante <strong>de</strong> ato do Po<strong>de</strong>r Público; e quando for relevante o fundamento da controvérsia<br />

constitucional sobre lei ou ato normativo fe<strong>de</strong>ral, estadual ou municipal, incluídos os<br />

anteriores à Constituição. O ilustre professor Streck enten<strong>de</strong> que, “Desse modo, a argüição<br />

será cabível quando houver controvérsia instalada acerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito<br />

fundamental, <strong>de</strong>scumprimento este acarretado por uma lei municipal, estadual ou fe<strong>de</strong>ral,<br />

inclusive os anteriores à Constituição” 198 .<br />

Ressalta-se que a referida ação t<strong>em</strong> caráter subsidiário, ou seja, é vedada a<br />

propositura da mesma, se for possível a utilização <strong>de</strong> outro meio eficaz, como habeas corpus,<br />

habeas data, mandado <strong>de</strong> segurança, entre outros, para sanar a lesivida<strong>de</strong>. O autor supracitado<br />

enten<strong>de</strong> que “a ADPF consiste <strong>em</strong> instituto dirigido especificamente ao cidadão buscar<br />

proteção constitucional quando um <strong>direito</strong> seu é violado pelos po<strong>de</strong>res públicos”.<br />

De acordo com o Art. 2° da Lei N° 9.882/99, os legitimados para propor a<br />

argüição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental (ADPF) são os mesmos legitimados<br />

para propor a ação direta <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> relacionada no Art. 103, incisos I a IX, da<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral. É possível dividi-los <strong>em</strong> legitimados ativos universais e especiais. São<br />

legitimados universais: o Presi<strong>de</strong>nte da República, as Mesas do Senado e da Câmara <strong>de</strong><br />

198 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense, 2004, p.<br />

810.<br />

86


Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Fe<strong>de</strong>ral da Or<strong>de</strong>m dos Advogados<br />

do Brasil e partido político com representação no Congresso Nacional. Os legitimados<br />

especiais compreen<strong>de</strong>m o Governador <strong>de</strong> Estado, a Mesa da Ass<strong>em</strong>bléia Legislativa do<br />

Estado, confe<strong>de</strong>ração sindical ou entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe <strong>de</strong> âmbito nacional.<br />

Já os legitimados passivos da argüição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito<br />

fundamental (ADPF) são as autorida<strong>de</strong>s ou entida<strong>de</strong>s respon<strong>sá</strong>veis pela prática do ato<br />

questionado ou pela omissão impugnada. O Advogado-Geral da União <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhar o<br />

mesmo papel exercido no caso da ação direta <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> (ADIN) genérica,<br />

atuando como curador da presunção <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> do ato questionado, seja ele<br />

normativo ou não.<br />

Os efeitos da <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> argüição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito fundamental<br />

(ADPF) <strong>de</strong> lei ou ato normativo proferida pelo STF, segundo Moraes 199 , “terá eficácia contra<br />

todos – erga omnes – e efeitos vinculantes aos <strong>de</strong>mais órgãos do Po<strong>de</strong>r Público, cabendo,<br />

inclusive, reclamação para a garantia <strong>de</strong>sses efeitos”. Tal fato esta <strong>de</strong>terminado no Art. 11° da<br />

Lei N° 9.882/99.<br />

A <strong>de</strong>cisão obtida é irrecorrível, não sendo aceita a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpor ação<br />

rescisória, sendo certo que as soluções obtidas por esse tipo <strong>de</strong> ação fornecerão diretrizes ao<br />

or<strong>de</strong>namento jurídico, impedindo diversas e distintas interpretações jurídicas.<br />

Des<strong>de</strong> a aprovação da Lei 9882/99 até <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 2005, haviam sido propostas<br />

oitenta e seis ADPFs. No caso do aborto do feto anencéfalo, foi proposta a ADPF 54 que<br />

possui como pedido central a interpretação do Código Penal à luz da Constituição, <strong>de</strong>clarando<br />

os artigos nele previstos que tipificam o crime <strong>de</strong> aborto que não se aplicass<strong>em</strong> n<strong>em</strong> à gestante<br />

n<strong>em</strong> aos profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, no caso <strong>de</strong> antecipação terapêutica do parto <strong>de</strong> feto<br />

anencefálico. Além disso, foi solicitado o reconhecimento às gestantes que se encontrass<strong>em</strong><br />

nessa situação do <strong>direito</strong> <strong>de</strong> interromper<strong>em</strong> a gestação, s<strong>em</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autorização<br />

judicial prévia ou qualquer outra forma <strong>de</strong> permissão específica do Estado.<br />

O pedido da ADPF 54 está baseado na violação da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana,<br />

na medida <strong>em</strong> que submete a gestante ao enorme e inútil sofrimento <strong>de</strong> levar a termo uma<br />

gravi<strong>de</strong>z inviável, fato que afetaria sua integrida<strong>de</strong> física e psicológica (CF, Art. 1°, IV); na<br />

violação do <strong>direito</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> da gestante – “ninguém é obrigado a fazer ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer<br />

alguma coisa senão <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei” –, <strong>em</strong> que se aplica a ela a vedação do Código Penal<br />

199 MORAES, Alexandre <strong>de</strong>. Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 667.<br />

87


elativa ao aborto, quando <strong>de</strong> aborto não se tratava, à vista da falta <strong>de</strong> potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida<br />

do feto (CF, Art. 5°, II); e na violação do <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong> da gestante, ao obrigá-la a levar a<br />

termo uma gravi<strong>de</strong>z inviável, quando há procedimento médico a<strong>de</strong>quado para minimizar seu<br />

sofrimento físico e psicológico, sendo certo que <strong>em</strong> relação ao feto nada se po<strong>de</strong> fazer (Arts.<br />

6° e 196, CF).<br />

A ação foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio <strong>de</strong> Mello, que conce<strong>de</strong>u liminar<br />

para reconhecer o <strong>direito</strong> das gestantes portadoras <strong>de</strong> fetos anencefálicos <strong>de</strong> se submeter<strong>em</strong> à<br />

antecipação terapêutica do parto, uma vez atestada <strong>em</strong> laudo médico a anomalia. O Ministro<br />

<strong>de</strong>terminou ainda o sobrestamento dos processos e <strong>de</strong>cisões não transitadas <strong>em</strong> julgado sobre<br />

a matéria, tendo <strong>em</strong> vista a relevância da matéria. Para ele, “diante <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>formação<br />

irreversível do feto, há <strong>de</strong> se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à<br />

disposição da humanida<strong>de</strong> não para simples inserção, no dia-a-dia, <strong>de</strong> sentimentos mórbidos,<br />

mas, justamente, para fazê-los cessar” 200 . Até a <strong>de</strong>liberação pelo plenário do Supr<strong>em</strong>o<br />

Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, essa será a <strong>de</strong>cisão que prevalecerá.<br />

Sobre esse ponto, Streck esclarece:<br />

Não vislumbro a inconstitucionalida<strong>de</strong> nos termos proprostos. Com efeito, como<br />

ficará mais claro no seguimento, o inciso I do parágrafo único do Art. 1° apenas<br />

esten<strong>de</strong>u as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> utilização da argüição <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> preceito<br />

fundamental. Ao contrário do entendimento <strong>de</strong> alguns juristas, entendo que a ADPF<br />

é, sim, uma forma <strong>de</strong> controle (difuso e concentrado) <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Por<br />

isso, o exame <strong>de</strong> atos normativos (fe<strong>de</strong>rais, estaduais ou municipais, inclusive<br />

anteriores à Constituição) que afront<strong>em</strong> preceitos fundamentais e sobre os quais<br />

exista controvérsia relevante, po<strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> instituto <strong>em</strong> tela. 201<br />

Alguns ministros do STF <strong>de</strong>ram evidências sobre suas posições a favor do <strong>direito</strong><br />

da mulher <strong>em</strong> optar pela interrupção da gravi<strong>de</strong>z no caso <strong>de</strong> fetos anencefálicos, mencionando<br />

que a legislação penal data <strong>de</strong> 1940, portanto, ultrapassada para o século XXI. Outros,<br />

entretanto, enten<strong>de</strong>ram pelo arquivamento da ação, pois estariam substituindo o Congresso<br />

Nacional na tarefa <strong>de</strong> legislar, posto que estariam criando uma hipótes <strong>de</strong> aborto não prevista<br />

no Código Penal.<br />

200 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>:<br />

30 jun. 2008<br />

201 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense, 2004, p.<br />

809.<br />

88


O fato é que se torna fundamental, diante da existência <strong>de</strong> várias <strong>de</strong>cisões<br />

contraditórias <strong>em</strong> todo o país a respeito do assunto, que o STF possa dar uma solução<br />

<strong>de</strong>finitiva para os casos <strong>de</strong> pedidos <strong>de</strong> aborto <strong>de</strong> fetos anencefálicos e garantir, assim, a<br />

segurança jurídica e, principalmente, o Estado D<strong>em</strong>ocrático Brasileiro, por meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões<br />

firmes e <strong>de</strong> peso, <strong>de</strong>ntro dos preceitos da laicacida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong>.<br />

4.4 APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO NO CASO DO FETO ANENCÉFALO<br />

Após a análise da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> interesses, do princípio da proporcionalida<strong>de</strong>,<br />

dos argumentos apresentado na ADPF 54, torna-se possível tecer algumas consi<strong>de</strong>rações no<br />

sentido da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> valores <strong>de</strong> prevalência dos <strong>direito</strong>s da gestante quando<br />

diagnosticada a anencefalia do feto, sob o prisma do princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa<br />

humana. A dignida<strong>de</strong> da pessoa humana <strong>de</strong>ve ser utilizada como critério <strong>de</strong> interpretação,<br />

tanto no que se refere ao feto como à mãe, já que se trata <strong>de</strong> um <strong>direito</strong> basilar do Estado<br />

D<strong>em</strong>ocrático e Republicano do Brasil.<br />

Sarlet 202 aponta que a dignida<strong>de</strong> é uma qualida<strong>de</strong> intrínseca da pessoa humana e,<br />

sendo assim, é inalienável e irrenunciável como el<strong>em</strong>ento qualificador do ser humano, é algo<br />

intangível. A própria ONU, por meio do Art. 1° da Declaração Universal <strong>de</strong> 1948, reconhece<br />

que todos os seres humanos nasc<strong>em</strong> livres e iguais <strong>em</strong> dignida<strong>de</strong> e <strong>direito</strong>s. Trata-se <strong>de</strong> um<br />

valor da alma da pessoa, inerente à pessoa, cuja manifestação se dá pela auto<strong>de</strong>terminação<br />

sobre a própria vida, ou seja, pela autonomia <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>. Diante disso, Sarlet 203 afirma que o<br />

el<strong>em</strong>ento nuclear do conceito <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> da pessoa humana está baseado na matriz<br />

kantiana, concentrando-se na autonomia da vonta<strong>de</strong> da pessoa. Ele <strong>de</strong>staca:<br />

[…] verifica-se que o el<strong>em</strong>ento nuclear da noção <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> da pessoa humana<br />

parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária conforta esta<br />

conclusão – primordialmente à matriz Kantiana, centrando-se, portanto, na<br />

autonomia e no <strong>direito</strong> <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação da pessoa (<strong>de</strong> cada pessoa). 204<br />

202 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignida<strong>de</strong> da pessoa e <strong>direito</strong>s fundamentais na Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988,<br />

4. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.<br />

203 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 45.<br />

204 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, loc. cit.<br />

89


Assim, todos os seres humanos estariam protegidos pela sua dignida<strong>de</strong>, incluindo<br />

aí o nascituro, como também a pessoa que esteja à beira da morte. Desse modo, a carta magna<br />

consagra, no Art. 1°, inciso III, o princípio da dignida<strong>de</strong> humana como um dos fundamentos<br />

da República, posto que é próprio do indivíduo, sujeito pertencente ao Estado. Diante disso,<br />

só são válidos a manutenção e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma vida quando ela seja digna. Fabriz<br />

b<strong>em</strong> <strong>de</strong>fine o significado e a importância do princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana:<br />

[…] a dignida<strong>de</strong> da pessoa é a pessoa concreta, na sua vida real e cotidiana; não é <strong>de</strong><br />

um ser i<strong>de</strong>al e abstrato. É o hom<strong>em</strong> ou a mulher, tal como existe, que a or<strong>de</strong>m<br />

jurídica consi<strong>de</strong>ra irredutível e insubstituível e cujos dire3itos fundamentais a<br />

constituição enuncia e protege. Em todo hom<strong>em</strong> e <strong>em</strong> toda a mulher estão presentes<br />

todas as faculda<strong>de</strong>s da humanida<strong>de</strong>. 205<br />

Como já dito anteriormente, a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana é <strong>de</strong> tamanha<br />

relevância que se encontra consagrada expressamente no título dos princípios fundamentais e<br />

como um dos fundamentos do Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito. Observa-se que esse princípio<br />

<strong>de</strong>ve respeitar a auto<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> cada mulher ou hom<strong>em</strong>, posto que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> po<strong>de</strong>r tomar<br />

<strong>de</strong>cisões fundamentais sobre suas próprias vidas s<strong>em</strong> a interferência do Estado ou <strong>de</strong> terceiros.<br />

Desse modo, se toda pessoa humana t<strong>em</strong> dignida<strong>de</strong> como qualida<strong>de</strong> intrínseca, que a<br />

acompanha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua fase <strong>em</strong>brionária até a sua morte, é exigido respeito por essa vida,<br />

sendo um <strong>de</strong>ver do Estado a sua efetivação.<br />

Consi<strong>de</strong>rando o caso do feto anencéfalo, que princípio fundamental <strong>de</strong>ve ser<br />

garantido ou privilegiado <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do outro, já que se t<strong>em</strong> como partes ou sujeitos o<br />

nascituro e a mãe? Tratam-se <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s absolutos ou não? Nesse caso, a solução do probl<strong>em</strong>a<br />

estaria na pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> valores, levando-se <strong>em</strong> conta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma análise<br />

interdisciplinar, entre o <strong>direito</strong> e a medicina. De um lado, o nascituro com o diagnóstico <strong>de</strong><br />

anencefalia possui a garantia constitucional do <strong>direito</strong> à vida, mas po<strong>de</strong>rá não se <strong>de</strong>senvolver<br />

o suficiente, <strong>de</strong>vido à sua malformação, e morrer ainda no ventre materno, ou, se chegar ao<br />

momento do nascimento, não terá possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina, pois logo após o<br />

nascimento morre <strong>em</strong> 100% dos casos analisados – uma potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, mas <strong>de</strong> fato<br />

uma vida real fracassada. Por outro lado, a mãe gestante, obrigada a manter a gravi<strong>de</strong>z até o<br />

seu término, conhecendo que esse filho não terá qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida autônoma e<br />

livre fora do seu útero, com um ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sadio e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, experimenta<br />

205<br />

FABRIZ, Daury César. Bioética e <strong>direito</strong>s fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao bio<strong>direito</strong>.<br />

Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 274.<br />

90


algo s<strong>em</strong>elhante à tortura, tendo <strong>em</strong> vista o sofrimento insuportável pelo qual terá que passar,<br />

correndo riscos à sua saú<strong>de</strong> e à sua integrida<strong>de</strong> mental, s<strong>em</strong> qualquer b<strong>em</strong>-estar psicológico.<br />

Além dos riscos físicos e psíquicos que po<strong>de</strong>m ocorrer para a mãe, ela não po<strong>de</strong>rá<br />

exercer seu <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha <strong>em</strong> manter ou não a gravi<strong>de</strong>z, sob pena <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r<br />

por crime <strong>de</strong> aborto, já que a anencefalia não é exclu<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ilicitu<strong>de</strong> penal.<br />

Ao analisar a situação <strong>de</strong> conflito existente, faz-se neces<strong>sá</strong>rio elaborar uma<br />

autocompreensão existencial 206 . Cabe consi<strong>de</strong>rar os <strong>direito</strong>s da gestante sob o prisma do<br />

princípio da dignida<strong>de</strong> humana, além do fato <strong>de</strong> que o feto com diagnóstico <strong>de</strong> malformação<br />

fetal é incompatível com a vida extra-uterina <strong>de</strong> forma potencial, uma vez que inexiste<br />

qualquer terapia médica capaz <strong>de</strong> reverter ou alterar o quadro clínico apresentado. Assim, na<br />

pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> valores envolvidos, é evi<strong>de</strong>nte que o <strong>direito</strong> <strong>de</strong> escolha da mãe, baseado na<br />

autonomia da vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve prevalecer, sob pena <strong>de</strong> atentar contra sua integrida<strong>de</strong> física e<br />

psíquica, contra sua saú<strong>de</strong>. A retirada <strong>de</strong>sse feto anencéfalo seria o mais aceitável, enfocando<br />

o <strong>direito</strong> fundamental da vida <strong>de</strong> forma relativa para essa situação específica.<br />

Sobre esse ponto, Habermas afirma:<br />

Por um lado, sob as condições do pluralismo i<strong>de</strong>ológico, não po<strong>de</strong>mos atribuir ao<br />

<strong>em</strong>brião, “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início”, a proteção absoluta da vida, <strong>de</strong> que as pessoas enquanto<br />

portadores <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais <strong>de</strong>sfrut<strong>em</strong>. Por outro, existe a intuição <strong>de</strong> que<br />

não po<strong>de</strong>mos simplesmente dispor da vida humana pré-pessoal como um b<strong>em</strong><br />

submetido à concorrência. 207<br />

Com o <strong>direito</strong> fundamental à liberda<strong>de</strong>, à autonomia e à saú<strong>de</strong>, a responsabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> optar pela interrupção ou pelo prosseguimento da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>ve ser dado ao sujeito do<br />

<strong>direito</strong>, ou seja, à mãe, sob pena <strong>de</strong> se cometer um crime contra a vida ainda mais grave: o <strong>de</strong><br />

tortura, por meio da violação da integrida<strong>de</strong> física e psíquica. A vida não se trata <strong>de</strong> um<br />

simples acontecimento biológico, pois tanto a vida como a morte provocam acontecimentos<br />

simbólicos para o próprio indivíduo 208 e para os seus. Possui um sentido para os humanos, é<br />

algo completo, <strong>de</strong>vendo ser gozado <strong>em</strong> sua plenitu<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>svinculado <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po. É<br />

relacionar-se com os outros, é o enlace, a intersubjetivida<strong>de</strong>, ou seja, cada ser humano está<br />

206 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho da uma eugenia liberal? Trad. Karina<br />

Jannimi. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

207 I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 60.<br />

208 Indivíduo, para Aristóteles, é a espécie, porquanto sendo resultado da divisão do gênero, não po<strong>de</strong> ser<br />

dividida.<br />

91


interligado aos outros e não está só; se comunica s<strong>em</strong>pre <strong>de</strong> alguma forma ou no mesmo<br />

espaço e t<strong>em</strong>po, ou pela herança genética, b<strong>em</strong> como pelas <strong>de</strong>cisões, pelos fatos históricos,<br />

pelos resultados <strong>de</strong> pesquisas científicas, por crenças, por i<strong>de</strong>ologias… Enfim, há elos<br />

metafísicos que interligam os seres humanos, que, interpretados, faz<strong>em</strong> compreen<strong>de</strong>r<br />

situações inexplicáveis da realida<strong>de</strong>.<br />

Ressalta-se que a vida é uma pr<strong>em</strong>issa maior, mas <strong>de</strong>ve estar amparada pelo<br />

princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana. A vida da mãe durante a gravi<strong>de</strong>z só terá sentido se<br />

for <strong>de</strong>senvolvida com dignida<strong>de</strong>. A falta <strong>de</strong> integrida<strong>de</strong> física e, principalmente, psíquica, pelo<br />

fato <strong>de</strong> ser obrigada a manter uma gravi<strong>de</strong>z <strong>em</strong> que, findo o prazo <strong>de</strong> nove meses, o produto<br />

<strong>de</strong> todo um esforço não sairá <strong>em</strong> seus braços da maternida<strong>de</strong>, ataca <strong>de</strong> forma ve<strong>em</strong>ente a sua<br />

dignida<strong>de</strong>. A gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um feto s<strong>em</strong> qualquer anomalia fetal é entendido como um b<strong>em</strong> 209<br />

ou honra 210 . Entretanto, a gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um feto anencefálico po<strong>de</strong> ser visto como um<br />

sacrifício 211 . Trata-se <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira tortura psicológica.<br />

A agressão ao corpo humano também <strong>de</strong>ve ser entendida como uma agressão à<br />

vida. A integrida<strong>de</strong> física e psíquica ou mental do ser humano está ligada ao <strong>direito</strong> à vida, à<br />

liberda<strong>de</strong>, à personalida<strong>de</strong> e, s<strong>em</strong> dúvida, ao princípio da dignida<strong>de</strong>. A vida humana é objeto<br />

assegurado no Art. 5°, caput da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, e implica o <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física e<br />

mental. O <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física e psíquica conforma os <strong>direito</strong>s <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>, não<br />

po<strong>de</strong>ndo ser alienado ou transmitido a outr<strong>em</strong>, pois são erga omnes.<br />

De acordo com Bittar,<br />

De gran<strong>de</strong> expressão para a pessoa é também o <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física, pelo qual<br />

se protege a incolumida<strong>de</strong> do corpo e mente. Consiste <strong>em</strong> manter-se a higi<strong>de</strong>z física<br />

e a luci<strong>de</strong>z mental do ser, opondo-se a qualquer atentado que venha a atingi-las,<br />

como <strong>direito</strong> oponível a todos. 212<br />

209 Em geral, tudo o que possui valor, preço, dignida<strong>de</strong>, a qualquer título. Na verda<strong>de</strong>, b<strong>em</strong> é a palavra tradicional<br />

para indicar o que, na linguag<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rna, se chama <strong>de</strong> valor. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia.<br />

Trad. Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 107.<br />

210 Toda manifestação <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração e estima tributada a um hom<strong>em</strong> por outros homens, assim, como a<br />

autorida<strong>de</strong>, o prestígio ou o cargo <strong>de</strong> que o reconheçam investidos. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong><br />

filosofia, tradução Alfredo Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 517.<br />

211 Destruição <strong>de</strong> um b<strong>em</strong> ou renúncia ao mesmo, <strong>em</strong> honra a divinda<strong>de</strong>. O sacrifício é uma das técnicas<br />

religiosas mais difundidas. Seu objetivo é a purificação <strong>de</strong> alguma culpa ou pecado: neste caso, é <strong>de</strong>sinteressado,<br />

ou seja, não t<strong>em</strong> objetivo utilitário imediato. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. Trad. Alfredo<br />

Bosi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 866.<br />

212 BITTAR, Carlos Alberto. Os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 76.<br />

92


Sobre a integrida<strong>de</strong> física e psíquica, Fernan<strong>de</strong>z comenta:<br />

Forçar a mulher a manter a gestação <strong>de</strong> feto contra a sua vonta<strong>de</strong> é uma manifesta<br />

afronta ao seu <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física, já que representa verda<strong>de</strong>ira ameaça a sua<br />

vida e um <strong>de</strong>sperdício a sua autonomia reprodutiva e aos seus <strong>direito</strong>s sobre o<br />

próprio corpo. Também representa uma violação à integrida<strong>de</strong> moral da gestante<br />

(protegida pelo Art. 5, X, da CRFB), que terá a sua imag<strong>em</strong> abalada e a sua moral<br />

atingida por todo tipo <strong>de</strong> constrangimento perante a socieda<strong>de</strong>, seja no ambiente <strong>de</strong><br />

trabalho ou no familiar. Não raras vezes a mulher passará pelas mais <strong>de</strong>licadas<br />

situações e se verá obrigada a respon<strong>de</strong>r a perguntas que, tão prazerosas <strong>em</strong> outras<br />

circunstâncias, tornam-se traumatizantes no caso da gestação <strong>de</strong> um feto que, <strong>de</strong><br />

ant<strong>em</strong>ão, já se sabe que não sobreviverá: “como vai o neném?”, “quando será o chá<br />

<strong>de</strong> bebê?”. Esta não é uma questão simples, como po<strong>de</strong>riam asseverar alguns, mas<br />

extr<strong>em</strong>amente penosa para qu<strong>em</strong> a vive. 213<br />

A integrida<strong>de</strong> física compreen<strong>de</strong> a proteção jurídica à vida, ao corpo vivo ou<br />

morto, quer na sua totalida<strong>de</strong>, quer <strong>em</strong> relação a tecidos, órgãos e partes suscetíveis <strong>de</strong><br />

separação e individualização, quer ainda ao <strong>direito</strong> <strong>de</strong> alguém submeter-se ou não a exame e<br />

tratamento médico. O <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física compreen<strong>de</strong> a proteção jurídica também ao<br />

corpo s<strong>em</strong> vida, o cadáver. É correlato ao <strong>direito</strong> à vida, no momento <strong>em</strong> que se repel<strong>em</strong> as<br />

lesões causadas ao funcionamento normal do corpo humano. Consiste no <strong>direito</strong> do ser<br />

humano a um corpo saudável, s<strong>em</strong> qualquer dano físico. O <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física<br />

compreen<strong>de</strong>, também, a saú<strong>de</strong> individual, tanto orgânica como mental, mas não se confun<strong>de</strong><br />

com o <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong>, previsto no Art. 196 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral.<br />

A palavra Saú<strong>de</strong> significa o “estado <strong>de</strong> equilíbrio dinâmico entre o organismo e<br />

seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do organismo <strong>de</strong>ntro<br />

dos limites normais para a forma particular <strong>de</strong> vida. É o estado <strong>de</strong> boa disposição física e<br />

psíquica; <strong>de</strong> b<strong>em</strong>-estar” 214 [grifos nossos]. A saú<strong>de</strong> é um <strong>direito</strong> <strong>de</strong> todos e uma obrigação do<br />

Estado, que <strong>de</strong>ve garanti-la por meio <strong>de</strong> políticas públicas, com base também no princípio da<br />

igualda<strong>de</strong>. O <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong> se consubstancia como um <strong>direito</strong> <strong>de</strong> segunda dimensão, posto<br />

que se trata <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro <strong>direito</strong> à prestação, ou seja, um <strong>direito</strong> social prestacional, uma<br />

vez que necessitam <strong>de</strong> uma atuação positiva por parte do ente estatal para evi<strong>de</strong>nciar a sua<br />

garantia e efetivida<strong>de</strong>.<br />

213 SARMENTO, Daniel (Coord.). Nos limites da vida: aborto, clonag<strong>em</strong> humana e eutanásia sob a perspectiva<br />

dos <strong>direito</strong>s humanos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 142.<br />

214 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 27 jan. 2008.<br />

93


O <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong> é tutelado pela Constituição Fe<strong>de</strong>ral nos artigos 196 a 200, mas<br />

com uma peculiarida<strong>de</strong>: atualmente é consi<strong>de</strong>rado um <strong>direito</strong> fundamental, no qual o estado<br />

<strong>de</strong> higi<strong>de</strong>z 215 do indivíduo passou a ser um ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque. A proteção constitucional<br />

envolve não só o tratamento <strong>de</strong> doenças instaladas no ser humano, mas também a manutenção<br />

da saú<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> políticas públicas, com a adoção <strong>de</strong> algumas medidas<br />

preventivas. Ex<strong>em</strong>plo atual é a obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> vacina contra febre amarela para aqueles<br />

que se <strong>de</strong>slocam para as regiões norte e centro-oeste do país.<br />

Silva 216 esclarece que “O <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong> rege-se pelos princípios da<br />

universalida<strong>de</strong> e da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso às ações e serviços que a promov<strong>em</strong>, proteg<strong>em</strong> e<br />

recuperam”. A proteção à saú<strong>de</strong> é neces<strong>sá</strong>ria à manutenção do próprio <strong>direito</strong> à vida, b<strong>em</strong><br />

como a integrida<strong>de</strong> física e psíquica. Nota-se também que o <strong>direito</strong> à saú<strong>de</strong> t<strong>em</strong> vinculação<br />

direta com os princípios da bioética e, principalmente, com o princípio da Justiça, os quais<br />

buscam a igualda<strong>de</strong> na distribuição dos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

Rel<strong>em</strong>bra-se que, a partir no momento <strong>em</strong> que se discute saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo geral,<br />

cabe pensar tanto na saú<strong>de</strong> física, como na saú<strong>de</strong> psíquica e <strong>em</strong>ocional do ser humano. A<br />

integrida<strong>de</strong> psíquica ou mental implica manter a mente incólume para que se preserve o<br />

pensamento humano, aspecto do interior da pessoa, el<strong>em</strong>ento integrante do psiquismo<br />

humano. Ainda, o <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> psíquica ou mental consiste na proteção que a or<strong>de</strong>m<br />

jurídica conce<strong>de</strong> à pessoa no tocante aos componentes i<strong>de</strong>ntificadores da estrutura interna da<br />

pessoa, ou seja, aos el<strong>em</strong>entos da sua mente, para que não haja interferência no aspecto<br />

interno da personalida<strong>de</strong>, nas suas idéias, concepções e convicções. Psicologicamente, é a<br />

percepção do mundo interno e externo ao indivíduo. Ambos, integrida<strong>de</strong> física e psíquica,<br />

completam a <strong>de</strong>fesa da personalida<strong>de</strong> humana.<br />

Sobre a integrida<strong>de</strong> psíquica ou mental, Bittar 217 comenta que <strong>de</strong>ve ser verificada<br />

pelo respeito à não-interferência ao aspecto interno da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>, e qualquer<br />

meio externo – como a psicoterapia ou o uso <strong>de</strong> drogas químicas – que tente alterar, aprisionar<br />

a mente ou inibir a vonta<strong>de</strong> do indivíduo, com o cerceamento da liberda<strong>de</strong> interna, que<br />

provoque medo ou dor, não <strong>de</strong>ve ser aceito, posto que os el<strong>em</strong>entos psíquicos <strong>de</strong> cada pessoa<br />

215 Hígido: que diz respeito à saú<strong>de</strong>; salutar, que goza <strong>de</strong> perfeita saú<strong>de</strong>; sadio, são.<br />

216 SILVA, José Afonso. Curso <strong>de</strong> <strong>direito</strong> constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,<br />

2006, p. 831.<br />

217 BITTAR, Carlos Alberto. Os <strong>direito</strong>s da personalida<strong>de</strong>. 7. ed. atual. por Eduardo Carlos Bianca Bittar. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária, 2006.<br />

94


<strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser resguardados. Fabriz 218 ainda se manifesta no sentido <strong>de</strong> que “A consciência <strong>de</strong>ve<br />

ser preservada, <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência do <strong>direito</strong> à intimida<strong>de</strong>”.<br />

Contribuindo com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção à integrida<strong>de</strong> psíquica, Radbruch 219<br />

assevera que “a conduta exterior só interessa à moral na medida <strong>em</strong> que exprime uma conduta<br />

interior”. Assim, nota-se mais uma vez a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manter a “alma” do ser humano<br />

intocável. Nesse sentido, a vonta<strong>de</strong> da mãe no caso do aborto do feto anencéfalo <strong>de</strong>ve ser, ao<br />

menos, observada.<br />

Um dos maiores probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> na socieda<strong>de</strong> do século XXI está pautado nas<br />

doenças <strong>de</strong> fundo <strong>em</strong>ocional/psíquico. Elas foram ganhando espaço e se tornando mais<br />

presente no cotidiano do ser humano, chegando atualmente a estar<strong>em</strong> relacionadas com até<br />

90% das doenças conhecidas 220 . As doenças psicossomáticas 221 são aquelas que têm um<br />

componente psíquico. São as <strong>de</strong>nominadas “doenças da moda”. Elas surg<strong>em</strong> como<br />

conseqüência <strong>de</strong> processos psicológicos e mentais <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong>sajustados, refletindo-se<br />

nas funções somáticas. É a manifestação <strong>de</strong> doenças orgânicas provocadas por probl<strong>em</strong>as<br />

<strong>em</strong>ocionais, tais como o nervosismo, a ansieda<strong>de</strong>, o estresse, a <strong>de</strong>pressão. Quando se<br />

somatizam essas <strong>em</strong>oções, há a consciência <strong>de</strong> que se força o organismo sob o aspecto físico<br />

além da conta. E então o corpo expressa, põe para fora as <strong>em</strong>oções que, por vezes, o ser<br />

humano escon<strong>de</strong> <strong>de</strong>le mesmo, por meio <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s. O corpo humano reflete os<br />

pensamentos e sentimentos. Quando se reprim<strong>em</strong> as <strong>em</strong>oções, elas vão se represando e<br />

causando machucados e feridas profundas no organismo humano, o que po<strong>de</strong> se transformar<br />

<strong>em</strong> doenças crônicas.<br />

A saú<strong>de</strong> <strong>em</strong>ocional da mulher, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 40, já era motivo apreciação. O<br />

Art. 123 do Código Penal relata o crime infanticidio <strong>em</strong> função do estado puerperal. O estado<br />

puerperal é um momento <strong>de</strong> influência por uma situação específica pós-parto. A medicina-<br />

legal “tenta provar se a mulher era física ou psiquicamente normal, durante toda a sua vida,<br />

218 FABRIZ, Daury César. Bioética e <strong>direito</strong>s fundamentais: a bioconstituição como paradigma ao bio<strong>direito</strong>.<br />

Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 275.<br />

219 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do <strong>direito</strong>. In: BARRETO, Vicente. Apostila produzida para a disciplina<br />

<strong>de</strong> Filosofia do Direito do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa. Curso <strong>de</strong> Mestrado <strong>em</strong> Direito Minter<br />

Unesa/Unoesc Xanxerê, 2006, p. 100.<br />

220 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 24<br />

jan. 2008.<br />

221 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 24 jan.<br />

2008.<br />

95


ou se a reação ocorreu somente naquele momento” 222 [grifos nossos]. De forma resumida, o<br />

estado puerperal consiste na situação <strong>em</strong> que a mãe po<strong>de</strong> estar abalada <strong>em</strong>ocionalmente,<br />

portanto, sua saú<strong>de</strong> necessitaria <strong>de</strong> cuidados.<br />

A manutenção da integrida<strong>de</strong> física e psíquica da mãe <strong>de</strong> um feto anencéfalo<br />

reporta-se à vida saudável exigida na socieda<strong>de</strong> do século XXI. Saudável é tudo que traz<br />

benefícios à saú<strong>de</strong>, entretanto, <strong>de</strong>finir “vida saudável” não é tarefas das mais fáceis. “Na<br />

verda<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>finição i<strong>de</strong>al é criar um ‘contexto’ <strong>de</strong> vida saudável”, afirma o fisiologista e<br />

professor da Unicamp, Miguel Arruda 223 . Não se trata apenas <strong>de</strong> melhora ou evolução nas<br />

condições fisiobiológicas, mas vale levar <strong>em</strong> conta o psicológico do ser humano, aquilo que<br />

se verifica na própria alma, não se aplicando simplesmente uma visão utilitarista <strong>de</strong> um b<strong>em</strong>-<br />

estar máximo e egoísta.<br />

Assim, no caso da manutenção da gravi<strong>de</strong>z do feto anencefálico, a mãe po<strong>de</strong> ter<br />

sua saú<strong>de</strong> abalada, já que o estado <strong>em</strong>ocional e psicológico t<strong>em</strong> vinculação direta com o<br />

estado físico diferenciado <strong>em</strong> que se encontra. Ressalta-se que a gestante <strong>de</strong>verá suportar,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o diagnóstico até o momento do parto, por aproximadamente cinco meses, a angústia, a<br />

ansieda<strong>de</strong>, a insegurança, o ressentimento, a dor e a ferida na alma <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r levar para<br />

casa seu filho após o nascimento.<br />

Diante do acima comentado, verifica-se que a integrida<strong>de</strong> física e psíquica ou<br />

mental é um dos <strong>direito</strong>s fundamentais envolvidos no caso do aborto do feto anencéfalo. Ao<br />

se <strong>de</strong>terminar a manutenção da gravi<strong>de</strong>z, a integrida<strong>de</strong> física e psíquica da mãe será atingida<br />

diretamente, pois será obrigada a carregar o feto <strong>em</strong> seu ventre pelos nove meses, suportando<br />

a idéia da morte do feto no momento do seu nascimento.<br />

Desse modo, no caso do aborto do feto anencéfalo, o <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física e<br />

psíquica da mãe, como materialização dos <strong>direito</strong>s fundamentais do hom<strong>em</strong>, baseados no<br />

<strong>direito</strong> a liberda<strong>de</strong>, que, segundo Barreto 224 são preexistentes à or<strong>de</strong>m constitucional, é<br />

inalienável, imprescritível, impenhorável e intributável. E tais aspectos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser<br />

consi<strong>de</strong>rados instrumentos basilares para a verificação e efetivação do princípio da dignida<strong>de</strong><br />

humana, compreendido por muitos autores como um princípio absoluto.<br />

222 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 24 jan. 2008.<br />

223 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 7 fev. 2008.<br />

224 BARRETO, Vicente <strong>de</strong> Paulo (Coord.). Dicionário <strong>de</strong> filosofia do <strong>direito</strong>. São Leopoldo: Unisinos, 2006.<br />

96


Por fim, ressalta-se que não se preten<strong>de</strong>u, neste trabalho, uma banalização da<br />

realização do aborto, n<strong>em</strong> tampouco a alteração legislativa, <strong>de</strong> forma drástica, para a liberação<br />

indiscriminada do ato. O que se preten<strong>de</strong> colocar <strong>em</strong> pauta é a discussão dos princípios<br />

coli<strong>de</strong>ntes, já que a norma positivada não prevê expressamente a interrupção <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong><br />

feto anencefálico, e tal fato acaba por provocar uma enorme insegurança jurídica e afetar o<br />

Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito.<br />

97


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

As novas tecnologias que vêm sendo <strong>de</strong>senvolvidas na atualida<strong>de</strong>, mormente na<br />

área da biomedicina, têm proporcionado a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> importantes inovações, capazes <strong>de</strong><br />

trazer gran<strong>de</strong>s benefícios ao ser humano, razão maior <strong>de</strong> todas as pesquisas.<br />

Às vezes, porém, essas inovações traz<strong>em</strong> consigo muitos dil<strong>em</strong>as sociais, éticos e<br />

jurídicos, como é o caso da constatação do feto com anencefalia, que po<strong>de</strong> ser diagnosticada<br />

nas primeiras s<strong>em</strong>anas <strong>de</strong> vida. A anencefalia consiste <strong>em</strong> uma anomalia fetal congênita,<br />

incompatível com a vida extra-uterina.<br />

Ao se <strong>de</strong>parar com uma situação como essa, algumas mulheres <strong>de</strong>cidirão levar até<br />

o fim a sua gravi<strong>de</strong>z, mesmo sabendo que seu filho, se chegar a nascer com vida, sobreviverá<br />

por pouco t<strong>em</strong>po. Outras, porém, não se sentirão preparadas psicológica e fisicamente para<br />

enfrentar nove meses <strong>de</strong> angústia e sofrimento e, por isso, preferirão optar pela interrupção da<br />

gravi<strong>de</strong>z.<br />

Tal situação gera um conflito entre <strong>direito</strong>s fundamentais consagrados na carta<br />

magna, uma vez que, <strong>de</strong> um lado, estará o <strong>direito</strong> do feto à vida e até mesmo à integrida<strong>de</strong><br />

física e, <strong>de</strong> outro, estarão os <strong>direito</strong>s da gestante, como liberda<strong>de</strong> e autonomia <strong>de</strong> escolha,<br />

saú<strong>de</strong> e também a sua integrida<strong>de</strong> física e mental.<br />

Por conta disto, neste trabalho, procurou-se analisar os aspectos fundamentais que<br />

diz<strong>em</strong> respeito ao probl<strong>em</strong>a, principalmente os princípios fundamentais envolvidos, para, ao<br />

final, po<strong>de</strong>r exarar uma opinião acerca <strong>de</strong> qual <strong>direito</strong> <strong>de</strong>ve prevalecer diante da colisão<br />

apresentada.<br />

Inicialmente, analisou-se o marco inicial da vida humana, consi<strong>de</strong>rado pela<br />

medicina e, conseqüent<strong>em</strong>ente, pelo <strong>direito</strong>, para que a vida seja protegida. Para tanto, foi<br />

neces<strong>sá</strong>rio <strong>de</strong>finir o que é vida. Enten<strong>de</strong>u-se que a vida se inicia com a fecundação do óvulo<br />

pelo espermatozói<strong>de</strong>, momento <strong>em</strong> que se t<strong>em</strong> um novo ser humano, distinto <strong>de</strong> sua mãe,<br />

98


apesar da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se manter no ventre materno até o evento do nascimento. Após o<br />

nascimento, essa vida vai <strong>de</strong>senvolver-se ao longo do t<strong>em</strong>po, até atingir o evento morte.<br />

Ocorre que, ainda no ventre materno, a vida começa a ser protegida, <strong>em</strong> que pese<br />

a necessida<strong>de</strong> do nascimento com vida para que esse ser humano se torne um sujeito <strong>de</strong><br />

<strong>direito</strong> amplo e completo. Contudo, durante o seu <strong>de</strong>senvolvimento intra-uterino, há o risco <strong>de</strong><br />

ocorrer a falha no fechamento do sulco neural, durante a formação <strong>em</strong>brionária, que po<strong>de</strong><br />

originar a anencefalia e outras malformações secundárias, provocando a falta <strong>de</strong> condições <strong>de</strong><br />

vida extra-uterina.<br />

Como o ponto essencial do presente trabalho diz respeito à contraposição <strong>de</strong><br />

princípios constitucionais, <strong>em</strong> um segundo momento, procurou-se analisar a tutela da vida<br />

humana intra-uterina e, para tanto, fez-se neces<strong>sá</strong>ria uma abordag<strong>em</strong> dos <strong>direito</strong>s<br />

fundamentais, com a sua conceituação como o conjunto <strong>de</strong> normas e princípios que garant<strong>em</strong><br />

uma vida digna, livre e igualitária, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> credo, raça, orig<strong>em</strong>, cor, condição<br />

econômica ou status social. Também se fez uma pequena análise dos <strong>direito</strong>s humanos, seu<br />

conceito e sua distinção <strong>em</strong> face dos <strong>direito</strong>s fundamentais.<br />

Em razão da importância do <strong>direito</strong> fundamental à vida, analisou-se a evolução<br />

<strong>de</strong>sses <strong>direito</strong>s fundamentais e as suas diversas dimensões, para, posteriormente, verificar o<br />

seu <strong>de</strong>senvolvimento histórico, a sua conceituação e a proteção na Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

1988, o seu enquadramento no rol dos <strong>direito</strong>s fundamentais e <strong>direito</strong>s humanos.<br />

A partir daí, verificou-se a vida como um <strong>direito</strong> da personalida<strong>de</strong>. Já que a vida<br />

humana começa na concepção, a legislação coloca a salvo todos os <strong>direito</strong>s do nascituro, mas<br />

garante a sua personalida<strong>de</strong> apenas quando do evento nascimento com vida. Passou-se, então,<br />

à análise do início da atribuição da personalida<strong>de</strong>, posto tratar-se <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>a que suscita<br />

inúmeros <strong>de</strong>bates entre os juristas brasileiros. Apresentaram-se três teorias fundamentais na<br />

doutrina brasileira para <strong>de</strong>terminar o início da personalida<strong>de</strong> jurídica: a natalista, a da<br />

personalida<strong>de</strong> condicional e a concepcionista.<br />

Após, <strong>de</strong>finiu-se o aborto como sendo a interrupção da gravi<strong>de</strong>z com a <strong>de</strong>struição<br />

do produto da concepção. Analisaram-se as figuras <strong>de</strong> aborto encontradas no Código Penal<br />

Brasileiro e observou-se que, <strong>em</strong> nenhuma <strong>de</strong>las, está vislumbrada a possibilida<strong>de</strong> da<br />

realização do aborto <strong>de</strong> feto portador <strong>de</strong> anencefalia, sendo, portanto, a sua realização um<br />

ilícito penal.<br />

99


Na seqüência, fez-se neces<strong>sá</strong>ria a análise do que seria a viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida como<br />

um critério <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do ser humano para a vida extra-uterina <strong>de</strong> forma<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e autônoma. Conforme relatado, a anencefalia é uma anomalia fetal<br />

incompatível com a vida extra-uterina, portanto, inviável. Mas restou ainda uma dúvida: o<br />

feto anencéfalo possuiria vida ou não? Concluiu-se que o início da vida ocorre por meio da<br />

fecundação e, portanto, é inquestionável a existência <strong>de</strong> vida intra-uterina do feto anencéfalo,<br />

pois se trata <strong>de</strong> um ser biologicamente vivo, composto <strong>de</strong> células e tecidos, mas s<strong>em</strong> chance<br />

<strong>de</strong> sobreviver autonomamente.<br />

O terceiro capítulo foi <strong>de</strong>dicado à análise dos limites do <strong>direito</strong> ao planejamento<br />

familiar, com o fim <strong>de</strong> investigar se o or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiro cont<strong>em</strong>pla a liberda<strong>de</strong><br />

da gestante ou do casal <strong>de</strong> criar uma família e, principalmente, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interromper<br />

a gestação fora das hipóteses previstas no Código Penal. Para tanto, verificou-se o Art. 226,<br />

parágrafo 7° da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, no tocante ao planejamento familiar, fundamentado nos<br />

princípios da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, e à partenida<strong>de</strong> respon<strong>sá</strong>vel, e o princípio da<br />

liberda<strong>de</strong> dada ao casal <strong>de</strong> planejar seu próprio núcleo familiar, sua formação e<br />

<strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Na sequência, fez-se a análise da Lei 9263/96, norma jurídica infraconstitucional<br />

que veio dar oportunida<strong>de</strong> não só a casais, mas também a homens e mulheres solteiros, <strong>de</strong><br />

realizar o planejamento familiar como um instrumento <strong>de</strong> tornar a vida <strong>em</strong> família mais<br />

respon<strong>sá</strong>vel e, principalmente, afetuosa.<br />

O <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> consagrado na Constituição Fe<strong>de</strong>ral no Art. 5°, II, foi um<br />

ponto verificado nesse capítulo. O <strong>direito</strong> à liberda<strong>de</strong> r<strong>em</strong>eteu à idéia <strong>de</strong> autonomia, ou o<br />

princípio da autonomia da vonta<strong>de</strong>, autonomia esta ressalvada pelo filósofo Kant como sendo<br />

a autonomia vinculada à vonta<strong>de</strong>, ou seja, no <strong>direito</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>terminar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outro<br />

po<strong>de</strong>r ou na liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se utilizar a sua vonta<strong>de</strong> seguindo seus objetivos pessoais. Portanto,<br />

por se tratar <strong>de</strong> um <strong>direito</strong> fundamental garantido na carta magna, <strong>de</strong>ve ser respeitado.<br />

Por fim, analisou-se a colisão <strong>de</strong> <strong>direito</strong>s fundamentais envolvidos, por meio da<br />

pon<strong>de</strong>ração dos bens e interesses e/ou o princípio da proporcionalida<strong>de</strong>, na prevalência <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>les para solucionar o fato da possibilida<strong>de</strong> ou não do aborto do anencéfalo <strong>de</strong> forma justa e<br />

a<strong>de</strong>quada. Contudo, também foram apresentadas algumas objeções à aplicação da pon<strong>de</strong>ração.<br />

Além disso, fez-se neces<strong>sá</strong>ris uma análise dos argumentos utilizado na ADPF 54,<br />

que tramita junto ao STF, contendo como pedido principal a interpretação do Código Penal<br />

100


<strong>em</strong> face da Constituição, <strong>de</strong>clarando os artigos nele previstos que tipificam o crime <strong>de</strong> aborto<br />

que não se aplicass<strong>em</strong> n<strong>em</strong> à gestante n<strong>em</strong> aos profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no caso <strong>de</strong> antecipação<br />

terapêutica do parto <strong>de</strong> feto anencefálico.<br />

Por <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro, analisou-se a aplicação da pon<strong>de</strong>ração no caso do aborto do<br />

anencéfalo, concluindo que o <strong>direito</strong> à integrida<strong>de</strong> física e psíquica da mãe seria atingida<br />

diretamente, caso a mesma fosse obrigada a carregar o feto <strong>em</strong> seu ventre pelos nove meses<br />

suportando a idéia da morte do filho no momento do nascimento, já que esse ser humano não<br />

possuiria qualquer viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina. Além disso, a impossibilida<strong>de</strong> do<br />

exercício <strong>de</strong> escolha pela mãe e pelo pai atingiria o princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana,<br />

princípio basilar do Estado D<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> Direito.<br />

Karl Larenz, abordando este t<strong>em</strong>a, reconhece, na dignida<strong>de</strong> pessoal, a prerrogativa<br />

<strong>de</strong> todo ser humano <strong>em</strong> ser respeitado como pessoa, <strong>de</strong> não ser prejudicado <strong>em</strong> sua existência<br />

(a vida, o corpo e a saú<strong>de</strong>) e <strong>de</strong> fruir <strong>de</strong> um âmbito existencial próprio.<br />

Há que se <strong>de</strong>stacar que o presente trabalho não t<strong>em</strong> a pretensão <strong>de</strong> esgotar o<br />

assunto, mas preten<strong>de</strong>, sim, apresentar algumas contribuições a t<strong>em</strong>a tão polêmico. Ressalta-<br />

se que não se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, <strong>em</strong> momento algum, a liberação ou banalização da realização do<br />

aborto <strong>de</strong> forma indiscriminada; afinal, o <strong>direito</strong> constitucional da vida é um b<strong>em</strong> supr<strong>em</strong>o.<br />

Contudo, diante da total inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina, b<strong>em</strong> como <strong>em</strong> face do exercício<br />

da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha, <strong>de</strong>ve, ao menos, ser dada a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha à mulher.<br />

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