Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG
Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG
Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Casos clínicos<br />
em <strong>Psiquiatria</strong> Sumário<br />
UMA PUBLICAÇÃO DO Departamento <strong>de</strong><br />
<strong>Psiquiatria</strong> e Neurologia da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Medicina</strong> - <strong>UFMG</strong> e Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do<br />
Hospital das Clínicas - <strong>UFMG</strong><br />
Editor Geral<br />
Maurício Viotti Daker<br />
Comissão Editorial<br />
Alfred Kraus • Antônio Márcio Ribeiro Teixeira • Betty<br />
Liseta <strong>de</strong> Castro Pires • Carlos Roberto Hojaij • Carol<br />
Sonenreich • Cassio Machado <strong>de</strong> Campos Bottino •<br />
Erikson Felipe Furtado • Irismar Reis <strong>de</strong> Oliveira • Delcir<br />
Antônio da Costa • Eduardo Antônio <strong>de</strong> Queiroz •<br />
Eduardo Iacoponi • Flávio Kapczinski • Francisco<br />
Baptista Assumpção Jr. • Francisco Lotufo Neto • Helio<br />
Elkis • Henrique Schützer Del Nero • Jarbas Moacir<br />
Portela • Jerson Laks • Jorge Paprocki • José Alberto Del<br />
Porto • José Raimundo da Silva Lippi • Luis Guilherme<br />
Streb • Michael Schmidt-Degenhard • Marco Antônio<br />
Marcolin • Maria Elizabeth Uchôa Demichelli • Mário<br />
Rodrigues Louzã Neto • Miguel Chalub • Miguel<br />
Roberto Jorge • Osvaldo Pereira <strong>de</strong> Almeida • Paulo<br />
Dalgalarrondo • Paulo Mattos • Pedro Gabriel Delgado •<br />
Pedro Prado Lima • Ricardo Alberto Moreno • Roberto<br />
Pieda<strong>de</strong> • Ronaldo Simões Coelho • Sérgio Paulo<br />
Rigonatti • Sylvio <strong>de</strong> Magalhães Velloso • Talvane<br />
Martins <strong>de</strong> Moraes<br />
Diretor Executivo<br />
Geraldo Brasileiro Filho<br />
Editora<br />
Cooperativa Editora e <strong>de</strong> Cultura Médica Ltda (Coopmed)<br />
Capa, projeto gráfico, composição eletrônica e produção<br />
Folium Comunicação Ltda<br />
Periodicida<strong>de</strong>: semestral<br />
Tiragem: 5.000 exemplares<br />
Assinatura e Publicida<strong>de</strong><br />
Coopmed 0800 315936<br />
Correspondência e artigos<br />
Coopmed<br />
Casos Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong><br />
Av. Alfredo Balena, 190<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil<br />
Fone: (31) 273-1955 Fax: (31) 226-7955<br />
E-mail: ccp@medicina.ufmg.br<br />
Home page: http://www.medicina.ufmg.br/ccp<br />
Capa:<br />
Hexenkopf (Cabeça <strong>de</strong> Bruxa), <strong>de</strong> August Natterer (1868-<br />
1933). Coleção Prinzhorn, nº 184 recto; Clínica<br />
Psiquiátrica da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>lberg, Alemanha.<br />
Em montagem com texto manuscrito <strong>de</strong> Emil Kraepelin.<br />
Reprodução autorizada.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):1-68<br />
Editorial..................................................................................................2<br />
Auto-relato<br />
Revelações..................................................................................................3<br />
Originais<br />
Psicopatologia nos quadros <strong>de</strong>menciais...................................................12<br />
Adriana Brazão, Marcelo Feijó <strong>de</strong> Mello<br />
Musicoterapia e psiquiatria: um estudo <strong>de</strong> caso......................................16<br />
Bianca Bruno Barbara, Clara Duarte, Heloísa Cardoso <strong>de</strong> Mello, Nelson Gol<strong>de</strong>nstein<br />
Um caso <strong>de</strong> psicose <strong>de</strong> início tardio: consi<strong>de</strong>rações diagnósticas...........21<br />
Antônio Lúcio Teixeira Júnior, Henrique Alvarenga-Silva,<br />
Adriana Camello Teixeira Huguet, Maria Goretti Pena Lamounier<br />
Síndrome <strong>de</strong> Ekbom em idosa .................................................................24<br />
Rodrigo Nicolato, Flávia Fernan<strong>de</strong>s Dias, Cíntia Fuzikawa, João Luís Pinto Coelho,<br />
Antônio Carlos Oliveira Corrêa<br />
Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão <strong>de</strong> seu tratamento<br />
com clozapina............................................................................................27<br />
Érico <strong>de</strong> Castro Costa, Gislene Valadares Miranda, Ana Luiza Corrêa da Costa,<br />
Maurício Viotti Daker<br />
Tratamento com alopurinol em paciente hiperuricêmico com<br />
mania refratária: relato <strong>de</strong> caso e hipótese purinérgica...........................33<br />
Rodrigo Machado Vieira, Diogo Rizzato Lara, Diogo Souza, Flávio Kapczinski<br />
“Noglima”: TOC resistente com resposta a adição <strong>de</strong><br />
risperidona ................................................................................................36<br />
Rodrigo Barreto Huguet, Gustavo Fernando Julião <strong>de</strong> Souza<br />
Munchausen's syndrome: a case beginning in early childhood<br />
and that changed from acute abdominal to neurological type ...............40<br />
Winfred Barnett<br />
Consi<strong>de</strong>ring the sleep apnea hipopnea RERA syndrome in the<br />
differential diagnose of psychiatric disor<strong>de</strong>rs. .........................................43<br />
Dirceu <strong>de</strong> Campos Valladares Neto<br />
Caso Literário<br />
Literatura e loucura - um conto <strong>de</strong> Guimarães Rosa ..............................46<br />
Ronaldo Simões Coelho<br />
Patografia<br />
Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva....................................47<br />
Andrés Heerlein<br />
Caso Histórico<br />
Irmã Germana...........................................................................................54<br />
Clóvis <strong>de</strong> Faria Alvim<br />
Homenagem<br />
Demência precoce na sexta edição <strong>de</strong> Kraepelin em 1899 .....................59<br />
Maurício Viotti Daker<br />
Normas <strong>de</strong> Publicação ................................................................68
Editorial<br />
Casos Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong> surge em época <strong>de</strong> franca valorização<br />
científica da psiquiatria. Valem as hipóteses ou conclusões advindas<br />
<strong>de</strong> análises estatísticas <strong>de</strong> dados mensuráveis, originados <strong>de</strong><br />
número <strong>de</strong> probandos que permita resultados significativos. Os métodos<br />
para tanto se sofisticam e reproduzem, muitas vezes se tornam o<br />
objeto da própria pesquisa. Cremos que este seja, <strong>de</strong> fato, o caminho a<br />
se trilhar para <strong>de</strong>svendar a passos seguros o obscuro universo psicopatológico.<br />
Para o pesquisador, um belo e <strong>de</strong>safiador caminho, controlar<br />
as múltiplas variáveis com métodos cada vez mais sofisticados. Ao<br />
clínico, porém, resta a insossa impressão <strong>de</strong> massificado cientismo.<br />
Não sem razão, pois pouco do publicado se traduz em aplicabilida<strong>de</strong><br />
clínica. Muitos dos resultados são apenas hipóteses a se verificar.<br />
Quase todos os trabalhos implicam em reducionismo e são como que<br />
in vitro, pois os critérios <strong>de</strong> seleção artificializam os probandos. Os<br />
resultados servem como orientação ante a viva realida<strong>de</strong> clínica, certamente<br />
em mãos <strong>de</strong> clínico experiente, mas não se propõem a <strong>de</strong>finir<br />
a conduta clínica.<br />
Pensamos que haveria espaço para uma revista especializada em<br />
casos clínicos, on<strong>de</strong> os conhecimentos pu<strong>de</strong>ssem ser canalizados para<br />
a ativida<strong>de</strong> fim do psiquiatra e experiências clínicas pu<strong>de</strong>ssem ser trocadas.<br />
Cremos que Casos Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong> possa trazer<br />
contribuições importantes, em que pesem as revistas já existentes. Estas<br />
também costumam contemplar casos clínicos, mas em segundo<br />
plano e com normas editoriais mais limitantes.<br />
Essas idéias foram colocadas ao longo dos últimos três anos para<br />
ilustres colegas, em especial os que nos honraram com palestras no<br />
programa “Sábados <strong>de</strong> Formação Continuada” da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong><br />
do Hospital das Clínicas - <strong>UFMG</strong> e do Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong><br />
e Neurologia da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> - <strong>UFMG</strong>. Para minha<br />
surpresa e satisfação, houve ótima aceitação e disposição para colaborar<br />
e compor a Comissão Editorial. E parece que não se tratava <strong>de</strong><br />
entusiasmo inicial, ou <strong>de</strong> embevecimento ante o feijão tropeiro, tutu e<br />
frango ao molho pardo, pois, ao recolocar o assunto, um ou dois anos<br />
<strong>de</strong>pois, reacendia-se o entusiasmo original. Noutras oportunida<strong>de</strong>s<br />
indagavam se a revista já fora publicada, mais recentemente me cobravam<br />
a respeito!<br />
Reunimos força, coragem, <strong>de</strong>sprendimento e <strong>de</strong>terminação. O resultado,<br />
este ensaio, parece-nos promissor. Esperamos ter aberto um<br />
leque <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> ampla parcela <strong>de</strong> psiquiatras,<br />
resi<strong>de</strong>ntes, profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental, graduandos e, não menos<br />
relevante, <strong>de</strong> portadores <strong>de</strong> doença mental. Mantemo-nos, como sempre,<br />
abertos a sugestões e críticas, lembrando que se trata <strong>de</strong> trabalho<br />
em andamento. Desculpamo-nos pelos possíveis <strong>de</strong>sencontros virtuais<br />
(e-mails) que possam ter influído na composição inicial da Comissão<br />
Editorial ou noutras partes da revista. Agra<strong>de</strong>cemos as inestimáveis<br />
palavras <strong>de</strong> incentivo, o apoio da Comissão <strong>de</strong> Residência<br />
Médica e da Associação dos Médicos Resi<strong>de</strong>ntes do Hospital das<br />
Clínicas - <strong>UFMG</strong>, o <strong>de</strong> várias residências em psiquiatria <strong>de</strong> Minas<br />
Gerais e <strong>de</strong> outros estados, assim como o apoio da Associação Mineira<br />
<strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> (fe<strong>de</strong>rada da Associação Brasileira <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong>),<br />
da Associação Brasileira <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> Biológica, da Associação Nacional<br />
<strong>de</strong> Neuropsiquiatria Geriátrica e da Associação Nacional Pró-<br />
Saú<strong>de</strong> Mental - Projeto Fênix. Agra<strong>de</strong>cemos muito à Wyeth por acatar<br />
o projeto <strong>de</strong> forma resoluta logo nestes primeiros momentos difíceis<br />
e <strong>de</strong>cisivos.<br />
Lançando mão <strong>de</strong> meu atual status editorial, gostaria <strong>de</strong> encerrar<br />
elevando três dos membros da Comissão Editorial à condição <strong>de</strong> nossos<br />
patronos: os caros mestres Carol Sonenreich, Jorge Paprocki e Miguel<br />
Chalub.<br />
Maurício Viotti Daker<br />
Clinical Cases in Psychiatry appears in a time of wi<strong>de</strong> scientific<br />
valorization of Psychiatry. Valuable are hypothesis and conclusions<br />
based on statistic analysis of measurable data originated from a number<br />
of probands that allows significant results. The methods for such task<br />
get sophisticated and multiple, becoming many times the object of<br />
research itself. We in<strong>de</strong>ed believe this is the way to be followed in or<strong>de</strong>r<br />
to unveil the obscure psycopathologic universe through safe steps. For<br />
the researcher a nice and challenging way: to control the several variables<br />
with methods each time more sophisticated. To the clinician is left<br />
but a dull impression of a wearisome scientism. Not without reason,<br />
because little of what is published has clinical applicability. Many of the<br />
results are only hypothesis to be checked. Almost all works imply reductions<br />
and may be compared to in vitro, due to the selection criteria that<br />
cause the probands to be artificial. The results are useful as orientation<br />
in the lively clinical reality, certainly in the hand of an experienced<br />
physician, but do not aim to <strong>de</strong>termine the clinical conduct.<br />
We consi<strong>de</strong>r the possibility of an open field for a specialized journal<br />
on clinical cases, in which the knowledge could be focused for the<br />
target activity of the Psychiatrist and clinical experiences could be<br />
exchanged. We believe that Clinical Cases in Psychiatry may bring<br />
important contributions, in what concerns the existing journals. These<br />
usually contemplate clinical cases, but in a second level and with more<br />
limiting editorial rules.<br />
These i<strong>de</strong>as were exchanged with eminent colleagues through out<br />
the past three years, mainly by the ones who honored us with conferences<br />
in the program “Saturday of Continued Studies” of the<br />
Psychiatric Resi<strong>de</strong>ncy of the Hospital das Clínicas and of the<br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e Neurologia of the Medical School of the<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais - <strong>UFMG</strong>. For my surprise and<br />
satisfaction, there has been great acceptance and disposition to collaborate<br />
and to compose the Editorial Board. And it seems it was not only<br />
an initial enthusiasm, or rapture in front of the appetizing cooking of<br />
Minas Gerais, because when the subject was brought up a year or two<br />
later, raised again the original enthusiasm. In other times I was questioned<br />
whether Clinical Cases was already published, and more<br />
recently <strong>de</strong>man<strong>de</strong>d on this issue!<br />
We gathered strength, courage, <strong>de</strong>termination and unselfishness.<br />
The result, this essay, seems to us promissory. We hope to have open a<br />
range of possibilities of interest for a great number of Psychiatrists,<br />
Resi<strong>de</strong>nts, professionals of the mental health area, un<strong>de</strong>r-graduates,<br />
and, not less relevant, for the mentally disor<strong>de</strong>red. We keep, as usual,<br />
open to suggestions and criticizing, reminding that this work is un<strong>de</strong>r<br />
process. We apologize for the eventual virtual failures (e-mails) that<br />
may have influenced in the initial composition of the Editorial Board<br />
or in other parts of the material. We wish to thank the inestimable<br />
words of incentive, the support of the Medical Resi<strong>de</strong>ncy Commission<br />
and the Association of Resi<strong>de</strong>nt Doctors of the Hospital das Clínicas of<br />
the Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais, and of various Resi<strong>de</strong>ncies<br />
on Psychiatry of Minas Gerais and other States, and also the support<br />
of the Associação <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais (member of the<br />
Associação Brasileira <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong>), the Associação Brasileira <strong>de</strong><br />
<strong>Psiquiatria</strong> Biológica, the Associação Nacional <strong>de</strong> Neuropsiquiatria<br />
Geriátrica and the Associação Nacional Pró-Saú<strong>de</strong> Mental - Projeto<br />
Fênix. We also wish to express our <strong>de</strong>ep thankfulness to Wyeth for the<br />
straight acceptance of the project in these first difficult and <strong>de</strong>cisive<br />
moments.<br />
Finally, consi<strong>de</strong>ring my present editorial status, I would like to<br />
express our willing to nominate three of the members of the Editorial<br />
Committee as our Patrons: Carol Sonenreich, Jorge Paprocki and<br />
Miguel Chalub.<br />
Maurício Viotti Daker
Auto-relato<br />
Paulo B. Linhares (nome fictício)<br />
Discussão: Helio Elkis *<br />
Resumo<br />
REVELAÇÕES<br />
REVELATIONS<br />
Relato <strong>de</strong> caso pelo próprio portador <strong>de</strong> transtorno mental.Tratase<br />
<strong>de</strong> paciente do sexo masculino, ex-seminarista e <strong>de</strong> nível escolar<br />
universitário. Apresentou sintomatologia psicótica repleta <strong>de</strong> revelações<br />
mediúnicas, chegando a ser aposentado por invali<strong>de</strong>z. Relata<br />
em <strong>de</strong>talhes seus primeiros sintomas e situações <strong>de</strong>les <strong>de</strong>correntes,<br />
assim como sua via crucis por atendimentos psiquiátricos. Posteriormente<br />
cancelou sua aposentadoria e vem trabalhando e vivendo<br />
normalmente. Não consi<strong>de</strong>ra sua sintomatologia fruto <strong>de</strong> doença.<br />
Palavras-chave: Transtorno Psicótico; Esquizofrenia Paranói<strong>de</strong>;<br />
Parafrenia; Transtorno Delirante<br />
A finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse imenso trabalho é contar-lhe o que aconteceu<br />
comigo e as minhas experiências com relação a “mediunida<strong>de</strong>”.<br />
Mediunida<strong>de</strong> é uma conquista nossa e é o dom <strong>de</strong> servirmos<br />
<strong>de</strong> intermediários entre os dois planos da criação divina: o plano<br />
visível, o nosso, no qual vivemos hoje, com o plano invisível, que<br />
também será nosso no futuro, mas com o qual já sintonizamos<br />
hoje. Aquele que estuda e compreen<strong>de</strong> a profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa sintonização<br />
irá enten<strong>de</strong>r também o que é o “inconsciente”.<br />
A mediunida<strong>de</strong>, que é mesmo “profetismo bíblico”, é, em geral,<br />
consi<strong>de</strong>rada como uma doença para a psiquiatria, principalmente<br />
no início do afloramento <strong>de</strong>la e também a psicologia a consi<strong>de</strong>ra<br />
uma doença.<br />
Nós fomos criados simples e ignorantes, mas perfeitos, pois<br />
tudo o que Deus-Pai-Mãe criou é perfeito, e por nossos esforços<br />
vamos evoluindo e nos tornando “sábios e santos”. Essa conquista<br />
da sabedoria é executada através das vidas sucessivas ou das<br />
encarnações em corpos <strong>de</strong> carne. Nós, atualmente, somos um somatório<br />
<strong>de</strong> muitos “eus”, pois tudo o que fomos e apren<strong>de</strong>mos<br />
em nossas vidas passadas faz parte do nosso inconsciente individual.<br />
Quando o nosso “inconsciente” vem a tona, temos que separar<br />
e enten<strong>de</strong>r o que é do “inconsciente individual” e o que é<br />
do “inconsciente coletivo”. Essa separação e esse entendimento<br />
são frutos <strong>de</strong> muito estudo e é o encontro com a verda<strong>de</strong>, que liberta<br />
(Jo 8,32).<br />
* Professor Associado Doutor do Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> da<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da USP; Coor<strong>de</strong>nador da Residência em<br />
<strong>Psiquiatria</strong> do Instituto <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do HC-FMUSP;<br />
Coor<strong>de</strong>nador do Projesq- Projeto Esquizofrenia do Ipq- FMUSP<br />
Em 1962, estudava interno em um seminário e tinha passado<br />
para o 1º ano do curso clássico (1º ano do 2º grau, hoje) e podia<br />
freqüentar uma sala on<strong>de</strong> tínhamos permissão <strong>de</strong> fumar, ler jornais<br />
e algumas outras regalias. Por isso comprei três maços <strong>de</strong> cigarros<br />
e quando ia fumar o terceiro cigarro, veio um pensamento<br />
a minha mente como uma voz, bem no fundo do meu ser e bem<br />
nítida mesmo, e dizia-me o seguinte: “O seu pai trabalha na roça e<br />
até sob um sol quente para pagar os seus estudos e você ainda vai<br />
queimar o dinheiro <strong>de</strong>le”.<br />
Essa voz, que falou no fundo da minha mente e que sabia<br />
tudo sobre mim, ajudou-me a não adquirir o vício do cigarro, mas<br />
não me obrigou a nada. Tomei livremente a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> não fumar,<br />
pois julguei que realmente não estava agindo corretamente com<br />
relação a gastar o dinheiro do meu pai. Resultado: não fumei o<br />
terceiro cigarro e doei para os colegas todos os cigarros já comprados<br />
e nunca mais fumei.<br />
Cada pessoa tem a sua história, tem a sua hora certa e a hora<br />
certa só o Pai sabe (Mt 24,36). Nos dias 7 a 10 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1980<br />
vivi momentos interessantes e fantásticos, pois vinha a minha<br />
mente revelações para mim sobre a minha pessoa e minha vida.<br />
Enquanto não escrevia a idéia num bloco <strong>de</strong> papel, não conseguia<br />
acalmar e trabalhar. Era o início das minhas experiências místicas<br />
ou mediúnicas, assunto este sobre o qual nada conhecia. Foi também<br />
o início do meu autoconhecimento como um “ser cósmico”<br />
ou um “Eu Sou”. Foi o meu nascimento do alto (Jo 3,7).<br />
Tinha aprendido no seminário que espiritismo era algo contrário<br />
ao BEM. Mas em 10/01/1980 veio a público a minha mediunida<strong>de</strong><br />
e, após dar muitos escândalos no meu trabalho e em<br />
outros lugares, não dormi nada na noite <strong>de</strong> 10 para 11/01/1980.<br />
Entre os escândalos que <strong>de</strong>i, cito alguns.<br />
Após escrever sobre a última revelação, que foi sobre a reencarnação<br />
com base na Bíblia, escrevi a seguinte frase: “Vai e fala,<br />
senão você morre!”. Saí como um “louco” da minha sala e fui falando<br />
para a secretária: “MF, a Boa Nova chegou”. Como a minha<br />
voz estava alterada, a secretária assustou e teve medo <strong>de</strong> mim.<br />
Após um rápido diálogo comigo, ela <strong>de</strong>sceu as escadas e falou<br />
com os outros colegas <strong>de</strong> serviço: “O PBL ficou doido!”. Assustando<br />
assim a todos, mas não <strong>de</strong>i tempo <strong>de</strong> ninguém pensar e raciocinar<br />
em nada, pois <strong>de</strong>sci imediatamente as escadas, tremendo<br />
como uma vara ver<strong>de</strong>. Quando fui visto pelos outros colegas, todos<br />
espantaram e virou uma confusão tremenda. Pedi a um corretor<br />
<strong>de</strong> valores para me levar ao Provincialado dos Franciscanos<br />
em Carlos Prates, pois queria falar com os freis, já que pensava<br />
que iria morrer imediatamente e tinha que passar para a frente a<br />
notícia da “Boa Nova”. Tentaram me convencer a não ir, mas não<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Instituto <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong>- HC-FMUSP<br />
Rua Ovídio Pires <strong>de</strong> Campos s/n - sala 4039<br />
05403-010 - São Paulo- SP<br />
E-mail: helkis@usp.br<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11 3
Revelações<br />
aceitava mesmo. Tentaram me dar água com açúcar, o que rejeitei<br />
até com in<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, dizendo: “Isso não é para mim, é para os<br />
fracos!”.<br />
Tentei conversar sobre “Deus” e sobre a “Bíblia”, mas <strong>de</strong>sses<br />
assuntos ninguém sabia nada. Falei em voz alta para todos ouvirem:<br />
“Essa vai ser uma gran<strong>de</strong> empresa, pois é a primeira vez que<br />
isso ocorre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma empresa”. Como vi e entendi que ninguém<br />
compreendia nada, então tentei fazer um milagre para provar<br />
o que sentia e falava. Falei assim: “Vocês não acreditam no que<br />
estou falando? Então para provar tudo, vou fazer um milagre aqui<br />
agora!”. Imediatamente peguei uma tabuleta com o nome <strong>de</strong> um<br />
corretor <strong>de</strong> valores e disse, em alto e bom som, para todos ouvirem:<br />
“Vou fazer isso aqui virar um pássaro!”. Joguei-a para cima e<br />
fiquei esperando a transformação, mas ela caiu no chão conforme<br />
a lei da gravida<strong>de</strong>, apenas <strong>de</strong>scolando o nome do corretor <strong>de</strong> valores<br />
da ma<strong>de</strong>ira. Aí, já com um pouco <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong>, disse:<br />
“Graças a Deus! Agora sei que não vou morrer. Tenho o tempo todo<br />
para conversarmos, se quiserem po<strong>de</strong>mos ir para a sala <strong>de</strong> reunião”.<br />
Foi um alívio geral: como jogar água num fogo <strong>de</strong> palha.<br />
Fomos para a sala <strong>de</strong> reunião, umas oito pessoas. Ali ficamos<br />
conversando até às 16:00 horas, quando senti uma ânsia <strong>de</strong> vômitos.<br />
Fui ao banheiro, mas não cheguei a vomitar e voltei para a sala<br />
<strong>de</strong> reunião. Com relação as outras pessoas, apenas duas ficaram o<br />
tempo todo, as outras foram fazendo rodízio. Toda hora que chegava<br />
um novo colega na sala, abraçava-o com muita emoção e, em<br />
alguns casos, até lágrimas saíam dos meus olhos. Sentia-me com<br />
um conhecimento imenso e com po<strong>de</strong>res totais. Era como se tudo<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse <strong>de</strong> mim e me sentia o dono da situação. Por isso falei,<br />
mais ou menos, assim: “Não posso mais trabalhar com planejamento,<br />
pois agora sei tudo e até o futuro”. Ali pelas 16:30 horas, chegaram<br />
na empresa on<strong>de</strong> trabalhava o frei TAZ e um outro frei: foi<br />
um alívio geral. Quando ficamos os três sozinhos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
sala, fui logo dizendo: “Frei, encontrei o ‘Reino <strong>de</strong> Deus’!”. Vi e<br />
senti o espanto <strong>de</strong>les. O frei TAZ apenas perguntou, <strong>de</strong>monstrando<br />
muita apreensão e um gran<strong>de</strong> susto: “O que?!”. Repeti o comentário.<br />
Ele falou-me que não tinha tempo <strong>de</strong> conversar comigo<br />
naquela hora. Saímos da sala e do lado <strong>de</strong> fora haviam muitos colegas<br />
querendo enten<strong>de</strong>r melhor o que acontecia. Quando o frei<br />
TAZ perguntou-me em que hora po<strong>de</strong>ria ir ao Provinciliado Franciscano<br />
no dia seguinte para conversar com ele, respondi <strong>de</strong> pronto:<br />
“Frei, para falar do ‘Reino <strong>de</strong> Deus’ qualquer hora é hora. Até a<br />
meia-noite, se o senhor marcar, estarei lá”.<br />
Ficou marcado que estaria lá às 16:00 horas do dia<br />
11/01/1980. As minhas respostas e observações assustavam cada<br />
vez mais todo mundo. Às 18:00 horas, um dos diretores da empresa<br />
me falou assim: “PBL, não foi possível ouvi-lo durante o trabalho<br />
e quero ouvi-lo um pouco agora. Você, então, aceita que eu o<br />
leve à sua casa e assim po<strong>de</strong>rei ouvi-lo melhor. O assessor leva o seu<br />
carro”. Concor<strong>de</strong>i imediatamente e fomos. Ninguém queria que<br />
eu dirigisse o meu carro, mas nada <strong>de</strong>sconfiei. Chegando em meu<br />
lar, a minha esposa não estava e fui logo mostrando a Bíblia para<br />
eles, comentando o trecho sobre o divórcio e casamento (vi<strong>de</strong><br />
Mateus 19,1-12). Após um rápido diálogo, pedi licença aos dois<br />
amigos, pois tinha que ir buscar a EML, minha primeira esposa.<br />
Eles não queriam que eu dirigisse, mas nada pu<strong>de</strong>ram fazer e apenas<br />
me seguiram por alguns quarteirões, <strong>de</strong>pois comentaram o seguinte:<br />
“Nós não estamos enten<strong>de</strong>ndo nada. O PBL está dirigindo<br />
4 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11<br />
bem. Então vamos embora <strong>de</strong>ixando esse negócio para lá” (isso o<br />
assessor comentou comigo <strong>de</strong>pois). Chegando na casa on<strong>de</strong> estava<br />
a EML, fui logo dizendo: “Agora não haverá mais pobre na terra.<br />
A riqueza será dividida e todos terão meios para terem uma vida<br />
digna dos filhos e filhas <strong>de</strong> Deus”. Sei que ia assustando cada vez<br />
mais as pessoas. Era como se eu fosse um teleguiado, pois sabia o<br />
que fazia, mas não podia parar <strong>de</strong> agir e fazer escândalos.<br />
No dia 11/01/1980 iniciou a minha luta contra os psiquiatras,<br />
pois estive no consultório <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les, que <strong>de</strong>u o seguinte diagnóstico<br />
para mim: “Cansaço e esgotamento mental = estafa”. Receitou-me<br />
um <strong>de</strong>scanso <strong>de</strong> 15 dias na Clínica Pinel (Pinel é uma<br />
clínica <strong>de</strong> “doentes mentais”, que fica na Pampulha em Belo Horizonte).<br />
Ele mesmo assinou a guia ou o pedido <strong>de</strong> internação. Falei<br />
para o médico assim, após ter recebido o pedido para a internação:<br />
“Vamos para lá, doutor, que lá é muito bom mesmo (eu referia<br />
ao Reino <strong>de</strong> Deus ou ao céu)”. Este psiquiatra disse para a<br />
EML que eu estava muito perigoso. É interessante observar que<br />
eu mesmo dirigia o carro em todos esses trajetos.<br />
Às 16:00 horas fui conversar com o frei TAZ, que foi meu professor<br />
e conselheiro espiritual no Seminário. Ele falou-me assim:<br />
“Você precisa é <strong>de</strong> psiquiatra e não <strong>de</strong> padre”.<br />
Foi uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>cepção para mim e ainda é. Quando saí da<br />
sala com o frei TAZ, o meu irmão padre, o frei DBL, estava conversando<br />
com a EML e falou-me que também queria conversar<br />
comigo. Voltei para a sala com ele. Foi logo perguntando-me o<br />
que estava acontecendo e, com muita coragem e confiança, expliquei:<br />
“Frei DBL, é bom <strong>de</strong>mais. Não existe mais ódio em mim.<br />
Ódio é apenas uma palavra histórica. Estou pleno <strong>de</strong> amor e enten<strong>de</strong>ndo<br />
tudo. Só posso falar sobre o que já escrevi”.<br />
Senti que não fui compreendido e ele me disse que iria dormir<br />
em minha casa. Não concor<strong>de</strong>i com ele, dizendo assim: “Hoje<br />
não quero que você vá dormir lá”. Concordou comigo, mas quando<br />
saímos da sala o frei TAZ disse: “Frei DBL, você hoje vai dormir<br />
na casa do seu irmão, não vai?”. De imediato, respondi: “Hoje<br />
não! Já combinei isso com o DBL”. Tudo o que falava assustava aos<br />
outros. A EML interrompeu-me e disse:<br />
- “O que é isso, PBL! Ele é seu irmão”.<br />
- “Bom, se essa é a sua vonta<strong>de</strong>, então concordo”.<br />
Eu e ela voltamos para a nossa casa. Ali pelas 19:00 horas,<br />
chegou em casa um outro dos meus irmãos, o JBL, e eu não queria<br />
que ele dormisse em meu lar. Tentei <strong>de</strong> todas as maneiras mandá-lo<br />
para um hotel. Isso escandalizou muito os meus familiares.<br />
Houve acontecimentos, nesse e noutros momentos, que ficaram<br />
completamente apagados da minha memória. É como se não<br />
tivessem acontecido para mim.<br />
Quando o frei DBL chegou em minha casa, ali pelas 21:00 horas,<br />
levou-me para o quarto para conversar. Fui logo dizendo para<br />
ele: “Frei, é revelação atrás <strong>de</strong> revelação. É muita coisa boa mesmo.<br />
Não posso mudar nada <strong>de</strong> momento, nem sei se posso acabar <strong>de</strong><br />
construir a minha casa, na rua Ramos <strong>de</strong> Freitas. Sobre isso vou<br />
pensar <strong>de</strong>pois”.<br />
Não me lembro como fui <strong>de</strong>itar, mas acor<strong>de</strong>i <strong>de</strong> noite e saí do<br />
quarto gritando: “A última revelação: a minha mãe está aqui!”.<br />
Coloquei todos em pavorosa confusão. Fui ajoelhar ao lado<br />
da cama duma senhora, que estava dormindo também, naquela<br />
noite, no meu lar. Dizia para essa senhora que ela era a minha
mãe. Era na casa <strong>de</strong>ssa senhora que a EML estava no dia anterior<br />
(10/01/1980).<br />
No dia 12/01/1980, um sábado, fui levado <strong>de</strong> ambulância à<br />
clínica Pinel e lá cheguei como um louco para “quase” todos. Fiquei<br />
completamente inconsciente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a ambulância parou,<br />
até que fui colocado entre os “enfermos” internados na Pinel.<br />
Foi uma total <strong>de</strong>cepção. Como não vi como lá entrei, primeiro<br />
tentei reconhecer o local, mas não foi possível. Depois falei<br />
em voz alta, quase gritando, palavras sobre o sítio on<strong>de</strong> passei a<br />
minha infância, pois o meu objetivo era encontrar com os meus<br />
parentes, que tinham <strong>de</strong>saparecido: “Agropel!” (nome <strong>de</strong> fantasia<br />
<strong>de</strong> empresa agropecuária da família). Quem compreen<strong>de</strong>sse<br />
as palavras ditas por mim iria me compreen<strong>de</strong>r e me levar aos<br />
meus parentes.<br />
Tudo era <strong>de</strong>sconhecido e uma gran<strong>de</strong> incógnita para mim. Aí<br />
pensei que iria enfrentar o “nada absoluto” e me preparei para o<br />
encontro, ajoelhando e colocando a cabeça no chão entre as minhas<br />
mãos. Esperei um pouco e nada aconteceu. Não houve o encontro<br />
com o “nada absoluto”.<br />
Levantei-me e comecei a perguntar a “torto e a direito” como<br />
tinha chegado e queria saber que lugar era aquele. Ninguém teve<br />
a carida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me respon<strong>de</strong>r. Como não era entendido e não entendia<br />
ninguém, comecei a falar sobre “DEUS e o reino <strong>de</strong><br />
Deus”: esta era e é a minha loucura, que é viver e falar do infinito<br />
amor <strong>de</strong> Deus. Nesta altura vários enfermos se aproximaram<br />
<strong>de</strong> mim para me ouvir. Senti que ninguém estava enten<strong>de</strong>ndo<br />
nada. Tentei dialogar com o grupo e não houve jeito. Quando fiz<br />
uma pergunta para conseguir parâmetros <strong>de</strong> comparação com o<br />
Reino <strong>de</strong> Deus, que foi assim: “O que é a melhor coisa da vida?”<br />
Um enfermo, que estava sentado num canto e bem fora do grupo,<br />
respon<strong>de</strong>u a minha pergunta em forma <strong>de</strong> baixaria. Aí falei<br />
para ele assim: “Não é isso não, irmão!” Recebi <strong>de</strong>le a seguinte resposta<br />
e ainda girando o <strong>de</strong>do indicador da mão direita em torno<br />
do ouvido: “Você endoidou <strong>de</strong> vez, moço!” Mas esse diálogo fez<br />
com que o “inconsciente coletivo <strong>de</strong>le” entrasse em sintonia com<br />
o meu “inconsciente coletivo” e passei a pensar coisas estranhas<br />
ao meu hábito com relação a sexo.<br />
Como não houve diálogo com os novos amigos, cheguei a<br />
pensar que tinha feito uma viagem em um disco voador e estava<br />
em outro mundo. Por isso comecei a me preocupar como voltaria<br />
para a terra se realmente estivesse em outro planeta.<br />
Depois <strong>de</strong> cansar <strong>de</strong> falar, entrei por um corredor e não fui seguido<br />
por ninguém (<strong>de</strong>vo ter entrado em área proibida). An<strong>de</strong>i<br />
um pouco e quando passava em frente a uma porta, que tinha a<br />
parte <strong>de</strong> cima aberta, uma moça, que era uma recém-formada em<br />
psiquiatria e que dava plantão lá, chamou-me pelo meu nome e<br />
logo fui falando, bem aliviado: “A você estou compreen<strong>de</strong>ndo, mas<br />
aí fora não compreendi ninguém”.<br />
Ela chamou-me para conversar, convidando-me para entrar e<br />
sentar numa ca<strong>de</strong>ira em frente à mesa <strong>de</strong>la. Logo perguntei a ela:<br />
- “On<strong>de</strong> estou?”<br />
- “Você está na Pampulha em Belo Horizonte”.<br />
Ouvindo essa resposta senti um gran<strong>de</strong> alívio, mas queria confirmação.<br />
Imediatamente perguntei:<br />
- “On<strong>de</strong> estão os meus parentes?”<br />
- “Estão lá fora, à sua espera”. Respon<strong>de</strong>u ela.<br />
- “Leve-me lá”. Pedi em seguida, pois estava ainda em dúvida.<br />
- “Não po<strong>de</strong>”.<br />
Esta resposta aumentou a minha dúvida e comecei a <strong>de</strong>sconfiar<br />
que estava sendo ludibriado e enganado.<br />
- “Então traz um <strong>de</strong>les aqui”. Voltei a pedir, quase suplicando.<br />
- “Não po<strong>de</strong>”. Voltou a respon<strong>de</strong>r a psiquiatra. Nesta altura<br />
conclui que estava sendo realmente ludibriado, enganado e não<br />
acreditei em nada mais. Logo vi três homens (enfermeiros) preparando<br />
uns remédios e aí perguntei:<br />
- “O que eles estão fazendo?”<br />
- “Preparando remédio para você”. Respon<strong>de</strong>u a psiquiatra.<br />
- “Só tomo remédio se eu ver os meus parentes”. Respondi, pois<br />
não acreditava em nada mais.<br />
Quando os três enfermeiros tentaram aproximar <strong>de</strong> mim, levantei<br />
e encostei na pare<strong>de</strong>, para me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r do ataque dos três.<br />
Eles não se aproximaram mais e após terem voltado para o fundo<br />
da sala a doutora me convidou novamente para sentar na ca<strong>de</strong>ira,<br />
o que fiz. Fiquei <strong>de</strong> espreita com relação aos três homens. Falei<br />
para ela que parecia com a minha filha CL e conversamos mais<br />
um pouco. Após três tentativas, <strong>de</strong>i uma bobeada e os três me<br />
agarraram a força e no braço mesmo. Um agarrou-me pelos pés,<br />
outro pela barriga e o terceiro estrangulou-me pelo pescoço, dando-me<br />
uma gravata por trás, segurando o meu braço esquerdo e<br />
forçando-o para cima nas minhas costas. Comecei a me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r,<br />
mas mesmo assim pensei racionalmente: “Bom, eles são três e eu<br />
um só, por mais que lute irão me vencer <strong>de</strong> todo jeito, então a única<br />
saída é ficar passivo”. Agi, imediatamente, como pensei. Mas<br />
um dos “homens-fera” me <strong>de</strong>u uma gravata tão apertada e forte<br />
que me enforcava e quando senti que estava morrendo por enforcamento,<br />
levei a mão esquerda, que não estava mais presa, à mão<br />
do “estrangulador” e puxei um pouco o braço <strong>de</strong>le e assim pu<strong>de</strong><br />
respirar bem aliviado. Logo que fui colocado no chão, disse para<br />
os três homens e a psiquiatra: “Vocês fizeram uma covardia comigo<br />
e não podiam ter agido assim”.<br />
Aí a psiquiatra <strong>de</strong>u-me permissão para ir aon<strong>de</strong> estavam os<br />
meus parentes: a EML, o frei DBL e o JBL. Mas nesta altura minhas<br />
pernas já não obe<strong>de</strong>ciam a nenhum comando <strong>de</strong> minha<br />
mente. Então a doutora pegou num dos meus braços, um dos enfermeiros<br />
pegou no outro e conduziram-me até on<strong>de</strong> estavam a<br />
minha primeira esposa e os dois irmãos. Quando vi os três apaguei<br />
completamente e só acor<strong>de</strong>i no quarto da minha casa (sabia<br />
que tinha falado algo com eles e não recordava nada).<br />
Os acontecimentos na Clínica Pinel po<strong>de</strong>riam ter sido completamente<br />
diferentes se o meu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver os meus parentes<br />
fosse aceito, pois o que queria era realmente saber on<strong>de</strong> estava.<br />
Como só recebi respostas negativas, não acreditei em nada que<br />
me foi dito antes e <strong>de</strong>pois. Tinha sentimentos <strong>de</strong> dono da situação,<br />
que tudo girava em torno <strong>de</strong> mim, que os meus <strong>de</strong>sejos tinham<br />
que ser realizados e compreendidos. Por causa dos “nãos”<br />
recebidos como respostas senti-me como uma “fera enjaulada e<br />
ferida com vara curta”. Estava sozinho, tinha que sair daquele labirinto<br />
e só podia contar comigo mesmo.<br />
Logo que reconheci o meu quarto, fiquei tranqüilo e calmo, aí<br />
ouvi uma voz falando-me assim: “Olha, tem padre no meio, que<br />
não está enten<strong>de</strong>ndo nada. Então faz um escândalo aqui agora, diz<br />
que você pecou contra Deus e quer confessar”. Acabei <strong>de</strong> ouvir o<br />
pedido e agi imediatamente. Resultado: tomei mais remédio e<br />
dormi por mais algumas horas.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11 5
Revelações<br />
Daí para frente a minha via crucis aos consultórios dos psiquiatras<br />
e psicólogos foi intensa, até o dia 10/02/1986, quando<br />
consegui o cancelamento da minha aposentadoria por invali<strong>de</strong>z,<br />
junto ao INSS.<br />
Fora colocado <strong>de</strong> férias pela empresa on<strong>de</strong> trabalhava, uma financeira<br />
e, como fiquei muito bom, voltei ao trabalho no término<br />
das férias, mas entrei <strong>de</strong> licença para assuntos particulares do<br />
meu cargo <strong>de</strong> professor na <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Ciências Econômicas da<br />
<strong>UFMG</strong>, on<strong>de</strong> lecionava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1972.<br />
Logo que voltei ao trabalho completamente bom muita gente<br />
ficou espantada e queria saber o que tinha se passado comigo,<br />
pois no dia 10/01/80, <strong>de</strong> 14:15 até às 18:00 horas, <strong>de</strong>i muito escândalo<br />
no meu trabalho, falando muito e até milagre tentei fazer<br />
para provar o que dizia sobre Igreja, Bíblia, Religião e Deus. Por<br />
causa da reação dos amigos, procurei um psiquiatra da Unimed.<br />
Fiz isso porque os meus ex-professores e ex-orientadores, os freis<br />
franciscanos, principalmente o frei TAZ, não me compreen<strong>de</strong>ram<br />
e nem pu<strong>de</strong>ram me auxiliar ou orientar em nada.<br />
O psiquiatra, que procurei no final <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1980, foi o<br />
Dr. XLV. Logo que lhe expus o quadro, <strong>de</strong>u-me o seguinte diagnóstico:<br />
“Eu estava doente, muito perigoso, precisava tomar remédios<br />
e fazer análise”. Não aceitei sua orientação e ainda disse a ele:<br />
“Como posso estar doente, se estou trabalhando bem, comendo<br />
bem, dormindo bem e vivendo imensamente bem com minha família<br />
e com todos. Até parece que fiquei livre duma ca<strong>de</strong>ia invisível e<br />
estou livre na rua”.<br />
Por causa <strong>de</strong>sta última idéia minha é que ele continuou afirmando<br />
que eu estava doente, <strong>de</strong>sequilibrado e necessitava <strong>de</strong> remédios<br />
e análise. Ele só tentou me convencer que estava doente,<br />
o diálogo foi muito longo e maçante para mim. Esse estudioso das<br />
mentes também não enten<strong>de</strong>u nada da minha mente.<br />
Como ele não me convenceu, disse-me assim: “Sou um profissional<br />
e como você não aceita fazer tratamento, preciso conversar<br />
com um parente seu para expor o meu diagnóstico”.<br />
Numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1980, o Dr. XLV me telefonou convidando<br />
para ir ao consultório <strong>de</strong>le em companhia do frei DBL.<br />
Após muita conversa e já cansado <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r tanto a minha normalida<strong>de</strong><br />
como a minha saú<strong>de</strong>, então apelei para tirar do psiquiatra<br />
o apoio do meu irmão, dizendo: “Só aceito que estou doente se<br />
tudo o que me ensinaram sobre Deus e religião for mentira. Se tudo<br />
o que me ensinaram sobre a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, o Evangelho <strong>de</strong> Jesus<br />
e a Igreja for mentira, então aceito que estou doente e preciso<br />
tratar, pois fui enganado e ludibriado durante toda a minha vida; já<br />
que vocês julgam que estou doente”.<br />
Enquanto falava, lágrimas rolaram dos meus olhos e esta minha<br />
observação <strong>de</strong>rrotou o meu irmão DBL, que apoiava o psiquiatra<br />
e passou para o meu lado. Após sair do consultório, levei<br />
o frei DBL ao Provincialado dos Franciscanos.<br />
Disse a ele que não podia ter mais filhos. Essa foi a razão porque<br />
na noite <strong>de</strong> 11 para 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1980 não queria que ninguém<br />
dormisse em meu lar. Pois um “espírito muito forte e po<strong>de</strong>roso”<br />
iria reencarnar como meu filho, esperava apenas o meu<br />
“nascimento do alto” (Jo 3,3 ou 7). Como não foi possível, então<br />
passei a participar <strong>de</strong> um plano muito evoluído e tinha que me<br />
preparar muito bem para cumprir a minha missão nesta encarnação.<br />
Agia sobre a influência do “inconsciente coletivo”.<br />
6 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11<br />
No final <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 80 voltei a sintonizar com um amigo <strong>de</strong>sencarnado<br />
e perdi novamente o sono durante a noite. Esse amigo<br />
<strong>de</strong>sencarnado, um espírito, é um dos meus gran<strong>de</strong>s protetores<br />
ou auxiliares hoje e o nome <strong>de</strong>le é padre Luís, que em vida foi o<br />
meu pároco.<br />
Como não dormia à noite, a EML telefonou para o Dr. XLV,<br />
que orientou-a para dar-me uma gran<strong>de</strong> dose <strong>de</strong> “haldol”, que ela<br />
mesma julgou ser uma dose cavalar e por isso não me <strong>de</strong>u, voltando<br />
a ligar para o doutor, que também achou <strong>de</strong>masiada a dose <strong>de</strong><br />
“haldol” e a reduziu bem mesmo. No domingo cedo a EML tomou<br />
providências. Levaram, lá em casa, o Dr. CMX, um psiquiatra<br />
que me <strong>de</strong>u quatro “haldol” <strong>de</strong> 5 mg e quatro “akinetons”,<br />
pois, enquanto não apaguei na frente <strong>de</strong>le, ele não parou <strong>de</strong> me<br />
dar remédios. Logo que meu primo HLP e a esposa chegaram em<br />
minha casa e ouvi falar que estavam com um psiquiatra, bati a porta<br />
na cara <strong>de</strong>les e ainda falei: “Psiquiatra não entra em minha casa”.<br />
Eles espantaram com a minha reação e disseram: “O que é<br />
isto, PBL. É apenas um amigo”.<br />
Então eu mesmo abri a porta e respondi com muito mais calma:<br />
“Amigo! Po<strong>de</strong> entrar!”.<br />
Mas quem lá entrou não foi um amigo, mas um digno representante<br />
da psiquiatria materialista e influenciado por alguns espíritos,<br />
que não queriam o meu “<strong>de</strong>senvolvimento mediúnico, o<br />
meu autoconhecimento e o meu equilíbrio, após o meu nascimento<br />
do alto”.<br />
Hoje sou um médium <strong>de</strong>senvolvido e católico, que <strong>de</strong>smascara<br />
qualquer espírito com pseudo-iluminação ou falsa-evolução.<br />
Como é o caso <strong>de</strong> muitos monstros sagrados, que dão muitas<br />
mensagens hoje em dia, que passaram a me obsediar e por isso<br />
tive que afastar <strong>de</strong> muitos “centros espíritas”. Sendo um bom médium<br />
torna-se fácil para os espíritos darem mensagens lindas. O<br />
principal responsável pela “obra” é o médium e não os espíritos,<br />
pois quanto mais evoluído é um “espírito”, mais ele respeita a liberda<strong>de</strong><br />
plena do “médium ou do profeta”, que é quem corre todos<br />
os riscos e leva todas as conseqüências negativas ou positivas.<br />
A dose <strong>de</strong> “haldol” (4) e “akineton” (4) do Dr. CMX me colocou<br />
grogue por vários dias, pois não dou notícias certas <strong>de</strong> nada<br />
que aconteceu <strong>de</strong>pois. Estive no consultório do Dr. XLV, levado<br />
pelo meu primo HLP e esposa, juntamente com minha primeira<br />
esposa, que <strong>de</strong>sencarnou em 28/01/1984. Lembro-me vagamente<br />
dos diálogos naquelas consultas, nem mesmo sei como eu conseguia<br />
dirigir o carro.<br />
Falhei vários dias no trabalho, mas não fiquei sabendo quantos.<br />
Depois comecei a trabalhar só na parte da tar<strong>de</strong>.<br />
Comecei a fazer tratamento com o Dr. XLV, que me receitou<br />
litium e neozine. Só suportei este tratamento <strong>de</strong>sumano por uns<br />
15 dias, pois o litium foi terrível para mim. Basta dizer que quando<br />
ia ler algo as letras “criavam asas” e rapidamente transformavam-se<br />
em um borrão preto em toda a página. Novamente, esse<br />
estudioso das mentes não me enten<strong>de</strong>u. Fiquei <strong>de</strong>sesperado e<br />
com auxílio <strong>de</strong> um amigo procurei outro psiquiatra no final <strong>de</strong><br />
abril <strong>de</strong> 1980.<br />
O Dr. LXVI me fez exames <strong>de</strong> reações psicomotoras e me julgou<br />
até com boas reações físicas. Disse-me que não precisava daqueles<br />
remédios do Dr. XLV, mas <strong>de</strong> outros mais fracos. Nesta altura<br />
comecei a analisar que cada psiquiatra agia <strong>de</strong> uma forma e<br />
receitava remédios diferentes, então eles realmente não sabiam o
que se passava comigo e assim <strong>de</strong>veria ser com todos. Passei a<br />
confiar mais ainda no meu conhecimento bíblico e na Bíblia Sagrada,<br />
pois nela existem passagens on<strong>de</strong> se ouvem vozes e são vistos<br />
espíritos.<br />
O Dr. LXVI receitou-me haldol, akineton e neozine. Em maio<br />
<strong>de</strong> 1980, falei para o Dr. LXVI que não conseguia trabalhar tomando<br />
aquelas drogas, pois não conseguia raciocinar e nem pensar.<br />
Se fosse necessário tomá-las, então era para ele conseguir uma<br />
licença no INSS para mim. Ele não quis, dizendo-me que não <strong>de</strong>via<br />
ou podia (?) me arrumar licença e que então era para que eu<br />
ficasse sem remédios, mas logo que a “crise” (hoje a chamo <strong>de</strong> fenômeno<br />
mediúnico ou místico) iniciasse era para que eu tomasse<br />
uma dose <strong>de</strong> “haldol”, pois não iria agüentar o <strong>de</strong>senrolar da crise.<br />
Logo que terminou o efeito do remédio e comecei a sentir a<br />
presença dos “invisíveis ou espíritos”, tive um acesso muito forte<br />
<strong>de</strong> vômitos, mas nada vomitei e não aceitei tomar remédios.<br />
Em junho <strong>de</strong> 1980, voltei ao consultório do Dr. LXVI, que<br />
tentou forçar-me a aceitar a tomar remédios e, perante a minha<br />
negativa, disse-me mais ou menos assim: “Se você fosse um auxiliar<br />
<strong>de</strong> pedreiro, mandava uma radiopatrulha prendê-lo e internálo<br />
no ‘Galba Veloso’ (outro hospital para doentes mentais) para<br />
você tomar remédio”. O que respondi imediatamente: “A minha<br />
sorte é que não sou, não é doutor? Também tenho curso superior,<br />
posso lhe pagar esta consulta e também o senhor precisa <strong>de</strong>la para<br />
o seu sustento”.<br />
É lógico que não gostou da minha resposta e disse para a<br />
EML que não iria tratar mais <strong>de</strong> mim porque eu era teimoso e cabeçudo<br />
<strong>de</strong>mais.<br />
No último trimestre <strong>de</strong> 1980 freqüentei a clínica A. Santa do<br />
frei NK e lá me orientaram a parar <strong>de</strong> tomar remédio. Nessa clínica<br />
tomei soro, fiz sessões <strong>de</strong> regressão <strong>de</strong> vida até ao útero e <strong>de</strong><br />
relaxamento. Numa <strong>de</strong>ssas sessões vi mentalmente pela primeira<br />
e única vez o “Velho Jó”, o espírito, que hoje é o meu mentor<br />
principal.<br />
Pelo meu conhecimento atual, sei que a pessoa que dirigia a<br />
“sessão <strong>de</strong> relaxamento” não agiu corretamente. Ela mesma fez<br />
com que o “Velho Jó” saísse da minha tela mental, pois não o conhecia,<br />
mas como houve o aparecimento <strong>de</strong>le era necessário <strong>de</strong>scobrir<br />
a causa ou razão daquela visão. A imagem do “Velho Jó”<br />
continua nítida em minha mente.<br />
Levou um bom tempo para a limpeza química do meu físico.<br />
No início <strong>de</strong> 1981, após o término dos efeitos dos remédios, voltei<br />
a sentir os efeitos da mediunida<strong>de</strong>. Tive que retornar ao Dr.<br />
LXVI, pois o meu orientador da clínica A. Santa, o psicólogo irmão<br />
MPN estava <strong>de</strong> férias e os meus familiares não aceitavam que<br />
eu ficasse sem remédios. Nesta consulta com o Dr. LXVI conversamos<br />
sobre “ETs” e discos voadores: “OVNIS”. Ele fez-me muitas<br />
perguntas, às quais ia respon<strong>de</strong>ndo. Disse-me também que o<br />
tratamento na clínica A. Santa era puro charlatanismo. Fiz o pagamento<br />
à secretária, mas esqueci <strong>de</strong> assinar o cheque. O Dr.<br />
LXVI repetiu os mesmos remédios receitados em abril/1980. Na<br />
consulta seguinte, após a orientação sobre os remédios, apresentou-me<br />
o cheque sem assinatura e falou-me, mais ou menos assim:<br />
“Assine aqui para mim. Você estava tão ruim na vez passada que<br />
nem assinou o cheque”. Respondi imediatamente, sem pensar:<br />
“Pois é, doutor, e quem recebeu o cheque estava pior do que eu, pois<br />
recebeu um papel sem nenhum valor”.<br />
Em março/81, através <strong>de</strong> uma velha e muito amiga, a mesma<br />
que chamei <strong>de</strong> mãe na noite <strong>de</strong> 11 para 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1980, fomos<br />
avisados que, no bairro Jardim América, um médium atendia<br />
e curava muitos doentes, inclusive <strong>de</strong> câncer, e como a EML<br />
tinha câncer, o que ficamos sabendo em novembro <strong>de</strong> 1980, pediu-me<br />
para levá-la lá. Foi assim que tomei conhecimento prático<br />
da vida evangélica e caridosa dos espíritas. O atendimento era feito<br />
aos domingos à tar<strong>de</strong> e <strong>de</strong> 14 em 14 dias. Na primeira vez não<br />
aceitei fazer uma consulta para mim, mas na segunda vez consultei<br />
também. Logo que entrei na sala do médium e expus o que<br />
acontecia comigo, o médium mediunizado respon<strong>de</strong>u-me: “Você<br />
não tem doença nenhuma, o problema é que os amigos invisíveis estão<br />
querendo manter contato. Você conhece alguma coisa?”<br />
Perante minha ignorância completa do assunto aconselhoume<br />
a ler as obras do André Luiz, psicografadas por Chico Xavier.<br />
Também foi marcada uma reunião <strong>de</strong> captação para mim, após 28<br />
dias. Religiosamente compareci no dia marcado com antecedência<br />
e nada foi feito. Quando cobrei a razão <strong>de</strong> não ter sido atendido,<br />
indicaram-me um outro médium para conversar. Este era<br />
um advogado, que recebia um caboclo e <strong>de</strong>u-me a seguinte explicação,<br />
após um bom diálogo: “Nós não fizemos a reunião <strong>de</strong> captação<br />
com você porque estamos com medo. Os que estão com você<br />
são espíritos <strong>de</strong> extremos: são muito bons ou muito maus. Por isso<br />
aconselho-o a ler as obras da codificação do espiritismo, escritas por<br />
Allan Kar<strong>de</strong>c”.<br />
Não é necessário dizer que as li e reli todas, ainda continuo<br />
lendo e estudando-as.<br />
Uma conversa premonitória com colegas da empresa (sobre<br />
medida que evitaria sua falência, o que se concretizou posteriormente),<br />
também em início <strong>de</strong> 81, causou-me muita emoção e,<br />
logo que cheguei em casa, senti uma forte manifestação mediúnica.<br />
Quando cheguei na janela da sala vi um carro parado em frente,<br />
na rua Ramos <strong>de</strong> Freitas. Ouvi o passageiro falar com o motorista<br />
assim: “Toca, que nós não po<strong>de</strong>mos entrar nessa casa, é luz <strong>de</strong>mais”.<br />
O carro foi embora, como também o provável auxílio.<br />
Em setembro <strong>de</strong> 1981 tirei férias e senti uma razoável melhora.<br />
Viajei sozinho para visitar o papai e outros familiares. Em Divinópolis,<br />
fiquei sabendo do lado espiritual <strong>de</strong> tudo aquilo que<br />
aconteceu comigo. Participei também <strong>de</strong> uma reunião mediúnica,<br />
na linha <strong>de</strong> umbanda, na casa do meu irmão, com um médium<br />
que esteve em minha casa no final <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1980. Tive ótima<br />
melhora durante as férias. Alguns dias <strong>de</strong>pois fiquei sabendo que<br />
meus familiares davam-me remédio sem o meu conhecimento e,<br />
como viajei sozinho, esta atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sleal não pô<strong>de</strong> continuar. Com<br />
isso, o meu físico começou a ficar livre da contaminação e da prisão<br />
química. Aqui estava a explicação da minha melhora.<br />
Procurei então o psiquiatra espírita e médium Dr. MMM.<br />
Pois raciocinei assim: “Já que estou pagando a um psiquiatra, é<br />
melhor que vá a um psiquiatra espírita, pois assim posso apren<strong>de</strong>r<br />
mais sobre mediunida<strong>de</strong> e espiritismo kar<strong>de</strong>cista”. O Dr.<br />
MMM me falou algo, que muito me <strong>de</strong>cepcionou: “Como você<br />
veio aqui, é porque a ‘espiritualida<strong>de</strong>’ julga que você precisa <strong>de</strong> remédios<br />
e por isso vou ter que receitar para você. Aqui sou psiquiatra<br />
e não médium”.<br />
Por orientação médica do Dr. MMM tomei “stelazine”, “tofranil”,<br />
“semap”, “haldol” e “akineton”. Aceitei ficar com o Dr.<br />
MMM até julho <strong>de</strong> 1983, pois este psiquiatra também era mé-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11 7
Revelações<br />
dium e, para mim, um gran<strong>de</strong> conhecedor do assunto e podia me<br />
ajudar muito. Como me enganei... e muito mesmo.<br />
Mostrei para o Dr. MMM os meus primeiros escritos psicografados.<br />
Logo que os leu, disse-me: “Esse espírito é um enganador<br />
e <strong>de</strong>pois que ele conquistar a sua confiança irá pedir para você<br />
agir errado. Ele não sabe nada”.<br />
Com essa observação <strong>de</strong>le, notei claramente que também no<br />
plano invisível existe muita discórdia, confusão, inveja e <strong>de</strong>speito.<br />
Em fins <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1982 o meu chefe no trabalho falou em<br />
uma reunião que iria me <strong>de</strong>spedir do serviço, pois não conseguia<br />
trabalhar e a empresa não era <strong>de</strong> assistência social. Conversei com<br />
o chefe e pedi a ele uns dias <strong>de</strong> prazo, pois iria tentar uma licença<br />
médica junto ao INSS, já que não conseguia mesmo cumprir as<br />
minhas responsabilida<strong>de</strong>s no trabalho, <strong>de</strong>vido aos efeitos colaterais<br />
dos remédios. No dia 25/05/1982 entrei <strong>de</strong> licença no INSS.<br />
Em maio/82 fiz uma “sessão <strong>de</strong> sacudimento” com um médium,<br />
que trabalha com a linha <strong>de</strong> candomblé. O preto-velho Benedito<br />
(um espírito) me aconselhou a continuar freqüentando<br />
reuniões no Centro Oriente e como me orientou a reduzir as doses<br />
dos remédios, tomei a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> parar <strong>de</strong> tomar stelazine e<br />
tofranil em junho <strong>de</strong> 1982. Pois vi e compreendi que também a<br />
“espiritualida<strong>de</strong>” não tinha a mesma orientação com relação aos<br />
remédios. Tenho também comigo uma receita mediúnica, do início<br />
<strong>de</strong> 1982, do espírito Joseph Gleber, por intermédio do médium<br />
Dr. MMM, on<strong>de</strong> foi orientado para que eu continuasse tomando<br />
remédio.<br />
Logo que o efeito dos remédios terminou, voltei a sentir a ligação<br />
mental com a espiritualida<strong>de</strong>. Em agosto/82, <strong>de</strong>ntro da<br />
Igreja <strong>de</strong> Santa Tereza, na hora da missa, aconteceu um belo e<br />
fantástico fenômeno mediúnico ou místico comigo e não existem<br />
palavras para <strong>de</strong>screver o que senti. Passei por experiências in<strong>de</strong>scritíveis.<br />
Vivi emoções tão intensas que escandalizariam qualquer<br />
profeta bíblico. Uma voz me contou uma vida passada do<br />
meu espírito no início da Era Cristã. Essa revelação ou autoconhecimento<br />
me <strong>de</strong>u confiança plena e certeza que tinha uma missão<br />
importante a cumprir aqui na terra. Perdi completamente a<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> morrer, passando a ter uma imensa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver.<br />
Em junho/83 estava tomando semap, receitado no início <strong>de</strong><br />
1983, um comprimido por semana, e novamente parei <strong>de</strong> tomar<br />
remédio “no peito”, contra a orientação do psiquiatra-médium.<br />
Em julho/83 voltei a sentir a presença dos invisíveis, uns eram<br />
amigos e bons, outros inimigos ou <strong>de</strong>speitados. Durante uma missa,<br />
na Igreja <strong>de</strong> Santa Luzia na Cida<strong>de</strong> Nova, sintonizou comigo<br />
uma entida<strong>de</strong> com péssima vibração. Quando conversava com ela<br />
a minha boca ficava toda torta e, após dois dias, a EML viu o fenômeno<br />
e tive que voltar ao consultório do Dr. MMM, pois meus<br />
familiares não aceitavam que eu ficasse sem remédios.<br />
Primeiro falei em particular com o Dr. MMM e disse para ele<br />
mais ou menos assim: “Doutor, o senhor também é médium, sabe<br />
muito bem que existem espíritos em todos os lugares e também que<br />
sentimos a presença <strong>de</strong>les on<strong>de</strong> quer que estivermos, por isso, para<br />
que eu consiga o meu equilíbrio, não posso tomar droga alguma.<br />
Quero o seu auxílio para ajudar os meus familiares a me enten<strong>de</strong>rem<br />
e a aceitarem que eu fique sem tomar remédios”.<br />
Enquanto estava sozinho com o Dr. MMM ele nada falou comigo<br />
e confiei nele, mas ele me traiu. Para mim, ele agiu com muita<br />
<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong>, muita falsida<strong>de</strong> e até com antiética médica, pois<br />
8 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11<br />
apenas a EML entrou na sala, disse, dirigindo-se a ela: “O PBL parou<br />
<strong>de</strong> tomar semap, agora terá que tomar remédio mais forte: haldol”.<br />
E virando-se para mim, perguntou-me: “Você toma?”.<br />
Raciocinei rápido, tomei a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> nunca mais voltar ali e<br />
que não podia dizer ao doutor psiquiatra o que ele precisava ouvir,<br />
pois assim pareceria mesmo “louco” para minha primeira esposa.<br />
Minha primeira vonta<strong>de</strong> era sair do consultório e ofen<strong>de</strong>r<br />
ao Dr. MMM com palavras, chamando-o <strong>de</strong> incompetente e que<br />
nem <strong>de</strong> amigo po<strong>de</strong>ria chamá-lo. Mas reprimi o primeiro ímpeto<br />
e respondi para ele <strong>de</strong> pronto: “Tomo sim, doutor, pois Jesus disse<br />
que o que faz mal ao homem é o que sai da boca e não o que entra<br />
pela boca”.<br />
Ele olhou para mim com os olhos arregalados e <strong>de</strong>pois fez<br />
uma receita, que nunca foi usada, pois quando estava na rua, falei:<br />
“Nunca mais voltarei aqui no consultório do Dr. MMM, pois<br />
perdi toda a confiança nele”.<br />
Quando comentei com outro psiquiatra os fenômenos acontecidos<br />
em agosto <strong>de</strong> 1982, <strong>de</strong>ntro da Igreja <strong>de</strong> Santa Tereza,<br />
oportunida<strong>de</strong> em que fiquei sabendo <strong>de</strong> uma vida passada do<br />
meu espírito, houve esse diálogo:<br />
- “Quem você foi?”<br />
- “Bom, doutor, isso é uma coisa muito íntima. Não dá para ficar<br />
contando assim”. Tentei sair da armadilha, pois cai numa arapuca.<br />
- “Aqui é como um confessionário. O que você contar aqui, fica<br />
aqui mesmo”.<br />
Comentou o psiquiatra, fechando o cerco em cima <strong>de</strong> mim.<br />
Mesmo assim não contei o nome, mas disse apenas o grupo, ao<br />
qual pertenci num longínquo passado. Imediatamente senti a presença<br />
<strong>de</strong> um amigo invisível, que fez efeitos físicos perto do meu<br />
cotovelo direito, pois os meus cabelos num círculo com raio <strong>de</strong> 3<br />
cm ficaram eriçados. Mostrando o braço para o psiquiatra, disse:<br />
- “É isso que falo com o senhor, doutor, veja aqui no meu braço!”<br />
- “O que é isso?” Perguntou espantado o Dr.<br />
- “Isso aqui, é porque tem um amigo invisível aqui, que não vejo<br />
e nem o senhor, mas para ele dizer que está aqui faz isso comigo. Ele<br />
quer saber quem fui há 2.000 anos atrás, pois disse para o senhor<br />
apenas o grupo e ocultei o nome”. Falei apontando com o <strong>de</strong>do<br />
para o meu lado direito.<br />
- “Porque isso acontece com você e não comigo?” Perguntou o<br />
psiquiatra.<br />
- “O senhor, doutor, é que <strong>de</strong>veria me explicar e não eu. O senhor<br />
é que é o psiquiatra”.<br />
- “Você daria um analista muito bom mesmo”. Arrematou o<br />
psiquiatra.<br />
- “Realmente, neste campo, quero ajudar sim, doutor. Mas tem<br />
uma condição, pois vou ajudar <strong>de</strong> graça, já que para o meu sustento<br />
vou usar do meu conhecimento <strong>de</strong> matemática”.<br />
- “Aí você tira o meu ganha-pão!” Disse-me ele.<br />
- “Isso já não é problema meu, mas seu. Se o senhor quer realmente<br />
ajudar, então estuda muito mesmo, pois existe muita gente<br />
necessitada, que não vai aceitar <strong>de</strong> graça”.<br />
Freqüentei também reuniões no Centro Espírita Irmão Mateus,<br />
<strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1984 a junho <strong>de</strong> 1988. Tive que parar porque<br />
o dirigente da reunião não me compreen<strong>de</strong>u e nem aceitou a paz,<br />
o amor e o sentimento <strong>de</strong> unificação do “Velho Jó”. O mesmo<br />
aconteceu no Centro Espírita Bezerra <strong>de</strong> Menezes, em que estive
<strong>de</strong> 1996 a 1998, on<strong>de</strong> também não foram compreendidas as<br />
orientações <strong>de</strong> PAZ PLENA e liberda<strong>de</strong> total do “Velho Jó”.<br />
Em maio <strong>de</strong> 1994 aconteceu um fato mundial: a morte do ídolo<br />
Airton Senna, que causou muita emoção no mundo inteiro e<br />
principalmente no Brasil. Vivi um fenômeno paranormal muito<br />
intenso mesmo e com a participação <strong>de</strong> outros, mas todos pu<strong>de</strong>ram<br />
extravasar suas emoções, menos eu, pois fiquei como o único<br />
culpado por tudo que aconteceu no meu trabalho. Disseram<br />
que tentei dar dois socos num colega, que tentei agarrar outra<br />
pessoa pelos pés ao subir uma escada. Disseram ter visto isso, mas<br />
foi um fenômeno paranormal por parte <strong>de</strong>les, pois nada daquilo<br />
tinha acontecido no plano físico, só tiveram ilusões. Ainda recebi<br />
um castigo para ficar alguns dias em casa e meus familiares foram<br />
obrigados a me dar algumas doses <strong>de</strong> remédio sem o meu conhecimento.<br />
Tudo isso por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> pessoas que não queriam a vitória<br />
plena do bem, nem a PLENA PAZ na terra e a divulgação<br />
da verda<strong>de</strong>, que liberta.<br />
Bom, o que quero mostrar com esse trabalho e essas revelações<br />
é que mediunida<strong>de</strong> nunca se trata com remédios, que só po<strong>de</strong>m<br />
ser usados como um paliativo por pouco tempo, mas principalmente<br />
com amor, compreensão, conhecimento, muita carida<strong>de</strong>,<br />
muito estudo teórico e prático.<br />
Que a luz, o amor, a sabedoria e a compreensão do mestre Jesus<br />
possam envolver a todos os seres humanos na terra. Com esse<br />
sentimento geral torna-se possível a construção do “Reino <strong>de</strong><br />
Deus na terra”, como pedimos na oração do “Pai-Nosso”, ensinada<br />
por Jesus <strong>de</strong> Nazaré.<br />
Informações Complementares<br />
Maurício Viotti Daker *<br />
Ida<strong>de</strong>: 54. Naturalida<strong>de</strong>: região das Vertentes, interior <strong>de</strong> Minas<br />
Gerais. Residência: Belo Horizonte. Cor: branco. Estado civil:<br />
casado, sendo que já foi viúvo. Profissão: ciências contábeis e<br />
administração <strong>de</strong> empresas. Nível <strong>de</strong> educação: superior. Religião:<br />
católica (seminarista por nove anos); hoje estuda outras religiões,<br />
conhece o espiritismo, mas não se consi<strong>de</strong>ra espírita.<br />
Início do quadro mental em janeiro <strong>de</strong> 1980, com uma internação<br />
psiquiátrica <strong>de</strong> curta duração, conforme <strong>de</strong>scrito no autorelato.<br />
Possui documentos médicos com os seguintes diagnósticos:<br />
296.3 (13/5/82) e 295.6 (16/5/82 e 24/11/82).<br />
Possui três filhos do primeiro casamento e dois do segundo.<br />
Relacionamento familiar muito bom.<br />
Principal entretenimento: estudar religião. Teria relacionamento<br />
social a<strong>de</strong>quado, amigos.<br />
Trabalhou <strong>de</strong> 1969 a 1978 e <strong>de</strong> 1986 até hoje numa mesma firma.<br />
Entre 1978 e 82 numa financeira, retirando-se com a licença<br />
médica. De 1972 a 80 foi professor auxiliar na <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong><br />
Ciências Econômicas da <strong>UFMG</strong>.<br />
Sempre foi auto-suficiente financeiramente, mesmo quando<br />
afastado pelo INSS (embora com mais dificulda<strong>de</strong>s).<br />
* Prof. Adjunto Doutor do Departmento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e Neurologia da<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong>.<br />
Relato <strong>de</strong> primos, filhos <strong>de</strong> pais consangüíneos, com história<br />
<strong>de</strong> internação psiquiátrica.<br />
Atualmente, relata que não mais se sente “teleguiado” e sem<br />
controle, pois enten<strong>de</strong> os fenômenos que vivencia, discute e os<br />
explica, é mais consciente. “Desenvolvi uma visão diferente com<br />
base na prática”, ou seja, com base nos fenômenos que lhe ocorrem<br />
e que não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>le. Por exemplo, teria “interpretações”<br />
a<strong>de</strong>quadas para acontecimentos como a quebra <strong>de</strong> uma<br />
ponta <strong>de</strong> lápis, ou para a mudança repentina <strong>de</strong> sua letra enquanto<br />
escreve. Para suas interpretações e explicações, utiliza-se <strong>de</strong> estudos<br />
religiosos/mediunida<strong>de</strong>, metafísica, parapsicologia/paranormalida<strong>de</strong>,<br />
física, matemática e uma numerologia própria. Relata<br />
apresentar alterações motoras e dores, além <strong>de</strong> alucinações<br />
auditivas e cenestésicas/táteis. As “vozes” agora seriam mais sutis,<br />
“tenho uma <strong>de</strong>fesa muito forte, entendo melhor”. Há muito<br />
não estaria apresentando alucinações visuais, mas ainda po<strong>de</strong>rá<br />
“ver tudo,” pois “o futuro pertence a Deus”. Lembra que visões<br />
ou ouvir vozes são fenômenos freqüentemente <strong>de</strong>scritos na Bíblia.<br />
Por vezes, escreve para autorida<strong>de</strong>s eclesiásticas em busca <strong>de</strong><br />
diálogo na compreensão <strong>de</strong> suas vivências.<br />
Discussão do caso<br />
Este é sem dúvida um caso extraordinário na medida em que<br />
se trata <strong>de</strong> um auto-relato <strong>de</strong> caso, algo muito raro em nossos<br />
dias. A comparação com o célebre caso Schreber é inevitável, talvez<br />
a mais famosa e <strong>de</strong>talhada auto-<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um quadro <strong>de</strong>lirante<br />
até hoje escrita.1 Daniel Paul Schreber era um juiz da corte<br />
<strong>de</strong> apelação da Saxônia que foi internado algumas vezes em hospitais<br />
psiquiátricos entre 1884 e 1902. Em 1900, começou a escrever<br />
suas “Memórias <strong>de</strong> um Doente dos Nervos”, terminadas em<br />
1902 e publicadas no ano seguinte. As “Memórias” <strong>de</strong> Schreber<br />
foram objeto <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> vários autores: Baumeyer, Nie<strong>de</strong>rland2<br />
e, sobretudo, Freud.3 Foi diagnosticado por seu médico Fleshig e<br />
por Freud (que não o conheceu, somente analisou sua autobiografia)<br />
como portador <strong>de</strong> <strong>de</strong>mentia paranoi<strong>de</strong>s, antigo termo kraepelineano<br />
que correspon<strong>de</strong> ao que hoje <strong>de</strong>nominamos esquizofrenia<br />
paranói<strong>de</strong>. No entanto, o início tardio do quadro psicótico, a<br />
estrutura <strong>de</strong>lirante complexa e o fato <strong>de</strong> não ter evoluído <strong>de</strong> forma<br />
<strong>de</strong>teriorante, são argumentos que permitem afirmar que o<br />
quadro clínico <strong>de</strong> Schreber esteve mais próximo <strong>de</strong> uma parafrenia,<br />
termo hoje englobado <strong>de</strong>ntro dos transtornos <strong>de</strong>lirantes. Na<br />
realida<strong>de</strong> Kraepelin consi<strong>de</strong>rava a esquizofrenia e a parafrenia<br />
como processos que não produziam uma <strong>de</strong>mência completa (<strong>de</strong>menz<br />
em alemão) mas sim uma espécie <strong>de</strong> “enfraquecimento<br />
mental” (verblödung).4<br />
A ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início é ainda uma das variáveis mais estudadas na<br />
esquizofrenia. Já está bem estabelecido que seu pico <strong>de</strong> incidência<br />
nos homens é <strong>de</strong> 15 a 25 anos e nas mulheres 25 a 35 anos.5<br />
Embora se saiba que a esquizofrenia po<strong>de</strong> ter seu início fora das<br />
faixas etárias antes mencionadas, no caso em questão, o paciente<br />
PBL apresentou as primeiras manifestações psicóticas aos 34<br />
anos, isto é, fora da faixa esperada <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início da esquizofrenia.<br />
Por outro lado esquizofrenia não significa necessariamente<br />
evolução <strong>de</strong>teriorante e a história <strong>de</strong> PBL fornece-nos evidências<br />
contrárias a esta hipótese: voltou a trabalhar em 1986, seis<br />
anos após sua internação psiquiátrica, manteve um segundo casa-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11 9
Revelações<br />
mento, amigos, algo difícil <strong>de</strong> ocorrer em pacientes <strong>de</strong>teriorados<br />
cognitivamente.<br />
Um início precoce é um fator <strong>de</strong> mal prognóstico em várias<br />
doenças mentais. No caso da esquizofrenia a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início precoce<br />
<strong>de</strong>monstrou ser um fator preditivo para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> resistência ao tratamento neuroléptico.6 No caso <strong>de</strong> PBL po<strong>de</strong>r-se-ia<br />
contra-argumentar que se trata <strong>de</strong> uma “esquizofrenia<br />
<strong>de</strong> bom prognóstico”, na medida em que o paciente apresenta alguns<br />
dos fatores preditivos associados a uma evolução mais favorável<br />
(menos <strong>de</strong>teriorante): ser casado, ausência <strong>de</strong> história psiquiátrica<br />
prévia, ausência <strong>de</strong> alterações prévias <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>,<br />
bom relacionamento social, antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> bom <strong>de</strong>sempenho<br />
escolar e no trabalho, ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início tardio.5<br />
O relato <strong>de</strong> PBL apresenta trechos que sugerem um quadro<br />
<strong>de</strong> excitação (p.ex. “Sentia-me com um po<strong>de</strong>r imenso e com conhecimentos<br />
totais”; “Sei que ia assustando cada vez mais as pessoas.<br />
Era como se fosse um teleguiado, pois sabia o que fazia, mas<br />
não podia parar <strong>de</strong> agir e fazer escândalos”). Por outro lado, o paciente<br />
recebeu o diagnóstico <strong>de</strong> 296.3 (<strong>de</strong>pressão). Estaríamos na<br />
realida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> um transtorno bipolar com sintomas psicóticos?<br />
O pouco que sabemos <strong>de</strong> sua evolução não aponta para tal<br />
direção e, na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> sua situação atual, há a informação da<br />
presença <strong>de</strong> um quadro <strong>de</strong>lirante alucinatório persistente, sem remissões,<br />
o que não seria esperado nos transtornos bipolares.<br />
Penso que numa discussão <strong>de</strong> caso <strong>de</strong>vemos adotar sempre a<br />
estratégia do Advogado do Diabo: procurar refutar a hipótese do<br />
diagnóstico principal até o limite máximo, para que as evidências<br />
a seu favor tenham peso maior que o das evidências contrárias.<br />
Assim temos evidências neste caso <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> um transtorno<br />
<strong>de</strong>lirante, e não <strong>de</strong> uma esquizofrenia, com relativa conservação<br />
da personalida<strong>de</strong>. No entanto, há algumas evidências <strong>de</strong> sintomas<br />
maniformes e um diagnóstico anterior <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão. O paciente<br />
po<strong>de</strong>ria ter recebido tratamento correspon<strong>de</strong>nte (anti<strong>de</strong>pressivos,<br />
estabilizadores do humor), mas só há a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong><br />
uso <strong>de</strong> antipsicóticos (Haldol®, Neozine®, Semap®‚) que, diga-se<br />
<strong>de</strong> passagem, quando interrompidos, levaram a um retorno da<br />
sintomatologia (“ ...em junho/83 parei <strong>de</strong> tomar remédio ‘no peito’....<br />
em julho/83 voltei a sentir a presença dos invisíveis…”).<br />
No caso dos transtornos <strong>de</strong>lirantes a ocorrência concomitante<br />
<strong>de</strong> sintomas do humor não é novida<strong>de</strong>. Por exemplo, comentando<br />
a história dos transtornos <strong>de</strong>lirantes, Kendler chama atenção que<br />
Esquirol <strong>de</strong>nominava “monomanias” quadros <strong>de</strong>lirantes associados<br />
a humor elevado e aumento das capacida<strong>de</strong>s física e mental.7<br />
Mesmo o caso Schreber já foi interpretado como um transtorno<br />
do humor8 uma vez que o próprio Freud <strong>de</strong>screveu sintomas <strong>de</strong>pressivos<br />
nas manifestações iniciais do caso.3 A própria CID-10<br />
admite que nos transtornos <strong>de</strong>lirantes persistentes “sintomas <strong>de</strong>pressivos<br />
ou mesmo um episódio <strong>de</strong>pressivo bem marcado (F32.)<br />
po<strong>de</strong>m estar presentes <strong>de</strong> forma intermitente...” (p. 96).9<br />
No entanto, uma questão maior na discussão <strong>de</strong>ste caso: a estrutura<br />
do <strong>de</strong>lírio do paciente PBL. Como já fora observado por<br />
vários autores, apesar <strong>de</strong> comprometidos, os pacientes <strong>de</strong>lirantes<br />
apresentam-se relativamente preservados em outras áreas, o que<br />
também se evi<strong>de</strong>ncia no paciente objeto <strong>de</strong> nossa discussão. Para<br />
explicar tal fenômeno Esquirol cunhou o termo <strong>de</strong>lírio parcial<br />
para estes casos.7 Do ponto <strong>de</strong> vista da evolução, autores que tiveram<br />
a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar seguimento aos pacientes <strong>de</strong>scritos<br />
10 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11<br />
por Kraepelin pu<strong>de</strong>ram observar que os que apresentavam a chamada<br />
paranóia, um transtorno <strong>de</strong>lirante puro sem alucinações, tiveram<br />
melhor prognóstico que os parafrênicos, que tendiam para<br />
uma evolução <strong>de</strong>teriorante em muitos dos casos.4<br />
A estrutura <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong> PBL, <strong>de</strong>scrita através do seu relato,<br />
não parece sistematizada, mas isto po<strong>de</strong> estar limitado pelos dotes<br />
literários do paciente, que variam da mesma forma que o das<br />
pessoas sãs. A maioria <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>lírios são <strong>de</strong> caráter místico-religioso,<br />
eivados por idéias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za. Seu linguajar é facilmente<br />
encontrado em pessoas que professam a religião espírita e que<br />
nada têm <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante.<br />
Há, portanto, uma gran<strong>de</strong> influência cultural no <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong>ste<br />
paciente e aqui surge uma questão, se quisermos classificá-lo <strong>de</strong><br />
acordo com a nosologia ou a nosografia atuais: para CID-10, nos<br />
transtornos <strong>de</strong>lirantes persistentes (F22) os <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong>vem ser<br />
“claramente pessoais e não subculturais” (p. 96).9 Enten<strong>de</strong>mos<br />
que o verda<strong>de</strong>iro quadro <strong>de</strong>lirante se caracteriza pela presença <strong>de</strong><br />
um construto pessoal tão idiossincrático que não permite ser<br />
compartilhado com os outros. Para se ter uma idéia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>lírio<br />
cuja construção é pessoal citamos o que Schreber escreveu a<br />
um <strong>de</strong>terminado ponto <strong>de</strong> sua obra:<br />
“A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interferir <strong>de</strong>ste modo sobre os nervos<br />
<strong>de</strong> uma pessoa é, antes <strong>de</strong> mais nada, própria dos raios divinos...<br />
Só posso encontrar a explicação para isso no fato <strong>de</strong> que o professor<br />
Fleschig <strong>de</strong> algum modo se permitiu fazer uso dos raios divinos;<br />
mais tar<strong>de</strong> além do professor Fleschig, raios divinos também<br />
se puseram em contato com meus nervos... Assim, relativamente<br />
cedo, esta interferência teve lugar na forma <strong>de</strong> uma coação a pensar...”<br />
(pp. 68-69)2<br />
O <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> PBL está longe <strong>de</strong> ser algo tão elaborado, construído<br />
à partir <strong>de</strong> uma teoria pessoal, como fizera Schreber. Por<br />
outro lado surge também uma contradição se quisermos classificar<br />
este paciente <strong>de</strong>ntro dos critérios dos “transtornos <strong>de</strong>lirantes”<br />
da DSM IV, pois nestes casos os <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong>vem ser “não bizarros”<br />
como ocorre na esquizofrenia. A idéia <strong>de</strong> “bizarria” na DSM IV<br />
é <strong>de</strong>rivada do conceito <strong>de</strong> plausibilida<strong>de</strong>: assim é consi<strong>de</strong>rado bizarro<br />
um <strong>de</strong>lírio on<strong>de</strong> uma pessoa afirma que “...uma pessoa removeu<br />
meus órgão internos e colocou os órgãos <strong>de</strong> outra pessoa<br />
sem <strong>de</strong>ixar qualquer cicatriz” e como não bizarros aquelas situações<br />
plausíveis <strong>de</strong> ocorrência na vida real, tais como “ser seguido,<br />
envenenado, infectado, amado à distância, enganado pela esposa<br />
ou amante” (pp. 296-297).10<br />
Por estes critérios os <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong> Schreber são francamente bizarros<br />
e os <strong>de</strong> PBL nem tanto: um dos médiums que o aten<strong>de</strong>u<br />
chegou a afirmar que ele não tinha doença alguma, fornecendo<br />
uma explicação apropriada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma certa cultura, compartilhando<br />
<strong>de</strong> suas idéias.<br />
Summary<br />
Presentation of a case by the own patient, a man that once was seminarian<br />
and that has a high educational level. He presented psychotic<br />
symptomatology full of mediumistic revelations and was retired<br />
for some years. He <strong>de</strong>scribes in <strong>de</strong>tails his first symptoms and its<br />
consequences, as well as his via crucis through psychiatric treatments.<br />
Today he works and lives normally. He does not consi<strong>de</strong>r his symptomatology<br />
as originated from disease.
Key-words: Psychotic Disor<strong>de</strong>r; Paranoid Schizophrenia;<br />
Paraphrenia; Delusional Disor<strong>de</strong>r<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Schreber DP. Memórias <strong>de</strong> um doente dos nervos. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Graal, 1984.<br />
2. Carone M. Da loucura <strong>de</strong> prestígio ao prestígio da loucura<br />
(prefácio). In: Schreber DP. Memórias <strong>de</strong> um doente dos<br />
nervos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal, 1984:7-23.<br />
3. Freud S. Psycho-analytic notes on the autobiographical account<br />
of a case of Paranoia (Dementia Paranoi<strong>de</strong>s). London:<br />
The Hogarth Press and the Institute of Psychoanalysis, 1958.<br />
4. Elkis H. Transtornos esquizotípicos, esquizofreniformes, esquizoafetivos<br />
e <strong>de</strong>lirantes. In: Louzã, Motta, Wang & Elkis.<br />
Editores. <strong>Psiquiatria</strong> Básica. Porto Alegre: Artes Médicas,<br />
1995:205-232.<br />
5. Frangou S, Murray RM. Schizophrenia. London: Martin Dunitz,<br />
1997.<br />
6. Henna J. Esquizofrenia Resistente ao Tratamento Antipsicótico<br />
[dissertação <strong>de</strong> mestrado - Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong>,<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>]. São Paulo: Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />
Paulo, 1999.<br />
7. Kendler K. Delusional Disor<strong>de</strong>r. In: Berrios G, Porter R.<br />
Editores. A History of Clinical Psychiatry. New Jersey: The<br />
Athlone Press, 1995:360-371.<br />
8. Lipton A. Was the “nervous illness” of Schreber a case of affective<br />
disor<strong>de</strong>r? Am J Psych 1984; 141:1236-1239.<br />
9. Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Classificação <strong>de</strong> transtornos<br />
mentais e do comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes<br />
Médicas, 1993.<br />
10. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistic<br />
Manual of Mental Disor<strong>de</strong>rs. 4th Ed. Washington DC: American<br />
Psychiatric Association, 1994.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11 11
Originais<br />
Adriana Brazão Pileggi *<br />
Marcelo Feijó <strong>de</strong> Mello **<br />
Resumo<br />
PSICOPATOLOGIA NOS QUADROS DEMENCIAIS<br />
PSYCHOPATHOLOGY IN CASES OF DEMENTIA<br />
Os conceitos diagnósticos atuais são categoriais, as entida<strong>de</strong>s clínicas<br />
são discretas, baseando-se na soma <strong>de</strong> sintomas. Um diagnóstico<br />
é dado se o indivíduo preenche <strong>de</strong>terminado número <strong>de</strong> sintomas<br />
preestabelecidos. Ao aumentar a concordância do diagnóstico,<br />
compromete-se sua valida<strong>de</strong>. Relatamos um caso complexo, on<strong>de</strong><br />
vários fatores clínicos estão presentes. A sintomatologia apresentada<br />
pela paciente tem, <strong>de</strong>ssa forma, peculiarida<strong>de</strong>s que tornam árdua<br />
a tarefa do diagnóstico categorial. Os autores questionam a utilida<strong>de</strong><br />
dos conceitos diagnósticos vigentes em orientar a terapêutica e<br />
a pesquisa em neurociências e mostram possíveis opções para o raciocínio<br />
clínico.<br />
Palavras-chave: Psicopatologia; Demência; Depressão; Catatonia;<br />
Antipsicóticos; Anti<strong>de</strong>pressivos<br />
A riqueza da clínica psiquiátrica <strong>de</strong>riva da complexida<strong>de</strong> do<br />
psiquismo humano. Este como resultado da interação entre corpo,<br />
cérebro e ambiente. Os estudos <strong>de</strong> neurociência vêm mostrando<br />
as relações entre cultura (ambiente) e funcionamento cerebral;<br />
como exemplo po<strong>de</strong>mos citar a ação da psicoterapia no<br />
funcionamento cerebral através <strong>de</strong> estudos <strong>de</strong> ressonância magnética<br />
funcional. Assim é o paciente psiquiátrico, que apresenta<br />
seus sintomas marcados por características <strong>de</strong> sua maneira <strong>de</strong> ser,<br />
sua cultura, sua educação; ainda possíveis agressões que o seu cérebro<br />
possa sofrer durante a vida através <strong>de</strong> drogas psicoativas,<br />
doenças sistêmicas e, ainda mais, pelas vivências. Não são incomuns<br />
os pacientes que se apresentam com histórias das mais complexas<br />
e longas. A tarefa do psiquiatra é a <strong>de</strong> caracterizar os sintomas<br />
em patológicos ou não. Em caso afirmativo, <strong>de</strong>ve estruturar<br />
um diagnóstico que possa levar ao tratamento e à melhora do<br />
paciente.<br />
Os diagnósticos psiquiátricos atuais1,2 são categoriais, ou seja,<br />
indicam entida<strong>de</strong>s clínicas discretas, com base na soma <strong>de</strong> critérios.<br />
Essa formulação po<strong>de</strong> ser problemática em casos com sintomatologia<br />
complexa e multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fatores etiológicos.<br />
Relatamos um caso clínico cujo espectro sintomático varia da<br />
<strong>de</strong>pressão à <strong>de</strong>mência, passando por aspectos diversos como malformação<br />
vascular cerebral e uso crônico <strong>de</strong> benzodiazepínicos.<br />
* Resi<strong>de</strong>nte do segundo ano da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do<br />
Hospital do Servidor Público Estadual “FMO”<br />
** Psiquiatra do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO”<br />
12 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):12-15<br />
Neste exemplo, verificamos a importância da elaboração <strong>de</strong> um<br />
diagnóstico que avalie os sintomas na base do contexto em que<br />
ele se dá, procurando conhecer o significado do mesmo e a partir<br />
disso elaborar o tratamento.<br />
Caso Clínico<br />
I<strong>de</strong>ntificação<br />
Paciente do sexo feminino, branca, 75 anos, viúva, natural e<br />
proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> São Paulo, católica, sempre trabalhou em casa.<br />
Queixa e duração<br />
Alterações <strong>de</strong> comportamento há um ano e meio.<br />
História da Moléstia Atual<br />
Segundo relato da filha, há um ano e meio passou a ficar <strong>de</strong>sanimada,<br />
pouco ativa, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> participar da rotina da casa<br />
como antes fazia. Não tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cozinhar, precisava ser<br />
lembrada para se alimentar e tomar banho. Passava a maior parte<br />
do tempo muda, sentada, rezando. Fazia preces para os santos,<br />
e também para o marido e pais já falecidos. Começou a apresentar<br />
comportamento estranho, perguntando muitas vezes a mesma<br />
coisa, preocupando-se com um pequeno hematoma que lhe apareceu<br />
no braço. Foi levada pelos familiares ao hospital, sendo medicada<br />
com haloperidol e encaminhada para tratamento ambulatorial.<br />
Iniciou acompanhamento com neurologista, usando regularmente<br />
haloperidol. Como permanecia hipocinética e pouco comunicativa,<br />
passou a ser medicada com nortriptilina 25 mg ao<br />
dia. Mostrou alguma melhora, já não apresentava quadros on<strong>de</strong><br />
parecia ausente, porém permanecia apática, calada, rezando a<br />
maior parte do tempo.<br />
Há três meses o quadro se modificou. Passou a ouvir vozes <strong>de</strong><br />
tenores, que costumava escutar quando criança, logo após ouvir o<br />
marido falecido e Jesus. Pensava na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> redimir-se <strong>de</strong><br />
pecados cometidos ao longo <strong>de</strong> sua vida realizando tarefas para<br />
Deus; dizia também que iria mudar-se para uma casa logo ao lado<br />
on<strong>de</strong> estava e que lá conviveria com todos os seus parentes falecidos.<br />
Foi encaminhada então ao psiquiatra e iniciou tratamento<br />
com tioridazina, que fez uso durante 15 dias, sem melhora.<br />
Uma semana <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>senvolveu quadro catatoniforme, sendo<br />
levada ao hospital e medicada com haloperidol injetável, com<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Adriana Brazão Pileggi<br />
Av Ibirapuera 981<br />
04029-000 - São Paulo - SP
emissão <strong>de</strong>ste por poucos dias, logo retornando ao estado catatoniforme.<br />
Foi então medicada com venlafaxina 187,5 mg ao dia,<br />
que levou novamente à remissão.<br />
A venlafaxina continuou a ser administrada, porém a paciente<br />
respon<strong>de</strong>u com piora do quadro <strong>de</strong>lirante e gran<strong>de</strong> exaltação<br />
psíquica. Optou-se por trocar a medicação e iniciou-se uso <strong>de</strong><br />
tioridazina 300 mg ao dia. A sedação impediu a manutenção <strong>de</strong>sse<br />
tratamento e obteu-se estabilização do quadro com risperidona<br />
6 mg ao dia. Inicialmente, houve progressiva diminuição do investimento<br />
afetivo no <strong>de</strong>lírio, assim como diminuição da intensida<strong>de</strong><br />
do volume das alucinações auditivas.<br />
Antece<strong>de</strong>ntes Pessoais<br />
Evolução normal sem problemas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, escolarida<strong>de</strong><br />
ou profissão até o casamento. Casou-se aos 23 anos e teve<br />
dois filhos. No puerpério <strong>de</strong> seu primeiro parto apresentou alteração<br />
do comportamento, porém não foi avaliada por médico especialista.<br />
Há 23 anos procurou psiquiatra, pois vivia conflito conjugal e<br />
apresentava comportamento <strong>de</strong> autoflagelação. Iniciou nessa<br />
época uso rotineiro <strong>de</strong> benzodiazepínicos.<br />
Fez tratamento neurológico, em uso <strong>de</strong> anticonvulsivantes<br />
por “crises <strong>de</strong> ausência”. Nessa época fez EEG, que acusou foco<br />
irritativo em região temporal direita, e arteriografia, que mostrou<br />
malformação vascular cerebral.<br />
Há 20 anos foi mastectomizada por neoplasia <strong>de</strong> mama, fez<br />
seguimento com quimioterapia e teve alta. É hipertensa e usa diuréticos<br />
com regularida<strong>de</strong>.<br />
Resi<strong>de</strong> com a filha. O marido faleceu há nove anos. É <strong>de</strong>finida<br />
pela família como perfeccionista e negativa, apesar <strong>de</strong> ser muito<br />
amável com os familiares. Nunca foram observadas mudanças cíclicas<br />
em seu humor, tampouco quadro semelhante ao atual.<br />
Exame do Estado Mental<br />
No momento do exame encontrava-se em boas condições <strong>de</strong><br />
higiene e alinho. Consciente, orientada auto e alopsiquicamente.<br />
Atenção voluntária prejudicada. Memória discretamente prejudicada<br />
(a paciente, inclusive, queixava-se <strong>de</strong> “falhas <strong>de</strong> memória”),<br />
pareciam ocorrer lacunas mnêmicas. O pensamento tinha o curso<br />
levemente lentificado, com conteúdo <strong>de</strong>lirante. Alucinações<br />
auditivas. No início apresentava idéias <strong>de</strong> culpa e <strong>de</strong> punição. Porém,<br />
ao longo do tempo essas idéias passaram a ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za;<br />
acreditava ser a eleita <strong>de</strong> Deus.<br />
O discurso muitas vezes era incoerente, respondia a qualquer<br />
pergunta com qualquer resposta, não se importando com o que<br />
havia dito pouco tempo atrás. Esse padrão <strong>de</strong> resposta parecia<br />
preencher as lacunas mnêmicas. O humor não se fixava em nenhum<br />
dos pólos, mostrava-se apática. O pragmatismo estava prejudicado.<br />
Hipóteses Diagnósticas<br />
Os principais diagnósticos diferenciais aventados foram: <strong>de</strong>mência,<br />
<strong>de</strong>pressão ou melancolia <strong>de</strong>lirante.<br />
Tomando como base a soma <strong>de</strong> sintomas, po<strong>de</strong>ríamos fazer<br />
o diagnóstico a partir dos critérios <strong>de</strong>finidos pela CID-10<br />
(Tabelas 1 e 2).1<br />
Tabela 1 - Critérios para a <strong>de</strong>mência <strong>de</strong> Alzheimer<br />
- Presença <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência <strong>de</strong>finida como <strong>de</strong>clínio tanto da<br />
memória quanto do pensamento, o que é suficiente para<br />
comprometer ativida<strong>de</strong>s pessoais da vida diária...<br />
- Início insidioso com <strong>de</strong>terioração lenta...<br />
- Ausência <strong>de</strong> início súbito ou <strong>de</strong> sinais neurológicos focais...<br />
Po<strong>de</strong>-se ainda incluir no diagnóstico um subtipo: outros sintomas,<br />
predominantemente <strong>de</strong>lirantes.<br />
Tabela 2 - Critérios para episódio <strong>de</strong>pressivo grave com sintomas<br />
psicóticos.<br />
- Humor <strong>de</strong>primido, perda <strong>de</strong> interesse e prazer, fatigabilida<strong>de</strong><br />
aumentada.<br />
- Concentração e atenção reduzidas.<br />
- Idéias <strong>de</strong> culpa e inutilida<strong>de</strong>.<br />
- Sono perturbado.<br />
- Apetite diminuído.<br />
- Delírio inicialmente congruente com o humor.<br />
Evolução<br />
No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong> seguimento notamos importante<br />
<strong>de</strong>terioração das funções cognitivas. Durante esse período teve<br />
que ser reinternada por quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirium associado a infecção<br />
urinária.<br />
Atualmente, é incapaz <strong>de</strong> manter ativida<strong>de</strong>s primárias, como<br />
higienizar-se e não apresenta mais idéias <strong>de</strong>lirantes. Permanece,<br />
porém, com alucinações auditivas representadas por sua própria<br />
voz que “repete” os movimentos que faz.<br />
Discussão<br />
Como po<strong>de</strong>mos observar, a mesma paciente preenche critérios<br />
para os dois diagnósticos, a alteração do humor po<strong>de</strong>ria ser<br />
<strong>de</strong>vido a um quadro associado ou parte do quadro <strong>de</strong>mencial.3<br />
Po<strong>de</strong>ríamos admitir que se trata <strong>de</strong> comorbida<strong>de</strong>, mas será que<br />
isso realmente acontece com a paciente? A <strong>de</strong>pressão em pacientes<br />
<strong>de</strong>menciados teria a mesma fisiopatogenia que a que acomete<br />
indivíduos não <strong>de</strong>menciados? Existem estudos com resultados<br />
controversos quanto à possibilida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>pressão ser um pródromo<br />
da <strong>de</strong>mência ou coexistir com as fases iniciais do processo <strong>de</strong>mencial.<br />
Existem autores que observam a concomitância da <strong>de</strong>pressão<br />
com a <strong>de</strong>mência, sendo que esse subgrupo <strong>de</strong> pacientes<br />
constituiria um subtipo <strong>de</strong> doença. Por exemplo: o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da <strong>de</strong>pressão na <strong>de</strong>mência estaria associado com a <strong>de</strong>generação<br />
do locus ceruleos e substância negra.4<br />
No que a comorbida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> nos ajudar na clínica? Devemos<br />
somar as estratégias terapêuticas <strong>de</strong> cada doença, não consi<strong>de</strong>ran-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):12-15 13
Psicopatologia nos quadros <strong>de</strong>menciais<br />
do que possam estar acontecendo mecanismos muito diversos do<br />
que quando estes quadros ocorrem isoladamente?<br />
Existe uma valorização da perda mnêmica para o diagnóstico<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>mência, mas, afinal, o que é memória?<br />
Atualmente, a memória tem sido estudada como módulos localizados<br />
em diferentes regiões do cérebro, que são capazes <strong>de</strong> reter<br />
e processar informações. As sinapses seriam responsáveis pelas<br />
ligações entre os neurônios e, portanto, pela passagem e armazenamento<br />
das informações. Divi<strong>de</strong>-se a memória em <strong>de</strong>clarativa<br />
ou explícita e não <strong>de</strong>clarativa ou implícita. Esta ainda subdivi<strong>de</strong>se<br />
em não-associativa (habitualização, <strong>de</strong>sabitualização e sensibilização)<br />
e associativa, baseado nos estudos <strong>de</strong> Pavlov.5 Essa visão<br />
<strong>de</strong> memória tem como base a observação <strong>de</strong> que lesões seletivas<br />
no cérebro po<strong>de</strong>m resultar em um prejuízo severo em uma forma<br />
<strong>de</strong> memória sem afetar outras capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aprendizado.6 Não<br />
<strong>de</strong>ve-se ignorar os estudos realizados com base nessa premissa.<br />
Porém, a “localização”da memória talvez seja uma forma didática<br />
<strong>de</strong> estudar o assunto e não obrigatoriamente retrato da realida<strong>de</strong><br />
neurofisiológica. Dentro das divisões propostas, fala-se <strong>de</strong> 5<br />
sistemas <strong>de</strong> memória, <strong>de</strong>ntre eles memória episódica e semântica.7<br />
Exemplificando, lembrar-se <strong>de</strong> uma visita específica a Paris é<br />
responsabilida<strong>de</strong> da memória episódica e saber que Paris é a capital<br />
francesa é tarefa da memória semântica.7 Aqui po<strong>de</strong>-se constatar<br />
que a visão localizacionista não traduz a realida<strong>de</strong>, pois para<br />
a experiência fazer sentido para o indivíduo é necessário que o<br />
sistema esteja funcionando em um continuum, on<strong>de</strong> o resultado<br />
não é simplesmente a soma das realizações dos diferentes “tipos”<br />
<strong>de</strong> memória. Em nível da sinapse, chama-se <strong>de</strong> memória o caminho<br />
que se estabelece entre os neurônios ao longo do tempo e<br />
através das experiências.8 A lembrança seria criada pela inclusão<br />
da vivência no sistema <strong>de</strong> memória. Não regiões específicas, mas<br />
processos específicos: ativação <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> neuronal e mental<br />
que permita resolver certos problemas. Assim, a memória é conhecida<br />
como uma qualida<strong>de</strong> da vivência. Seria uma “subjetivação”<br />
do processo, no sentido <strong>de</strong> implicar não somente o efeito do<br />
estímulo imediato, mas também o Eu.8<br />
Pensamos em <strong>de</strong>mência como a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizar,<br />
estabelecer ligações i<strong>de</strong>ntificadoras e julgar dados. “A <strong>de</strong>mência<br />
prejudica o processo <strong>de</strong> informações. Zonas <strong>de</strong> esclerose, placas<br />
senis e alterações neurofibrilares alteram a ativida<strong>de</strong> dos sistemas<br />
que permitem tomar conhecimento das situações e operar com<br />
elas... O <strong>de</strong>menciado não tem mais a consciência <strong>de</strong> seu próprio<br />
Eu, que i<strong>de</strong>ntificava os estímulos, lhes dava sentido, <strong>de</strong>terminava<br />
respostas. As modificações histológicas e bioquímicas que afetam<br />
o cérebro fazem com que o doente não tenha mais sua própria<br />
continuida<strong>de</strong>...”.8 Haase et al9 analisam a questão do diagnóstico<br />
clínico, relacionando-o aos achados neurobiológicos na doença<br />
<strong>de</strong> Alzheimer e concluem, após ampla exposição <strong>de</strong> experimentos<br />
que “o processo patológico vai gradualmente, por meio <strong>de</strong> múltiplas<br />
<strong>de</strong>sconexões anatômicas e funcionais, <strong>de</strong>sintegrando o substrato<br />
neurobiológico da ativida<strong>de</strong> cognitiva e em última análise, da<br />
própria individualida<strong>de</strong>”.<br />
A paciente foi então diagnosticada como portadora <strong>de</strong> quadro<br />
<strong>de</strong>mencial, por apresentar perdas progressivas e incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
estruturar, organizar tanto estímulos internos como externos. Em<br />
conseqüência disso, per<strong>de</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicar-se com o<br />
outro. Neste campo surge o <strong>de</strong>lírio.<br />
14 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):12-15<br />
O <strong>de</strong>lírio como perda da lógica. A lógica como instrumento<br />
<strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> difícil aquisição (ao redor dos 10 aos 12 anos<br />
<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, Piaget10). Instrumento <strong>de</strong> difícil aquisição que permite<br />
o entendimento entre pessoas.11 A lógica estrutura o modo <strong>de</strong> comunicação<br />
e é <strong>de</strong>senvolvida pela interação. Ela é adotada porque<br />
seu uso permite a comunicação, o entendimento e a realização <strong>de</strong><br />
objetivos. O pensamento lógico abrange o indivíduo, os objetos e<br />
as pessoas com quem se relaciona. O colapso da lógica po<strong>de</strong> ocorrer<br />
em conseqüência <strong>de</strong> experiências fracassadas que não justificam<br />
o uso <strong>de</strong>sse instrumento novo e frágil <strong>de</strong> comunicação.11 No<br />
caso <strong>de</strong> nossa paciente, as informações lacunares, incompletas,<br />
mal estruturadas, <strong>de</strong>vido as alterações biológicas e psicológicas<br />
causadas pela <strong>de</strong>mência, levam a perda da lógica e a liberação <strong>de</strong><br />
idéias <strong>de</strong>lirantes. A perda da lógica po<strong>de</strong>ria ocorrer quando a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> comunicação passa a não ser tão eficiente, seguindo<br />
a experiências fracassadas para obtenção das necessida<strong>de</strong>s do indivíduo,<br />
a lógica é então abandonada.<br />
A boa resposta ao neuroléptico, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista,<br />
seria atribuída ao fato <strong>de</strong> que este atua inibindo a neurotransmissão,<br />
ainda que seletivamente, e isso talvez seja benéfico no sentido<br />
<strong>de</strong> apaziguar possíveis áreas hiperativas, incapazes pelas próprias<br />
alterações neurobiológicas causadas pela doença <strong>de</strong> organizarem<br />
o fluxo <strong>de</strong> seus estímulos. O uso <strong>de</strong> anti<strong>de</strong>pressivos estimularia<br />
a ativida<strong>de</strong> neurofisiológica, dificultando ainda mais a organização<br />
cerebral.<br />
Repensamos os conceitos para po<strong>de</strong>r enten<strong>de</strong>r melhor esta<br />
paciente. Por vezes, <strong>de</strong>paramo-nos na clínica com dificulda<strong>de</strong>s<br />
em a<strong>de</strong>quar um diagnóstico para um paciente. Nessas situações a<br />
indicação terapêutica também é dificultada pela falta <strong>de</strong> referencial<br />
mais seguro. O diagnóstico <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão não nos ajudou,<br />
uma vez que o uso <strong>de</strong> anti<strong>de</strong>pressivos levou a piora do quadro.<br />
Po<strong>de</strong>ria-se argumentar que os quadros <strong>de</strong>pressivos com sintomas<br />
psicóticos respon<strong>de</strong>m mal a essas medicações quando utilizadas<br />
isoladamente. O diagnóstico <strong>de</strong> comorbida<strong>de</strong> também não foi<br />
utilizado, pois somaria os diagnósticos e os tratamentos, sem, porém,<br />
levar ao entendimento do caso e servir para a indicação terapêutica.<br />
Nossa opção, na clínica, é procurar realizar diagnóstico etiopatogênico<br />
e fazer as indicações terapêuticas a partir <strong>de</strong>ste. O<br />
diagnóstico por soma <strong>de</strong> sintomas, apesar <strong>de</strong> ser um avanço,<br />
principalmente em termos <strong>de</strong> confiabilida<strong>de</strong>, cria uma lacuna<br />
quando da indicação terapêutica <strong>de</strong> casos complicados e multissintomáticos.<br />
Summary<br />
The current diagnostic concepts are categorical; the clinical entities<br />
are discrete, basing on the sum of symptoms. A diagnosis is given if<br />
the individual fills out certain number of symptoms. As the diagnostic<br />
reliability increases, the validity <strong>de</strong>creases.These categories inclu<strong>de</strong><br />
un<strong>de</strong>r the same name heterogeneous pictures, not taking private<br />
subjects.The authors <strong>de</strong>scribe a complex case, that presents several<br />
clinical factors, what turns arduous the task of categorical diagnosis.<br />
Through this case report the authors question the usefulness of the<br />
current diagnostic concepts in guiding the therapeutics and the research<br />
in neuroscience and they show possible options for the clinical<br />
reasoning.
Key-words: Psychopathology; Dementia; Depression; Catatonia;<br />
Antipsychotics; Anti<strong>de</strong>pressants<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. OMS, Classificação Internacional das Doenças - 10ª edição.<br />
São Paulo: Artes Médicas; 1993.<br />
2. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical<br />
Manual of Mental Disor<strong>de</strong>rs. 4th Edition, Washington, DC:<br />
American Psychiatric Association, 1994.<br />
3. Sonenreich C, Estevão G. O conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão. Temas<br />
1986; 30-31:11-48.<br />
4. Chen P, Ganguli M, Mulsant BH et al. The temporal relationship<br />
between <strong>de</strong>pressive symptoms and <strong>de</strong>mentia. A<br />
community-based prospective study. Arch Gen Psychiatry<br />
1999; 56:261-6.<br />
5. Beggs JM, Brown TH, Byrne JH et al. Learning and memory:<br />
basic mechanism. In: Fundamental Neuroscience. Washington:<br />
Aca<strong>de</strong>mic Press, 1998:1412-15.<br />
6. Eichenbaum HB, Cahill LF, Gluck MA et al. Learning and<br />
Memory: System Analysis. Fundamental Neuroscience. Washington:<br />
Aca<strong>de</strong>mic Press, 1998:1457.<br />
7. Eichenbaum HB, Cahill LF, Gluck MA et al. Learning and<br />
Memory: System Analysis. Fundamental Neuroscience. Washington:<br />
Aca<strong>de</strong>mic Press; 1998:1458.<br />
8. Sonenreich C, Correa FK, Estevão G. Das <strong>de</strong>mências <strong>de</strong> Alzheimer<br />
e dos distúrbios <strong>de</strong> memória. Temas 1989; 19(37):64-<br />
115.<br />
9. Haase VG, Diniz LFM, Cruz MF. Conectivida<strong>de</strong> Cortical na<br />
Doença <strong>de</strong> Alzheimer. <strong>Psiquiatria</strong> Biológica 1998; 6(4):195-<br />
200.<br />
10. Piaget J. O raciocínio na criança. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record,<br />
1946.<br />
11. Sonenreich C, Friedrich S, Ribeiro PL. Um conceito em <strong>de</strong>bate:<br />
esquizofrenia. Temas 1992; 22(44):171-228.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):12-15 15
MUSICOTERAPIA E PSIQUIATRIA: UM ESTUDO DE CASO<br />
MUSIC-THERAPY AND PSYCHIATRY: A CASE STUDY<br />
Bianca Bruno Barbara *<br />
Clara Duarte *<br />
Heloísa Cardoso <strong>de</strong> Mello *<br />
Nelson Gol<strong>de</strong>nstein **<br />
Resumo<br />
O tema do presente trabalho se refere ao uso da musicoterapia<br />
como instrumento acessório no manejo clínico <strong>de</strong> pacientes psicóticos<br />
graves. São relatadas reflexões <strong>de</strong>senvolvidas a partir do processo<br />
musicoterápico <strong>de</strong> um paciente esquizofrênico durante o ano<br />
<strong>de</strong> 1997 no Hospital-Dia do Instituto <strong>de</strong> psiquiatria da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro/ IPUB-UFRJ. Os autores procuram conciliar<br />
criticamente dados quantitativos com estudo psicopatógico qualitativo.<br />
Elaboram gráfico que mostra o perfil <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong> do<br />
paciente no processo musicoterápico, sendo que os diferentes níveis<br />
<strong>de</strong> expressão parecem contextualizar a vida <strong>de</strong> relações. A musicoterapia<br />
po<strong>de</strong> contribuir interdisciplinarmente para a melhora da qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida <strong>de</strong>sses pacientes.<br />
Palavras-chave: Musicoterapia; Psicose; Esquizofrenia<br />
O presente trabalho preten<strong>de</strong> formular consi<strong>de</strong>rações a propósito<br />
do recurso da música como ferramenta clínica para os quadros<br />
psicóticos graves. Para tanto, <strong>de</strong>senvolvemos reflexões sobre<br />
a passagem <strong>de</strong> um jovem esquizofrênico pelas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> musicoterapia<br />
do Hospital-Dia do Instituto <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro (IPUB/UFRJ), durante o ano<br />
<strong>de</strong> 1997.<br />
Partimos do pressuposto <strong>de</strong> que a psicose é, apenas, o fenômeno<br />
universal do adoecer psíquico e que todas as manifestações<br />
particularmente associadas aos mecanismos primários <strong>de</strong> cisão se<br />
revelam fenômenos específicos dos transtornos esquizofrênicos.<br />
Dessa forma, parece-nos plausível verificá-los nos mais diversos<br />
campos das ativida<strong>de</strong>s, como nas construções verbais, nos <strong>de</strong>talhes<br />
do comportamento <strong>de</strong> uma maneira geral e, supostamente,<br />
nas representações psíquicas do próprio corpo. Enfocando essa<br />
preocupação psicopatológica, propusemo-nos investigar a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> aliar o movimento da dança com a música, buscando<br />
respon<strong>de</strong>r que tipo <strong>de</strong> benefício terapêutico po<strong>de</strong>ria ser alcançado.<br />
Não seremos ingênuos em afirmar que nossos esforços eram,<br />
* Musicoterapeuta<br />
** Psiquiatra. Cor<strong>de</strong>nador do Hospital Dia do Instituto <strong>de</strong><br />
<strong>Psiquiatria</strong> da UFRJ<br />
16 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):16-20<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, isentos <strong>de</strong> intenções. Em realida<strong>de</strong>, preten<strong>de</strong>mos<br />
encontrar instrumentos capazes <strong>de</strong> promover maior organização<br />
das funções psíquicas e, ao dirigir nossas reflexões para a prática<br />
clínica, avaliar em que medida a musicoterapia (no caso, aliada ao<br />
movimento e a dança) po<strong>de</strong> funcionar como elemento reorganizador<br />
para esse tipo <strong>de</strong> paciente.<br />
Sob o ponto <strong>de</strong> vista metodológico, aplicamos a musicoterapia<br />
interativa,1 algumas técnicas <strong>de</strong> improvisação musical livre, improvisação<br />
musical eventualmente orientada e recriação musical.2<br />
Essas ativida<strong>de</strong>s foram <strong>de</strong>senvolvidas com um grupo <strong>de</strong> pacientes<br />
adultos que frequentava o Hospital-Dia durante o citado<br />
ano, composto, em média, <strong>de</strong> seis pacientes atendidos semanalmente<br />
em ativida<strong>de</strong>s com duração <strong>de</strong> uma hora. As sessões aconteciam<br />
em ampla sala aparelhada com diversos instrumentos musicais,<br />
on<strong>de</strong> os pacientes eram atendidos por três pessoas: duas<br />
coor<strong>de</strong>nadoras e uma observadora, esta última com a tarefa <strong>de</strong><br />
elaborar os relatórios das ativida<strong>de</strong>s.<br />
Caso Clínico<br />
Apresentaremos o paciente, aqui <strong>de</strong>nominado Carlos, brasileiro,<br />
natural do Rio <strong>de</strong> Janeiro, nascido em janeiro <strong>de</strong> 1962, católico,<br />
solteiro, branco, grau <strong>de</strong> instrução primário, inativo, residindo<br />
com os pais e sendo o terceiro <strong>de</strong> uma prole <strong>de</strong> três.<br />
O fato <strong>de</strong> sua mãe ser pianista profissional pareceu-nos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o princípio dos atendimentos, expressar uma relação peculiar entre<br />
ambos <strong>de</strong>ntro da trama familiar. Segundo ela, Carlos “sempre<br />
se mostrou ingênuo, tendo características femininas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança”<br />
(sic). A nós, o que mais chamou a atenção foi o comportamento<br />
marcadamente pueril e meigamente <strong>de</strong>licado, muito embora aspectos<br />
femininos também pu<strong>de</strong>ssem ser evi<strong>de</strong>nciados. Em nossos<br />
esporádicos e fugazes contatos com a mãe, pu<strong>de</strong>mos perceber<br />
uma evi<strong>de</strong>nte preocupação em protegê-lo, como alguém extremamente<br />
frágil e in<strong>de</strong>feso. Impressão, aliás, corroborada pela equipe.<br />
Algumas vezes supomos que, <strong>de</strong> certa forma, acusava o marido<br />
pelo problema do filho. “Ele nunca aceitou seu gosto pela música e<br />
dança”, disse-nos certo dia. Dessa forma, foi matriculado pela mãe,<br />
aos 16 anos, no curso <strong>de</strong> ballet clássico do Teatro Municipal do<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro e atuou profissionalmente, como bailarino, até os<br />
21 anos, quando, segundo informações colhidas, adoeceu.<br />
Nosso primeiro contato com sua história clínica se <strong>de</strong>u a partir<br />
do prontuário da instituição, muito embora já estivéssemos<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Nelson Gol<strong>de</strong>nstein<br />
Hospital-Dia / IPUB - UFRJ<br />
Av. Venceslau Braz - 71 Fundos<br />
Botafogo - Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
E- mail: n.gol<strong>de</strong>nstein@mls.com.br
mantendo ativida<strong>de</strong>s musicoterápicas há semanas. Em realida<strong>de</strong>,<br />
até o momento da procura do prontuário, encontrávamos dificulda<strong>de</strong><br />
em imaginar a história daquela pessoa, quem seria ele, uma<br />
vez que seu estado psíquico mal permitia que pudéssemos enten<strong>de</strong>r<br />
o que falava. Inicialmente, eram raras as aproximações <strong>de</strong> forma<br />
espontânea e, quando o fazia, mostrava-se tímido, ambivalente<br />
e fragilmente assustado. Quando falava, fazia-o baixo e incompreensivelmente.<br />
Quando, já com um pouco mais <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>,<br />
pedíamos que repetisse alguma frase, sorria, aparentemente envergonhado,<br />
e novamente voltava a murmurar frases sem sentido,<br />
palavras com significação inusual acompanhadas <strong>de</strong> mímicas e<br />
entonações incoerentes entre si. Surpreendia como, apesar <strong>de</strong> nos<br />
parecer <strong>de</strong>sconexa, a tonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas comunicações <strong>de</strong>notava<br />
perfeita harmonia consigo mesmo. Parecia não perceber que ninguém<br />
compreendia o que falava.<br />
A primeira internação data <strong>de</strong> 1990, no próprio IPUB. Verificamos<br />
que, na ocasião, o boletim <strong>de</strong> entrada apontou para o diagnóstico<br />
<strong>de</strong> esquizofrenia simples. Uma segunda internação, em<br />
1993, indicou o mesmo diagnóstico. Em 1997, na terceira, encontrou-se<br />
a categoria hebefrenia. Seria esta uma evolução da primeira,<br />
ou nomes diferentes para uma mesma condição clínica?<br />
Muito embora a história pessoal não seja o objeto do presente<br />
estudo, queremos apontar para algumas questões paralelas. A<br />
busca <strong>de</strong> prontuários levanta, sempre, algumas reflexões. Nessas<br />
ocasiões, é comum <strong>de</strong>parar-nos com dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aproximação,<br />
não raro intransponíveis. Em sua gran<strong>de</strong> maioria, os registros<br />
contêm apenas aquilo que justifica a intervenção daquele<br />
que está relatando os dados em questão. Tal critério <strong>de</strong> elaboração,<br />
inevitavelmente comprometido, revela diversas dificulda<strong>de</strong>s,<br />
uma <strong>de</strong>las relacionada à impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abordagem <strong>de</strong><br />
certos problemas que extrapolam a visão clínica daquele que elaborou<br />
o registro em estudo. A conclusão possível é que o prontuário<br />
serve como documento, apenas da forma peculiar pela<br />
qual o profissional foi capaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o objeto <strong>de</strong> seu trabalho,<br />
na ocasião das anotações. Sabidamente, a bagagem teórica<br />
do entrevistador, seus conceitos e preconceitos, características<br />
<strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> e até sua própria história <strong>de</strong> vida pessoal, são<br />
elementos <strong>de</strong>terminantes na construção do material clínico <strong>de</strong>scrito<br />
em prontuário. Se consi<strong>de</strong>rarmos como válido o pressuposto<br />
<strong>de</strong> que, em nome <strong>de</strong> uma pretensa exatidão empírica, a clínica<br />
<strong>de</strong>scritiva quase não reconhece os aspectos subjetivos relacionados<br />
ao jogo dinâmico das manifestações esquizofrênicas, mesmo<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> especulações etiopatogênicas, não encontramos<br />
dificulda<strong>de</strong>s para evi<strong>de</strong>nciar sua ausência na maioria dos<br />
registros <strong>de</strong> prontuários. A <strong>de</strong>finição que cada profissional possui<br />
a respeito do que é sintoma, por exemplo, mostra-se capaz <strong>de</strong><br />
influenciar a avaliação das manifestações sintomáticas e, ao ser<br />
reconhecido sob diferentes configurações, cada sintoma po<strong>de</strong><br />
passar a compor igualmente outros complexos sintomáticos.<br />
Dessa forma, a investigação <strong>de</strong> prontuários nos revela o principal<br />
problema levantado por aqueles que não reconhecem a importância<br />
das evidências <strong>de</strong> sofrimento ou prazer, nem sempre<br />
verbalizadas, porém invariavelmente disfarçadas (estudos estatíscos<br />
<strong>de</strong>monstram altíssima incidência <strong>de</strong> suicídio, tentativas <strong>de</strong><br />
suicídio e comportamentos auto-agressivos entre pacientes esquizofrênicos).3<br />
Somos, nesses casos, incapazes <strong>de</strong> reconhecer a<br />
condição humana <strong>de</strong>sses pacientes, muito embora seja esta a<br />
condição que os fazem buscar nossos serviços.<br />
Carlos chegou ao setor <strong>de</strong> musicoterapia encaminhado por<br />
uma psicóloga. Quando verificada sua história pessoal e constatada<br />
sua experiência como bailarino, a coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> musicoterapia<br />
o encaminhou ao grupo aqui referido.<br />
Sem precisar <strong>de</strong> maiores <strong>de</strong>talhes sobre os dados pessoais do<br />
paciente para o presente estudo, <strong>de</strong>tivemo-nos neste tópico apenas<br />
a pretexto <strong>de</strong> apresentar, en passant, algumas <strong>de</strong> nossas reflexões<br />
a propósito das anotações <strong>de</strong> prontuário.<br />
Preocupados, entretanto, em estudar as observações clínicas<br />
obtidas, plenas <strong>de</strong> aspectos subjetivos e pouco consistentes do<br />
ponto <strong>de</strong> vista quantitativo, procuramos transformar estas observações<br />
em dados mensuráveis, referidos pela literatura como<br />
“empiricamente” palpáveis.<br />
Para avaliar a atuação <strong>de</strong> Carlos no <strong>de</strong>correr das sessões foi<br />
elaborado um gráfico que pu<strong>de</strong>sse mostrar o perfil <strong>de</strong> seu processo<br />
musicoterápico, no que diz respeito a expressivida<strong>de</strong>. Com<br />
isso, confeccionamos um critério classificatório dimensional, capaz<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scriminar quatro níveis/dimensões diferentes do mesmo<br />
problema.<br />
Algumas palavras preliminares, entretanto, para que possamos<br />
justificar semelhante escolha <strong>de</strong> avaliação. Em primeiro lugar,<br />
a conjugação <strong>de</strong> esforços em construir uma teoria “consistente”,<br />
baseada em dados empíricos, efetuada pela psiquiatria mundial<br />
ao longo dos últimos 20 anos, tem privilegiado estudos quantitativos<br />
em <strong>de</strong>trimento dos estudos qualitativos. Se, por um lado,<br />
reconhecemos nesse esforço a preocupação <strong>de</strong> se evitar excessos<br />
especulativos, por outro, verifica-se hoje uma verda<strong>de</strong>ira escassez<br />
<strong>de</strong> trabalhos clínicos voltados para o estudo psicopatológico. Assim,<br />
buscar uma conciliação entre a firmeza da experiência vivida<br />
com o alcance das suposições imaginadas tem marcado nossas<br />
preocupações clínicas. Em segundo lugar, dimensionar diferentes<br />
níveis <strong>de</strong> expressão parece-nos o mesmo que contextualizar a<br />
vida <strong>de</strong> relações, problema <strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za no universo das<br />
manifestações esquizofrênicas.<br />
O gráfico (Figura 1) <strong>de</strong>termina diferentes níveis <strong>de</strong> funcionamento<br />
a cada sessão. Para sua compreensão, é preciso esclarecer<br />
como se <strong>de</strong>fine cada nível.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Figura 1 - Gráfico com os níveis <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong> do paciente ao<br />
longo das sessões<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):16-20 17
Musicoterapia e psiquiatria: um estudo <strong>de</strong> caso<br />
Por expressivida<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>mos energia <strong>de</strong> expressão.*<br />
Definimos o nível 1 <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong> como: ausência completa<br />
<strong>de</strong> iniciativa e expressão. Essa é a fase em que o paciente parece<br />
indiferente, apático ou superficial; <strong>de</strong>monstra rigi<strong>de</strong>z nos movimentos;<br />
não toca e não canta.<br />
O nível 2 se caracteriza pela pouca expressivida<strong>de</strong> sonoro/musical<br />
e corporal, comprometimento parcial do pragmatismo, linguagem<br />
verbal incoerente e empobrecida. Neste nível, o paciente escolhe<br />
um instrumento apenas quando solicitado e toca sem interesse,<br />
com pouco investimento no que produz. Faz comentários consigo<br />
mesmo, sem sintonia com o ambiente, utiliza-se <strong>de</strong> neologismos<br />
e apresenta verbigeração. Apresenta dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> verbalizar<br />
sentimentos e sensações, movimenta-se timidamente.<br />
No nível 3 há aumento na expressão sonoro/musical e corporal,<br />
com coerência e a<strong>de</strong>quação da expressão verbal. Aqui, já estabelece<br />
“diálogos rítmicos” com os outros pacientes ou com as musicoterapeutas.<br />
Descobre novos instrumentos e novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
tocá-los, parece experimentar sensações provenientes <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>scoberta.<br />
Sugere frases para as improvisações musicais e explora o<br />
ambiente, aumentando a movimentação do corpo no espaço.<br />
O nível 4 correspon<strong>de</strong> a uma autonomia no “fazer musical”,<br />
aumento do repertório <strong>de</strong> movimentos corporais e ao uso da linguagem<br />
verbal mais clara e a<strong>de</strong>quada. O paciente canta versos, improvisando<br />
e recriando,** <strong>de</strong>monstra a graciosida<strong>de</strong> natural dos movimentos<br />
com maior espontaneida<strong>de</strong> e utiliza melhor a fala para<br />
fazer comentários sobre si mesmo e sobre os outros.<br />
O Processo Musicoterápico<br />
Na primeira sessão que Carlos participou, a coor<strong>de</strong>nadora do<br />
grupo solicitou que cada participante <strong>de</strong>senhasse seus corpos<br />
numa folha <strong>de</strong> papel em branco, ouvindo ao fundo uma improvisação<br />
melódica em dó maior feita no piano. Tal proposta preten<strong>de</strong>u<br />
caracterizar a expressão da imagem corporal, em <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong><br />
cada paciente. Carlos <strong>de</strong>senhou dois pés em posição <strong>de</strong> balé clássico<br />
(Figura 2).<br />
Figura 2 - O “corpo” <strong>de</strong> Carlos<br />
* De acordo com <strong>de</strong>finição encontrada no Dicionário Brasileiro <strong>de</strong> Língua<br />
Portuguesa - Mirador.<br />
** Improvisação e recriação musical são técnicas musicoterápicas. Na primeira,<br />
o paciente toca e canta livremente, criando ele próprio o ritmo, a melodia e/ou<br />
a letra (no caso das canções). A recriação musical é a utilização <strong>de</strong> composições<br />
já existentes com significados particulares para cada um que canta ou toca. É,<br />
entretanto, uma criação <strong>de</strong> outra pessoa.<br />
*** Nossa prática clínica indica que o medo <strong>de</strong> enlouquecer é, em realida<strong>de</strong>,<br />
o medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a coerência e organização dos pensamentos, ainda que<br />
<strong>de</strong>lirantes.<br />
**** Aberastury refere-se particularmente ao tambor. A enciclopédia francesa<br />
Pleia<strong>de</strong> <strong>de</strong> Musique aponta a “sonaille” (espécie <strong>de</strong> afoxé primitivo) como o<br />
primeiro instrumento que o homem criou. Trata-se <strong>de</strong> sementes amarradas<br />
com cipós aos tornozelos.<br />
18 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):16-20<br />
Ao final <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>senho, a coor<strong>de</strong>nadora sugeriu que cada<br />
paciente escolhesse um instrumento musical que pu<strong>de</strong>sse expressar<br />
pela forma, ou pelo som que produzia, o mesmo que fora <strong>de</strong>senhado<br />
há pouco. Num <strong>de</strong>terminado momento, Carlos escolheu<br />
um pequeno tambor e tocou.<br />
Figura 3 - Som <strong>de</strong> tambor tocado por Carlos<br />
Nas consi<strong>de</strong>rações sobre o que é terapêutico, supomos que o<br />
<strong>de</strong>senho da imagem corporal, bem como o ritmo produzido através<br />
do instrumento escolhido, tenham ligação com sua história<br />
pessoal. Afinal, os pés são partes fundamentais no corpo <strong>de</strong> um<br />
bailarino e todo início <strong>de</strong> espetáculo é indicado por três sinais sonoros.<br />
Especulações <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m po<strong>de</strong>m ser reforçadas quando<br />
reconhecemos que um <strong>de</strong> nossos comportamentos primitivos<br />
mais freqüentes é tornar o <strong>de</strong>sconhecido conhecido. Quando<br />
assim o fazemos, dominamos o que não faz sentido e é <strong>de</strong>sconhecido,<br />
questão nuclear nos processos <strong>de</strong> cisão dos processos<br />
psíquicos.***<br />
A hipótese foi reforçada através <strong>de</strong> seu comentário seguinte:<br />
“É o início <strong>de</strong> tudo... o som da criação é... o som do meu corpo... o<br />
dia... <strong>de</strong> hoje... não será... como ontem”.<br />
Voltando à <strong>de</strong>scrição dos diferentes níveis <strong>de</strong> nossa Figura 1,<br />
po<strong>de</strong>mos perceber que, ainda no início <strong>de</strong> seu processo musicoterápico,<br />
Carlos parte do nível 2. Mesmo com dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão<br />
musical, verbal e corporal, não observamos ausência<br />
completa <strong>de</strong> iniciativa e expressão.<br />
Nas duas sessões que se seguiram, Carlos começou a <strong>de</strong>monstrar<br />
aumento <strong>de</strong> sua expressão (primeira linha ascen<strong>de</strong>nte no gráfico).<br />
Em um exercício corporal, on<strong>de</strong> os pés eram utilizados para<br />
produzir ritmos, ele utiliza o afoxé sob os pés, com movimentos<br />
<strong>de</strong>slizantes e comenta: “Senti calor... está bom.........anti-<strong>de</strong>pressivo.........<br />
o barulho do afoxé...... ficou alegre”.<br />
Na quarta sessão, ele atinge o nível 3. O aumento <strong>de</strong> sua produção<br />
sonoro/musical fica claro quando, ao chegar na sala da<br />
Musicoterapia, tira os sapatos sem qualquer solicitação da coor<strong>de</strong>nadora,<br />
dirige-se ao armário <strong>de</strong> instrumentos e pega o afoxé<br />
para, em seguida, colocá-los sob seus pés (repetindo os movimentos<br />
da sessão anterior), enquanto toca o tamborim. Sua movimentação<br />
corporal também é mais ampla, visto que dirige-se ao espelho<br />
e, olhando para sua própria imagem refletida, abre os braços<br />
<strong>de</strong> maneira coreográfica.<br />
Para facilitarmos a expressão <strong>de</strong> Carlos, valorizávamos toda e<br />
qualquer manifestação sonora trazida por ele, <strong>de</strong>monstrando nossa<br />
aceitação através <strong>de</strong> espelhamentos rítmicos e musicando suas<br />
frases, que eram também cantadas pelo grupo.<br />
A sexta sessão tornou-se significativa porque foi a primeira<br />
vez que Carlos cantou uma melodia composta <strong>de</strong> vários versos<br />
com pronúncia clara, coor<strong>de</strong>nada, respeitando o ritmo e o senti-
do das palavras. Está assim, caracterizada sua chegada ao nível 4<br />
<strong>de</strong> nosso gráfico. Cantando, dirigiu-se a uma paciente do grupo,<br />
como se agra<strong>de</strong>cesse os comentários feitos sobre sua melhora:<br />
“...é impossível não crer em ti,<br />
é impossível não te encontrar<br />
é impossível não fazer <strong>de</strong> ti meu i<strong>de</strong>al...”<br />
Nas três sessões seguintes, Carlos se manteve no nível 4, <strong>de</strong>monstrando<br />
integração com o grupo, verificada no comentário final<br />
da oitava sessão quando, dirigindo-se a um paciente, disse:<br />
“É sublime saber que você me viu...”<br />
Nessa mesma fase, tocou o bloco sonoro muito mais livremente,<br />
ampliando sua movimentação <strong>de</strong> braço e tronco, diretamente<br />
ligada a maneira como produz sons nesse instrumento.<br />
Com a entrada <strong>de</strong> uma nova paciente no grupo, na 10ª sessão,<br />
Carlos intimidou-se. Parecia sentir-se ameaçado pelo jeito controlador<br />
e dominador <strong>de</strong>ssa paciente. Nesse sentido, um episódio<br />
bem expressivo, foi quando ela quis <strong>de</strong>terminar como ele <strong>de</strong>veria<br />
tocar o metalofone. Nesta ocasião, chegou a retirar esse instrumento<br />
<strong>de</strong> suas mãos, apesar <strong>de</strong> nossas intervenções. Além disso,<br />
Carlos passou a ser, constantemente, criticado por ela. Certa vez,<br />
levantou-se a hipótese <strong>de</strong> que o comportamento <strong>de</strong>ssa paciente<br />
po<strong>de</strong>ria estar remetendo-o à mesma situação <strong>de</strong> reprovação e não<br />
aceitação já vivida com seu pai.<br />
Durante algumas sessões seguintes se manteve calado e pouco<br />
participativo (retorno ao nível 2 do gráfico). Esse período <strong>de</strong><br />
“recolhimento” <strong>de</strong> sua expressivida<strong>de</strong>, e conseqüente quebra <strong>de</strong><br />
sua crescente evolução, foi o que motivou nosso estudo. Mais que<br />
isso, foi fator <strong>de</strong> inquietação, levando-nos a refletir sobre possíveis<br />
intervenções para evitar a estagnação do processo grupal.<br />
Quando, na 17ª sessão, voltou a estabelecer diálogos rítmicos<br />
com a coor<strong>de</strong>nadora, <strong>de</strong>monstrou que sua participação no grupo<br />
estava novamente no sentido crescente, <strong>de</strong> acordo com o gráfico.<br />
Consi<strong>de</strong>ramos que ele voltou a atingir o nível 4 (19ª sessão)<br />
quando dançou livremente em meio ao grupo, foi até a janela e a<br />
usou como barra, apoiando-se para exercícios <strong>de</strong> aquecimento<br />
para as pernas. Acreditamos que, nesse momento, sua vivência no<br />
balé apareceu claramente e <strong>de</strong> forma prazerosa. Voltando ao grupo,<br />
sugeriu músicas, disse que queria tocar ao piano. Embora tenha<br />
se aproximado, não chegou a tocar. Rodou, bateu palmas,<br />
<strong>de</strong>u piruetas e assobiou à vonta<strong>de</strong>.<br />
Até a última sessão consi<strong>de</strong>rada para o presente estudo<br />
(14/10/97), Carlos permaneceu se expressando ativamente por<br />
meio <strong>de</strong> recriações, improvisações e movimentações corporais livres.<br />
Nesse período usou termos como “<strong>de</strong>scobrir a vida”, marcando<br />
ativamente sua presença, fosse alongando o corpo, fosse levantando<br />
a cabeça e, ainda, movimentando-se com maior naturalida<strong>de</strong><br />
pela sala. Nesse mesmo dia foi ao piano e, espontaneamente,<br />
dividiu com a coor<strong>de</strong>nadora do grupo e mais um paciente o mi<br />
bemol 4. “Toquei a minha nota...”, disse. Nesse momento, não nos<br />
interessava avaliar se o paciente estava apresentando ou não sintomas<br />
produtivos. Nosso objetivo era verificar <strong>de</strong> que forma sua<br />
vida <strong>de</strong> relações melhorava, qualitativamente.<br />
Consi<strong>de</strong>ramos, <strong>de</strong> alguma forma sintomático, que ao cantarmos<br />
sobre o pai, em improvisação iniciada por outro paciente,<br />
Carlos tenha tocado o atabaque com força. Especulamos uma<br />
possível reação agressiva ao tema proposto em canto.<br />
Através dos instrumentos musicais, pu<strong>de</strong>mos sugerir uma leitura<br />
musicoterápica.<br />
Os dois primeiros instrumentos escolhidos por Carlos, tambor<br />
e afoxé, são os dois primeiros instrumentos criados pelo homem.****<br />
Carlos passa então para um instrumento melódico rudimentar,<br />
o bloco sonoro – feito <strong>de</strong> cabaças e, posteriormente, para um<br />
instrumento <strong>de</strong> metal (metalofone), introduzindo o cromatismo.<br />
Numa sessão fecha o metalofone, <strong>de</strong>dilha sobre o estojo,<br />
como se antecipasse sua ida ao piano.<br />
No momento em que se dirige ao piano e toca o mi bemol 4,<br />
a coor<strong>de</strong>nadora faz um acompanhamento compatível (I,V,I - mi<br />
bemol maior). Outro paciente vai também para o piano e toca nas<br />
teclas brancas. A coor<strong>de</strong>nadora faz em dó maior - I, VI, II, V, I.<br />
Carlos sai do piano e começa a cantar o trecho da Figura 4.<br />
Figura 4 - Carlos canta<br />
Isso, provavelmente, mostra-nos sua inserção na harmonia.<br />
Referindo-se ao que a coor<strong>de</strong>nadora havia feito no piano, pára e<br />
diz: “eu cantei aquilo”. Embora o paciente se mostrasse tantas vezes<br />
distante do contexto do grupo, esse evento ressaltou atenção<br />
e interesse para uma nova situação que parecia prazerosa.<br />
Os instrumentos postos nessa seqüência (tambor - afoxé - bloco<br />
sonoro - metalofone - piano) indicam a passagem <strong>de</strong> instrumentos<br />
rítmicos para harmônicos, atravessando os melódicos. Esse<br />
movimento <strong>de</strong> trocas sugere, igualmente, um aspecto evolutivo.<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista musicoterápico, consi<strong>de</strong>ramos que os instrumentos<br />
rítmicos (com os quais iniciou as ativida<strong>de</strong>s) são mais primitivos<br />
e seus estímulos sonoros não exigem processamento em<br />
nível cortical. Instrumentos melódicos pressupõem relação intervalar<br />
entre sons, exigindo possibilida<strong>de</strong>s mais amplas <strong>de</strong> escuta e<br />
produção <strong>de</strong> sons em diferentes alturas. No final <strong>de</strong>ssa hipotética<br />
escala progressiva estaria o piano, instrumento harmônico, capaz<br />
<strong>de</strong> ampliar as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sons simultâneos, exigindo maior<br />
integração cognitiva. Po<strong>de</strong>mos dizer que houve, portanto, uma<br />
evolução gradativa em sua produção sonora, quando analisamos<br />
os elementos constitutivos da música: ritmo, melodia e harmonia.<br />
Conclusão<br />
No processo musicoterápico <strong>de</strong> Carlos observamos uma nítida<br />
melhora em sua vida <strong>de</strong> relações, aqui revelada através do gráfico<br />
evolutivo.<br />
Nossas observações clínicas indicam que as melhoras obtidas<br />
através das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> musicoterapia ocorrem, particularmen-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):16-20 19
Musicoterapia e psiquiatria: um estudo <strong>de</strong> caso<br />
te, a partir da expansão das funções afetivas. Pensando nos distúrbios<br />
do afeto específicos dos transtornos esquizofrênicos,<br />
acreditamos que a musicoterapia facilite o resgate <strong>de</strong> trocas afetivas,<br />
tão prejudicadas nestas condições clínicas. Po<strong>de</strong>mos observar,<br />
nos relatos das histórias clínicas dos pacientes, que essa troca<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> acontecer quando predominam os mecanismos <strong>de</strong> cisão.<br />
Inúmeras explicações são especuladas, <strong>de</strong>ntre elas, a <strong>de</strong>sconfiança<br />
e o medo em compartilhar um mundo que não mais reconhece<br />
como sendo seu. O fazer musical compartilhado parece, nesse<br />
sentido, funcionar como suporte para a formação <strong>de</strong> vínculos e<br />
como veículo para a energia <strong>de</strong> expressão tratada aqui.<br />
“Partimos do princípio <strong>de</strong> que não há dúvida <strong>de</strong> que o profissional<br />
<strong>de</strong> musicoterapia <strong>de</strong>ve estar, além <strong>de</strong> capacitado,<br />
disponível para ir ‘musicalmente’ ao encontro do paciente e<br />
aceitar o fazer musical como discurso. Não só escutá-lo, mas<br />
tocar com ele. Tornar-se cúmplice na experiência musical.<br />
Provocar e facilitar momentos <strong>de</strong> encontros on<strong>de</strong> a sensação<br />
<strong>de</strong> estar compartilhando os sons se apresenta... Através <strong>de</strong><br />
técnicas específicas, o musicoterapeuta estimula expressões<br />
não-verbais dos pacientes com sons, músicas, gestos e danças.<br />
A produção que se segue cria o campo <strong>de</strong> relações. Se a<br />
comunicação verbal nem sempre é estabelecida a<strong>de</strong>quadamente,<br />
trabalha-se, em musicoterapia, a expressão sonoro/musical<br />
do paciente. Esta expressão sonora, seja por meio<br />
da voz, do corpo ou <strong>de</strong> instrumentos musicais, constituirá a<br />
relação terapêutica.”4<br />
São várias as intervenções clínicas em psiquiatria. Todas têm<br />
em comum a preocupação com a reestruturação psíquica possível<br />
do indivíduo e com a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua relação com o mundo.<br />
Acreditamos que a musicoterapia possa atuar interdisciplinarmente<br />
para a melhora da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>ssas pessoas.<br />
“Somos, à vezes, <strong>de</strong>safiados por um som, impulsionados por<br />
um ritmo ou atraídos por uma melodia. Somos puxados pela<br />
20 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):16-20<br />
Summary<br />
música para fora <strong>de</strong> nós mesmos e levados a interagir com o<br />
outro, pelo prazer que nos causa fazer música ou partilhar<br />
esta experiência.”1<br />
The theme of the present paper refers to the use of the music-therapy<br />
as an accessory tool in the clinical care of severe psychotic<br />
patients. The reflexions reported here were <strong>de</strong>veloped in 1997<br />
during the music-therapeutic process of a schicophrenic patient at<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro Fe<strong>de</strong>ral University’s day hospital.The authors attempt<br />
to conciliate critically quantitative data with qualitative psyhopathologic<br />
study.They elaborate a graphic that shows the profile of expressiveness<br />
of the patient in the music-therapeutic process, whereby different<br />
levels of expression seem to correlate with<br />
socialization. Music-therapy can contribute in an interdisciplinary way<br />
to the quality of life of this patients.<br />
Key-words: Musical-Therapy; Psychosis; Schizophrenia<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Barcellos LR. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Musicoterapia nº 2. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Enelivros, 1992.<br />
2. Bruscia K. Cases Studies in Music Therapy. Phoenix-Ville:<br />
Barcelona Publishers, 1991.<br />
3. Alec Roy MB. Psvchiatric emergencies. In: Comprehensive<br />
Textbook of Psychiatry/ VI.<br />
4. Kaplan Benjamin & Sadock editors. 6ª Ed. Vol 2. Baltimore,<br />
Phila<strong>de</strong>lphia, Hong Kong, London, Munich, Sydney, Tokyo:<br />
Williams & Wilkins; 1995:1739-1734.<br />
5. Bárbara BB, Cardoso <strong>de</strong> Mello HB, Gleizer GE, Gol<strong>de</strong>nstein<br />
N. Consi<strong>de</strong>rações a propósito da comunicação psicótica: o<br />
uso da musicoterapia. II Encontro Latino-Americano <strong>de</strong> Musicoterapia,<br />
1998.
UM CASO DE PSICOSE DE INÍCIO TARDIO: CONSIDERAÇÕES DIAGNÓSTICAS<br />
A CASE OF LATE-ONSET PSYCHOSIS: DIAGNOSTIC CONSIDERATIONS<br />
Antônio Lúcio Teixeira Júnior *<br />
Henrique Alvarenga-Silva *<br />
Adriana Camello Teixeira Huguet **<br />
Maria Goretti Pena Lamounier ***<br />
Resumo<br />
Os autores apresentam caso <strong>de</strong> psicose em uma senhora <strong>de</strong> 61 anos<br />
sem déficits cognitivos. A paciente foi levada ao hospital psiquiátrico<br />
<strong>de</strong>vido a agressivida<strong>de</strong> com vizinhos, após vários anos sintomática e<br />
sem tratamento. Descrita por seus cuidadores como uma pessoa tímida<br />
e sistemática, que nunca tivera relacionamentos íntimos ou namorados.<br />
Aos 49 anos, a partir da morte <strong>de</strong> sua mãe, tornou-se muito<br />
isolada, evitando contato com outras pessoas e morando sozinha.<br />
Abandonou o emprego, passando a alimentar-se precariamente.<br />
Quatro anos mais tar<strong>de</strong> começou a apresentar, <strong>de</strong> maneira evi<strong>de</strong>nte,<br />
sintomas <strong>de</strong>lirantes persecutórios e alucinações auditivas. Permaneceu<br />
nesse quadro cerca <strong>de</strong> 10 anos até ser levada ao hospital. Na internação<br />
é medicada com haloperidol 2,5 mg/dia, evoluindo com melhora<br />
dos sintomas psicóticos e da agressivida<strong>de</strong>. São discutidas as<br />
atuais classificações diagnósticas <strong>de</strong> psicoses <strong>de</strong> início tardio.<br />
Palavras-chave: Esquizofrenia <strong>de</strong> Início Tardio; Parafrenia Tardia;<br />
Psicose Tardia.<br />
As psicoses <strong>de</strong> início tardio foram consi<strong>de</strong>radas por Kraepelin<br />
como uma das áreas mais obscuras da psiquiatria.1 O diagnóstico<br />
diferencial é geralmente difícil, pois inclui vários transtornos<br />
clínico-neurológicos e psiquiátricos.<br />
Com o crescente envelhecimento da população e, portanto,<br />
com o aumento da incidência <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> psicoses iniciadas em<br />
ida<strong>de</strong>s avançadas, torna-se ainda mais importante a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> reconhecer e tratar a<strong>de</strong>quadamente essas condições.<br />
Psicose é um problema relativamente comum no idoso, acometendo<br />
cerca <strong>de</strong> 4% <strong>de</strong>ssa população na comunida<strong>de</strong>.2 A combinação<br />
<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> fatores contribui para a maior incidência<br />
<strong>de</strong> sintomas psicóticos: o envelhecimento cerebral, déficits sensoriais<br />
(auditivo e visual) e cognitivos, doenças clínicas e isolamento<br />
social.3 Em geral, a agressivida<strong>de</strong> e a agitação são as principais<br />
causas <strong>de</strong> encaminhamento <strong>de</strong> um paciente psicótico idoso ao<br />
psiquiatra.3<br />
Freqüentemente, sintomas psicóticos não são notados em idosos,<br />
seja <strong>de</strong>vido à presença <strong>de</strong> múltiplos problemas médicos, uso<br />
* Resi<strong>de</strong>nte do segundo ano da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do<br />
Hospital das Clínicas da <strong>UFMG</strong>.<br />
** Resi<strong>de</strong>nte do primeiro ano da Residência<strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do<br />
Hospital das Clínicas da <strong>UFMG</strong>.<br />
*** Preceptora da Residência em <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital das<br />
Clínicas da <strong>UFMG</strong>.<br />
<strong>de</strong> múltiplas medicações, ou mesmo por <strong>de</strong>sinformação dos cuidadores.3<br />
Apresentamos a seguir um caso <strong>de</strong> esquizofrenia <strong>de</strong> início<br />
tardio.<br />
Caso Clínico<br />
Uma senhora solteira <strong>de</strong> 61 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> foi trazida por vizinhos<br />
e policiais ao Hospital Psiquiátrico Galba Velloso, em agosto<br />
<strong>de</strong> 1998, com a história <strong>de</strong> que se encontrava agressiva com os<br />
vizinhos, acreditando terem-lhe enfeitiçado. Freqüentemente, jogava<br />
pedra nos vizinhos, chegando, irritada, a bater a própria cabeça<br />
contra o muro. Os vizinhos informaram que a paciente começou<br />
a se comportar <strong>de</strong> modo diferente há cerca <strong>de</strong> 12 anos,<br />
após o falecimento da mãe. A partir <strong>de</strong>ssa época, passou a morar<br />
sozinha e a evitar contato com outras pessoas. Cerca <strong>de</strong> quatro<br />
anos <strong>de</strong>pois, então com 53 anos, abandonou o emprego numa fábrica<br />
<strong>de</strong> macarrão. Passou a ficar o dia todo em casa, não permitindo<br />
a entrada <strong>de</strong> qualquer pessoa. Jejuava freqüentemente, consumindo<br />
principalmente chás <strong>de</strong> ervas do próprio quintal. Dizia<br />
que não podia sair <strong>de</strong> casa porque falavam mal <strong>de</strong>la no rádio, na<br />
televisão e na rua. Passou a acreditar que uma <strong>de</strong> suas vizinhas fazia<br />
feitiços contra ela, tornando-se agressiva com a mesma.<br />
Durante todos esses 12 anos <strong>de</strong> evolução dos sintomas a paciente<br />
não procurou nenhum serviço médico ou psiquiátrico.<br />
Não havia também história <strong>de</strong> tratamentos médicos ou psiquiátricos<br />
anteriores. A paciente não era etilista, nem tabagista e não<br />
apresentava qualquer doença clínica geral.<br />
Até os 15 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> a paciente residiu na zona rural <strong>de</strong> cida<strong>de</strong><br />
do interior mineiro com a mãe e os avós maternos. Não conheceu<br />
o pai. Trabalhou como empregada doméstica para uma<br />
mesma família na área urbana <strong>de</strong> seu município natal dos 15 aos<br />
26 anos, quando, então, mudou-se para Belo Horizonte. Nesta<br />
capital continuou exercendo a profissão <strong>de</strong> doméstica por vários<br />
anos. Posteriormente, empregou-se numa fábrica <strong>de</strong> macarrão,<br />
on<strong>de</strong> permaneceu cerca <strong>de</strong> 10 anos. Após abandonar esse emprego,<br />
passou a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r financeiramente dos vizinhos.<br />
Os informantes relatavam que a paciente fora sempre uma<br />
pessoa sistemática, muito tímida com homens e que nunca tivera<br />
um relacionamento íntimo ou namorado.<br />
Sua mãe falecera por aci<strong>de</strong>nte vascular cerebral. Não há informações<br />
sobre transtornos psiquiátricos ou neurológicos em sua<br />
família.<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Hospital das Clínicas - <strong>UFMG</strong><br />
Avenida Professor Alfredo Balena 110<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):21-23 21
Um caso <strong>de</strong> psicose <strong>de</strong> inÍcio tardio: consi<strong>de</strong>rações diagnósticas<br />
À entrevista no hospital, queixava-se <strong>de</strong> que todos seus ossos<br />
estavam doendo e “enjoados”, explicando que as dores eram “inflamações<br />
crônicas dos ossos por machucado no serviço”. Dizia<br />
ter abandonado o emprego na fábrica por causa <strong>de</strong>ssas dores, iniciadas<br />
há 12 anos, e justificava: “não queria ganhar dinheiro da firma<br />
sem trabalhar. Não queria aposentar por invali<strong>de</strong>z. Aí os vizinhos<br />
começaram a falar que eu não queria trabalhar para ficar comendo<br />
à toa em casa”. A paciente queixava-se dos vizinhos, especialmente<br />
<strong>de</strong> uma mais próxima, e do médico que fizera a perícia<br />
na época, que lhe teria negado a aposentadoria por invali<strong>de</strong>z. Dizia:<br />
“O médico fez ruinda<strong>de</strong> comigo, jogou espírito ruim em mim,<br />
espírito <strong>de</strong> bicheira”. Queixava-se também da sensação contínua<br />
<strong>de</strong> que os “espíritos cutucavam e mexiam o miolo da cabeça”,<br />
comparando a sensação com a <strong>de</strong> uma unha sendo cravada <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> sua cabeça. Também acreditava que os “espíritos” ouviam<br />
tudo o que falava através <strong>de</strong> um “aparelho”.<br />
Apresentava-se ao exame inicial com a higiene preservada e os<br />
cabelos alinhados. Encontrava-se lúcida, orientada no tempo, no<br />
espaço e autopsiquicamente, normotenaz e normovigil, com comportamento<br />
tranquilo e colaborativo. A memória estava preservada.<br />
Apresentava alteração da consciência do eu em oposição ao<br />
mundo externo, caracterizada por irradiação ou difusão do pensamento;<br />
alucinações auditivas e, possivelmente, cenestésicas, associadas<br />
às sensações somáticas <strong>de</strong>scritas. O pensamento apresentava-se<br />
com curso normal, idéias <strong>de</strong>lirantes <strong>de</strong> cunho persecutório<br />
e somático. O discurso estava organizado, sem alterações <strong>de</strong><br />
linguagem, com tom vocal monótono. O humor aparentava estar<br />
levemente <strong>de</strong>primido, além <strong>de</strong> hipobúlica e com baixa expressivida<strong>de</strong><br />
afetiva. Nível <strong>de</strong> inteligência normal.<br />
Os exames clínico e neurológico não apresentavam alterações.<br />
Exames laboratoriais mostraram-se normais (hemograma, urina<br />
rotina, VDRL, parasitológico <strong>de</strong> fezes, provas <strong>de</strong> função renal,<br />
hepática e tireoidiana, dosagem <strong>de</strong> ácido fólico e vitamina B 12).<br />
Submeteu-se a tomografia computadorizada <strong>de</strong> crânio que evi<strong>de</strong>nciou<br />
hipotrofia cortical difusa compatível com a ida<strong>de</strong>.<br />
Durante a internação, em uso <strong>de</strong> 2,5 mg <strong>de</strong> haloperidol, foi<br />
capaz <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> si própria, não ocorerram episódios <strong>de</strong> agitação<br />
ou agressivida<strong>de</strong> e era colaborativa com a equipe médica.<br />
Permanecia a maior parte do tempo no leito, relacionando-se<br />
muito pouco com outras pacientes. Evoluiu com atenuação das<br />
idéias <strong>de</strong>lirantes persecutórias, porém manteve as queixas <strong>de</strong> “dores<br />
nos ossos” e um discurso repetitivo a esse respeito.<br />
A paciente recebeu alta hospitalar após dois meses <strong>de</strong> internação,<br />
em uso somente <strong>de</strong> 2,5 mg <strong>de</strong> haloperidol por dia. Vem fazendo<br />
controle ambulatorial regularmente. Mantém as queixas <strong>de</strong><br />
“dores nos ossos”, mas não aceita o encaminhamento a outras especialida<strong>de</strong>s<br />
médicas. Mostra-se mais sociável, sem causar transtornos<br />
em seu bairro, aceitando a tutela <strong>de</strong> uma vizinha.<br />
Discussão<br />
Em síntese, trata-se <strong>de</strong> quadro psiquiátrico iniciado em ida<strong>de</strong><br />
acima dos 45 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, marcado por sintomas psicóticos, sobretudo<br />
i<strong>de</strong>ação paranói<strong>de</strong>, e isolamento social. A apresentação<br />
não é típica em virtu<strong>de</strong> da ausência <strong>de</strong> transtornos psiquiátricos<br />
anteriores, uso <strong>de</strong> substâncias ou <strong>de</strong> doenças clínicas gerais.<br />
22 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):21-23<br />
O diagnóstico diferencial <strong>de</strong> psicose <strong>de</strong> início tardio inclui várias<br />
condições: (a) transtorno psicótico <strong>de</strong>vido a condição médica<br />
geral (incluindo afecções neurológicas), (b) transtorno psicótico<br />
associado ao abuso/<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> substâncias, (c) <strong>de</strong>lirium,<br />
(d) processos <strong>de</strong>menciais diversos (Alzheimer, vasculares, outros),<br />
(e) transtornos do humor, (f) transtorno <strong>de</strong>lirante crônico,<br />
(g) transtorno psicótico agudo e transitório ou esquizofreniforme<br />
e (h) esquizofrenia.3,4<br />
No caso apresentado, conforme exames laboratoriais, história<br />
e exame clínicos, <strong>de</strong>scarta-se a possibilida<strong>de</strong> dos sintomas psicóticos<br />
serem <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> doenças clínicas gerais, abuso <strong>de</strong> substâncias<br />
e/ou <strong>de</strong>lirium. A alteração encontrada na tomografia computadorizada<br />
é compatível com a ida<strong>de</strong>.<br />
A ausência <strong>de</strong> comprometimento cognitivo e <strong>de</strong> outras alterações<br />
neurológicas não favorecem a hipótese <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência. Contudo,<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma forma ainda precoce <strong>de</strong> <strong>de</strong>mência não<br />
po<strong>de</strong> ser inteiramente excluída.4,5<br />
A paciente não apresentou em nenhum momento alteração ou<br />
flutuação do humor, sendo sua afetivida<strong>de</strong> caracterizada como<br />
plana. Também não foram i<strong>de</strong>ntificados pensamentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalia,<br />
<strong>de</strong> morte ou i<strong>de</strong>ação suicida. Por outro lado, alguns sintomas po<strong>de</strong>riam,<br />
se valorizados isoladamente, ser consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong>pressivos:<br />
as preocupações somáticas, a culpabilida<strong>de</strong> pela incapacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> trabalho, o isolamento social e a hipobulia. Quanto às preocupações<br />
somáticas, estas se aproximam <strong>de</strong> um <strong>de</strong>lírio somático,<br />
relacionando-se com o início da manifestação clínica dos sintomas<br />
psiquiátricos. Crespo-Facorro et al5 relataram quadro similar<br />
<strong>de</strong> psicose tardia associada a preocupações somáticas persistentes,<br />
consi<strong>de</strong>rando-as também <strong>de</strong> caráter <strong>de</strong>lirante.<br />
No transtorno <strong>de</strong>lirante crônico usualmente não ocorrem alucinações<br />
proeminentes ou <strong>de</strong>lírios bizarros. Portanto, esse diagnóstico<br />
é também pouco provável.<br />
A manutenção dos sintomas psicóticos por longo período<br />
afasta o transtorno psicótico agudo e transitório.<br />
A evolução da paciente, marcada por profunda ruptura em<br />
sua biografia, com progressiva e persistente modificação da personalida<strong>de</strong>,<br />
comprometimento da volição e da afetivida<strong>de</strong>, isolamento<br />
social, alucinações, <strong>de</strong>lírios bizarros, incluindo sintomas<br />
<strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Kurt Schnei<strong>de</strong>r, tornam a hipótese diagnóstica<br />
<strong>de</strong> esquizofrenia a mais indicada.<br />
Embora a esquizofrenia acometa principalmente indivíduos<br />
na segunda ou terceira décadas <strong>de</strong> vida, apresentação após os<br />
45 anos não é rara. Acredita-se que 10% dos casos <strong>de</strong> primeiro<br />
episódio <strong>de</strong> esquizofrenia se manifestam após essa ida<strong>de</strong>.3<br />
Manfred Bleuler foi quem primeiro cunhou o termo “esquizofrenia<br />
<strong>de</strong> início tardio”, referindo-se a quadros iniciados após<br />
os 40 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.1 Para M. Bleuler, a esquizofrenia <strong>de</strong> início<br />
tardio estaria associada a maior preservação do pensamento formal<br />
e do afeto, o que aproximou conceitualmente esse grupo da<br />
“parafrenia” <strong>de</strong> Kraepelin.5 A superposição dos termos gerou<br />
gran<strong>de</strong> confusão na literatura sobre psicose tardia. Mais recentemente,<br />
autores britânicos que trabalham com o conceito <strong>de</strong> “parafrenia<br />
tardia” vêm tentando <strong>de</strong>sfazer os equívocos. Na concepção<br />
<strong>de</strong>stes, o termo “parafrenia tardia” correspon<strong>de</strong>ria a uma síndrome<br />
psicótica iniciada após os 60 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e relacionada a<br />
fatores neuro<strong>de</strong>generativos, sem vínculo necessário com a esquizofrenia.6
A esquizofrenia <strong>de</strong> início tardio e a iniciada na segunda ou<br />
terceira décadas <strong>de</strong> vida se assemelham, sobretudo em relação ao<br />
curso crônico da doença. Por outro lado, alguns estudos apontam<br />
várias diferenças.5,7,8 A esquizofrenia <strong>de</strong> início tardio afeta principalmente<br />
mulheres com traços <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> pré-mórbida<br />
esquizói<strong>de</strong> ou paranói<strong>de</strong>, com déficits auditivo ou visual, características<br />
consi<strong>de</strong>radas fatores <strong>de</strong> risco para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
do transtorno. A prevalência <strong>de</strong> esquizofrenia nas famílias <strong>de</strong>sses<br />
pacientes é menor que naquelas <strong>de</strong> pacientes com esquizofrenia<br />
<strong>de</strong> início precoce. Os sintomas paranói<strong>de</strong>s, principalmente <strong>de</strong>lírio<br />
persecutório, prepon<strong>de</strong>ram na esquizofrenia <strong>de</strong> início tardio,<br />
sendo os sintomas negativos menos graves que na <strong>de</strong> início precoce.<br />
Ainda, pacientes com esquizofrenia tardia ten<strong>de</strong>m a respon<strong>de</strong>r<br />
a doses menores <strong>de</strong> antipsicóticos. O caso relatado contém aspectos<br />
característicos da esquizofrenia <strong>de</strong> início tardio: paciente<br />
do sexo feminino acometida em ida<strong>de</strong> avançada, com déficit auditivo<br />
e traços pré-mórbidos <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> esquizói<strong>de</strong>, apresentando<br />
quadro <strong>de</strong>lirante persecutório responsivo a baixa dose<br />
<strong>de</strong> antipsicótico.<br />
Essas diferenças levantam a questão se a “esquizofrenia <strong>de</strong><br />
início tardio” seria uma apresentação retardada da esquizofrenia<br />
ou uma entida<strong>de</strong> distinta <strong>de</strong>sta. Os atuais sistemas <strong>de</strong> classificação<br />
em psiquiatria CID-109 e DSM-IV10 não estabelecem limites<br />
etários para o diagnóstico da esquizofrenia, nem especificam a<br />
subcategoria “início tardio”.<br />
Não sendo a esquizofrenia <strong>de</strong> início tardio consi<strong>de</strong>rada entida<strong>de</strong><br />
distinta, quais os fatores protegeriam esses indivíduos até a<br />
manifestação da doença? Qual o motivo do maior comprometimento<br />
<strong>de</strong> mulheres? A resposta a essas e a outras questões <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m,<br />
em parte, da melhor compreensão da fisiopatologia da esquizofrenia,<br />
tornando bastante controverso o assunto.11<br />
Summary<br />
The authors present a case of psychosis in a 61-year-old woman without<br />
cognitive impairment. The patient was taken to a psychiatric<br />
hospital because of aggressive behavior against her neighbours. She<br />
was <strong>de</strong>fined by her caregivers as a shy and systematic person. She<br />
never had close relationships or boyfriends. Although her symptoms<br />
appeared at the age of 49 after her mother <strong>de</strong>ath, she had never<br />
been treated. After leaving her job, she started eating poorly and<br />
became isolated avoiding contacts with other people. Four years<br />
later, she <strong>de</strong>veloped evi<strong>de</strong>nt persecutory <strong>de</strong>lusions and auditory hallucinations.<br />
For 10 years she remained in this situation until she was<br />
taken to the hospital. During the hospitalization she was medicated<br />
with haloperidol 2.5 mg per day and her psychotic and aggressive<br />
behavior improved. The authors discuss the current classification of<br />
late onset psychosis.<br />
Key-words: Late-onset Schizophrenia, Late Paraphrenia, Late<br />
Psychosis<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Rossler AR, Rossler W, Forstl H et al. Late-onset schizophrenia<br />
and late paraphrenia. Schizophr Bull 1995; 21(3): 346-54.<br />
2. Christenson R, Blazer D. Epi<strong>de</strong>miology of persecutory i<strong>de</strong>ation<br />
in an el<strong>de</strong>rly population in the community. Am J<br />
Psychiatry 1984; 141:1088-91.<br />
3. Targum SD, Abbott JL. Psychoses in the el<strong>de</strong>rly: a spectrum<br />
of disor<strong>de</strong>rs. J Clin Psychiatry 1999; 60(suppl 8): 4-10.<br />
4. McClure FS, Glasjo JA, Jeste DV. Late onset psychosis: clinical,<br />
research, and ethical consi<strong>de</strong>rations. Am J Psychiatry<br />
1999; 156(6):935-40.<br />
5. Crespo-Facorro B, Piven MLS, Schultz SK. Psychosis in late<br />
life: how does it fit into current diagnostic criteria? Am J<br />
Psychiatry 1999; 156(4):624-9.<br />
6. Howard R, Rabins P. Late paraphrenia revisited. Br J<br />
Psychiatry 1997; 171: 406-8.<br />
7. Pearlson GD, Kreger L, Rabins PV. A chart review study of<br />
late-onset and early-onset schizophrenia. Am J Psychiatry<br />
1989; 146(12):1568-74.<br />
8. Jeste DV, Harris MJ, Krull A. Am J Psychiatry 1995;<br />
152(5):722-30.<br />
9. World Health Organization. The ICD-10 Classification of<br />
Mental and Behavioral Disor<strong>de</strong>rs. Geneve: World Health<br />
Organization, 1992.<br />
10. American Psychiatry Association. Diagnostic and Statistical<br />
Manual of Mental Disor<strong>de</strong>rs 4 ed. (DSM-IV). Washigton,<br />
DC: American Psychiatry Association, 1994.<br />
11. Davidson M, Powchik P. Commentary to “Late onset schizophrenia<br />
and late paraphrenia”. Schizophr Bull 1995;<br />
21(3):355-6.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):21-23 23
SÍNDROME DE EKBOM EM IDOSA<br />
EKBOM’S SYNDROME IN AN AGED WOMAN<br />
Rodrigo Nicolato *<br />
Flávia Fernan<strong>de</strong>s Dias **<br />
Cíntia Fuzikawa **<br />
João Luís Pinto Coelho **<br />
Antônio Carlos Oliveira Corrêa ***<br />
Resumo<br />
Casos <strong>de</strong> síndrome <strong>de</strong> Ekbom ou <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação parasitária<br />
são raros, com prevalência <strong>de</strong>sconhecida. Geralmente, são acometidas<br />
mulheres idosas socialmente isoladas. A síndrome se caracteriza<br />
por forte convicção <strong>de</strong> infestação e gera muito <strong>de</strong>sconforto, levando,<br />
inclusive, a estratégias perigosas para erradicação dos parasitas,<br />
como o uso <strong>de</strong> pesticidas. Po<strong>de</strong> constituir-se numa das possíveis<br />
apresentações do transtorno <strong>de</strong>lirante somático, ou ser secundária a<br />
outros transtornos psiquiátricos, particularmente quadros orgânicos<br />
e <strong>de</strong>pressivos. Abuso <strong>de</strong> substâncias, doenças neurológicas, infecciosas<br />
(aids e sífilis) e endócrinas (diabetes e hipertireoidismo) po<strong>de</strong>m<br />
levar a esse <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação. O presente trabalho tem como objetivo<br />
<strong>de</strong>screver o caso <strong>de</strong> uma senhora <strong>de</strong> 70 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> com<br />
quadro <strong>de</strong> hipertireoidismo que precedia em dois anos a instalação<br />
da síndrome <strong>de</strong> Ekbom.<br />
Palavras-chave: Síndrome <strong>de</strong> Ekbom; Delírio <strong>de</strong> Infestação; <strong>Psiquiatria</strong><br />
Geriátrica; Hipertiroidismo<br />
Thibierge, <strong>de</strong>screve em 1894, o quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação<br />
parasitária, chamando-o <strong>de</strong> “acarofobia”.1 Posteriormente,<br />
em 1938, Ekbom <strong>de</strong>screve sete mulheres idosas ou <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong><br />
que possuíam uma convicção <strong>de</strong>lirante e persistente <strong>de</strong> terem a<br />
pele parasitada por vermes, caracterizando o quadro da síndrome<br />
<strong>de</strong> Ekbom.2 Essa síndrome recebe vários nomes: <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong>rmatozóico,<br />
<strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> <strong>de</strong>rmatozôos <strong>de</strong> Ekbom, <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> zoopatia externa,<br />
alucinações cutâneas e visuais da psicose alucinatória crônica,<br />
hipocondria circunscrita, <strong>de</strong>lírio cenestésico, obsessão alucinatória<br />
zoopática, alucinose tátil crônica, <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação,<br />
<strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> parasitose, psicose hipocondríaca monossintomática,<br />
<strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação parasitária.2<br />
Além <strong>de</strong> serem do sexo feminino e com ida<strong>de</strong> mais avançada,<br />
os pacientes típicos são isolados socialmente. Descrevem sintomas<br />
cutâneos como a primeira evidência <strong>de</strong> infestação. Geralmente,<br />
fazem uso <strong>de</strong> várias substâncias químicas para erradicar a<br />
* Ex-resi<strong>de</strong>nte da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital das<br />
Clínicas da <strong>UFMG</strong>, mestrando em farmacologia no Instituto <strong>de</strong><br />
Ciências Biológicas da <strong>UFMG</strong>.<br />
** Ex-resi<strong>de</strong>nte da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Hosital das<br />
Clínicas da <strong>UFMG</strong>.<br />
*** Preceptor da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital das Clínicas<br />
da <strong>UFMG</strong>.<br />
24 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):24-26<br />
infestação, como lesivos pesticidas. Consultam vários médicos<br />
(sobretudo <strong>de</strong>rmatologistas) para i<strong>de</strong>ntificar os parasitas.1 Mesmo<br />
com evidências <strong>de</strong> que não existem vermes, os pacientes continuam<br />
peregrinando em busca <strong>de</strong> cura e, com a crença inabalável<br />
<strong>de</strong> estarem infestados, freqüentemente recusam avaliação psiquiátrica,<br />
quando chegam a ser encaminhados.<br />
Há muita discussão sobre a sintomatologia, à luz da psicopatologia<br />
fenomenológica. Muitas vezes, o <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação se<br />
sobrepõe a doenças <strong>de</strong>rmatológicas (com pruridos) e a parestesias,<br />
sendo que o quadro po<strong>de</strong> ser resultante <strong>de</strong> interpretações<br />
<strong>de</strong>lirantes <strong>de</strong> sensações físicas reais, ilusões ou alucinações táteis<br />
e cenestésicas.5 Conrad opina que não existem vivências <strong>de</strong>lirantes<br />
primárias verda<strong>de</strong>iras nesta síndrome, ocorrendo vivências<br />
<strong>de</strong>lirói<strong>de</strong>s compreensíveis <strong>de</strong>rivadas das alucinações táteis.3 Para<br />
Huber, o <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação é um verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>lírio. Consi<strong>de</strong>ra<br />
a alucinação elemento secundário ante uma vivência <strong>de</strong>lirante<br />
primária, apesar do paciente po<strong>de</strong>r apresentar dúvidas quanto à<br />
convicção da infestação, o que é contrário à noção clássica <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio<br />
primário.3 Essas opiniões divergentes espelham intermináveis<br />
disputas no campo da abordagem fenomenológica dos <strong>de</strong>lírios<br />
e alucinações.<br />
A prevalência da síndrome <strong>de</strong> Ekbom é <strong>de</strong>sconhecida. Sabese,<br />
porém, que atinge a faixa etária acima <strong>de</strong> 60 anos, aquela com<br />
maior possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar transtornos psiquiátricos secundários<br />
a condições médicas gerais. Logo, uma avaliação clínica,<br />
laboratorial e <strong>de</strong> neuroimagem é imprescindível.<br />
No tratamento po<strong>de</strong>m ser empregados antipsicóticos, associação<br />
<strong>de</strong> anti<strong>de</strong>pressivos e antipsicóticos, e anti<strong>de</strong>pressivos. O antipsicótico<br />
pimozida, um antagonista opiáceo e dopaminérgico<br />
seletivo, apresentaria resultados mais promissores, talvez relacionados<br />
ao antagonismo opiáceo e conseqüente diminuição das<br />
sensações pruriginosas dos pacientes.1 Entretanto, po<strong>de</strong> levar a<br />
discinesia tardia e a arritmias cardíacas, <strong>de</strong>ntre outras condições.<br />
O isolamento social também <strong>de</strong>ve ser combatido através <strong>de</strong> abordagem<br />
psicossocial.4,5<br />
Caso Clínico<br />
Trata-se <strong>de</strong> paciente <strong>de</strong> 70 anos, semi-analfabeta. Resi<strong>de</strong> sozinha.<br />
Sem história pregressa <strong>de</strong> transtornos psiquiátricos.<br />
A paciente, na companhia da filha, mostra encaminhamento<br />
<strong>de</strong> um clínico geral. Relata que há dois anos começou a observar<br />
proliferação <strong>de</strong> pequenos vermes oriundos <strong>de</strong> seu próprio couro<br />
cabeludo. Isso provocou a raspagem do cabelo em mais <strong>de</strong> uma<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Ambulatório <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> Geriátrica<br />
Hospital das Clínicas da <strong>UFMG</strong><br />
Av. Professor Alfredo Balena 110<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG
ocasião, além <strong>de</strong> inúmeras consultas <strong>de</strong>rmatológicas e uso <strong>de</strong> vários<br />
medicamentos tópicos, sem qualquer melhora. Tal infestação<br />
prejudicava o sono, já que à noite procurava matar os vermes,<br />
provocando diversas escoriações. A filha informa que o pescoço<br />
da mãe começou a avolumar-se dois anos antes do quadro psiquiátrico<br />
se instalar. Relata, ainda, história <strong>de</strong> promiscuida<strong>de</strong> da<br />
paciente.<br />
Entrou no consultório sem exibir alterações <strong>de</strong> marcha, emagrecida,<br />
com boas condições <strong>de</strong> higiene, vestida <strong>de</strong> forma ina<strong>de</strong>quada<br />
para a situação, com boné, mini-blusa e saia curta. Seu rosto<br />
bastante envelhecido contrasta com certa jovialida<strong>de</strong> transmitida<br />
ao entrevistador. É educada e cooperativa, mas exibe postura<br />
<strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> além do habitual. Muda constantemente sua posição<br />
na ca<strong>de</strong>ira e gesticula bastante. Informa com precisão sobre<br />
o local, sobre seu nome, seus dados pessoais, o dia da semana, a<br />
hora, o ano e dá registros aproximados sobre o mês e dia do mês.<br />
Apresenta atenção reduzida ao que lhe é perguntado, respon<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> maneira evasiva e se apressa em retornar ao tema da infestação,<br />
este irredutível e acompanhado <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>. É indiscreta ao<br />
comentar as práticas sexuais com o último companheiro e as alterações<br />
ginecológicas <strong>de</strong>las <strong>de</strong>correntes, que parecem relacionar-se<br />
com o tema <strong>de</strong> infestação. Diz que os vermes transitam entre ânus<br />
e vagina, indo posteriormente para o couro cabeludo. Apesar dos<br />
protestos da filha, mostra um pequeno recipiente <strong>de</strong> vidro transparente<br />
com fios <strong>de</strong> cabelo submersos em água e afirma que contém<br />
os vermes <strong>de</strong> sua cabeça. Relata que tem visto uma senhora<br />
junto a sua cama fazendo-lhe mal, sobretudo à noite, e que é um<br />
espírito a mando dos feitiços da vizinha, tirando suas forças.<br />
Súmula: sem alteração <strong>de</strong> campo e nível <strong>de</strong> consciência.<br />
Orientada para espaço e pessoa, parcialmente orientada no tempo.<br />
Sem alterações quantitativas e qualitativas <strong>de</strong> memória. Humor<br />
ligeiramente elevado, afeto síntone. Normovigil, hipotenaz.<br />
Pensamento <strong>de</strong>lirante com conteúdo restrito ao tema persecutório<br />
e sobretudo somático. Alucinações visuais, cenestésicas e táteis.<br />
Inquietação psicomotora.<br />
Ao exame físico observavam-se bócio <strong>de</strong> tireói<strong>de</strong> e bulhas cardíacas<br />
arrítmicas. Solicitadas interconsultas com a <strong>de</strong>rmatologia,<br />
a neurologia e a endocrinologia. Pedidos exames laboratoriais e<br />
imaginológicos. Na <strong>de</strong>rmatologia constatou-se apenas escoriações<br />
e rarefação no couro cabeludo. Mini-mental: 16 pontos. Tomografia<br />
computadorizada do encéfalo e EEG foram inespecíficos.<br />
O VDRL e anti-HIV foram negativos, mas o FTA-ABS positivo,<br />
fazendo com que a neurologia investigasse o líquor, que se apresentou<br />
normal, <strong>de</strong>scartando neurossífilis e outras doenças neurológicas.<br />
O TSH apresentou resultado inferior a 0,002 (ultra-sensível),<br />
o T4 livre apresentava-se no limite superior. O eletrocardiograma<br />
evi<strong>de</strong>nciava taquicardia. A cintilografia, feita posteriormente,<br />
foi compatível com bócio nodular tóxico. Diagnosticou-se<br />
hipertiroidismo por doença <strong>de</strong> Plummer.<br />
Discussão<br />
O presente relato <strong>de</strong> caso, apesar <strong>de</strong> limitado pelo não prosseguimento<br />
terapêutico (baixa a<strong>de</strong>rência da paciente), sugere aspectos<br />
relevantes e comuns da síndrome <strong>de</strong> Ekbom, como a faixa<br />
etária, o sexo e o isolamento social, além da sintomatologia peculiar.<br />
Havia ainda hipertiroidismo associado, que teria precedido<br />
em dois anos a instalação do quadro psiquiátrico. A i<strong>de</strong>ação per-<br />
secutória e a alucinação visual que se manifestavam à noite, e que<br />
remitiram, po<strong>de</strong>riam sugerir <strong>de</strong>lirium causado por hipertiroidismo<br />
ou por conseqüência <strong>de</strong>ste, como arritmia. A inquietação psicomotora<br />
e o humor elevado seriam conseqüência do hipertiroidismo,<br />
que po<strong>de</strong> até originar quadros <strong>de</strong> mania.<br />
A classificação apropriada do <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação é alvo <strong>de</strong><br />
discussões. Freinhar divi<strong>de</strong>-o em três categorias1: (a) transtorno<br />
<strong>de</strong>lirante somático; (b) como sintoma <strong>de</strong> outros transtornos psiquiátricos<br />
(esquizofrenia, transtorno bipolar e <strong>de</strong>pressão com sintomas<br />
psicóticos, transtorno esquizoafetivo e transtorno obsessivo-compulsivo);<br />
(c) secundário a doenças clínicas (Tabela 1).<br />
Tabela 1 - Condições físicas associadas à síndrome <strong>de</strong> Ekbom<br />
Abuso <strong>de</strong> substâncias<br />
• Álcool<br />
• Anfetamina<br />
• Cocaína<br />
• Metilfenidato<br />
Doenças Neurológicas<br />
• Demência<br />
• Doença cerebrovascular<br />
• Doença <strong>de</strong> Huntington<br />
• Doença <strong>de</strong> Parkinson<br />
• Tumor SNC<br />
Doenças Infecciosas<br />
• Aids<br />
• Sífilis<br />
• Tuberculose<br />
Doenças Endocrinológicas<br />
• Diabetes<br />
• Hipertireoidismo<br />
Deficiências <strong>de</strong> Vitaminas<br />
• Deficiência <strong>de</strong> B12<br />
• Pelagra<br />
Neoplasias<br />
• Linfoma<br />
• Leucemia linfocítica crônica<br />
Doenças Cardiovasculares<br />
• Arritmias<br />
• Insuficiência cardíaca congestiva<br />
Medicamentos<br />
Corticosterói<strong>de</strong>s<br />
Outras Hepatopatias<br />
• Nefropatias<br />
Adaptado <strong>de</strong> Driscoll et al,19931<br />
Parecem-nos mais indicados, aqui, um dos diagnósticos<br />
referentes às categorias (a) e (c): transtorno <strong>de</strong>lirante persistente<br />
(F22/CID-10) ou transtorno <strong>de</strong>lirante tipo somático<br />
(297.1/DSM-IV) e transtorno <strong>de</strong>lirante (esquizofreniforme) orgânico<br />
(F06.2/CID-10) ou transtorno psicótico <strong>de</strong>vido a hipertireoidismo,<br />
com <strong>de</strong>lírios (293.81/DSM-IV). Resta o dilema: será<br />
síndrome <strong>de</strong> Ekbom associada ou secundária a hipertireoidismo?<br />
Summary<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):24-26 25
Síndrome <strong>de</strong> ekbom em idosa<br />
Cases of Ekbom’s syndrome or <strong>de</strong>lusions of infestation are rare and<br />
their exact prevalence is unknown. Patients are usually socially isolated<br />
el<strong>de</strong>rly women, who present a strong conviction of having been<br />
infested by parasites, leading to great discomfort.They may even resort<br />
to dangerous measures such as the use of pestici<strong>de</strong>s, in an attempt<br />
to eradicate the parasites. This syndrome may be a form of<br />
presentation of <strong>de</strong>lusional disor<strong>de</strong>r (somatic type) or may be secondary<br />
to other psychiatric disor<strong>de</strong>rs, especially <strong>de</strong>pression and organic<br />
mental disor<strong>de</strong>rs. Possible causes are substance abuse, infections<br />
(AIDS, syphilis), neurologic and endocrinologic diseases (diabetes,<br />
hyperthyroidism).This article <strong>de</strong>scribes the case of a 70-year old woman<br />
who presented Ekbom’s syndrome 2 years after <strong>de</strong>veloping<br />
hyperthyroidism.<br />
Key-words: Ekbom’s Syndrome; Delusion of Infestation; Geriatric<br />
Psychiatry; Hyperthyroidism<br />
Referências Bibliográficas<br />
26 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):24-26<br />
1. Driscoll MS, Rothr MJ, Grant-Kels JM e Hael MS. Delusional<br />
parasitosis: a <strong>de</strong>rmatologic, psychiatic and pharmacological<br />
approach. J Am Acad Dermatol 1993; 29:1023-33.<br />
2. Giboin C, Mantelet S. Le syndrome d’Ekbom. Annales Médico-Psycologiques<br />
1998; 156(10):649-58.<br />
3. Iserhard R, Morsch FCP. Um caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> <strong>de</strong>rmatozôos<br />
<strong>de</strong> Ekbom: problemas psicopatológicos para o diagnóstico.<br />
Inform Psiq 1993; 12 (3): 99-101.<br />
4. Räsänen P et al. Delusional Parasitosis in the El<strong>de</strong>rly: A Review<br />
and Report of Six Cases From Northern Finland. Internacional<br />
Psychogeriatrics 1997; 9(4):459-64.<br />
5. Torres AR, Tiosso AM, Zen AMG. Um caso <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> infestação<br />
parasitária tratado com clomipramina Rev. ABP-<br />
PAL 1996; 18(1): 29-34.
Érico <strong>de</strong> Castro Costa *<br />
Gislene Valadares Miranda **<br />
Ana Luiza Corrêa da Costa ***<br />
Maurício Viotti Daker ****<br />
Resumo<br />
Os autores relatam caso <strong>de</strong> paciente portador <strong>de</strong> transtorno afetivo<br />
bipolar resistente, acompanhado há cinco anos no laboratório do<br />
Serviço <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital das Clínicas - <strong>UFMG</strong>. Após <strong>de</strong>scrição<br />
<strong>de</strong>talhada do caso e constatação da falência das terapêuticas psicofarmacológicas<br />
usuais, <strong>de</strong>vido a ineficácia (lítio) ou intolerância<br />
(carbamazepina, oxcarbazepina), além da utilização <strong>de</strong> polifarmacoterapia<br />
com riscos <strong>de</strong> interações in<strong>de</strong>sejáveis, é apresentada revisão<br />
bibliográfica <strong>de</strong> tratamento com Clozapina e optamos pelo<br />
emprego, bem sucedido, da clozapina do transtorno afetivo bipolar<br />
resistente.<br />
Palavras-chave: Transtorno <strong>de</strong> Humor Bipolar; Clozapina<br />
Caso Clínico<br />
TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR RESISTENTE E REVISÃO DE SEU<br />
TRATAMENTO COM CLOZAPINA<br />
RESISTANT BIPOLAR DISORDER AND A REVIEW OF ITS TREATMENT WITH CLOZAPINE<br />
AB, 51 anos, masculino, ex-comerciante, atualmente aposentado,<br />
casado, três filhas, católico, natural e resi<strong>de</strong>nte em Belo<br />
Horizonte. Nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>: 4ª série primária.<br />
Primeiro atendimento no serviço em 23/11/1994. Apresentava-se<br />
com humor <strong>de</strong>primido, hipobúlico e com alterações do pensamento<br />
(idéias suicidas e <strong>de</strong> ruínas). Não havia qualquer alteração<br />
da sensopercepção e do nível <strong>de</strong> consciência.<br />
Na anamnese da história pregressa, esposa relata que paciente<br />
já fez uso pesado <strong>de</strong> álcool até 1983. Em 1986, paciente apresentou<br />
alterações <strong>de</strong> comportamento que foram relacionadas com<br />
o plano econômico do cruzado. O paciente não se cansava <strong>de</strong> falar<br />
“a situação está difícil”, “o dinheiro não dá para nada”. Com isso<br />
proibiu que se ligasse a televisão e/ou se acen<strong>de</strong>sse a luz da casa,<br />
a fim <strong>de</strong> poupar energia. Além disso, arrendou sua loja em conhecido<br />
mercado <strong>de</strong>sta capital.<br />
A esposa relata que dois anos mais tar<strong>de</strong> (1988) o paciente ficou<br />
agitado e com episódios <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong>. Andava durante<br />
toda a madrugada com saco <strong>de</strong> sementes nas costas e dizia que<br />
* Resi<strong>de</strong>nte do terceiro ano da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do<br />
Hospital das Clínicas - <strong>UFMG</strong>. Doutorando na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Bonn, Alemanha.<br />
** Preceptora da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital das Clínicas<br />
- <strong>UFMG</strong>.<br />
*** Resi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Instituto Raul Soares, Fundação<br />
Hospitalar do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais.<br />
iria plantar. Dormia pouco, falava muito. O conteúdo da fala girava<br />
em torno <strong>de</strong> dinheiro e os negócios que realizaria, que lhe<br />
ren<strong>de</strong>riam muitos “milhões <strong>de</strong> dólares”. O paciente foi atendido<br />
por psiquiatra e não aceitou a medicação, havendo necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> misturar haloperidol 50 gotas na alimentação, com remissão<br />
do quadro. Fez uso contínuo do haloperidol até as mudanças <strong>de</strong><br />
comportamento que se iniciaram três semanas antes do atendimento<br />
<strong>de</strong> 23/11/1994.<br />
Foi indicada internação, sendo prescritos haloperidol 5 mg<br />
VO à noite, imipramina 25 mg à noite e uma ampola <strong>de</strong> haloperidol<br />
mais uma ampola <strong>de</strong> prometazina em caso <strong>de</strong> agitação. Solicitadas<br />
provas <strong>de</strong> função tireoidiana, TGO, TGP, bilirrubinas e<br />
avaliação pela clínica médica. O caso foi discutido no dia<br />
24/11/1994 pela preceptoria, que sugeriu a introdução lenta <strong>de</strong><br />
clonazepam e a troca do haloperidol pela clorpromazina. Com<br />
isso, a nova prescrição do paciente passou a ser: clonazepam<br />
3,5 mg/dia, clorpromazina 200 mg/dia e imipramina 50 mg/dia,<br />
além <strong>de</strong> biperi<strong>de</strong>no 2 mg/dia. O paciente apresentou vários episódios<br />
<strong>de</strong> insônia e agitação psicomotora diurna, o que levou ao<br />
incremento das doses <strong>de</strong> clorpromazina até 400 mg/dia, clonazepam<br />
até 6 mg/dia e imipramina 125 mg/dia.<br />
No dia 12/12/1994 (22º dia <strong>de</strong> internação), foi iniciado carbonato<br />
<strong>de</strong> lítio 600 mg/dia após a normalida<strong>de</strong> dos resultados das<br />
provas tireoidianas. Após 29 dias <strong>de</strong> internação, em 22/12/1994,<br />
o paciente recebeu alta com melhora do quadro <strong>de</strong> agitação e em<br />
uso <strong>de</strong>: imipramina 125 mg/dia, clonazepam 4 mg/dia, clorpromazina<br />
100 mg/dia e carbonato <strong>de</strong> lítio 900 mg/dia.<br />
Continuou acompanhado no ambulatório, em uso <strong>de</strong> carbonato<br />
<strong>de</strong> lítio 1.200 mg/dia, clonazepam 5 mg/dia, imipramina<br />
50 mg/dia e clorpromazina 200 mg/dia. Mantinha-se com a litemia<br />
em torno <strong>de</strong> 0,9 mEq/l a 1,0 mEq/l e sem alterações do humor.<br />
Nos controles ambulatoriais mensais da psiquiatria foi observado<br />
hipotireoidismo subclínico, sendo indagado se <strong>de</strong>corrente<br />
do lítio, já que as provas tireoidianas pré-tratamento<br />
com lítio não apresentavam alterações (T3 = 105, T4 = 7,2,<br />
TSH = 3,9). Ao longo do ano <strong>de</strong> 1995 o paciente se manteve estabilizado<br />
em uso da medicação já citada e com a litemia sempre<br />
em torno <strong>de</strong> 1,0 mEq/l.<br />
Em 06/11/1995, a esposa comparece sozinha ao atendimento<br />
relatando alterações <strong>de</strong> comportamento do paciente: heteroagressivida<strong>de</strong>,<br />
irritação, agitação, exaltação do humor e insônia. Foi retirado<br />
o anti<strong>de</strong>pressivo (imipramina). Aumenta-se a clorpromazi-<br />
**** Coor<strong>de</strong>nador da Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital das<br />
Clínicas - <strong>UFMG</strong>. Professor Adjunto Doutor e Chefe do<br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e Neurologia da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong>.<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> - Hospital das Clínicas<br />
Av. Prof. Alfredo Balena 110.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32 27
Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão <strong>de</strong> seu tratamento com clozapina<br />
na para uma dose <strong>de</strong> 500 mg/dia, mantêm-se <strong>de</strong>mais medicações,<br />
pe<strong>de</strong>-se litemia <strong>de</strong> urgência. Nova consulta em 17/11/1995, mantendo<br />
o mesmo quadro relatado pela esposa na consulta anterior.<br />
Retirada clorpromazina e introduzidos haloperidol 15 mg/dia e<br />
biperi<strong>de</strong>no 4 mg/dia. Em 20/11/1995 o paciente se apresenta inquieto,<br />
humor lábil, heteroagressivida<strong>de</strong>, ausência <strong>de</strong> idéias <strong>de</strong>lirantes.<br />
Litemia 1,0 mEq/l. Reduzido haloperidol para 7,5 mg/dia<br />
e introduzida a prometazina 50 mg/dia. Mantém-se inquieto, humor<br />
lábil, relatando tristeza e ansieda<strong>de</strong>. Caso discutido com a<br />
preceptoria, que sugeriu a internação.<br />
Em uso à internação <strong>de</strong> carbonato <strong>de</strong> lítio 1.200 mg/dia e clonazepam<br />
4 mg/dia. Retirado haloperidol <strong>de</strong>vido à inquietação motora<br />
<strong>de</strong>senvolvida pelo paciente. Reintroduzida clorpromazina<br />
100 mg/dia e mantida prometazina 50 mg/dia. Em 25/11/1995 é<br />
introduzida a carbamazepina 200 mg/dia no esquema terapêutico<br />
do paciente, que já utilizava carbonato <strong>de</strong> lítio 1.200 mg/dia, clorpromazina<br />
200 mg/dia e clonazepam 2 mg/dia. Paciente mantendo<br />
quadro <strong>de</strong> agitação, labilida<strong>de</strong> do humor e insônia. Aplicado<br />
Mini-Mental em 27/11/1995 com um score igual a 26 pontos.<br />
Carbamazepina elevada para 400 mg/dia. Introduzido estazolam<br />
2 mg/dia. Em 01/12/1995 mostra-se calmo, cooperativo, dormindo<br />
bem, mantendo humor lábil. Aumentada carbamazepina<br />
para 600 mg/dia. Alta hospitalar em 11/12/1995 após 19 dias <strong>de</strong><br />
internação. Encontrava-se calmo, cooperativo, queixando-se <strong>de</strong><br />
sonolência diurna e com sono noturno a<strong>de</strong>quado. Medicação no<br />
momento da alta: carbonato <strong>de</strong> lítio 600 mg/dia, carbamazepina<br />
1.200 mg/dia, clonazepam 1 mg/dia, clorpromazina 50 mg/dia,<br />
estazolam 2 mg/dia.<br />
Dois dias após a alta o paciente é atendido no ambulatório,<br />
apresentando-se disfórico, humor lábil, choro fácil e agitação psicomotora.<br />
Presença <strong>de</strong> prurido cutâneo importante com escoriações<br />
nos membros superiores <strong>de</strong>vido a atrito. Foi suspensa a carbamazepina.<br />
Elevado carbonato <strong>de</strong> lítio para 1.200 mg/dia, mantido<br />
clonazepam 1 mg/dia, elevada clorpromazina para<br />
100 mg/dia. Retorna cinco dias após mantendo o quadro <strong>de</strong> agitação<br />
psicomotora, humor lábil, prurido mesmo após a interrupção<br />
da carbamazepina. Suspensa clorpromazina e reiniciada prometazina<br />
50 mg/dia, trocado clonazepam por lorazepam na dose <strong>de</strong><br />
3 mg/dia, mantido estazolam 2 mg/dia. Em 28/12/1995 retorna ao<br />
ambulatório com o mesmo quadro <strong>de</strong> agitação psicomotora, logorréico,<br />
humor lábil, taquipsíquico. Caso discutido com o preceptor<br />
que sugeriu o aumento do lorazepam para 6 mg/dia, mantendo<br />
o carbonato <strong>de</strong> lítio 1.200 mg/dia e prometazina<br />
50 mg/dia. Persistiu muito agitado, sendo inclusive atendido em<br />
serviço <strong>de</strong> urgência psiquiátrica. O preceptor sugeriu a introdução<br />
<strong>de</strong> tioridazina na dose <strong>de</strong> 200 mg/dia, redução do carbonato <strong>de</strong> lítio<br />
para 900 mg/dia e manutenção do estazolam 2 mg/dia, lorazepam<br />
6 mg/dia e prometazina 50 mg/dia. Foi solicitada tomografia<br />
computadorizada <strong>de</strong> crânio, sem alterações. Houve melhora do<br />
quadro com a introdução da tioridazina. Melhora da labilida<strong>de</strong><br />
emocional, porém paciente continua agitado. A tioridazina foi elevada<br />
para 300 mg/dia, o carbonato <strong>de</strong> lítio reduzido<br />
para 600 mg/dia, mantidos lorazepam 6 mg/dia, prometazina<br />
50 mg/dia e estazolam 2 mg/dia. Em 16/01/1996 persiste a agitação,<br />
apesar da melhora parcial com tioridazina. Esta foi aumentada<br />
para 400 mg/dia. Lorazepam aumentado para 8 mg/dia, man-<br />
28 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32<br />
tido estazolam 2 mg/dia e reduzido carbonato <strong>de</strong> lítio para<br />
300 mg/dia.<br />
Paciente novamente internado em 25/01/1996 com quadro <strong>de</strong><br />
agitação psicomotora, insônia, humor irritável, ausência <strong>de</strong> crítica,<br />
mesmo com uso da medicação: carbonato <strong>de</strong> lítio 300 mg/dia, lorazepam<br />
8 mg/dia, prometazina 50 mg/dia, estazolam 2 mg/dia e<br />
tioridazina 400 mg/dia. Neste dia, o médico-assistente suspen<strong>de</strong> o<br />
uso <strong>de</strong> tioridazina e introduz clonazepam 6 mg/dia, eleva estazolam<br />
para 4 mg/dia, eleva prometazina 75 mg/dia e suspen<strong>de</strong> o carbonato<br />
<strong>de</strong> lítio. Também foram administrados uma ampola <strong>de</strong> haloperidol<br />
e uma ampola <strong>de</strong> prometazina IM. Após supervisão, o<br />
médico resi<strong>de</strong>nte introduz em 26/01/1996 oxcarbazepina<br />
600 mg/dia, mantendo clonazepam 6 mg/dia, prometazina<br />
75 mg/dia e estazolam 4 mg/dia. Em 30/01/1996 o paciente apresenta<br />
melhora parcial da agitação, da insônia, da labilida<strong>de</strong> do humor<br />
e da crítica. Aumento da dose <strong>de</strong> oxcarbazepina para<br />
1.200 mg/dia. Melhora do quadro, embora persista queixa <strong>de</strong> insônia.<br />
Mantém-se estabilizado, sem alterações do humor, sem<br />
agitação. Em uso <strong>de</strong> oxcarbazepina 900 mg/dia, clonazepam<br />
4 mg/dia e prometazina 75 mg/dia. Alta hospitalar em 08/03/1996,<br />
após 44 dias <strong>de</strong> internação, com remissão total do quadro.<br />
Retorna ao ambulatório mantendo quadro psiquiátrico com<br />
evolução satisfatória (boa readaptação e estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> humor,<br />
bom padrão <strong>de</strong> sono e interesse em ativida<strong>de</strong>s diversas). Porém,<br />
apresentou quadro <strong>de</strong>rmatológico compatível com rash cutâneo<br />
(lesões eritematosas em placa e em pápulas, pruriginosas, na região<br />
da face, dorso, peito e braços) com disseminação progressiva.<br />
Foram aumentados prometazina para 125 mg/dia e clonazepam<br />
6 mg/dia. Suspensa a oxcarbazepina. Evoluiu com insônia,<br />
logorréia, falando alto. Presença <strong>de</strong> alterações <strong>de</strong> pensamento.<br />
Idéias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za e com conteúdo inapropriado relacionado ao<br />
sexo. Indicada reinternação.<br />
Aumentado clonazepam para 10 mg/dia. Mantida prometazina<br />
em 125 mg/dia. Discutida em supervisão a reintrodução do<br />
carbonato <strong>de</strong> lítio. Realizada interconsulta <strong>de</strong>rmatológica, sendo<br />
estabelecida hipótese diagnóstica <strong>de</strong> farmaco<strong>de</strong>rmia por oxcarbazepina,<br />
com prescrição <strong>de</strong> hidrocortisona tópica. Manteve-se agitado<br />
à internação, logorréico, sem crítica, insone, coprolálico, em<br />
que pese a medicação. Prescrito sulpiri<strong>de</strong> 200 mg/dia por sugestão<br />
da preceptoria. Persistiu agitado, insone e com humor lábil.<br />
Aumento <strong>de</strong> sulpiri<strong>de</strong> para 250 mg/dia. Reduzido clonazepam<br />
para 6 mg/dia e prometazina para 100 mg/dia. Suspenso o<br />
sulpiri<strong>de</strong> 17 dias após seu início, <strong>de</strong>vido ao relato <strong>de</strong> inquietação<br />
após a elevação progressiva <strong>de</strong>ssa droga, que chegou a dose <strong>de</strong><br />
300 mg/dia. Prescrito estazolam 4 mg/dia.<br />
Prescrito verapamil 120 mg, em 09/04/1996. No dia seguinte<br />
à suspensão do sulpiri<strong>de</strong>. Manteve-se insone, agitado, logorréico.<br />
Mantido o uso <strong>de</strong> clonazepam 4 mg/dia, a prometazina fora suspensa<br />
quatro dias antes. Aumento da dose <strong>de</strong> verapamil para<br />
160 mg/dia e, a seguir, para 200 mg. Alta hospitalar em<br />
15/05/1996, após 57 dias <strong>de</strong> internação, em uso <strong>de</strong> verapamil<br />
200 mg/dia, clonazepam 4 mg/dia, estazolam 4 mg/dia e prometazina<br />
50 mg/dia.<br />
Nos 15 dias seguintes a alta hospitalar, o paciente voltou a<br />
apresentar quadro maniforme. Problemas com vizinhos por ligar<br />
o rádio em alto volume, retorno da agitação psicomotora e insônia.<br />
O caso foi discutido com a preceptoria e se optou pela reti-
ada do verapamil. Paciente mantendo ciclagens rápidas do humor.<br />
Introduzida levomepromazina 30 mg/dia, mantidos clonazepam<br />
4 mg/dia, prometazina 50 mg/dia e estazolam 4 mg/dia. Em<br />
04/06/1996 apresenta melhrora da exaltação do humor, mantendo-se<br />
estável e em uso <strong>de</strong> levomepromazina 50 mg/dia e <strong>de</strong>mais<br />
medicações acima. Persiste bem em 29/06/1996. Em 29/07/1996<br />
não compareceu ao atendimento.<br />
Retorna em 23/09/196 com labilida<strong>de</strong> do humor e agitação<br />
psicomotora durante alguns dias, segundo o relato da esposa. Aumentado<br />
clonazepam para 6 mg/dia, levomepromazina para<br />
150 mg/dia, prometazina para 75 mg/dia, além <strong>de</strong> usar estazolam<br />
2 mg/dia. Em 31/10/1996 a esposa relata episódios <strong>de</strong> agitação,<br />
havendo necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> incremento da dose <strong>de</strong> levomepromazina.<br />
O médico, porém, faz a seguinte anotação no prontuário<br />
“opto por não modificar dose atual das medicações em função da<br />
dificulda<strong>de</strong> do manejo do quadro”. Persistem eventuais agitações,<br />
mas sem maiores intercorrências. Observa-se que o paciente está<br />
muito sedado.<br />
Em 27/02/1997 a acompanhante relata que o paciente voltou<br />
a ficar insone e as agitações psicomotoras mais frequentes. Aumentado<br />
o clonazepam para 8 mg/dia e a levomepromazina para<br />
200 mg/dia. Mantidos estazolam 4 mg/dia e prometazina<br />
75 mg/dia. Introduzido ácido valpróico 1.500 mg/dia. Em<br />
06/03/1997 se apresenta sedado, com a voz arrastada e bradipsiquisimo.<br />
Iniciada a retirada <strong>de</strong> prometazina e levomepromazina.<br />
Em 03/04/1997 hipotímico, hipobúlico, chorando muito. Continua<br />
queixando-se da insônia, relata dormir mais ou menos três a<br />
quatro horas/noite. Suspensas prometazina e levomepromazina.<br />
Introduzida clorimipramina 75 mg/dia. Mantido ácido valpróico<br />
1.500 mg/dia. Apresenta-se eutímico em 07/08/1997, em uso<br />
<strong>de</strong>: clonazepam 6 mg/dia, estazolam 4 mg/dia, clorimipramina<br />
75 mg/dia, ácido valpróico 1.500 mg/dia. Dosagem plasmática<br />
<strong>de</strong> ácido valpróico 75 mg/ml.<br />
Em 09/10/1997 atendido fora da data programada a pedido<br />
da esposa, apresentando-se agitado, agressivo, logorréico, taquipsíquico<br />
e insone. Introduzidas risperidona 1,5 mg/dia e clorpromazina<br />
200 mg/dia. Mantidos ácido valpróico 1.500 mg/dia e clonazepam<br />
6 mg/dia. Suspensa a clorimipramina. Eutímico em<br />
20/11/1997, dosagem <strong>de</strong> ácido valpróico 67,5 mg/ml.<br />
Em 18/12/97 hipotímico, hipobúlico, chorando e com idéias<br />
<strong>de</strong> suicídio. Reintroduzida clorimipramina 75 mg/dia. Em uso,<br />
ainda, <strong>de</strong> risperidona 2 mg/dia, clorpromazina 100 mg/dia, clonazepam<br />
6 mg/dia e ácido valpróico 1.500 mg/dia.<br />
Em 14/05/1998 persistem flutuações do humor. Após revisão<br />
na literatura e discussão com a preceptoria, optou-se pela introdução<br />
<strong>de</strong> clozapina, já que o paciente ainda não se mantinha estabilizado,<br />
em que pesem todas as medidas terapêuticas psicofarmacológicas<br />
anteriores. Enquanto se aguardava liberação da medicação<br />
pela Secretaria <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, o paciente mantinha flutuações do humor.<br />
Introduzida a clozapina 25 mg/dia em 14/12/1998. Iniciada<br />
retirada das <strong>de</strong>mais medicações. Em 21/12/1998 retorna em uso<br />
<strong>de</strong> clozapina 100 mg/dia e ácido valpróico 1.000 mg/dia. Retirados<br />
risperidona, clomipramina, clonazepam, clorpromazina.<br />
Queixas <strong>de</strong> sialorréia. Em 04/01/1999 em uso <strong>de</strong> clozapina<br />
200 mg/dia e ácido valpróico 500 mg/dia. Em 11/01/1999 se apresenta<br />
eutímico em uso <strong>de</strong> clozapina 300 mg/dia e ácido valpróico<br />
250 mg/dia. Permanece eutímico em 25/01/1999 com clozapina<br />
300 mg/dia, retirado ácido valpróico. Hemogramas semanais sem<br />
alterações. Sialorréia.<br />
Em 19/03/1999, quinze semanas após a introdução da clozapina,<br />
não apresenta qualquer alteração do humor, embora se<br />
queixe <strong>de</strong> sialorréia e tenha havido ganho <strong>de</strong> peso <strong>de</strong> seis quilos.<br />
Paciente sendo ainda acompanhado semanalmente.<br />
Para um apanhado geral das diversas prescrições, ver a<br />
Tabela 1.<br />
Hipótese diagnóstica: Transtorno afetivo bipolar, atualmente<br />
em remissão. F-31.7 (CID 10)<br />
Discussão<br />
A experiência clínica acumulada nas últimas três décadas indica<br />
que 20% a 40% dos pacientes com quadros agudos do<br />
transtorno afetivo bipolar não respon<strong>de</strong>m ao lítio e que 72% a<br />
82% dos pacientes com o subtipo <strong>de</strong> ciclagem rápida também são<br />
resistentes.1,2 Com isso é necessário manter o uso do neuroléptico<br />
como tratamento <strong>de</strong> manutenção para um melhor controle dos<br />
sintomas psicopatológicos, mesmo com o risco <strong>de</strong>sses pacientes<br />
<strong>de</strong>senvolverem discinesia tardia.3<br />
Vários trabalhos <strong>de</strong>monstram que quanto mais grave for o<br />
quadro afetivo bipolar, menor é a resposta terapêutica ao lítio e a<br />
outros moduladores do humor - carbamazepina, ácido valpróico<br />
- usados rotineiramente.4,5 Dados epi<strong>de</strong>miológicos <strong>de</strong>monstram<br />
que pacientes portadores <strong>de</strong> transtorno afetivo bipolar sem tratamento<br />
a<strong>de</strong>quado per<strong>de</strong>m em média nove anos <strong>de</strong> vida, 12 anos <strong>de</strong><br />
boa qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e 14 anos <strong>de</strong> função social efetiva.6 Com<br />
isso, vários pesquisadores iniciaram estudos na tentativa <strong>de</strong> encontrar<br />
novas substâncias com ação terapêutica no transtorno<br />
afetivo bipolar.<br />
Conforme referido anteriormente, muitos pacientes portadores<br />
<strong>de</strong> distúrbio afetivo bipolar resistente são tratados com<br />
antipsicóticos típicos associados aos estabilizadores <strong>de</strong>vido a baixa<br />
resposta <strong>de</strong>stes últimos em monoterapia.7 Sernyak et al em<br />
1994, <strong>de</strong>monstraram que 95% dos pacientes internados que receberam<br />
medicação antipsicótica para o tratamento dos quadros <strong>de</strong><br />
mania, continuavam a receber altas doses (o equivalente a 643 mg<br />
<strong>de</strong> clorpromazina em média por dia), seis meses após a alta hospitalar.8<br />
Com a <strong>de</strong>monstração da maior incidência <strong>de</strong> discinesia tardia<br />
nos pacientes com transtornos afetivos3 do que nos pacientes portadores<br />
<strong>de</strong> esquizofrenia9 e/ou síndromes mentais orgânicas,10 os<br />
antipsicóticos atípicos tornaram-se uma opção muito boa para o<br />
tratamento dos transtornos afetivos bipolares resistentes em associação<br />
aos moduladores do humor. Trabalhos com clozapina <strong>de</strong>monstraram<br />
sua eficiência não somente para a esquizofrenia, mas<br />
também para pacientes portadores dos distúrbios esquizoafetivo e<br />
bipolar resistente aos tratamentos usuais.11-17<br />
Em 1990, Hippius publicou a experiência européia com a clozapina.17<br />
Essa revisão focalizava os pacientes tratados no Hospital<br />
Psiquiátrico da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Munique no período compreendido<br />
entre 1978 e 1989 e comparava esses resultados com<br />
os <strong>de</strong> outros estudos europeus com relação aos benefícios e riscos<br />
do uso da clozapina. O grupo constava <strong>de</strong> 503 pacientes, sendo<br />
368 esquizofrênicos e 135 com outros diagnósticos. Dentre o grupo<br />
<strong>de</strong> 135 pacientes, encontravam-se 29 pacientes com <strong>de</strong>pressão<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32 29
Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão <strong>de</strong> seu tratamento com clozapina<br />
Tabela 1 - Medicações e doses em miligramas nos diversos atendimentos<br />
Data A/ I/ Ia<br />
23.11.94 I<br />
24.11.94 I<br />
12.12.94 I<br />
22.12.94 Ia<br />
Ano 95 A<br />
06.11.95 A<br />
17.11.95 A<br />
20.11.95 I<br />
21.11.95 I<br />
25.11.95 I<br />
27.11.95 I<br />
01.12.95 I<br />
11.12.95 I<br />
14.12.95 A<br />
19.12.95 A<br />
28.12.95 A<br />
02.01.96 A<br />
09.01.96 A<br />
16.01.96 A<br />
25.01.96 I<br />
26.01.96 I<br />
30.01.96 I<br />
08.03.96 Ia<br />
13.03.96 A/I<br />
20.03.96 I<br />
22.03.96 I<br />
02.04.96 I<br />
05.04.96 I<br />
08.04.96 I<br />
09.04.96 I<br />
27.04.96 I<br />
30.04.96 I<br />
10.05.96 I<br />
15.05.96 Ia<br />
25.05.96 A<br />
04.06.96 A<br />
23.09.96 A<br />
31.10.96 A<br />
16.01.97 A<br />
27.01.97 A<br />
06.03.97 A<br />
03.04.97 A<br />
07.08.97 A<br />
09.10.97 A<br />
08.12.97 A<br />
14.12.96 A<br />
21.12.96 A<br />
04.01.99 A<br />
11.01.99 A<br />
25.01.99 A<br />
H<br />
5<br />
15<br />
7,5<br />
[5]<br />
I<br />
25<br />
50<br />
125<br />
125<br />
150<br />
150<br />
Cn<br />
3,5<br />
6<br />
4<br />
5<br />
5<br />
5<br />
5<br />
4<br />
2<br />
2<br />
2<br />
1<br />
1<br />
6<br />
6<br />
6<br />
4<br />
6<br />
10<br />
10<br />
6<br />
6<br />
6<br />
4<br />
4<br />
3<br />
endógena, 18 pacientes com mania, 15 pacientes com psicose orgânica,<br />
51 pacientes com discinesia tardia, 18 pacientes com outros<br />
transtornos do movimento e quatro pacientes com outros<br />
diagnósticos. Antes do tratamento com clozapina, os pacientes já<br />
30 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32<br />
4<br />
4<br />
4<br />
6<br />
6<br />
6<br />
8<br />
8<br />
8<br />
6<br />
6<br />
6<br />
4<br />
Cp<br />
200<br />
400<br />
100<br />
200<br />
500<br />
100<br />
200<br />
200<br />
200<br />
50<br />
100<br />
B<br />
2<br />
4<br />
4<br />
CL<br />
600<br />
900<br />
1200<br />
1200<br />
1200<br />
1200<br />
1200<br />
1200<br />
1200<br />
1200<br />
600<br />
1200<br />
1200<br />
1200<br />
900<br />
600<br />
300<br />
P<br />
50<br />
50<br />
50<br />
50<br />
50<br />
50<br />
50<br />
75 [25]<br />
75<br />
75<br />
75<br />
125<br />
125<br />
125<br />
100<br />
75<br />
50<br />
50<br />
50<br />
75<br />
75<br />
75<br />
75<br />
50<br />
Cb<br />
200<br />
400<br />
600<br />
1200<br />
E<br />
2<br />
2<br />
2<br />
2<br />
2<br />
2<br />
2<br />
2<br />
4<br />
4<br />
4<br />
4<br />
4<br />
4<br />
4<br />
4<br />
2<br />
4<br />
4<br />
4<br />
2<br />
4<br />
4<br />
2<br />
A = atendimento ambulatorial; I =Internação; Ia = Alta da internação; H = haloperidol; I = imipramina; Cn = clonazepan; Cp = clorpromazina; B = biperi<strong>de</strong>no; CL = carbonato <strong>de</strong> lítio;<br />
P = prometazina; Cb = carbamazepina; E = estazolan; L = lorazepam; T = tioridazina; O = oxcarbazepina; S = sulpiri<strong>de</strong>; V = verapamil; Lp = levomepromazina; AV = ácido<br />
valpróico; R = risperidona; Ci = clorimipramina; Cz = clozapina; [ ] = intramuscular (<strong>de</strong>mais medicações via oral).<br />
L<br />
3<br />
6<br />
6<br />
6<br />
8<br />
8<br />
4<br />
4<br />
4<br />
T<br />
200<br />
300<br />
400<br />
O<br />
600<br />
1200<br />
900<br />
S<br />
200<br />
250<br />
300<br />
V<br />
120<br />
160<br />
120<br />
200<br />
200<br />
D<br />
40<br />
40<br />
tinham sido tratados com até oito antipsicóticos diferentes durante<br />
algum tempo; 36% dos pacientes iniciaram o uso <strong>de</strong> clozapina<br />
<strong>de</strong>vido à ineficácia farmacológica dos outros tratamentos e 64%<br />
<strong>de</strong>vido aos efeitos colaterais tradicionais com essa classe <strong>de</strong> medi-<br />
Lp<br />
30<br />
50<br />
150<br />
150<br />
150<br />
200<br />
100<br />
AV<br />
1500<br />
1500<br />
1500<br />
1500<br />
1500<br />
1500<br />
1000<br />
1000<br />
500<br />
250<br />
Ci<br />
75<br />
75<br />
75<br />
75<br />
R<br />
1,5<br />
2<br />
Cz<br />
25<br />
50<br />
100<br />
200<br />
300
camentos. Os resultados <strong>de</strong>monstraram que 65% dos pacientes<br />
esquizofrênicos melhoraram, com 90% <strong>de</strong> melhora dos sintomas<br />
positivos e 43% <strong>de</strong> melhora dos sintomas negativos. Dentro <strong>de</strong>sse<br />
subgrupo, o subtipo esquizoafetivo foi o que apresentou os<br />
melhores índices <strong>de</strong> melhora. Já no subgrupo <strong>de</strong> pacientes com<br />
outros transtornos, o que inclui os pacientes maníacos, houve<br />
uma melhora em torno <strong>de</strong> 70% dos casos.<br />
Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1991, uma carta para a revista Journal of Clinical<br />
Psychopharmacology relatava a utilida<strong>de</strong> da clozapina nos casos<br />
<strong>de</strong> transtorno afetivo bipolar do tipo ciclador rápido, refratários<br />
ao lítio e com boa resposta inicial aos anticonvulsivantes em<br />
monoterapia ou associados aos antipsicóticos clássicos, mas cuja<br />
eficácia piorava ao longo do tempo.21<br />
Também em 1991, McElroy et al.11 publicaram os resultados<br />
<strong>de</strong> estudo com 85 pacientes em uso <strong>de</strong> clozapina. Nesse grupo havia<br />
39 pacientes com diagnóstico <strong>de</strong> esquizofrenia, 20 pacientes<br />
esquizoafetivos do tipo bipolar, cinco pacientes esquizoafetivos<br />
do tipo <strong>de</strong>pressivo, 14 pacientes com transtorno bipolar com sintomas<br />
psicóticos e sete pacientes com outros transtornos. 41%<br />
dos pacientes receberam clozapina como monoterapia, 59% em<br />
associação com antipsicóticos clássicos, anti<strong>de</strong>pressivos, benzodiazepínicos,<br />
lítio e anticonvulsivantes. Epi<strong>de</strong>miologicamente,<br />
90% dos pacientes esquizofrênicos eram resistentes aos tratamentos<br />
padrões e 10% eram intolerantes aos efeitos colaterais,<br />
76% dos esquizoafetivos eram resistentes e 24% intolerantes e no<br />
grupo <strong>de</strong> pacientes com transtorno afetivo bipolar 86% eram resistentes<br />
e 14% intolerantes. Quanto à eficácia, observou-se que<br />
85% dos pacientes esquizofrênicos apresentaram alguma melhora,<br />
mas somente 10% apresentaram melhora acentuada. Já nos<br />
grupos <strong>de</strong> esquizoafetivos e portadores <strong>de</strong> transtorno afetivo bipolar,<br />
95% e 93% apresentaram alguma melhora e 35% e 43%<br />
melhora acentuada, respectivamente.<br />
Em 1992, Suppes e McElroy19 <strong>de</strong>monstraram que 12 dos 14<br />
pacientes com transtorno afetivo bipolar resistente no trabalho<br />
citado anteriormente11 apresentavam o diagnóstico <strong>de</strong> mania disfórica,<br />
que pela CID-10 correspon<strong>de</strong> aos quadros <strong>de</strong> transtorno<br />
afetivo bipolar misto. Todos os pacientes apresentaram melhora<br />
da sintomatologia nas primeiras semanas, com redução no número<br />
<strong>de</strong> rehospitalizações, com melhora das funções psicosociais<br />
como retorno à escola e/ou manutenção do emprego. Do ponto<br />
<strong>de</strong> vista farmacológico, eram pacientes <strong>de</strong> difícil manejo, e em uso<br />
<strong>de</strong> polifarmacoterapia.<br />
Kimmel et al. publicaram em 1994,20 que a eficácia da clozapina<br />
não era restrita somente aos pacientes resistentes aos tratamentos<br />
<strong>de</strong> esquizofrenia. Com isso, apresentaram um artigo com<br />
a revisão dos trabalhos restrospectivos e prospectivos <strong>de</strong>senvolvidos<br />
com a clozapina no tratamento dos transtornos do humor.<br />
Em 1995, Zarate et al.14 <strong>de</strong>monstraram que a clozapina em<br />
monoterapia é modulador do humor com redução do número <strong>de</strong><br />
episódios e rehospitalizações em pacientes com transtorno afetivo<br />
bipolar resistente.<br />
Zarate et al.13 também publicaram, em 1995, estudo no qual<br />
revisam todas as publicações referentes ao tratamento com clozapina<br />
do transtorno afetivo bipolar resistente e do transtorno esquizoafetivo.<br />
Foram encontrados um total <strong>de</strong> 30 trabalhos na literatura:<br />
dois estudos duplo-cego, oito ensaios clínicos abertos, 10<br />
estudos retrospectivos CID-10, 10 relatos <strong>de</strong> casos. Dos 30 artigos<br />
em que a clozapina foi usada no tratamento do transtorno afetivo<br />
bipolar e do transtorno esquizoafetivo, somente 10 apresentaram<br />
informações suficientes da eficácia da clozapina e da proporção<br />
<strong>de</strong> pacientes que respon<strong>de</strong>ram à terapêutica. Nos 10 estudos analisados,<br />
foram tratados com clozapina 315 pacientes portadores<br />
<strong>de</strong> transtornos psicóticos e/ou transtornos do humor. Destes pacientes,<br />
94 eram portadores do transtorno afetivo bipolar e 221<br />
eram portadores do transtorno esquizoafetivo em fase maníaca ou<br />
com predominância <strong>de</strong> sintomatologia esquizofreniforme. Um<br />
terço dos pacientes não respon<strong>de</strong>u a<strong>de</strong>quadamente, ou não tolerou<br />
tratamentos prévios com lítio, carbamazepina, ácido valpróico,<br />
antipsicóticos clássicos ou outras drogas. setenta e um por<br />
cento dos 94 pacientes bipolares e 69,6% dos 221 pacientes esquizoafetivos<br />
respon<strong>de</strong>ram com sucesso à terapia com clozapina,<br />
como monoterapia ou associada, por um período entre 49 dias a<br />
quatro anos. Pacientes esquizofrênicos <strong>de</strong> sete estudos foram usados<br />
como grupo <strong>de</strong> comparação. Pacientes maníacos ou com predominância<br />
<strong>de</strong> sintomatologia esquizofreniforme do transtorno<br />
esquizoafetivo ou bipolar apresentaram melhor resposta à clozapina<br />
do que os pacientes esquizofrênicos (71,2% <strong>de</strong> 315 pacientes<br />
e 61,3% <strong>de</strong> 692 pacientes, respectivamente). Apesar <strong>de</strong> vários<br />
estudos apresentarem <strong>de</strong>ficiências metodológicas (retrospectivos,<br />
não-cegos, critérios diagnósticos e critérios <strong>de</strong> seleção não específicos<br />
e por não serem projetados para avaliação específica dos<br />
transtornos do humor), a combinação <strong>de</strong> resultados sugere que as<br />
fases maníacas do transtorno bipolar respon<strong>de</strong>m bem à clozapina.<br />
Esses achados são relevantes já que a gran<strong>de</strong> maioria dos pacientes<br />
era consi<strong>de</strong>rada refratária aos tratamentos.<br />
Devido a provável associação vantajosa entre clozapina e anticonvulsivantes<br />
em transtornos bipolares, revimos o risco <strong>de</strong> crise<br />
convulsiva com a clozapina e seu manejo. Esse risco é dose <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />
sendo maior do que com os outros antipsicóticos que<br />
giram em torno <strong>de</strong> 1%.21 Haller et al, em 1990,21 <strong>de</strong>monstraram<br />
que a prevalência das crises convulsivas com o uso <strong>de</strong> clozapina é<br />
1% a 2% com doses menores que 300 mg/dia, 3% a 4% com<br />
doses entre 300 e 599 mg/dia e 5% com doses entre 600 e<br />
900 mg/dia. Devido ao alto risco <strong>de</strong> crises convulsivas com doses<br />
acima <strong>de</strong> 600 mg/dia, Kando et al22 sugerem a terapia anticonvulsiva<br />
profilática. O ácido valpróico é o anticonvulsivante mais indicado<br />
por interferir menos na farmacocinética da clozapina. O<br />
uso concomitante dos dois fármacos aumenta o nível plasmático<br />
da clozapina em apenas 6%.23<br />
Conclusão<br />
Os resultados do tratamento com clozapina nos transtornos<br />
afetivos bipolares resistentes, como nos subtipos <strong>de</strong> ciclagem rápida,<br />
quadros mistos e transtorno esquizoafetivo são animadores.11,13,14,17,21-23<br />
Nesse grupo <strong>de</strong> pacientes em que a polifarmacoterapia<br />
é constante, o tratamento com clozapina em monoterapia,<br />
como antipsicótico e estabilizador do humor, parece ser uma<br />
alternativa efetiva.14<br />
O uso <strong>de</strong> clozapina nesses casos po<strong>de</strong> levar a melhora expressiva<br />
dos sintomas psiquiátricos e das funções sociais.19 Mas são<br />
necessárias mais pesquisas comparativas para se confirmar essa<br />
impressão, já que no trabalho conduzido por Zarate et al13 só foram<br />
encontrados dois trabalhos duplo-cegos na literatura atual.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32 31
Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão <strong>de</strong> seu tratamento com clozapina<br />
Summary<br />
The authors report a case of resistant bipolar disor<strong>de</strong>r followed in<br />
the last five years at the Psychiatric Service of the Hospital das<br />
Clínicas - <strong>UFMG</strong>. Many treatments were indicated, such as lithium,<br />
carbamazepine, oxacarbamazepine, valproate, verapamil, benzodiazepines,<br />
traditional antipsychotics and polipharmacotherapy.The use<br />
of clozapine, which was succesful, was chosen due to many data in<br />
the literature showing it as an alteranative treatment for bipolar disor<strong>de</strong>r.<br />
Key-words: Bipolar Disor<strong>de</strong>r; Clozapine<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Prien RF, Gelenberg AJ. Alternatives to lithium for preventative<br />
treatment of bipolar disor<strong>de</strong>r. Am J Psychiatry 1989;<br />
146:840-8.<br />
2. Dunner DL, Fieve RR. Clinical factors in lithium carbonate<br />
prophylaxis failure. Arch Gen Psychiatry 1974; 30:229-33.<br />
3. Davis KL, Berger PA, Holister LE. Tardive dyskinesia and<br />
<strong>de</strong>pressive illness. Psychopharmacology Communications<br />
1976; 2:125-30.<br />
4. Small JG, Klapper MH, Milstein V et al. Carbamazepine<br />
compared with lithium in the treatment of mania. Arch Gen<br />
Psychiatry 1991; 48:15-921.<br />
5. Calabrese JR, Woyshville MJ, Kimmel SE, Rapport DJ. Predictors<br />
of valproate response in bipolar rapid cycling. J Clin<br />
Psychopharmacol 1993; 13:280-3.<br />
6. Medical Practice Project. A State of the Art Science Report<br />
for the Office of the Assistant Secretary for the US Department<br />
of Health Education and Welfare. Baltimore: Policy<br />
Research, 1979.<br />
7. Ghaemi SN, Sachs GS, Baldissano CF. Treatment-resistant<br />
bipolar disor<strong>de</strong>r: clinical aspects and management. In:<br />
Pollack M, Rosenbaum JF ed. Challenges in psychiatric treatment:<br />
pharmacologic and psychosocial strategies. New York:<br />
Guildford; 1996:53-85.<br />
8. Sernyak MJ, Griffin RA, Johnson RM, Peassal HR, Wexler<br />
BE, Woods JW. Neuroleptic exposure following inpatient<br />
treatment of acute mania with lithium and neuroleptic. Am J<br />
Psychiatry 1994; 151:133-5.<br />
9. Mar<strong>de</strong>r SR, Van Putten T. Antipsychotic medications. In:<br />
Schatzberg AF, Nemeroff CB. ed. Textbook of psychopharmacology.<br />
Washington DC: American Psychiatric Press,<br />
1995:247-62.<br />
32 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32<br />
10. Saltz BL, Woener MG, Kane JM et al. Prospective study of<br />
tardive dyskinesia in the el<strong>de</strong>rly. JAMA 1991; 266:2402-06.<br />
11. Mc Elroy SL, Dessain EC, Pope Jr HG et al. Clozapine in the<br />
treatment of psychotic mood disor<strong>de</strong>rs, schizoaffective disor<strong>de</strong>r,<br />
and schizophrenia. J Clin Psychiatry 1991; 52:411-4.<br />
12. Banov MD, Zarrate Jr CA, Tohen M et al. Clozapine therapy<br />
in refratory affective disor<strong>de</strong>rs: polarity predicts response in<br />
long term follow-up. J Clin Psychiatry 1994; 55:295-300.<br />
13. Zarate Jr CA, Tohen M, Bal<strong>de</strong>ssarini RJ. Clozapine in severe<br />
mood disor<strong>de</strong>rs. J Clin Psychiatry 1995; 56:411-7.<br />
14. Zarate Jr CA, Tohen M, Banov M et al. Is Clozapine a mood<br />
stabilizer? J Clin Psychiatry 1995;56:108-12.<br />
15. Patel JK, Green AI, Banov MD et al. Clozapine use in treatment<br />
refratory mania and psychosis. In: New Research Programs<br />
and Abstracts of the 148th Annual Meeting of the<br />
American Psychiatric Association; May 1995, Miami, Abstract<br />
N.R. 478:183.<br />
16. Frankenburg FR, Zanarini MC Uses of Clozapine in nonschizophrenic<br />
patients. Harvard Rev Psychiatry 1994; 2:142-150.<br />
17. Naber D, Hippius H. The European Experience with use of<br />
Clozapine. Hosp Comm Psych August 1990; 41(8):886-90.<br />
18. Calabrese JR, Meltzer HY, Markovitz PJ. Clozapine prophylaxis<br />
in rapid cycling bipolar disor<strong>de</strong>r (letter) J Clin Psychopharmacol<br />
1991; 11(6):396-7.<br />
19. Suppes T, McElroy SL, Gilbert J, Dessain EC, Cole JO. Clozapine<br />
in the treatment of dysphoric mania. Biol Psychiatry<br />
1992; 32:270-280.<br />
20. Kimmel SE, Calabrese JR, Woyshville MJ, Meltzer HY. Clozapine<br />
in treatment-refractory mood disor<strong>de</strong>rs. J Clin<br />
Psychiatry 1994; 55(9-Suppl. B):91-3.<br />
21. Haller E, Bin<strong>de</strong>r RL. Clozapine and seizures. Am J<br />
Psychiatry 1990; 147:1069-71.<br />
22. Kando JC, Tohen M, Castillo J, Centorrino F. Concurrent use<br />
of clozapine and valproate in affective and psychotic disor<strong>de</strong>rs.<br />
J Clin Psychiatry 1994; 55(6)255-7.<br />
23. Centorrino F, Bal<strong>de</strong>ssarini RJ, Kando J et al. Serum concentrations<br />
of clozapine and its major metabolites: effects of cotreatment<br />
with fluoxetine or valproate. Am J Psychiatry<br />
1994; 151:123-5.<br />
Trabalho apresentado como poster e premiado entre os cinco<br />
melhores no IX Congresso Mineiro <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e II Jornada<br />
Su<strong>de</strong>ste <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong>, junho <strong>de</strong> 1999, Associação Médica <strong>de</strong><br />
Minas Gerais, Belo Horizonte.
Rodrigo Machado Vieira *<br />
Diogo Rizzato Lara **<br />
Diogo Souza ***<br />
Flávio Kapczinski ****<br />
Resumo<br />
TRATAMENTO COM ALOPURINOL EM PACIENTE HIPERURICÊMICO COM<br />
MANIA REFRATÁRIA: RELATO DE CASO E HIPÓTESE PURINÉRGICA<br />
ALLOPURINOL TREATMENT FOR REFRACTORY MANIA IN HYPERURICEMIC PATIENT: A<br />
CASE REPORT AND PURINERGIC HYPOTHESIS<br />
O tratamento farmacológico do transtorno <strong>de</strong> humor bipolar tem<br />
avançado significativamente com o surgimento <strong>de</strong> novas medicações<br />
com efeito estabilizador do humor. Casos refratários aos tratamentos<br />
disponíveis ainda representam um <strong>de</strong>safio à psicofarmacologia<br />
atual. Os autores <strong>de</strong>screvem um caso com uso <strong>de</strong> alopurinol, um<br />
agente hipouricêmico e com efeito anticonvulsivante, em homem<br />
com 43 anos. Este apresentava o primeiro episódio maníaco e mostrava-se<br />
refratário aos tratamentos convencionais administrados.<br />
Estava em uso <strong>de</strong> carbonato <strong>de</strong> lítio 900 mg/dia, ácido valpróico<br />
1.750 mg/dia, haloperidol 10 mg/dia e risperidona 4 mg/dia. O paciente<br />
foi avaliado <strong>de</strong> duas semanas antes do uso <strong>de</strong> alopurinol até<br />
duas semanas após. O uso <strong>de</strong> alopurinol trouxe rápida diminuição da<br />
insônia e levou ao <strong>de</strong>saparecimento dos sintomas maníacos. Nenhum<br />
efeito colateral adicional foi i<strong>de</strong>ntificado. Relatam a melhora<br />
dos sintomas com uso <strong>de</strong> alopurinol na dose <strong>de</strong> 300 mg/dia, <strong>de</strong><br />
acordo com diminuição dos valores na Escala <strong>de</strong> Young para Mania<br />
em 68% após duas semanas <strong>de</strong> seu uso. Os autores concluem que<br />
o alopurinol possa ser eficaz em episódios maníacos refratários, necessitando<br />
outros estudos para reavaliar esta questão. Além disso,<br />
abordam uma possível hipótese purinérgica para essa patologia a<br />
partir da <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>ste caso.<br />
Palavras-chave: Alopurinol; Transtorno Bipolar; Mania;<br />
Hiperuricemia; Estabilizadores <strong>de</strong> Humor; Antipsicóticos<br />
O tratamento do transtorno <strong>de</strong> humor bipolar (THB) tem<br />
avançado significativamente nas últimas décadas com a introdução<br />
do lítio, neurolépticos, carbamazepina, ácido valpróico e outros<br />
agentes. Entretanto, uma proporção <strong>de</strong> pacientes com THB<br />
não respon<strong>de</strong>m a esses fármacos. De acordo com Harrow et al,1<br />
pelo menos 30% dos pacientes em fase maníaca não respon<strong>de</strong>m<br />
ao uso do lítio, po<strong>de</strong>ndo apresentar melhora com o uso <strong>de</strong> carbamazepina<br />
e ácido valpróico. Mesmo assim, 10% a 20% <strong>de</strong>stes<br />
* Médico Psiquiatra. Mestrando em Bioquímica pela UFRGS.<br />
** Doutorando em Bioquímica pela UFRGS.<br />
*** Doutor. Professor do Instituto <strong>de</strong> Bioquímica da UFRGS.<br />
**** Doutor em Farmacologia pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Londres.<br />
Professor Adjunto pelo Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> da UFRGS.<br />
pacientes ainda permanecem refratários aos tratamentos convencionais.<br />
Várias outras medicações anticonvulsivantes têm sido usadas<br />
como estabilizadores do humor. Medicações anticonvulsivantes<br />
têm recebido atenção da literatura psiquiátrica como tratamentos<br />
eficazes para transtorno bipolar, tanto em monoterapia ou como<br />
tratamento adjuntivo. Além da carbamazepina e do ácido valpróico,<br />
medicações como gabapentina e lamotrigina surgem inseridas<br />
nesse perfil. Muitos <strong>de</strong>sses psicofármacos, previamente à confirmação<br />
<strong>de</strong> seu potencial terapêutico para uso como estabilizadores<br />
do humor, <strong>de</strong>monstraram eficácia em epilepsias refratárias. A<br />
gabapentina inclui-se <strong>de</strong>ntre os mais recentes,2 bem como a lamotrigina.3<br />
Alopurinol, fármaco com ativida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>nosinérgica, inibe a<br />
xantina-oxidase, enzima responsável pela produção <strong>de</strong> ácido úrico,<br />
sendo utilizado como agente hipouricêmico. Tem também <strong>de</strong>monstrado<br />
efeito anticonvulsivante em pacientes refratários aos<br />
tratamentos convencionais.4,5 Apresentamos aqui o caso <strong>de</strong> um<br />
paciente hiperuricêmico em primeiro episódio maníaco, com predominância<br />
<strong>de</strong> sintomas eufóricos e insônia, que apresentou remissão<br />
<strong>de</strong> sintomas maníacos com o uso <strong>de</strong> alopurinol, após inúmeras<br />
tentativas sem resposta <strong>de</strong> manejo farmacológico com estabilizadores<br />
do humor e antipsicóticos tradicionais.<br />
Caso Clínico<br />
Paciente PV, 43 anos, sexo masculino, foi hospitalizado em<br />
unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> internação psiquiátrica, com história prévia <strong>de</strong> duas<br />
internações <strong>de</strong>vido a episódios <strong>de</strong>pressivos maiores. Ao iniciarem<br />
os sintomas, não estava em uso <strong>de</strong> nenhuma medicação.<br />
Sete dias antes <strong>de</strong>sta hospitalização apresentava-se insone, eufórico,<br />
em agitação psicomotora, com fuga <strong>de</strong> idéias, taquilálico,<br />
fazendo gastos excessivos, com risos imotivados, agressivo verbalmente<br />
quando contrariado, com <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za (planejava<br />
reformar todo o fórum municipal), além <strong>de</strong> idéias valorizadas <strong>de</strong><br />
cunho paranói<strong>de</strong>. O diagnóstico foi firmado com aplicação do<br />
check-list do CID-10. Naquela data iniciou o uso <strong>de</strong> carbonato <strong>de</strong><br />
lítio 900 mg/dia e haloperidol 10 mg/dia. Nenhum sintoma involuiu<br />
com esse tratamento, efetuando-se a hospitalização já previamente<br />
indicada. Foi associado o uso <strong>de</strong> ácido valpróico na dose<br />
inicial <strong>de</strong> 500 mg/dia, até a dose <strong>de</strong> 1.750 mg/dia durante o período<br />
<strong>de</strong> 12 dias, apresentando apenas leve melhora do quadro<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Dr. Flávio Kapczinski e Dr. Rodrigo Vieira<br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> UFRGS - Hospital <strong>de</strong> Clínicas<br />
Rua Ramiro Barcelos 2350 - quarto andar<br />
Porto Alegre - RS<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):33-35 33
Tratamento com alopurinol em paciente hiperuricêmico com mania refratária: relato <strong>de</strong> caso e hipótese purinérgica<br />
paranói<strong>de</strong>. Apresentava então litemia <strong>de</strong> 0,8 mEq/l. Exames laboratoriais<br />
gerais foram normais, com exceção <strong>de</strong> elevação no ácido<br />
úrico, 9,9 mg/dl.<br />
Após três semanas <strong>de</strong> uso <strong>de</strong>ssas medicações (lítio, haloperidol,<br />
ácido valpróico), ainda apresentava sintomas maníacos proeminentes.<br />
Neste momento, foi aplicada a Escala <strong>de</strong> Young para<br />
avaliar a gravida<strong>de</strong> dos sintomas maníacos, com valores possíveis<br />
entre 0 a 60. Apresentava resultado <strong>de</strong> 35, tendo sido concomitantemente<br />
associado o uso <strong>de</strong> risperidona às medicações em uso,<br />
até a dose <strong>de</strong> 4 mg/dia. Reavaliado novamente após duas semanas,<br />
nenhuma melhora foi i<strong>de</strong>ntificada. Neste momento, apresentava<br />
ácido úrico <strong>de</strong> 9,8 mg/dl e litemia <strong>de</strong> 0,8 mEq/l, permanecendo<br />
ainda com sintomas maníacos proeminentes (escala <strong>de</strong><br />
Young para mania - 34).<br />
Foi associado alopurinol às medicações já em uso, <strong>de</strong>vido ao<br />
quadro <strong>de</strong> hiperuricemia. Passados três dias do início <strong>de</strong> uso <strong>de</strong><br />
alopurinol, paciente apresentou melhora no quadro <strong>de</strong> insônia.<br />
Com 10 dias <strong>de</strong> uso já apresentava remissão <strong>de</strong> sintomas como<br />
<strong>de</strong>lírios grandiosos, irritabilida<strong>de</strong> e agressivida<strong>de</strong> verbal. Foi reaplicada<br />
a escala <strong>de</strong> Young, apresentando <strong>de</strong>créscimo, com resultado<br />
<strong>de</strong> 11. Reavaliado laboratorialmente, paciente apresentava<br />
ácido úrico <strong>de</strong> 6,9 mg/dl. No período <strong>de</strong> sete dias, foi retirado o<br />
haloperidol e risperidona, com manutenção da melhora clínica<br />
previamente apresentada, mantendo-se estável, com importante<br />
melhora dos sintomas maníacos.<br />
Nenhuma alteração foi i<strong>de</strong>ntificada no exame neurológico. O<br />
paciente apresentava história familiar negativa para transtornos<br />
psiquiátricos.<br />
Discussão<br />
Os autores relatam um caso no qual alopurinol foi usado como<br />
tratamento adjuntivo em paciente não-responsivo ao efeito antimaníaco<br />
<strong>de</strong> medicações comumente utilizadas em transtorno <strong>de</strong><br />
humor bipolar (lítio, ácido valpróico, haloperidol e risperidona).<br />
A or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> escolha das medicações baseou-se no tempo <strong>de</strong> uso<br />
das mesmas no meio psiquiátrico como estabilizadores do humor,<br />
<strong>de</strong> acordo com a literatura. O alopurinol, extensivamente usado<br />
como agente hipouricêmico, inibe a enzima xantina-oxidase, que<br />
cataliza a transformação <strong>de</strong> hipoxantina em ácido úrico. A escolha<br />
pelo uso posterior <strong>de</strong> alopurinol explica-se <strong>de</strong>vido ao paciente<br />
apresentar quadro hiperuricêmico e à <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> seu efeito anticonvulsivante<br />
em epilepsias refratárias,4 mecanismo este proposto<br />
como base terapêutica para transtorno <strong>de</strong> humor bipolar.<br />
Os itens que mais melhoraram após a associação <strong>de</strong> alopurinol<br />
foram o sono, a fala (pressão na fala), o conteúdo do pensamento<br />
(<strong>de</strong>lírios grandiosos e paranói<strong>de</strong>s), a irritabilida<strong>de</strong>, a hipersexualida<strong>de</strong><br />
e a hiperreligiosida<strong>de</strong>. É importante <strong>de</strong>stacar que o<br />
padrão <strong>de</strong> sono foi um dos principais efeitos terapêuticos notados<br />
com o uso do alopurinol. Por fim, o presente caso levanta a questão<br />
do papel farmacológico do alopurinol em transtorno <strong>de</strong> humor<br />
bipolar. Questiona-se se este efeito prático é visto somente<br />
em casos com hiperuricemia, já que em uso clínico esta medicação<br />
é utilizada apenas como agente hipouricemiante, ou se seu<br />
efeito anticonvulsivante por si só po<strong>de</strong> representar também um<br />
efeito estabilizador do humor como outros exemplos já conhecidos<br />
(carbamazepina, ácido valpróico). No presente caso po<strong>de</strong>-se<br />
34 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):33-35<br />
levantar a hipótese que a hiperuricemia possa ser um fator relacionado<br />
a refratarieda<strong>de</strong> à resposta antimaníaca por estabilizadores<br />
<strong>de</strong> humor. A a<strong>de</strong>nosina, via receptor A1, é consi<strong>de</strong>rada um anticonvulsivante<br />
endógeno, especialmente em adultos6 e também<br />
po<strong>de</strong> atuar como neuromodulador da liberação pré-sináptica <strong>de</strong><br />
GABA no sistema nervoso central.7 O efeito anticonvulsivante da<br />
a<strong>de</strong>nosina po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado em vários artigos. De acordo<br />
com Borowicz et al, a a<strong>de</strong>nosina atua no efeito anticonvulsivante<br />
da carbamazepina, potencializando-a via receptor A1.8 A relação<br />
epilepsia, kindling (estímulo elétrico repetido em <strong>de</strong>terminada<br />
área cerebral) e comportamento é vista por Kalynchuk et al, propondo<br />
que kindling na amigdala está associado a exacerbação <strong>de</strong><br />
alteração do padrão <strong>de</strong> emocionalida<strong>de</strong> no comportamento.9<br />
Agonista do receptor <strong>de</strong> a<strong>de</strong>nosina A1 (cloroa<strong>de</strong>nosina) apresenta<br />
não só efeito anticonvulsivante, bem como previne<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> epilepsias estimuladas pelo processo <strong>de</strong><br />
kindling. Este mesmo processo é atualmente aceito como base<br />
etiológica mais provável dos episódios maníacos em transtorno<br />
<strong>de</strong> humor bipolar. Com isto, os autores <strong>de</strong>screvem uma hipótese<br />
purinérgica para o transtorno <strong>de</strong> humor bipolar, associando o<br />
mecanismo <strong>de</strong> kindling, amplamente estudado, ao potencial terapêutico<br />
<strong>de</strong> fármacos com ativida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>nosinérgica, como no caso<br />
o alopurinol, questionando a influência <strong>de</strong>sta relação numa possível<br />
etiologia para esta doença.10<br />
Summary<br />
The treatment of bipolar disor<strong>de</strong>r has advanced with introduction of<br />
new medications with mood stabilizing effects. Refractory cases remain<br />
an ongoing challenge to psychopharmacology.The authors <strong>de</strong>scribe<br />
a case of a 43-years-old man, who used allopurinol adjunctively.<br />
He was taking lithium 900 mg/day, valproate 1,750 mg/day, haloperidol<br />
10 mg/day and risperidone 4 mg/day. He presented his first manic<br />
episo<strong>de</strong>, and without remission of symptoms with the standard<br />
treatments proposed.The patient was evaluated for two weeks before<br />
and after using allopurinol. When the patient used allopurinol,<br />
insomnia and manic symptoms showed reduction. No adverse effect<br />
was observed.The authors related better results with 300 mg/day of<br />
allopurinol, according to reduction of symptoms in 68% at the Young<br />
Mania Scale after two weeks of use.The authors conclu<strong>de</strong> that allopurinol<br />
may be effective in refractory manic episo<strong>de</strong>s. Controlled<br />
studies are nee<strong>de</strong>d to clarify this point. The authors still propose a<br />
purinergic hypothesis to this case.<br />
Key-words: Allopurinol; Bipolar Disor<strong>de</strong>r; Mania; Hiperuricemia;<br />
Mood Stabilizers; Antipsychotics<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Harrow M, Goldberg JF, Grossman LS, Meltzer HY. Outcome<br />
in manic disor<strong>de</strong>rs: a naturalistic follow-up study. Arch<br />
Gen Psychiatry 1990; 47:665-1.<br />
2. The Use Gabapentin Study Group 5. Gabapentin as add-on<br />
therapy in refractory partial epilepsy: a double blind, placebo-controlled,<br />
paralel group study. Neurology 1993;<br />
43:2292-8.
3. Peck WA. Clinical pharmacology of Lamotrigine. Epilepsia<br />
1991; 30:597-5.<br />
4. Zagnoni PG, Bianchi A, Zolo P et al. Allopurinol as add-on<br />
therapy in refractory epilepsy: a double-blind placebo-controlled<br />
randomized study. Epilepsia 1994; 35(1):107-12.<br />
5. Wada Y, Hasegawa H, Nakamura M, Yamaguchi N. Anticonvulsant<br />
effect of allopurinol on hippocampal-kindled seizures.<br />
Pharmacol Biochem Behav 1992; 42(4):899-1.<br />
6. Descombes S, Avoli M, Psarropoulou C. A comparison of the<br />
a<strong>de</strong>nosine-mediated synaptic inhibition in the CA3 area of<br />
immature and adult rat hippocampus. Brain Res Dev Brain<br />
Res 1998; 110(1):51-9.<br />
7. Thomas T, Spyer KM. A novel influence of a<strong>de</strong>nosine on ongoing<br />
activity in rat rostral ventrolateral medulla. Neuroscience<br />
1999; 88(4):1213-23.<br />
8. Borowicz KK, Kleinrok Z, Czuczwar SJ. N6-2-(4-aminophenyl)ethyl-a<strong>de</strong>nosine<br />
enhances the anticonvulsive activity of<br />
antiepileptic drugs. Eur J Pharmacol 1997; 27(2-3):125-33.<br />
9. Kalynchuk LE, Pinel JP, Treit D, Kippin TE. Changes in<br />
emotional behavior produced by long-term amygdala kindling<br />
in rats. Biol Psychiatry 1997; 41(4):438-51.<br />
10. Abdul-Ghani AS, Attwell PJ, Bradford HF. The protective<br />
effect of 2-chloroa<strong>de</strong>nosine against the <strong>de</strong>velopment of<br />
amygdala kindling and on amygdala-kindled seizures. Eur J<br />
Pharmacol 1997; 326(1):7-14.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):33-35 35
“NOGLIMA”: TOC RESISTENTE COM RESPOSTA A ADIÇÃO DE RISPERIDONA<br />
RESISTANT OCD WITH RESPONSE TO ADDITION OF RISPERIDONE<br />
Rodrigo Barreto Huguet *<br />
Gustavo Fernando Julião <strong>de</strong> Souza **<br />
Resumo<br />
Os autores apresentam o caso clínico <strong>de</strong> um paciente do sexo masculino<br />
<strong>de</strong> 18 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> que há três anos vinha apresentando<br />
pensamentos intrusivos e recorrentes, alguns <strong>de</strong>les sob a forma da<br />
voz <strong>de</strong> sua mãe. Apesar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-los irracionais, vinha apresentando<br />
sob sua influência compulsões mentais e motoras, evoluindo<br />
com déficits no contato interpessoal e familiar, na higiene, alimentação<br />
e ativida<strong>de</strong>s produtivas. Movimentos estereotipados também estavam<br />
presentes.Aspectos comuns entre pacientes paranóicos e obsessivos<br />
são <strong>de</strong>scritos e o transtorno obsessivo-compulsivo po<strong>de</strong> representar<br />
um espectro que varia <strong>de</strong> acordo com o insight do paciente.<br />
Após várias tentativas terapêuticas houve melhora clínica importante<br />
do paciente com o uso <strong>de</strong> clorimipramina, 225 mg/dia, e risperidona,<br />
4 mg/dia. Alguns estudos sugerem que a adição <strong>de</strong> risperidona<br />
no tratamento po<strong>de</strong> ser útil em casos <strong>de</strong> transtorno obsessivocompulsivo<br />
resistente.<br />
Palavras-chave: Transtorno Obsessivo-Compulsivo; Transtorno<br />
Obsessivo-Compulsivo Resistente; Transtorno Obsessivo-Compulsivo<br />
Psicótico<br />
Caso Clínico<br />
Paciente encaminhado ao serviço <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital<br />
das Clínicas da <strong>UFMG</strong> pelo Hospital-Dia do Hospital Psiquiátrico<br />
Galba Velloso em 16/09/96.<br />
I<strong>de</strong>ntificação<br />
NVS é um jovem <strong>de</strong> 18 anos, leuco<strong>de</strong>rma, solteiro, sem profissão,<br />
estudou até a quinta série do primeiro grau e é natural do<br />
interior <strong>de</strong> Minas Gerais, on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>.<br />
História da moléstia atual<br />
O paciente afirma que na quinta série, quando estava com 15<br />
anos, “vinha em sua mente” durante as aulas a imagem <strong>de</strong> um colega<br />
agredindo-o. Nesse momento, sentia-se obrigado a apagar a<br />
frase que estivesse escrevendo e a se imaginar agredindo seu co-<br />
* Resi<strong>de</strong>nte do segundo ano da Residência Médica <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> do<br />
Hospital das Clínicas da <strong>UFMG</strong><br />
** Preceptor da Residência Médica em <strong>Psiquiatria</strong> do Hospital das<br />
Clínicas da <strong>UFMG</strong><br />
36 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39<br />
lega. Em outras ocasiões, relata que surgiam em sua mente imagens<br />
<strong>de</strong> vizinhos agredindo sua mãe, tendo que se imaginar batendo<br />
nos vizinhos. Nesse período, apresentou uma lesão no<br />
membro superior direito, tendo sido diagnosticada leishmaniose<br />
e se submetido a tratamento específico. Relata que seu médico o<br />
informou que po<strong>de</strong>ria ficar com lesões permanentes no membro<br />
superior e, principalmente, no nariz. Diz que sua mãe discutia<br />
com os outros sobre sua doença, mas não comentava sobre isso<br />
com ele, motivo pelo qual passou a ter medo <strong>de</strong> ser portador <strong>de</strong><br />
câncer, tendo também “ouvido falar” sobre “amputação <strong>de</strong> braço”.<br />
Des<strong>de</strong> então, começou a “imaginar” o braço amputado, tendo<br />
que, para obter alívio, repetir o movimento que estivesse fazendo<br />
no momento <strong>de</strong> maneira invertida e imaginar o braço sadio.<br />
Passou a ter pensamentos on<strong>de</strong> se via morto num caixão.<br />
Nessas ocasiões, tinha que imaginar pelo menos duas pessoas no<br />
caixão, usualmente seus irmãos, e se imaginar com o nariz sadio.<br />
Nos três anos subsequentes o paciente parou <strong>de</strong> freqüentar a escola.<br />
Fazia a matrícula e comparecia às aulas no início do ano,<br />
mas <strong>de</strong>pois interrompia, pois dizia que não “aguentava prestar<br />
atenção em nada”.<br />
Atualmente, o paciente encontra-se sem se alimentar a<strong>de</strong>quadamente,<br />
ingerindo apenas sopa. Constantemente, relata que “a<br />
voz da mãe vem à sua mente” do seguinte modo: “o N. está com<br />
câncer no nariz”. Para obter alívio, precisa repetir o movimento<br />
que estiver fazendo <strong>de</strong> maneira invertida, e repetir mentalmente<br />
a frase ao contrário: “riz-na no cer-cân com tá-es N o”. Segundo a<br />
mãe e a irmã, o paciente faz gestos estranhos ao atravessar a rua<br />
e passa gran<strong>de</strong> parte do tempo em frente ao espelho. N diz que<br />
precisa ficar olhando-se no espelho para certificar-se <strong>de</strong> que seu<br />
nariz está sadio.<br />
Procurou atendimento médico em sua cida<strong>de</strong> natal, sendo-lhe<br />
prescrito imipramina, 75 mg/d, e haloperidol, 5 mg/d. Apresentou<br />
distonia aguda, procurando atendimento no Hospital Psiquiátrico<br />
Galba Velloso.<br />
História pregressa<br />
Nega tabagismo, uso <strong>de</strong> drogas, doenças, convulsões. Etilismo<br />
ocasional.<br />
História pessoal<br />
O paciente tem oito irmãos, sendo o mais novo. O mais velho<br />
tem 36 anos. Tem relacionamento distante com a maioria dos ir-<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Residência <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong><br />
Hospital das Clínicas - <strong>UFMG</strong><br />
Av. Prof. Alfredo Balena, 110 - 7º Andar<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG
mãos, relacionando-se melhor apenas com uma irmã que resi<strong>de</strong><br />
em Belo Horizonte. Não conversa com seu pai, segundo ele, porque<br />
este agri<strong>de</strong> sua mãe. Até os 15 anos, havia repetido apenas<br />
uma vez o ano letivo, na terceira série. Nunca manteve relações<br />
sexuais, relatando apenas quatro envolvimentos amorosos fugazes<br />
com meninas.<br />
História familiar<br />
Prima com <strong>de</strong>pressão.<br />
Exame do estado mental<br />
Paciente com boas condições <strong>de</strong> higiene, com um boné<br />
na cabeça, emagrecido, pálido, semblante inexpressivo.<br />
Cooperativo, relata seus sintomas com algum constrangimento,<br />
<strong>de</strong>monstrando estranheza em relação a eles, embora evi<strong>de</strong>ncie<br />
certa indiferença afetiva. Relata pensamentos invasivos e recorrentes,<br />
além <strong>de</strong> uma voz que “vem à sua mente”, que, apesar <strong>de</strong><br />
ser a voz <strong>de</strong> sua mãe, reconhece como “produto <strong>de</strong> sua mente”;<br />
consi<strong>de</strong>ra os pensamentos como irracionais, porém, sob sua influência,<br />
apresenta compulsões mentais e motoras.<br />
Súmula psicopatológica<br />
Paciente emagrecido, cooperativo, orientado no tempo e espaço,<br />
consciência clara, normovigil, normotenaz, memória preservada,<br />
relato <strong>de</strong> pensamentos <strong>de</strong> cunho obsessivo, eutímico, crítica<br />
presente, inteligência compatível com seu grau <strong>de</strong> instrução.<br />
Evolução do caso<br />
Foi instituído tratamento com clorimipramina, até 225 mg/dia,<br />
sem melhora clínica, porém com uso irregular da medicação. Reduzida<br />
a clorimipramina para 150 mg/d e instituído flufenazina,<br />
até 4 mg/dia. Evoluiu, inicialmente, com melhora das compulsões<br />
motoras e do convívio social, passando menos tempo em frente<br />
ao espelho. Relatou melhora na alimentação, apesar <strong>de</strong> não comer<br />
carne e nem arroz porque, quando o fazia, “vinha a voz à sua<br />
mente”: “o N vai ter câncer no nariz”. Em cinco meses <strong>de</strong> tratamento,<br />
apresentou piora clínica, relatando um novo sintoma:<br />
quando olhava para algo que tivesse ângulos, como a letra M, tinha<br />
que contar todos os ângulos do objeto “9 x 9 vezes”, o que lhe<br />
consumia bastante tempo. Efetuado aumento da clorimipramina<br />
para 225 mg/dia, mantida a flufenazina a 4 mg/d. Paciente nega<br />
melhora clínica, usando regularmente a medicação, e relata novos<br />
sintomas; ao ver um toco <strong>de</strong> cigarro no chão, precisa pisá-lo e raspá-lo<br />
para trás e para frente várias vezes; ao passar por uma porta,<br />
precisa retornar e passar novamente por 12 a 18 vezes, sempre<br />
sob a influência da “voz”. Relata que, às vezes, não necessita fazer<br />
os atos que a “voz” lhe or<strong>de</strong>na, po<strong>de</strong>ndo “ficar <strong>de</strong>vendo”.<br />
Outras vezes, a “voz” lhe diz: “você po<strong>de</strong> não passar pela porta<br />
12 a 18 vezes, mas não irá se masturbar”; ou “não irá ter relações<br />
sexuais este ano”. Retirados a flufenazina e anafranil, instituído<br />
haloperidol e paroxetina, o qual foi suspenso em dois meses por<br />
baixa tolerabilida<strong>de</strong> e dificulda<strong>de</strong>s em comprar a medicação. Efe-<br />
tuado aumento do haloperidol até 12,5 mg/dia, com melhora parcial<br />
significativa da “voz” e dos atos compulsivos.<br />
Relatando que o haldol lhe causava <strong>de</strong>sânimo, paciente suspen<strong>de</strong><br />
a medicação. Retorna após dois meses com piora significativa;<br />
não tem tomado banho ou escovado os <strong>de</strong>ntes, estando com<br />
mau cheiro, irritado, não conversa com os parentes, não se alimenta<br />
<strong>de</strong> carne ou arroz. Tem “ouvido” constantemente a “voz”,<br />
sempre <strong>de</strong> sua mãe, dizendo : “você é canceroso”, ou “você vai<br />
ter câncer no nariz”, tendo que repeti-las <strong>de</strong> trás para frente por<br />
várias vezes. Relata, ocasionalmente, movimentos circulares estereotipados<br />
involuntários <strong>de</strong> seus braços, “causados por sua mente”,<br />
os quais ele tem que repetir ao contrário. Não usa o banheiro<br />
<strong>de</strong> sua casa há três meses, pois quando o usa “vem a voz à sua<br />
mente”, tendo usado o banheiro da casa da irmã. Instituído fluoxetina,<br />
20 mg/d, por um mês, sem melhora clínica. Suspensa a<br />
fluoxetina, instituída clorimipramina, aumentada até 250 mg/dia,<br />
associada a trifluorperazina, aumentada até 12,5 mg/dia. Paciente<br />
evoluiu com melhora clínica importante, passando a tomar banho<br />
e escovar os <strong>de</strong>ntes diariamente, alimentar-se <strong>de</strong> carne e arroz,<br />
mais comunicativo e sociável, passando a exercer ativida<strong>de</strong><br />
produtiva, trabalhando na mercearia <strong>de</strong> um primo. N, porém,<br />
sempre mantinha os pensamentos intrusivos sob a forma da<br />
“voz” <strong>de</strong> sua mãe e as compulsões mentais.<br />
Ocorreram pioras clínicas quando o paciente envolveu-se em<br />
complicações com a polícia após seu primo furtar um <strong>de</strong>sodorante<br />
<strong>de</strong> um supermercado e terem-se envolvido em litígio com o<br />
funcionário do caixa, foi quando o paciente, por “esquecimento”,<br />
reduziu a dose da trifluorperazina para 5 mg/dia. Nessa ocasião,<br />
<strong>de</strong>senvolveu um novo sintoma: sempre que ouvia a “voz”, o paciente<br />
tinha que cuspir, não importando on<strong>de</strong> estivesse. Algumas<br />
vezes cuspia no chão <strong>de</strong> casa ou na própria roupa. Parou <strong>de</strong> escovar<br />
os <strong>de</strong>ntes; sempre que o fazia, “surgia na sua mente” a voz da<br />
mãe dizendo: “o N está com caroço maligno <strong>de</strong>baixo do braço”<br />
(isso passou a ocorrer <strong>de</strong>pois que o paciente teve uma linfa<strong>de</strong>nomegalia<br />
na axila direita). Tinha então que repetir a palavra “maligno”<br />
ao contrário: “noglima”. Enquanto isso, não podia parar<br />
<strong>de</strong> escovar os <strong>de</strong>ntes, o que lhe tomava cerca <strong>de</strong> 10 minutos <strong>de</strong> escovação.<br />
Para evitar o trabalho, não os escovava. Quando, passando<br />
por algum lugar, “ouvia a voz”, tinha que ficar <strong>de</strong>senhando<br />
“setas” com o pé no chão, em direção contrária ao lugar.<br />
Como o uso da trifluorperazina, em doses <strong>de</strong> 12,5 mg/dia,<br />
não resultou em melhora da “voz” e das compulsões mentais,<br />
apesar <strong>de</strong> melhora comportamental, optou-se pela sua<br />
substituição por risperidona, 3 mg/dia, associada à clorimipramina,<br />
225 mg/dia. Retornou em 35 dias com melhora significativa<br />
do comportamento e cessaram as compulsões mentais; quando<br />
“ouvia a voz” não tinha mais que repetir compulsivamente palavras<br />
ao contrário, mas “somente” que andar para trás e cuspir no<br />
chão, o que, segundo o paciente, vinha atrapalhando sua locomoção<br />
(não observado ao exame).<br />
Aumentada a risperidona para 4 mg/dia. Retornou após 35<br />
dias relatando redução das “vozes” e das compulsões mentais,<br />
sem transtornos da alimentação ou higiene. Porém, com uso apenas<br />
<strong>de</strong> clorimipramina nos últimos 15 dias. Recomendamos que<br />
reiniciasse a risperidona. Retornou dois meses após, em janeiro<br />
<strong>de</strong> 1999. Por motivos financeiros havia interrompido a risperidona<br />
um mês antes e vinha em uso irregular da clorimipramina. Re-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39 37
“Noglima”: TOC resistente com resposta a adição <strong>de</strong> risperidona<br />
latava uma piora importante; tudo o que falava tinha que repetir<br />
mentalmente ao contrário; quando lia algo, tinha que ler <strong>de</strong> novo<br />
ao contrário. Não obstante, negava pela primeira vez estar sendo<br />
importunado pelas “vozes”.<br />
Resultados <strong>de</strong> exames<br />
Tomografia computadorizada <strong>de</strong> crânio, EEG, ECG, hemograma:<br />
sem alterações.<br />
Hipótese diagnóstica<br />
Transtorno obsessivo-compulsivo, forma mista com idéias obsessivas<br />
e atos compulsivos. CID-10: F42.2.<br />
Discussão<br />
Segundo Gebsattel, a luci<strong>de</strong>z com que o obsessivo-compulsivo<br />
conhece seu transtorno sem, no entanto, chegar a dominá-lo,<br />
torna patente o paradoxo <strong>de</strong> sua existência e aumenta a inquietu<strong>de</strong><br />
do interesse psiquiátrico. O doente obsessivo, segundo Jaspers,1<br />
é perseguido por idéias que lhe parecem não só estranhas,<br />
mas insensatas, e das quais, no entanto, não po<strong>de</strong> livrar-se, como<br />
se correspon<strong>de</strong>ssem à verda<strong>de</strong>. Estabelece forma especial <strong>de</strong> relação<br />
mágica com o mundo, como se o que ele faz ou pensa pu<strong>de</strong>sse<br />
impedir ou provocar algum acontecimento. Elabora, então,<br />
seus pensamentos <strong>de</strong> modo a formar um sistema <strong>de</strong> significados,<br />
e seus atos, um sistema <strong>de</strong> cerimônias e ritos, apesar <strong>de</strong> que qualquer<br />
ação que pratique lhe <strong>de</strong>ixa dúvida, obrigando-o a recomeçar<br />
do princípio. A manie <strong>de</strong> précision e a folie <strong>de</strong> doute do anancástico<br />
levaria a um transtorno, segundo Gebsattel,2 na sua própria<br />
estrutura <strong>de</strong> tempo, a uma inibição no “chegar a ser” do paciente,<br />
impossibilitado <strong>de</strong> concretizar os projetos a que se propõe.<br />
Von Gebsattel2 compara o mundo do anancástico com o do<br />
paranóico; ambos vivem em um mundo privado <strong>de</strong> inocuida<strong>de</strong>,<br />
no qual acontecimentos sem importância adquirem peculiares<br />
significados. Não existem casualida<strong>de</strong>s sem importância, mas somente<br />
intenções. O doente obsessivo, porém, reconhece como<br />
absurdo esse mundo falso que <strong>de</strong>termina sua conduta e, portanto,<br />
experimenta seu comportamento como forçado e sem liberda<strong>de</strong>.<br />
O paranóico, pelo contrário, se <strong>de</strong>ixa levar naturalmente por<br />
seus conteúdos <strong>de</strong>lirantes.<br />
Por outro lado, Souza* propõe que uma visão antropológica<br />
po<strong>de</strong>ria permitir uma melhor compreensão do adoecer psíquico<br />
e impedir seu distanciamento das formas legítimas <strong>de</strong> expressão<br />
simbólica humana. Sabe-se que em alguns povos primitivos, o temor<br />
a uma “invocação dos mortos” levava-os a evitar toda e qualquer<br />
menção ao nome do <strong>de</strong>funto, inclusive palavras ou sílabas<br />
on<strong>de</strong> houvesse alguma assonância com o nome do morto. Uma<br />
criança recém-nascida, um cadáver ou guerreiro que tivesse matado<br />
inimigos tornavam-se objetos-tabu, não po<strong>de</strong>ndo ser vistos<br />
ou tocados até que fossem concluídos os rituais <strong>de</strong> purificação,<br />
sob pena <strong>de</strong> que terríveis castigos sobrenaturais se abateriam so-<br />
* Souza, GFJ. "Consi<strong>de</strong>rações Gerais Sobre as Neuroses: Uma Visão<br />
Fenomenológico-Dinâmica" (ensaio inédito) Belo Horizonte, 1988.<br />
38 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39<br />
bre um ocasional infrator, ou mesmo sobre a tribo inteira. Desse<br />
modo, o homem primitivo via-se diante <strong>de</strong> um mundo povoado<br />
<strong>de</strong> perigos e ameaças sobrenaturais que lhe exigiam uma imediata<br />
e eficaz auto-proteção, a qual, por sua vez, consistia na realização<br />
incessante e or<strong>de</strong>nada <strong>de</strong> rituais mágicos minuciosos e complexos.<br />
Insel e Akiskal3 sugerem que a tradição <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar a síndrome<br />
obsessivo-compulsiva como “neurótica” tem levado a uma<br />
subvalorização <strong>de</strong> aspectos da síndrome que mais parecem psicóticos.<br />
Algumas das primeiras <strong>de</strong>scrições estabelecem conexões intrínsecas<br />
entre esses sintomas e estados psicóticos. Em 1660, Jeremy<br />
Taylor <strong>de</strong>screveu um paciente cujos pensamentos intrusivos<br />
ego-distônicos sobre ter pecado “evoluíram” para uma crença <strong>de</strong>lirante<br />
<strong>de</strong> que realmente havia pecado, e que a sua escrupulosida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> consciência era uma punição. Westphal dizia que a obsessão,<br />
por seu conteúdo irracional, representava uma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m<br />
fundamental do pensamento, e chamava a síndrome obsessivacompulsiva<br />
<strong>de</strong> abortive insanity. Bleuler concordava com Westphal<br />
que a síndrome obsessivo-compulsiva seria uma variante ou<br />
um pródromo da esquizofrenia. Superficialmente, ambas compartilham<br />
alguns aspectos clínicos; ocorrem em ida<strong>de</strong> precoce,<br />
são crônicas, não remitem e envolvem pensamentos intrusivos e<br />
comportamento bizarro.3<br />
Rosen,4 em um estudo <strong>de</strong> revisão <strong>de</strong> 848 pacientes esquizofrênicos,<br />
mostrou que 3,5% tinham sintomas obsessivos importantes.<br />
Estudos <strong>de</strong> follow-up <strong>de</strong> pacientes com transtorno obsessivocompulsivo<br />
mostraram que 20% <strong>de</strong>senvolveram sintomas psicóticos,<br />
apesar <strong>de</strong> ser extremamente raro o preenchimento <strong>de</strong> critérios<br />
diagnósticos para esquizofrenia. Insel e Akiskal3 relatam que<br />
a mudança <strong>de</strong> uma obsessão para um <strong>de</strong>lírio ocorre quando a resistência<br />
interna contra as idéias obsessivas é abandonada e o insight<br />
é perdido. Isso po<strong>de</strong>ria ocorrer <strong>de</strong> duas formas; uma forma<br />
afetiva, quando o medo <strong>de</strong> contaminação é substituído por uma<br />
culpa <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong> que o paciente contaminou ou po<strong>de</strong> contaminar<br />
outras pessoas, e uma forma paranói<strong>de</strong>, quando dúvidas sobre<br />
haver cometido algum ato repreensível são substituídas pelo <strong>de</strong>lírio<br />
<strong>de</strong> que o paciente estaria sendo perseguido por realmente haver<br />
cometido atos con<strong>de</strong>náveis. Em alguns pacientes os pensamentos<br />
repugnantes po<strong>de</strong>m ter um caráter tão intrusivo que são<br />
<strong>de</strong>scritos como vozes acusatórias internas, repetitivas e semelhantes<br />
ao pensamento obsessivo, po<strong>de</strong>ndo ser melhor <strong>de</strong>scritas, segundo<br />
Insel e Akiskal,3 como “pseudo-alucinações”. Esses mesmos<br />
autores esclarecem que, assim como ocorre nos transtornos<br />
<strong>de</strong> humor, sintomas psicóticos po<strong>de</strong>m sobrevir durante um transtorno<br />
obsessivo-compulsivo, não significando diagnóstico <strong>de</strong> esquizofrenia,<br />
mas psicoses afetivas ou paranói<strong>de</strong>s reativas e geralmente<br />
transitórias. Além disso, o transtorno obsessivo-compulsivo<br />
representaria um espectro variando segundo o insight do paciente.<br />
Aqueles casos mais severos, no fim do espectro, po<strong>de</strong>riam<br />
ser melhor <strong>de</strong>scritos como “psicose obsessivo-compulsiva”.3<br />
Lembramos que Hollan<strong>de</strong>r5 sustenta amplo “espectro obsessivocompulsivo”<br />
que abrange vários outros transtornos, nos quais<br />
pensamentos obsessivos e rituais compulsivos se manifestam.<br />
Cerca <strong>de</strong> 40% dos pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo,<br />
são resistentes ao tratamento convencional com inibidores<br />
<strong>de</strong> recaptação da serotonina. A terapia comportamental tem<br />
papel adjuvante importante no tratamento, principalmente em
pacientes com predomínio <strong>de</strong> rituais compulsivos. A psico-cirurgia<br />
po<strong>de</strong> ser indicada em casos graves <strong>de</strong> TOC refratário, com<br />
melhora <strong>de</strong> até 25% a 30% dos pacientes.6<br />
Em revisão da literatura (MEDLINE, últimos 10 anos), encontramos<br />
cinco artigos nos quais a risperidona foi utilizada como<br />
adjuvante aos inibidores da recaptação da serotonina em pacientes<br />
com TOC refratário (não fazem referência à presença ou não<br />
<strong>de</strong> sintomas psicóticos).7-11 Em dois <strong>de</strong>sses estudos,7,8 o número<br />
<strong>de</strong> pacientes era muito pequeno (três e cinco pacientes com TOC<br />
refratário), mas 100% tiveram melhora com a adição <strong>de</strong> risperidona.<br />
Em um estudo <strong>de</strong> Saxena9 <strong>de</strong> 1996, 14 <strong>de</strong> 16 pacientes com<br />
TOC refratário (87%) tiveram melhora nos sintomas obsessivocompulsivos<br />
após três semanas da adição <strong>de</strong> risperidona ao tratamento,<br />
com dose média <strong>de</strong> 2,75 mg/dia. Ravizza10 publicou um<br />
trabalho em que sete <strong>de</strong> 14 pacientes refratários tiveram melhora<br />
clínica após a adição <strong>de</strong> risperidona a 150 mg <strong>de</strong> clomipramina.<br />
Todos os artigos sugerem que a adição <strong>de</strong> risperidona po<strong>de</strong><br />
ser útil em pacientes com TOC refratário. Andra<strong>de</strong>12 argumenta<br />
que os mecanismos <strong>de</strong> ação dos ISRS e da risperidona se oporiam<br />
apenas aparentemente, no sentido <strong>de</strong> que os primeiros liberam<br />
serotonina e o último bloqueia os receptores serotoninérgicos.<br />
Conforme essa concepção, a risperidona <strong>de</strong>veria agravar os sintomas<br />
obsessivo-compulsivos. Não obstante, os ISRS levam a uma<br />
down regulation dos receptores serotoninérgicos, sendo que este<br />
efeito po<strong>de</strong>ria ser potencializado, agora sim, através do bloqueio<br />
pela risperidona. Situação semelhante ocorreria na transmissão<br />
dopaminérgica, nas quais esses medicamentos também atuam.<br />
Há, <strong>de</strong> fato, relatos <strong>de</strong> caso evi<strong>de</strong>nciando piora dos sintomas obsessivos<br />
com o uso <strong>de</strong> antipsicóticos atípicos, porém isso parece<br />
ocorrer com muito mais freqüência na esquizofrenia com sintomas<br />
obsessivos do que em pacientes com TOC primário.13<br />
Summary<br />
N is an 18-year-old man who has presented invasive and recurrent<br />
thoughts for three years. In some of them his mother’s voice<br />
appears. Although consi<strong>de</strong>ring them irrational, he has un<strong>de</strong>r its influence.<br />
Mental and motor compulsions, with <strong>de</strong>crease in interpersonal<br />
contact, hygiene care and occupational functioning were<br />
observed. Stereotypic movements are also present. Common aspects<br />
between paranoic and obsessive patients are <strong>de</strong>scribed and<br />
the obsessive-compulsive disor<strong>de</strong>r may represent a spectrum that<br />
varies according to the patient's insight. After several therapeutic efforts<br />
there was a clinical improvement of the patient with clorimi-<br />
pramine 225 mg a day and risperidone 4 mg a day. Some studies suggest<br />
that the addition of risperidone could be useful in patients with<br />
resistant obsessive-compulsive disor<strong>de</strong>r.<br />
Key-words: Obsessive-compulsive Disor<strong>de</strong>r; Resistent Obsessive<br />
compulsive Disor<strong>de</strong>r; Psicotic Obsessive-compulsive Disor<strong>de</strong>r<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Von Gebsattel F. Antropologia Médica. Madrid: Ediciones<br />
Rialp AS, 1966:105-69.<br />
2. Jaspers, K. Psicopatologia Geral. 2ª Ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro, São<br />
Paulo Atheneu, 1965:344-7.<br />
3. Insel TR, Akiskal HS. Obsessive-compulsive disor<strong>de</strong>r with<br />
psychotic features: a phenomenologic analysis. Am J<br />
Psychiatry 1986; 143:1527-33.<br />
4. Rosen I. The clinical significance of obsessions in schizophrenia.<br />
J Ment Sci 1957; 103:773-785.<br />
5. Hollan<strong>de</strong>r E. Obsessive-compulsive related disor<strong>de</strong>rs. American<br />
Psychiatric Press, 1993.<br />
6. Kaplan HI, Sadock BJ. Comprehensive textbook of psychiatry.<br />
6ª Ed. Baltimore: Willians & Wilkins, 1995:1218-27.<br />
7. Jacobsen FM. Risperidone in the treatment of affective illness<br />
and obsessive-compulsive disor<strong>de</strong>r. J Clin Psychiatry<br />
1995; 56:423-9.<br />
8. McDougle CJ, Fleischmann RL, Epperson CN, Wasylink S,<br />
Leckman JF, Price LH. Risperidone addition in fluvoxaminerefractory<br />
obsessive-compulsive disor<strong>de</strong>r: three cases. J Clin<br />
Psychiatry 1995; 56:526-8.<br />
9. Saxena S, Wang D, Bystritsky A, Baxter Jr LR. Risperidone<br />
augmentation of SRI treatment for refractory obsessive-compulsive<br />
disor<strong>de</strong>r. J Clin Psychiatry 1996; 57:303-6.<br />
10. Ravizza L, Barzega G, Bellino S, Bogetto F, Maina G. Therapeutic<br />
effect and safety of adjunctive risperidone in refractory<br />
obsessive-compulsive disor<strong>de</strong>r (OCD). Psychopharmacol<br />
Bull 1996; 32:677-82.<br />
11. Stein DJ, Bouwer C, Hawkridge S, Emsley RA. Risperidone<br />
augmentation of serotonin reuptake inhibitors in obsessivecompulsive<br />
and related disor<strong>de</strong>rs. J Clin Psychiatry 1997;<br />
58:119-22.<br />
12. Andra<strong>de</strong> C. Obsessive-compulsive symptoms with risperidone<br />
(Dr. Andra<strong>de</strong> replies). J Clin Psychiatry 1999; 60:261-2.<br />
13. Saxena S. Obsessive-compulsive symptoms with risperidone<br />
(Dr. Saxena replies). J Clin Psychiatry 1999; 60:262.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39 39
MUNCHAUSEN'S SYNDROME: A CASE BEGINNING IN EARLY CHILDHOOD<br />
AND THAT CHANGED FROM ACUTE ABDOMINAL TO NEUROLOGICAL TYPE<br />
SÍNDROME DE MUNCHAUSEN: UM CASO COM INÍCIO NA INFÂNCIA E QUE<br />
MUDOU DO TIPO ABDOMINAL AGUDO PARA O NEUROLÓGICO<br />
Winfred Barnett *<br />
Summary<br />
A rare case of Munchausen's syndrome beginning in early childhood<br />
is <strong>de</strong>scribed.The diagnosis of Munchausen's syndrome was ma<strong>de</strong> at<br />
the age of 29 years, after the symptoms had changed from acute<br />
abdominal to neurological complaints, with feigned loss of consciousness,<br />
first ascribed to an encephalitis. Insight into the psychopathology<br />
of this patient is given by his biography, by assessment<br />
of a psychotherapist, who had treated him some years before, and<br />
by his observed profile in some psychological tests.<br />
Key-words: Artefactual Disease - Factitious Disease - Self-induced<br />
Illness - Munchausen's Syndrome<br />
Since the <strong>de</strong>scription of Munchausen's syndrome in 1951,<br />
over 100 similar cases have been reported,1,2 The essential feature<br />
of this chronic disor<strong>de</strong>r, now termed factitious disor<strong>de</strong>r with predominantly<br />
physical signs and symptoms,3 is the intentional production<br />
of physical symptoms of a dramatic and emergency<br />
nature, leading to multiple hospitalizations and invasive medical<br />
procedures without result. The diagnosis is frequently missed,<br />
because the patients often leave hospital after a short time against<br />
medical advice. In the original <strong>de</strong>scription, Asher4 distinguished<br />
three subtypes: the acute abdominal type; the haemorrhagic type<br />
who typically bleed from lungs or stomach; and the neurological<br />
type who present with paroxysmal headache, loss of consciousness,<br />
or peculiar fits. According to Poeck,5 the character of the<br />
symptoms is usually constant. Because the patients are poorly<br />
motivated to accept and follow through with psychiatric treatment,<br />
little is known about the psychogenesis of Munchausen's<br />
syndrome.<br />
Case Report<br />
A 29-year-old man sud<strong>de</strong>nlly collapsed, crying: “Help, I can't<br />
see any longer!” In the hospital 20 km away the patient showed<br />
continuous psychomotor restlessness and did not react when spoken<br />
to. He was thought to be stuporous and was transferred to<br />
Trabalho adaptado do original "Further notes on Munchausen’s<br />
syndrome: a case report of a change from acute abdominal to neurological<br />
type", <strong>de</strong> Barnett W, Vieregge P e Jantschek G. Journal of<br />
Neurology 1990; 237:486-488. Steinkopff Verlag/ Springer Verlag.<br />
Publicado com autorização.<br />
* Oberarzt at the Psychiatrische Universitätsklinik Hei<strong>de</strong>lberg<br />
40 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):40-42<br />
the intensive care unit of the nearest university hospital. By ECG<br />
he was judged to have an intracardiac thrombus so that left ventricular<br />
angiography and computed tomography (CT) were performed<br />
without finding any abnormality. In the cranial CT the<br />
radiologist could not “exclu<strong>de</strong> brain oe<strong>de</strong>ma”. Subsequent right<br />
vertebral artery angiography exclu<strong>de</strong>d basilar thrombosis. Finally<br />
an iatrogenically haemorrhagic lumbar puncture showed<br />
97/mm_ cells with a slight increase in protein. All these procedures<br />
were carried out within 10th of admission, the patient<br />
having been sedated by a cumulative dose of 100 mg diazepam<br />
and 20 mg midazolam. EEG the following day showed movement<br />
artefacts and apart from some 8 Hz alpha waves there were many<br />
theta waves, so that finally an encephalitis was suggested. Focal<br />
symptoms never occurred, but the patient was somnolent.<br />
Routine laboratory analysis as well as serological and CSF search<br />
for infectious disease gave normal results. Another traumatically<br />
haemorrhagic lumbar puncture showed 57/mm cells_ with normal<br />
cell composition and protein and further EEG investigations<br />
indicated a slow alpha rhythm in addition to signs of drowsiness.<br />
After six days the patient left the hospital at his own request.<br />
During the following months he was sent by his general practitioner<br />
to our neurological outpatient service several times. He<br />
complained about a “very bad headache”, which he assigned to<br />
the previous lumbar punctures, although on the other hand he<br />
preten<strong>de</strong>d not to remember these. Smiling strangely and knowingly,<br />
he stated: “As if somebody knocks you on the head with a<br />
sledgehammer, it starts in the neck and then moves to the forhead<br />
and across the whole back, as if you back was torn open with<br />
barbs.” Neurological and CSF examination. EEG, and cranial CT<br />
were repeatedly normal. Mental examination revealed <strong>de</strong>monstrative<br />
behaviour and a low <strong>de</strong>gree of intelligence, but no evi<strong>de</strong>nce<br />
of psychotic symptoms.<br />
Inquires now disclosed at least 36 hospitalizations in eight<br />
<strong>de</strong>partments of five different hospitals. Medical documents or<br />
discharge reports of 21 of them were received. His first admission<br />
had taken place at the age of four years with a suspected meningitis.<br />
However, two days later the child had been discharged free<br />
of symptoms. The subsequent admissions had taken place on<br />
average every six months until the age of 26; all were due to acute<br />
abdominal complaints, particularly gastric and umbilical colics.<br />
Haemorrhagic diarrhoea, reported every time, could never be<br />
confirmed; <strong>de</strong>spite frequent and repeated application of many<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Psychiatrische Universitätsklinik<br />
Voßstrasse 4<br />
D-60115 Hei<strong>de</strong>lberg<br />
Fe<strong>de</strong>ral Republic of Germany
diagnositc methods used in roentgenology, endoscopy, biopsy<br />
and laboratory chemistry an organic disease was never found. On<br />
each admission he was free of symptoms a few days later; in adulthood<br />
he always left the hospital very soon, against medical advice.<br />
Since the age of 22, a severe abuse of analgesics was documented;<br />
on admissions at age 25 and 26 the patient presented with druginduced<br />
ileus, which disappeared after he stopped the selfadministration<br />
of drugs. Reasons for the repeated hospital treatments<br />
were the always very dramatic symptoms on admission, but<br />
also frequent changes of physicians. Furthermore, their preliminary<br />
diagnoses of chronic remitting diseases (colitis ulcerosa or<br />
Crohn's disease) were contributive, although the patient knew<br />
they were false.<br />
Detailed history of the admission due to suspected encephalitis<br />
revealed the following. That evening he and his wife were to<br />
visit some friends of hers whom the thought to be very disagreeable.<br />
When his wife phoned and asked him to meet her in the car<br />
as arranged, in or<strong>de</strong>r to pay the visit, he complained about diarrhoea,<br />
but his wife did not believe him, whereupon he cried:<br />
“Help, I can't see any longer!” Reevaluation showed that pleocytosis<br />
and increased protein in the CSF were caused by haemorrhagic<br />
lumbar puncture and that the EEG changes were due to<br />
clou<strong>de</strong>d consciousness caused by sedatives. On the basis of the<br />
above history, the diagnosis of Munchausen's syndrome was<br />
ma<strong>de</strong>.<br />
Personal <strong>de</strong>velopment<br />
The patient's records indicated that he had grown up in a<br />
superficially intact family and had atten<strong>de</strong>d a school for educationally<br />
subnormal children. At age 12 he had told a psychologist<br />
that he thought his parents rejected him. At that time, the<br />
umbilical colics were interpreted as symptoms of the search for<br />
contact and as expression of feelings of displeasure. At age<br />
15 he started work as an unskilled labourer, frequently changed<br />
jobs afterwards, and had several periods of unemployment. At<br />
age 20 he married; in two medical reports his wife was <strong>de</strong>scribed<br />
as being dominant and bossy. From age 18 to 22 consi<strong>de</strong>rable<br />
alcohol abuse was documented. At age 21 he wrote to the head of<br />
a psychosomatic clinic: “My parents constantly treat me as if I were<br />
a child and all important <strong>de</strong>cisions are taken by them. If I try to get<br />
my own way, my parents threaten to commit suici<strong>de</strong>... My convulsions<br />
occur especially after arguments with my parents...<br />
Furthermore, I was an unwanted child and had to witness how my<br />
brother was preferred...”<br />
The patient stopped several outpatient psychotherapy courses<br />
soon after starting them, only to be admitted to the hospital as an<br />
emergency shortly after. At age 26 hospital admissions ceased for<br />
a period of three years after he had taken a permanent position as<br />
an unskilled labourer. The head of the company had been<br />
acquainted with the patient and his problems since early childhood;<br />
the foreman was his father. His present family doctor<br />
judged the patient to be “hardly capable of living on his own and<br />
needing the supervision of parents and wife”. The last consulted<br />
psychosomatic doctor characterized him as follows: “He showed<br />
addictive behaviour with wishes for plenty of strong medication<br />
that were expressed as imperative requests for direct and immediate<br />
help. If his wishes were not fulfilled, his helpless and <strong>de</strong>manding<br />
behaviour turned immediatly into aggressive and <strong>de</strong> preciative<br />
acting out. In <strong>de</strong>pth psychological terminology he can be <strong>de</strong>scribed<br />
as having a low selfesteem and is in constant danger of <strong>de</strong>scompensating<br />
with paranoid cathexis of his own body. Motivation for<br />
longterm psychotherapy was very poor, since his possibilities of<br />
obtaining relief from inner tensions through acting out were too<br />
numerous. Family therapy failed because it brought about shifts in<br />
the marital and familial balance, whereupon the patient reacted<br />
with a distinct <strong>de</strong>terioration of symptoms”.<br />
Psychological testing<br />
In the Hamburg-Wechsler-Intelligenztest für Erwachsene<br />
(Hamburg- Wechsler Inntelligence Test for Adults) our patient<br />
achieved a total IQ of 79 (verbral IQ 74, performance IQ 85).<br />
With respect to the test profile a subaverage intellectual capacity<br />
with lack of educa-tion close to intellectual ina<strong>de</strong>quacy was<br />
observed (verbal part), giving no indication of an acquired organic<br />
impairment due to cerebral pathology (performance part).<br />
Consi<strong>de</strong>ring the maximum stanine value of 1 on scale 9 (the socalled<br />
lie score) and the normal values on all other scales of the<br />
Freiburg Persönlichkeits-Inventar (Freiburg Personality Inventory)<br />
the only interpretation of these results is that the patient intentionally<br />
gave wrong answers. In the Minnesota Multiphasic<br />
Personality Inventory (MMPI), however, he had normal values on<br />
the validity scales, thus allowing evaluation. The T-scores of the<br />
scales “hypochondria” and “hysteria” were 75 and 71 respectively,<br />
the T-scores of all other scales lying between 45 and 60.<br />
Discussion<br />
Psychiatric patients not suffering from Munchausen's syndrome<br />
but showing the same MMPI profile as our patient are<br />
well known to present somatic complaints without organic reasons.<br />
They mostly receive a neurotic (hysterical, hypochondriacal)<br />
diagnosis. Their un<strong>de</strong>rlying personality is <strong>de</strong>scribed as<br />
“rather immature, egocentric and selfish. They are insecure and<br />
have a strong need for attention, affection and sympathy. They<br />
are very <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt, but they are uncomfortable with the <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncy<br />
and experience conflict because of it. They pre-sent themselves<br />
as normal, responsible without fault... by making excessive<br />
use of <strong>de</strong>nial, projection and ratio-nalization. They prefer<br />
medical explanations for their symptoms, and they lack insight<br />
into psychological factors un<strong>de</strong>rlying their symptoms. Because of<br />
their unwillingness to acknowledge psychological factos, they are<br />
difficult to motivate in traditional psychotherapy...”.6 This<br />
abstract <strong>de</strong>scription of a test profile corresponds nearly perfectly<br />
to the earlier written self-portrait, biography and present way-of<br />
life of our patient as well as with the judgements of consulted<br />
physicians and our own assessment.<br />
Remarkably, our patient started his career at the age of four<br />
years. Except for the very few cases with socalled Munchausen by<br />
proxy,7,8 which means that parents feign or cause illness in their<br />
children in or<strong>de</strong>r to obtain medical attention for them, we have<br />
not found a documented case beginning in early childhood.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):40-42 41
Munchausen's syndrome: a case beginning in early childhood and that changed from acute abdominal to neurological type<br />
Whether our patient has begun as a Munchausen by proxy can<br />
neither be proven nor exclu<strong>de</strong>d. In eitheir case producing the<br />
symptoms of severe illness has become a stable, lifelong persisting<br />
pattern of behaviour.<br />
The problems of classifying such cases arises from the <strong>de</strong>gree<br />
of voluntary control of the behaviour the patient is assumed to<br />
have. For an individual case, this can rarely be <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>d, because<br />
the sense of voluntary control is subjective and can only be<br />
inferred by the outsi<strong>de</strong> observer. In our case, there is evi<strong>de</strong>nce of<br />
much voluntary control, as for example his wan<strong>de</strong>ring from doctor<br />
to doctor to prevent <strong>de</strong>tection, or giving false diagnoses, or<br />
exaggerating and feigning the history of his symptoms. The actual<br />
change from acute abdominal to neurological type appeared<br />
when his wife had assumed his wellknown abdominal pain to be<br />
feigned. He was obviously mainly motivated by avoiding something<br />
unpleasant and possibly by attracting attention and care.<br />
His behaviour in this situation was, however, certainly more complex<br />
than that of a pure malingerer. Unconscious mechanisms are<br />
undoubtedly involved, but they are not, by <strong>de</strong>finition, consciously<br />
produced. From this point of view it has been argued9 that<br />
even in cases of Munchausen's syndrome, the patient may be<br />
un<strong>de</strong>r the control of psychodynamic forces of which he is not<br />
fully conscious. It seems, in<strong>de</strong>ed, that our patient has intentionally<br />
produced his symptoms, but with increasing pressure of the situation<br />
interacting with diagnostic emergency measures, he was<br />
no longer able to control his behaviour. From this point of view,<br />
it seems that physicians contributed to his actual psychodynamic<br />
situation.<br />
Resumo<br />
Um caso raro da síndrome <strong>de</strong> Munchausen com início na infância é<br />
<strong>de</strong>scrito. O diagnóstico da síndrome <strong>de</strong> Munchausen foi realizado na<br />
42 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):40-42<br />
ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 29 anos, após os sintomas terem mudado <strong>de</strong> abdominais<br />
agudos para neurológicos, com simulada perda <strong>de</strong> consciência inicialmente<br />
atribuída a encefalite. Insight na psicopatologia <strong>de</strong>ste paciente<br />
é obtido através <strong>de</strong> sua biografia, <strong>de</strong> avaliação <strong>de</strong> um psicoterapêuta,<br />
que o tratou alguns anos antes, e <strong>de</strong> seu perfil observado em alguns<br />
testes psicológicos.<br />
Palavras-chave: Transtorno Factício; Doença Auto-induzida;<br />
Síndrome <strong>de</strong> Munchausen<br />
References<br />
1. Enoch MD, Trethowan WH. Uncommon psychiatric syndromes.<br />
Bristol:Wright, 1979.<br />
2. Ford CV. The somatizing disor<strong>de</strong>rs. Amsterdam:<br />
Elsevier,1983.<br />
3. Diagnostic and statistical manual of mental disor<strong>de</strong>rs. 4th ed.<br />
Washington, DC: American Psychiatric Association,<br />
1994:471-5.<br />
4. Asher R. Munchausen's syndrome. Lancet 1951; I:339-46.<br />
5. Poeck K. Psychogene Verhaltensweisen und Symptome. In:<br />
Hopf HC, Poeck K, Schliack H. eds. Neurologie in Praxis und<br />
Klinik. vol. III. Stuttgart: Thieme, 1986:8.<br />
6. Graham JR. The MMPI: a practical gui<strong>de</strong>. New York:<br />
Oxford University, 1977:65-66<br />
7. Lee DA. Munchausen syndrome in proxy by twins. Arch Dis<br />
Child 1979; 54:646-7.<br />
8. Meadow R. Munchausen syndrome by proxy. The hinterland<br />
of child abuse. Lancet 1977; II:343-5.<br />
9. Scully RE, Mark EJ, NcNeely BO. Case Records of The<br />
Massachusetts General Hospital. N Engl J Med 1984;<br />
311:336-8.
CONSIDERING THE SLEEP APNEA HIPOPNEA RERA SYNDROME IN THE<br />
DIFFERENTIAL DIAGNOSE OF PSYCHIATRIC DISORDERS<br />
CONSIDERANDO A SÍNDROME DE APNÉIA HIPOPNÉIA ARER NO<br />
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DE TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS<br />
Dirceu <strong>de</strong> Campos Valladares Neto*<br />
Summary<br />
It is not rare to see patients complaining to the psychiatrist of<br />
<strong>de</strong>pression, insomnia, apathy, lack of motivation and hypersomnia<br />
who do not respond to anti<strong>de</strong>pressants (AD). Obstructive sleep<br />
apnea hypopnea syndrome (OSAHS) with respiratory effort-related<br />
arousal (RERA) is frequently not consi<strong>de</strong>red in the differential diagnosis<br />
or as a second diagnostic, which can lead to frustration to both<br />
doctors and patients. OSAHS is not a rare condition, affecting 4% to<br />
6% of the general population. In Brazil six to eight million people suffer<br />
from OSAHS, most of them not diagnosed or misdiagnosed and<br />
incorrectly treated. OSAHS is also associated with infarct of myocardial,<br />
strokes, hypertension, a seven fold risk in automobile acci<strong>de</strong>nts<br />
and represents a social bur<strong>de</strong>n.The purpose of presenting this case<br />
is to call attention for OSAHS in the psychiatric population due to a<br />
ten<strong>de</strong>ncy to obesity for using neuroleptics and AD, and due to the<br />
frequent use of benzodizepines, which are prohibited to OSAHS<br />
patients for relaxing the muscles during sleep and worsening the<br />
condition. Herein we present a case history of an 56 years old<br />
OSAHS patient who already had stroke, infarct of myocardial and<br />
suffered somnolence during the day, lack of motivation, apathy,<br />
<strong>de</strong>pression, initial insomnia and memory difficulties.<br />
Key-words: OSAHS, Depression, RERA, Insomnia,<br />
Benzodiazepines, AD, Apnea, Anxiety, Dementia.<br />
Case history<br />
A 63-year-old retired lawyer presented at our sleep disor<strong>de</strong>r<br />
center complaining excessive daytime sleepiness that appeared to<br />
be related to his very disturbed nighttime sleep. He weighed<br />
74 kilos, which was a normal weight for his height and age but he<br />
was a loud snorer and his wife noticed “apneic episo<strong>de</strong>s” during<br />
sleep. He already had a stroke five years ago which reduced<br />
the movements of his right arm. He also had a myocardial<br />
infarct three years ago. Lack of motivation, apathy, <strong>de</strong>pression<br />
and memory difficulties were also present. He fulfilled the diagnostic<br />
criteria of major <strong>de</strong>pression episo<strong>de</strong> (DSM-IV) and was in<br />
use of AD (maprotiline, 75 mg/day) and a hypnotic (flurazepan,<br />
30 mg/day).<br />
He un<strong>de</strong>rwent all-night polysomnography, which showed a<br />
total sleep time of only 204 minutes with a sleep efficiency of<br />
* Psychiatrist, sleep disor<strong>de</strong>rs clinican, member of the American<br />
Aca<strong>de</strong>my of Sleep Medicine.<br />
56%. He also displayed breathing disturbances during sleep. It<br />
was scored 35 apneic/ hipopneic episo<strong>de</strong>s per hour, his <strong>de</strong>ssaturation<br />
oxigen level was at the range of 64% and 95%, with a<br />
mean of 89 ± 6,7%. He presented more than 370 arousals during<br />
the night that were evi<strong>de</strong>nt on the electroencephalogram during<br />
sleep (Figure 1).<br />
This findings led to a diagnosis of obstructive sleep hipopnea<br />
apnea syndrome. The patient started to use a CPAP (continuous<br />
positive airway pressure <strong>de</strong>vice) during sleep time which dramatically<br />
improved the quality of his nighttime sleep (Figure 2) and<br />
diminished his ten<strong>de</strong>ncy for daytime sleepiness. It also improved<br />
his mood, his level of energy and his blood pressure, <strong>de</strong>creasing<br />
its rates. He also noticed improvement of his memory skills.<br />
Discussion<br />
Sleep-related breathing disor<strong>de</strong>rs (SRBD)- breathing disor<strong>de</strong>rs<br />
that are induced or exacerbated during sleep - are very common.1,2<br />
There is a positive relation between SRBD and obesity<br />
and between SRBD and aging, although SRBD can occur in those<br />
not obese and in all ages.1 It occurs twice in man compared to<br />
woman but this gen<strong>de</strong>r difference tends to be reduced or even<br />
matched within el<strong>de</strong>rly people. Mood swings, <strong>de</strong>pression, apathy,<br />
anxiety, difficulty in beginning sleep, insomnia in general and irritability<br />
are commonly seen in such patients.2<br />
Although many different respiratory disor<strong>de</strong>rs are affected by<br />
sleep, the three main syndromes associated with sleep are<br />
obstructive sleep apnea syndrome, central sleep apnea syndrome<br />
and the central alveolar hypoventilation syndrome.<br />
The obstructive sleep apnea syndrome is characterized by<br />
upper airway obstruction that occurs during sleep, leading to a<br />
change in the arterial blood gases. Hypoxemia produces cardiac<br />
effects and disrupts sleep, leading to the <strong>de</strong>velopment of excessive<br />
sleepiness during the day. Insomnia at the beginning or<br />
during sleep can also be present, mainly in the aged (Table 1).3<br />
Central sleep apnea syndrome is characterized by cessation of<br />
breathing that occurs without upper airway obstruction and leads<br />
to blood gas changes that also can produce disrupted sleep and<br />
daytime sleepiness. Patients with a pure prepon<strong>de</strong>rance of central<br />
events in the absence of Cheyne-Stokes breathing are sufficiently<br />
rare, so that the existence of idiopathic central sleep apnea syndrome<br />
as a separate clinical entity is open to question. In reality<br />
most patients present with a combination of obstructive and central<br />
events with the former predominating.3<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Clínica do Sono<br />
Alameda do Ingá 780<br />
34000-000 - Nova Lima - MG<br />
E-mail: dirceu@clinicadosono.com.br<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):43-45 43
Consi<strong>de</strong>ring the sleep apnea hipopnea syndrome in the differential diagnose of psychiatric disor<strong>de</strong>rs: report of a case<br />
Table 1 - OSAHS Diagnostic Criteria3<br />
The individual must fulfill criterion A or B, plus criterion C.<br />
A. Excessive daytime sleepiness that is not better explained by other factors;<br />
B. Two or more of the following that are not better explained by other factors:<br />
• choking or gasping during sleep,<br />
• recurrent awakenings from sleep<br />
• unrefreshing sleep,<br />
• daytime fatigue,<br />
• impaired concentration; and/or<br />
C. Overnight monitoring <strong>de</strong>monstrates five or more obstructed breathing<br />
events per hour during sleep. These events may inclu<strong>de</strong> any combination of<br />
obstructive apneas/hypopneas or respiratory related arousals.<br />
Table 2 - Severity criteria for OSAHS3<br />
Severity of the OSAHS has two components: severity of daytime sleepiness<br />
and of overnight monitoring. A severity level should be specified for both components.<br />
The rating of severity for the syndrome should be based on the most<br />
severe component.<br />
A. Sleepiness<br />
1. Mild: unwanted sleepiness or involuntary sleep episo<strong>de</strong>s occur<br />
during activities that require little attention. Examples inclu<strong>de</strong> sleepiness<br />
that is likely to occur while watching television, reading, or<br />
traveling as a passenger. Symptoms produce only minor impairment of<br />
social or occupational function.<br />
2. Mo<strong>de</strong>rate: unwanted sleepiness or involuntary sleep episo<strong>de</strong>s occur<br />
during activities that require some attention. Examples inclu<strong>de</strong> uncontrollable<br />
sleepiness that is likely to occur while attending activities such<br />
as concerts, meetings or presentations. Symptoms produce mo<strong>de</strong>rate<br />
impairment of social or occupational function.<br />
3. Severe: unwanted sleepiness or involuntary sleep episo<strong>de</strong>s occur<br />
during activities that require more active attention. Examples inclu<strong>de</strong><br />
uncontrollable sleepiness while eating, during conversation, walking,<br />
or driving. Symptoms produce marked impairment in social or occupational<br />
function.<br />
B. Sleep Related Obstructive Breathing Events<br />
1. Mild: 5 to 15 events per hour<br />
2. Mo<strong>de</strong>rate: 15 to 30 events per hour<br />
3. Severe: greater than 30 events per hour<br />
Central alveolar hypoventilation syndrome is due to shallow<br />
breathing that occurs during sleep, associated with blood gas<br />
changes. Typically there is the <strong>de</strong>velopment of daytime sleepiness<br />
but sometimes a complaint of insomnia.<br />
Our patient did not present a shallow breathing as in the central<br />
alveolar hypoventilation syndrome, which occurs mostly in obese<br />
patients. Central sleep apnea syndrome are seen mostly as a secondary<br />
event of the obstructive sleep apnea hipopnea RERA syndrome.<br />
In our patient case the criteria for obstructive apnea/hipopnea/RERA<br />
syndrome was fulfilled: he snored during sleep, presented<br />
respiratory efforts associated with <strong>de</strong>ssaturations of oxygen and<br />
also presented episo <strong>de</strong>s of cessation of breathing with duration of<br />
more than 10 seconds, which fulfills the criteria for apnea.<br />
As our patient used the CPAP during sleep, there was a dramatic<br />
improvement in the quality of his nighttime sleep, a <strong>de</strong>crease<br />
of his ten<strong>de</strong>ncy for daytime sleepiness, and an improvement of his<br />
mood. He <strong>de</strong>scribed himself as more happier. His initial insomnia<br />
ceased and we could take his hypnotic off. The temporal areas of<br />
the brain, responsible for the memory, are commonly affected during<br />
OSAHS, and, in general, improve with treatment.2<br />
44 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):43-45<br />
Since psychiatric patients are more prone to weight gain as<br />
they use anti<strong>de</strong>pressants and/or neuroleptics and have a se<strong>de</strong>ntary<br />
life, OSAHS is more frequent among them. The use of anxiolitics/hypnotics<br />
can also trigger OSAHS since it relaxes the muscles<br />
and makes it difficult to the patient to awake from such<br />
event. Our patient used AD during a short period (
Most of the patients who had a stroke suffered a SRBD or<br />
OSAHS, which occurred in the second half of the night, when<br />
REM sleep prepon<strong>de</strong>rates.1,4,5 The same is true for infarct of<br />
myocardial - patients with OSAHS have 500% more chance to<br />
have myocardial infarct than people without it.1 Our patient is a<br />
good example of the complications a patient with OSAHS can<br />
have since he already had a stroke and infarct of myocardial.<br />
Treatment in the OSAHS varies <strong>de</strong>pending upon the primary<br />
cause of the respiratory disturbance, but can range from<br />
behavioral techniques, weight loss, the use of mechanical <strong>de</strong>vices<br />
to free the upper airway obstruction up to surgery. Our patient<br />
will be using the CPAP since he is doing well with it and his cardiologist<br />
wants him to avoid surgery.<br />
Resumo<br />
Não é raro ver pacientes queixando-se aos psiquiatras <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>pressão, insônia, apatia, falta <strong>de</strong> motivação, hipersonia e que não<br />
respon<strong>de</strong>m aos anti<strong>de</strong>pressivos (AD). Muitas vezes a síndrome da<br />
apnéia hipopnéia obstrutiva do sono (SAHOS) com acordares relacionados<br />
a esforços respiratórios (ARER) não é consi<strong>de</strong>rada no<br />
diagnóstico diferencial ou como um segundo diagnóstico, o que<br />
po<strong>de</strong> levar a frustração <strong>de</strong> ambos paciente e médico. SAHOS não é<br />
condição rara, afetando 4% a 6% da população geral. No Brasil seis<br />
a oito milhões <strong>de</strong> pessoas sofrem <strong>de</strong> SAHOS, a gran<strong>de</strong> maioria não<br />
diagnosticada ou diagnosticada e tratada incorretamente. SAHOS<br />
está também associada com infarto do miocárdio, aci<strong>de</strong>nte vascular<br />
cerebral, hipertensão, risco sete vezes maior <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes automobilísticos<br />
e representa um fardo social. O objetivo da apresentação<br />
<strong>de</strong>ste caso é o <strong>de</strong> chamar a atenção para a SAHOS na população<br />
psiquiátrica por sua tendência a obesida<strong>de</strong> pelo uso <strong>de</strong> neurolépticos<br />
e AD, e pelo uso freqüente <strong>de</strong> benzodiazepínicos, que são con-<br />
tra-indicadas nos pacientes com SAHOS por relaxarem os músculos<br />
durante o sono e piorarem o quadro. Apresentamos aqui o caso<br />
clínico <strong>de</strong> paciente <strong>de</strong> 56 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> com SAHOS, que já apresentou<br />
<strong>de</strong>rrame, infarto do miocárdio e sofria <strong>de</strong> sonolência excessiva<br />
durante o dia, falta <strong>de</strong> motivação, apatia, <strong>de</strong>pressão, insônia inicial<br />
e dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> memória.<br />
Palavras-chave: Síndrome da Apnéia Hipopnéia Obstrutiva do<br />
Sono; Acordares Relacionados a Esforços Respiratórios; Insônia;<br />
Benzodiazepínicos, Anti<strong>de</strong>pressivos; Apnéia; Ansieda<strong>de</strong>;<br />
Demência.<br />
Bibliography<br />
1. Torpy M (ed), Obstrutctive Sleep Apnea Syndrome (chapter)<br />
in sleep multimedia 3.0, 1998.<br />
2. Kriger MH, Roth T, Dement WC. Principles and Practice of<br />
Sleep Medicine. 2nd ed. Saun<strong>de</strong>rs, 1994.<br />
3. The Report of an American Aca<strong>de</strong>my of Sleep Medicine Task<br />
Force. Sleep-Related Breathing Disor<strong>de</strong>rs in<br />
Adults: Recommendations for Syndrome Definition and<br />
Measurement Tecniques in Clinical Research. Sleep 1999;<br />
22(5).<br />
4. Silverberg D; Laina A; Oksenberg A. The joint national<br />
comunittee on prevention, <strong>de</strong>tetion, evoluation, and treatment<br />
of high blood pressure and obstructive sleep apnea: let<br />
then silence not be natched by the silence of the ordinary physician<br />
(letter). Arch Intern Med 1998 jun 8;158(11):1272-3.<br />
5. Eisensehr I, Palabrica T, McAuley A et al. Platelet actication,<br />
epinephrine, and blood pressure in obstrutive apnea syndrome.<br />
Neurology 1998 jul; 51(1):188-95.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):43-45 45
Caso Literário<br />
Ronaldo Simões Coelho *<br />
LITERATURA E LOUCURA - UM CONTO DE GUIMARÃES ROSA<br />
LITERATURE AND MADNESS - A STORY OF GUIMARÃES ROSA<br />
Guimarães Rosa, no início <strong>de</strong> sua carreira médica, foi clinicar<br />
em Barbacena.<br />
Lá, segundo tudo faz crer, ficou conhecendo os loucos e o<br />
hospício <strong>de</strong> tão triste fama. Deve ter sabido da história dos vagões<br />
adaptados da Re<strong>de</strong> Mineira <strong>de</strong> Viação - antiga Estrada <strong>de</strong> Ferro<br />
Oeste <strong>de</strong> Minas - para coleta e transporte <strong>de</strong> loucos e leprosos,<br />
prática que durou muitos anos. Os loucos eram recolhidos no interior<br />
<strong>de</strong> Minas Gerais e entregues àquele hospício on<strong>de</strong>, cronificados,<br />
passariam o resto <strong>de</strong> suas vidas miseráveis, passando a ter,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mortos e transformados em peças anatômicas, a utilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> abastecerem as salas <strong>de</strong> anatomia <strong>de</strong> várias escolas <strong>de</strong> medicina.<br />
Em “Soroco, sua mãe, sua filha” o escritor Guimarães Rosa<br />
<strong>de</strong>ixa o médico Guimarães Rosa falar.<br />
O local on<strong>de</strong> se passa a história não precisa <strong>de</strong> nome. É um<br />
lugar como tantos outros encontrado em todas as partes <strong>de</strong> Minas<br />
e do Brasil. Tal como as duas loucas, as <strong>de</strong>mais pessoas presentes,<br />
incluindo-se o agente da estação, são todos anônimos.<br />
Apenas Soroco tem nome, por ser aquele que vem, há anos, cuidando<br />
das pobres doidas.<br />
Ao <strong>de</strong>screver o vagão, Guimarães Rosa já o vê como o precursor<br />
do hospício: “parecia coisa <strong>de</strong> invento <strong>de</strong> muita distância, sem<br />
pieda<strong>de</strong> nenhuma. Ia servir para levar duas mulheres, para longe,<br />
para sempre”.<br />
Soroco está com sua melhor roupa, como se estivesse indo<br />
para uma cerimônia fúnebre, um enterro.<br />
* Psiquiatra e escritor En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Centro <strong>de</strong> Memória<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong><br />
Av. Prof. Alfredo Balena, 190<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG<br />
46 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):46-46<br />
Antes do embarque a moça começa a cantar, logo seguida pela<br />
velha. Cantiga sem sentido ou repetição daquilo que os negros escravos,<br />
por não terem voz, já faziam através da música?<br />
Logo que as loucas são tragadas pela voracida<strong>de</strong> daquele vagão-túmulo<br />
e o trem parte, Soroco volta para casa “como se estivesse<br />
indo para longe” e, <strong>de</strong> repente, começa a cantar a mesma<br />
música, o mesmo canto <strong>de</strong> mãe e filha, agora na garganta do filho<br />
e pai. Contagioso, o canto <strong>de</strong> palavras ininteligíveis leva todos a<br />
cantar e a seguirem Soroco.<br />
O conto termina, como na tragédia grega, com o coro. A loucura<br />
passa a ter o sentido que lhe é dado pela i<strong>de</strong>ologia asilar e<br />
custodial.<br />
O contista Guimarães Rosa retrata, em poucas palavras, a visão<br />
social e científica da loucura em uma época na qual a exclusão<br />
se transforma em único meio <strong>de</strong> atenção ao louco, confirmando<br />
a afirmação <strong>de</strong> Basaglia <strong>de</strong> que “o doente mental é um problema<br />
que nunca foi enfrentado, mas apenas negado”.<br />
A literatura, mais uma vez, se adianta à ciência e mostra uma<br />
realida<strong>de</strong> que só muitos anos <strong>de</strong>pois vai ser estudado pela análise<br />
institucional.<br />
Referência Bibliográfica<br />
1. Rosa JG. Soroco, sua mãe, sua filha. In: Rosa JG. Primeiras<br />
Histórias. 2º vol. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Nova Fronteira,<br />
1994:397.
Patografia<br />
Andrés Heerlein *<br />
Resumen<br />
ERNEST HEMINGWAY: UNA PATOGRAFIA RETROSPECTIVA<br />
ERNEST HEMINGWAY: UMA PATOGRAFIA RETROSPECTIVA<br />
El presente trabajo analiza los principales aspectos <strong>de</strong> la biografía, la<br />
obra y la personalidad <strong>de</strong>l laureado escritor E. Hemingway y sus relaciones<br />
con su patología. Luego <strong>de</strong> una introducción biográfica se<br />
pasa revista a su patografía, incluyendo los aspectos relacionados con<br />
su trágico final. El diagnóstico se apoya en pilares clínicos y biográficos<br />
ampliamente discutidos en la sección sobre el diagnóstico<br />
diferencial. Finalmente se discuten los aspectos mas centrales <strong>de</strong> la<br />
patología <strong>de</strong> Hemingway y <strong>de</strong> la bipolaridad en general, poniendo<br />
énfasis en los aspectos relacionados con la i<strong>de</strong>ntidad y la creatividad<br />
artística.<br />
Unitermos: Patografia; Hemingway; Transtorno Bipolar;<br />
Depressão Psicótica; Conduta Hipernómica<br />
Introducción<br />
Junto con haber sido galardonado con el premio nobel <strong>de</strong><br />
literatura, Ernest Hemingway es uno <strong>de</strong> los novelistas mas populares<br />
y admirados <strong>de</strong> este siglo. Su vida y su obra han marcado a<br />
generaciones completas, lo que es particularmente evi<strong>de</strong>nte<br />
durante las fiestas <strong>de</strong> San Fermín en Pamplona, don<strong>de</strong> personalmente<br />
hemos visto a centenas <strong>de</strong> jóvenes intentando rememorar<br />
sus pasos. Resulta notable la enorme admiración que <strong>de</strong>spierta<br />
este autor sobre su público, no tanto por su obra sino principalmente<br />
por su estilo <strong>de</strong> vida, aventurero, libre y creativo. Pero frecuentemente<br />
olvidamos o preferimos omitir los álgidos momentos<br />
<strong>de</strong> sus oscilaciones anímicas, <strong>de</strong> sus falencias afectivas, <strong>de</strong> sus<br />
excesos epicureános y <strong>de</strong> sus arranques nihilistas. Menos aún se<br />
hace mención a sus ten<strong>de</strong>ncias suicidas y al episodio afectivo-<strong>de</strong>lirante<br />
final, que lo llevaron a repetir el triste <strong>de</strong>senlace <strong>de</strong> su padre<br />
y <strong>de</strong> otros familiares cercanos. El presente estudio patobiográfico<br />
preten<strong>de</strong> analizar la patología mental <strong>de</strong> E. Hemingway <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la<br />
perspectiva biográfica, artística, clínica y <strong>de</strong> la personalidad. A su<br />
vez, intenta averiguar <strong>de</strong> que forma la biografía, la personalidad y<br />
los trastornos mentales interactúan en el proceso <strong>de</strong> la creación<br />
artística.<br />
Breve reseña biográfica<br />
Ernest Hemingway nace el 21 Julio <strong>de</strong> 1899 en Oak Park,<br />
Illinois. Hijo <strong>de</strong>l Dr. Clarence E. Hemingway y <strong>de</strong> Crase Hall<br />
Hemingway. Su padre, junto con ser médico general, es aficiona-<br />
* Professor do Depto. De Psiquiatría y Salud Mental Norte,<br />
Facultad <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, Universidad <strong>de</strong> Chile.<br />
do al mundo salvaje, enseñándole durante su infancia y adolescencia<br />
la forma correcta <strong>de</strong> manejar los instrumentos <strong>de</strong> pesca y<br />
caza y un profundo amor por la naturaleza. Crece en un ambiente<br />
normal <strong>de</strong>l medio Oeste Americano, graduándose en 1917 en la<br />
Escuela Secundaria Oak Park.<br />
Posteriormente comienza a trabajar como periodista para el<br />
periódico Star, <strong>de</strong> Kansas City. En el último año <strong>de</strong> la primera<br />
guerra mundial Hemingway se ofrece como conductor voluntario<br />
<strong>de</strong> ambulancias para la Cruz Roja <strong>de</strong> Italia, resultando gravemente<br />
herido por el fuego <strong>de</strong> mortero, en julio <strong>de</strong> 1918. Luego <strong>de</strong><br />
recuperarse <strong>de</strong> sus herida regresa a EEUU para trabajar, entre<br />
1920-1924, como periodista y corresponsal extranjero.<br />
Durante este período Hemingway viaja, junto a otros intelectuales<br />
norteamericanos, a París, don<strong>de</strong> establece contacto, entre<br />
otros, con Ezra Pound, Fitzgerald y Gertru<strong>de</strong> Stein, quiénes<br />
ejercen una importante influencia sobre el autor. Casado por<br />
primera vez en 1921, se divorcia en 1927 para casarse el mismo<br />
año con su segunda esposa, Pauline Pfeiffer. En 1922 se ofrece<br />
voluntariamente como corresponsal en la guerra greco-turca. En<br />
1928 regresa a EEUU para establecer su hogar en Key West,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> don<strong>de</strong> comienza a practicar la pesca marítima en el Golfo<br />
<strong>de</strong> México. En 1929, y pocos meses antes <strong>de</strong> la publicación <strong>de</strong> su<br />
primera gran obra “Adios a las Armas”, Hemingway se entera <strong>de</strong>l<br />
suicidio <strong>de</strong> su padre, realizado por intermedio <strong>de</strong> un tiro <strong>de</strong><br />
escopeta. En 1930 sufre un acci<strong>de</strong>nte automovilístico que le ocasiona<br />
nuevamente graves heridas traumátologicas.<br />
En 1934 realiza su primer Safari a África don<strong>de</strong> consigue la<br />
inspiración para varias <strong>de</strong> su siguientes obras. En este mismo año<br />
visita por primera vez España, país que va a consi<strong>de</strong>rar en a<strong>de</strong>lante<br />
como su segunda patria.<br />
En 1936 asiste voluntariamente a la guerra civil española<br />
como corresponsal <strong>de</strong> una alianza <strong>de</strong> periódicos norteamericanos.<br />
Como simpatizante <strong>de</strong>l sector republicano colabora en<br />
numerosos acontecimientos culturales y bélicos <strong>de</strong> este período.<br />
En 1940 se vuelve a divorciar para casarse por tercera vez. En este<br />
mismo año publica su principal obra “Por quién doblan las<br />
Campanas”, con un claro contenido autobiográfico. Durante la<br />
segunda guerra mundial se alista voluntariamente como corresponsal<br />
<strong>de</strong> guerra en Europa, participando en la invasión a<br />
Normandía y volando por al Real Fuerza Aérea. En este período<br />
hace su propia guerra privada, para llegar a la liberación <strong>de</strong> París<br />
en franca avanzada, incluso antes que la oficialidad.<br />
En 1944 se vuelve a divorciar, casándose en el mismo año con<br />
Mary Welsh, quien lo acompañará hasta su muerte.<br />
En 1952 publica su última y tal vez más conocida obra, “El<br />
Viejo y el Mar”, que le va permitir acce<strong>de</strong>r al Premio Nobel <strong>de</strong><br />
Literatura en 1954.<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Depto. <strong>de</strong> Psiquiatría y Salud Mental Norte.<br />
Facultad <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> - Universidad <strong>de</strong> Chile. Santiago <strong>de</strong> Chile<br />
E-mail: heerlein@netnow.cl<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):47-53 47
Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva<br />
Este mismo año retorna a África don<strong>de</strong>, junto con participar<br />
en múltiples cacerías, sufre dos acci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> aviación. Entre<br />
1954-1961 se traslada a su último hogar, en los alre<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> la<br />
ciudad <strong>de</strong> Ketchum, Idaho, don<strong>de</strong> fallece a causa <strong>de</strong> las heridas<br />
<strong>de</strong> un intento <strong>de</strong> suicidio que se infringe el 2 <strong>de</strong> Julio <strong>de</strong> 1961.<br />
Análisis Patográfico<br />
El análisis psicopatográfico <strong>de</strong> Ernest Hemingway reviste un<br />
gran interés no solo por la categoría <strong>de</strong>l autor, sino por la abundancia<br />
<strong>de</strong> elementos autobiográficos presentes en su obra, que<br />
permiten una mejor aproximación a los aspectos esenciales <strong>de</strong> su<br />
patología. Basados en los principales aspectos <strong>de</strong> su biografía, su<br />
personalidad, <strong>de</strong> su patología y <strong>de</strong> su obra, intentaremos hacer<br />
comprensible la evolución global <strong>de</strong>l trastorno que subyace en su<br />
vida y que lo conduce finalmente a un acto suicida.<br />
Personalidad Premórbida<br />
Ya <strong>de</strong>s<strong>de</strong> su infancia su personalidad se había caracterizado<br />
por esporádicas ten<strong>de</strong>ncias rebel<strong>de</strong>s, que se habían concretado<br />
por varios escapes <strong>de</strong> su casa durante los estudios secundarios,<br />
como así también por la negativa a asistir a la universidad. El<br />
padre <strong>de</strong> Hemingway vivía dominado por su esposa, una persona<br />
con fuertes inclinaciones religiosas. En algunas oportunida<strong>de</strong>s<br />
Hemingway <strong>de</strong>scribe haber estado muy <strong>de</strong>primido al ver a su<br />
padre agachar la cabeza en una discusión con su madre. Esta<br />
muestra <strong>de</strong> cobardía, segun Hemingway, culmina con el suicidio<br />
<strong>de</strong> su padre con la escopeta <strong>de</strong>l abuelo. Dentro <strong>de</strong> las aventuras<br />
juveniles <strong>de</strong>l escritor se <strong>de</strong>scribe haber presenciado un linchamiento<br />
en el estado <strong>de</strong> Ohio, así como también haber compartido<br />
una operación cesárea en un campamento <strong>de</strong> indígenas,<br />
sin anestesia y con una hoja <strong>de</strong> afeitar.<br />
Durante la juventud realiza varios viajes fugaces relacionándose<br />
con diferentes personajes <strong>de</strong>l bajo mundo. Durante este<br />
período su vida habría transcurrido en una actitud contemplativa,<br />
sin involucrarse directamente en los acontecimientos.<br />
La personalidad premorbida <strong>de</strong>l Hemingway adulto se caracteriza<br />
por las múltiples máscaras con las que este autor se presentaba<br />
al mundo, como así también por la pericia con que<br />
manipulaba la diversas facetas <strong>de</strong> su carácter. La vida <strong>de</strong><br />
Hemingway se caracteriza por una serie <strong>de</strong> vivencias muy aventureras<br />
románticas, apasionadas y cambiantes. Se intuye una continua<br />
inquietud interna que no se resuelve sino hasta el <strong>de</strong>senlace<br />
fatal. Es aficionado a las corridas <strong>de</strong> toros, esquiador, cazador,<br />
pescador y boxeador profesional. Fácilmente se enlista como voluntario<br />
en los mas variados conflictos bélicos, resultando herido<br />
<strong>de</strong> gravedad durante la primera guerra mundial. Su personalidad<br />
es <strong>de</strong>scrita, a veces, como arrogante, agresiva y jactanciosa, mientras<br />
que en otras oportunida<strong>de</strong>s se le <strong>de</strong>fine como distante, introvertido<br />
y extremadamente <strong>de</strong>sligado <strong>de</strong> todo compromiso afectivo.<br />
Según Baker,1 le interesaron poco las relaciones entre los seres<br />
humanos, las que lo ligaban con un universo duro y sumamente<br />
hostil, en el cual la violencia, el sufrimiento y la muerte serían la<br />
regla general. Esta característica <strong>de</strong> permanente aislamiento afec-<br />
48 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):47-53<br />
tivo habría <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar su arte en la misma forma como mo<strong>de</strong>ló<br />
su vida y su personalidad.<br />
La historia <strong>de</strong> sus <strong>de</strong>safortunados matrimonios y <strong>de</strong> los bruscos<br />
rompimientos con sus amista<strong>de</strong>s así como también <strong>de</strong> sus frecuentes<br />
ataques sin previa provocación contra personas relativamente<br />
inofensivas proyectan la imagen <strong>de</strong> un hombre muy sensible<br />
e impulsivo, dispuesto a agredir a un posible enemigo aún<br />
antes <strong>de</strong> que nadie lo agrediera.<br />
Tanto en sus obras como en su propia vida no se constata la<br />
presencia <strong>de</strong> una verda<strong>de</strong>ra amistad con reciprocidad. También<br />
en el plano sentimental, la personalidad <strong>de</strong>l autor se caracteriza<br />
por mantener siempre una distancia con el objeto amado.<br />
Hemingway tenía varias ventajas en su relacionamiento social: era<br />
atractivo, atlético y tenía gran facilidad para los idiomas. Su experiencia<br />
como periodista y su natural inclinación a buscar el por<br />
que <strong>de</strong> las cosas le daban la apariencia <strong>de</strong> ser un expertos en situaciones<br />
extravagantes.<br />
En síntesis, los antece<strong>de</strong>ntes aportados por sus biografías, por<br />
sus propios relatos y por su obra permiten concluir que la personalidad<br />
<strong>de</strong> E. Hemingway es inestable, pleomórfica, con evi<strong>de</strong>ntes<br />
oscilaciones anímicas, con arranques <strong>de</strong> extroversión y <strong>de</strong><br />
actitu<strong>de</strong>s impulsivas, con un <strong>de</strong>sapego a lo establecido o rutinario,<br />
con altos índices <strong>de</strong> neuroticismo, inquietud interna y <strong>de</strong><br />
egocentrismo.<br />
El funcionamiento cognitivo premórbido no parece revelar<br />
signos <strong>de</strong> psicoticismo, sino mas bien una baja tolerancia a la<br />
ambigüedad, una imaginación mas bien concreta y un claro<br />
favoritismo por los contenidos emocionales. La <strong>de</strong>sinhibición y la<br />
audacia, junto a la clara necesidad <strong>de</strong> vivir situaciones heroicas o<br />
límites lo llevan a presentar un perfil muy carismático.<br />
Hemingway es un buscador <strong>de</strong> sensaciones o <strong>de</strong> situaciones<br />
nuevas, por excelencia. Sus múltiples lesiones y acci<strong>de</strong>ntes dan<br />
clara prueba <strong>de</strong> ello. Su <strong>de</strong>senlace final, también.<br />
Suicidio<br />
Durante toda su vida, E. Hemingway privilegia vivir en forma<br />
peligrosa. Cuando se incorpora al ejército Italiano (Cruz Roja) y<br />
cae gravemente herido, siente por primera vez la presencia <strong>de</strong> la<br />
muerte, permaneciendo durante largos meses con clara angustia<br />
<strong>de</strong> muerte.<br />
Durante la década <strong>de</strong>l 30 se <strong>de</strong>dica a realizar excursiones <strong>de</strong><br />
pesca entre Cuba y Key West, Safaris a África y finalmente a<br />
luchar por el bando republicano en la guerra civil española. En<br />
este período experimenta varios acci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> gravedad, que lo<br />
obligan a renovar sus lazos con las i<strong>de</strong>as <strong>de</strong> muerte o extinción.<br />
El tema <strong>de</strong>l suicidio, introducido por su padre durante los<br />
primeros años <strong>de</strong> la década <strong>de</strong>l 30, persiste como una corriente<br />
subterránea a lo largo <strong>de</strong>l resto <strong>de</strong> su vida y se <strong>de</strong>ja visualizar<br />
ambivalentemente en prácticamente en toda su obra.<br />
Quizás sea justo asumir que la muerte <strong>de</strong> Hemingway fue su<br />
manera <strong>de</strong> superar una posición que no podía ya conservar y que<br />
para el, aquella fue la manera más inteligente <strong>de</strong> solucionar el<br />
conflicto. Luego <strong>de</strong> haber luchado día a día en contra <strong>de</strong> la<br />
eternidad, el suicidio pudo haber sido su forma <strong>de</strong> cumplir con<br />
las reglas a propósito <strong>de</strong> la rendición incondicional <strong>de</strong> uno <strong>de</strong> los<br />
contrincantes. En los últimos nueve años <strong>de</strong> vida y antes <strong>de</strong>l sui-
cidio se aprecia la imagen recurrente <strong>de</strong>l hombre que mantiene la<br />
luz encendida <strong>de</strong> noche en un vano intento <strong>de</strong> escapar a los horrores<br />
<strong>de</strong> la nada. Los talentos <strong>de</strong> Hemingway se habían agotado.<br />
También es posible suponer que su muerte haya sido el castigo<br />
calculado <strong>de</strong> Hemingway a aquel aspecto <strong>de</strong> su personalidad<br />
que lo había abandonado en el momento preciso. Como su po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> creación fue su principal recurso en la lucha por alcanzar un<br />
pequeño trozo <strong>de</strong> inmortalidad, la muerte se había dirigido como<br />
puntería infalible contra el culpable <strong>de</strong> la ofensa, es <strong>de</strong>cir contra<br />
el po<strong>de</strong>r mismo <strong>de</strong> creación.<br />
No obstante, la actitud <strong>de</strong> H. frente al suicidio es ambivalente.<br />
En casi todas sus obras el suicidio aparece como un directo<br />
atentado contra las reglas <strong>de</strong>l juego, rememorando la rabia<br />
contra su padre.<br />
Finalmente es posible suponer, <strong>de</strong> acuerdo con Rovit, que la<br />
muerte hubiera sido el último acto <strong>de</strong>l juego <strong>de</strong> Hemingway en<br />
sus continuos cambios <strong>de</strong> personalidad.2 Malabarista por excelencia,<br />
al verse en peligro ya que su mundo se <strong>de</strong>smoronaba,<br />
hecho añicos a sus pies, <strong>de</strong>snudo ya sin po<strong>de</strong>r evitarlo, el último<br />
ensayo <strong>de</strong> una nueva y <strong>de</strong>finitiva máscara pondría un toque triunfal<br />
en su fantástica carrera. Des<strong>de</strong> esta perspectiva nos parece<br />
posible suponer -prosigue Rovit- que si algún hombre podría<br />
encontrar algún sentido al morir, ese hombre podría ser<br />
Hemingway.2<br />
Obra y patología<br />
Una <strong>de</strong> las característica más importante <strong>de</strong> la obra <strong>de</strong><br />
Hemingway y <strong>de</strong> su extraordinaria popularidad lo constituyen,<br />
sin duda, la personalidad carismática <strong>de</strong>l autor y la enorme<br />
proximidad existente entre su vida y su producción literaria, la<br />
que forma una unidad indivisible basada en su vida pública y en<br />
todas sus aventuras y protagonismos.<br />
En relación a los procesos anímicos <strong>de</strong> Hemingway, llama la<br />
atención las características estéticas y narrativas <strong>de</strong> su obra.<br />
Hemingway exhibe un <strong>de</strong>seo lírico <strong>de</strong> proyectar en el lector su<br />
visión personal <strong>de</strong>l mundo, sugiriendo que esta visión personal<br />
pue<strong>de</strong> llegar a reemplazar al mundo objetivo. Hemingway tien<strong>de</strong><br />
a expresarse como si fuera la naturaleza misma la que hablara. Si<br />
la naturaleza y Hemingway se llegaran a i<strong>de</strong>ntificarse <strong>de</strong>l todo,<br />
uno u otro habría ganado una victoria. En esta expresión literaria<br />
queda <strong>de</strong> manifiesto una actitud <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za continua frente al<br />
mundo y a su existencia.<br />
En Hemingway la verdad, la bondad y la belleza se basan en<br />
un suspenso continuo, en un hombre consciente <strong>de</strong> su propia<br />
soledad y predispuesto a atacar tras sus múltiples máscaras.<br />
Hemingway se diferenciaba, <strong>de</strong> acuerdo a muchos autores,<br />
por una <strong>de</strong>ficiencia en la capacidad <strong>de</strong> amar, <strong>de</strong> involucrarse con<br />
los otros. El no podía negar el placer esencial que experimentaba<br />
con la acción física, siempre individual, pero nunca logró complementarla<br />
con los otros. Entien<strong>de</strong> que toda relación amorosa<br />
pue<strong>de</strong> exponer al hombre al influjo <strong>de</strong> la arrolladora personalidad<br />
<strong>de</strong> su pareja, con lo que justifica la presencia <strong>de</strong> barreras,<br />
tanto en sus personajes como en su propia vida, con que todo<br />
hombre <strong>de</strong>be proteger su propio yo. Así por ejemplo, los amantes<br />
en la obra <strong>de</strong> Hemingway, como Robert Jordán, Harris Morgan o<br />
Fre<strong>de</strong>rik Henri se conmueven sinceramente con el placer y la<br />
admiración que les brindan sus compañeras respectivas, pero en<br />
ningún caso parecen hallarse afectado en el circulo íntimo <strong>de</strong> sus<br />
experiencias más subjetivas.<br />
Pero, <strong>de</strong> acuerdo con varios biógrafos, en Hemingway la incapacidad<br />
para amar se compensa con su incapacidad <strong>de</strong> odiar.<br />
Pue<strong>de</strong> ser displicente, pue<strong>de</strong> sentirse asqueado y ultrajado o también<br />
muy superior. Pero Ernest carece <strong>de</strong> un verda<strong>de</strong>ro sentido<br />
<strong>de</strong> seguridad en el universo, faltándole también las bases <strong>de</strong> una<br />
sana autoestima, que son imprescindible para el surgimiento <strong>de</strong>l<br />
odio.<br />
Hemingway fue sin duda el más autobiográfico <strong>de</strong> los<br />
escritores <strong>de</strong> nuestro siglo, obsesivamente preocupado por si<br />
mismo y sus propias experiencias. En su propia personalidad<br />
adopto tantas facetas como personajes presentan sus obras,<br />
sugiriendo que el verda<strong>de</strong>ro Hemingway no se halla en la sumatoria<br />
<strong>de</strong> todas sus personificaciones sino en el centro oculto <strong>de</strong><br />
ellas. En su caso, la distinción entre la vida y la literatura fue<br />
diluyéndose y fusionándose en forma progresiva. Los rasgos <strong>de</strong><br />
heroísmo así como la convicción <strong>de</strong> que el hombre <strong>de</strong>be liberar<br />
una batalla solitaria contra las fuerzas elementales que oprimen a<br />
la humanidad pue<strong>de</strong> percibirse no solo en su obra, sino también<br />
en el recorrido <strong>de</strong> su biografía.<br />
La proximidad que el sentía entre si mismo y el universo<br />
brinda un correlato objetivo <strong>de</strong> sus emociones a través <strong>de</strong> tensiones<br />
<strong>de</strong> corte dialéctico. La acción y la reacción, la fuerza y la<br />
emoción, el <strong>de</strong>safío y la réplica son los antagonistas implacablemente<br />
enfrentados en una continua batalla a lo largo <strong>de</strong> toda la<br />
obra <strong>de</strong> Hemingway. El campo <strong>de</strong> batalla, el encierro en<br />
Pamplona o los llanos <strong>de</strong>l Serengueti son los lugares <strong>de</strong> confrontación<br />
y <strong>de</strong> resolución <strong>de</strong>l espíritu <strong>de</strong> Hemingway, reflejando<br />
con exactitud los ataques y contra ataques interiores, la ambivalencia,<br />
los actos <strong>de</strong> valentía y cobardía, las bajas y los daños<br />
irreparables.<br />
Dentro <strong>de</strong>l análisis psicológico <strong>de</strong>l Viejo y el Mar se logra<br />
apreciar la importancia <strong>de</strong> la naturaleza en la obra <strong>de</strong><br />
Hemingway. En dicha novela el mar ocupa un rol protagónico,<br />
adquiriendo un carácter omnipotente y universal, bondadoso y<br />
castigador a la vez. Esta presencia, para algunos autores, representa<br />
a la madre, <strong>de</strong>jando en evi<strong>de</strong>ncia una relación edipíca y<br />
ambivalente a lo largo <strong>de</strong> toda su obra.<br />
Cabe <strong>de</strong>stacar que el traslado <strong>de</strong> las vivencias a la obra <strong>de</strong><br />
Hemingway no fue ni estrecho ni superficial. En la totalidad <strong>de</strong> la<br />
obra <strong>de</strong>l autor existe el <strong>de</strong>seo <strong>de</strong> proyectar su propia situación<br />
humana en símbolos precisos. Su obra, en cierto sentido, constituye<br />
un ataque <strong>de</strong> rebeldía contra la vida. Y siendo <strong>de</strong>masiado<br />
orgulloso para aceptar la inestabilidad <strong>de</strong> la <strong>de</strong>rrota y la resignación,<br />
Hemingway encuentra <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sí y comunica al<br />
mundo una tenaz actitud <strong>de</strong> heroísmo, positiva, sin ilusiones y<br />
eminentemente humanista.<br />
Anamnesis externa<br />
Los amigos <strong>de</strong> Hemingway, como Castillo Pouche,3 lo<br />
<strong>de</strong>scriben como un sujeto frágil que proyectaba una imagen <strong>de</strong><br />
fortaleza. “Ernesto siempre caía <strong>de</strong>l lado <strong>de</strong>l pesimismo y le<br />
dominaba una súbita <strong>de</strong>sconfianza” <strong>de</strong>scribe Castillo Pouche.<br />
“Todo lo que era proceso racional, elaboración <strong>de</strong> pensamiento,<br />
le parecía frau<strong>de</strong> aunque surgiera en el brilante-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):47-53 49
Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva<br />
mente lo aceptaba siempre con recelo. Su fuerte era la emoción,<br />
aunque sabiamente disimulaba. Reaccionaba contra<br />
todo lo que era sistemático, metódico, extirpador <strong>de</strong> la libertad<br />
humana. Aunque le llamaran in<strong>de</strong>ciso, el prefería<br />
colocarse en un terreno emocional más bien vago, como<br />
fuera <strong>de</strong>l tiempo y el espacio. Tan pronto se adscribía a un<br />
lema o cobraba entusiasmos por un hombre, brotaba en él el<br />
viento seco <strong>de</strong>l escepticismo”.<br />
En relación al suicidio, Castillo Pouche se pregunta:<br />
“a quién mato Hemingway cuando se suicido? ¿al puritano<br />
respetuoso y tímido que llevaba <strong>de</strong>ntro o al salvaje <strong>de</strong>sbordado,<br />
al escritor serio y honesto o al traficante <strong>de</strong> la épicas<br />
más comerciales, al varón que no podía resistir el caudal<br />
contenido <strong>de</strong> sus ternuras, o al canalla <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontento <strong>de</strong> su<br />
proclibidad hacia la perversión?”<br />
Hemingway estaba <strong>de</strong>terminado, pre<strong>de</strong>terminado a darse su<br />
propia muerte, una muerte colérica y aireada. Des<strong>de</strong> el vientre <strong>de</strong><br />
su madre, a la que no pudo querer, queriendo quererla, y costándole<br />
mucho el no po<strong>de</strong>r conseguirlo, prosigue Castillo Pouche, y<br />
ante la tumba <strong>de</strong> su padre, al que admiró <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el más laborioso<br />
<strong>de</strong>sprecio, Hemingway era un suicida nato y neto.3<br />
En relación al tema <strong>de</strong> la muerte cabe <strong>de</strong>stacar el discurso <strong>de</strong><br />
Donne en Por quién doblan las Campanas:<br />
“Ningún hombre es en sí equiparable a una isla; todo hombre<br />
es un pedazo <strong>de</strong> continente; una parte en tierra firme; si<br />
el mar llevará lejos un terrón, Europa per<strong>de</strong>ría como si fuera<br />
un promontorio.....como si llevarán una casa solariega <strong>de</strong><br />
tus amigos a la tuya propia. La muerte <strong>de</strong> cualquier hombre<br />
me disminuye, por que soy una parte <strong>de</strong> la humanidad. Por<br />
eso no quieras saber nunca por quién doblan las campanas:<br />
están doblando por ti”.<br />
De acuerdo con Baker,1 un tema dominante en la vida <strong>de</strong><br />
Hemingway se refiere a la lucha contra la cobardía. Hemingway<br />
era un admirador <strong>de</strong>l coraje y la audacia <strong>de</strong>l hombre. Despreciaba<br />
profundamente la cobardía, la que tal vez veía asociada a la figura<br />
paterna. La subordinación <strong>de</strong> su padre frente a su madre y el suicidio<br />
pudieran haber sido interpretados como actos <strong>de</strong> cobardía<br />
<strong>de</strong>spreciable. Hemingway siempre, al hablar <strong>de</strong> su padre, hablaba<br />
<strong>de</strong> una trampa, que por muy sutil que fuera resultaba ineludible.<br />
“El mismo había caído en dicha trampa, casi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> niño, en el mismo<br />
engaño abreviador”, concluye Baker.<br />
Para Castillo Pouche, Hemigway habría vivido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> su<br />
primera fiesta <strong>de</strong> San Fermínes continuamente enfiestado: “En su<br />
primera oportunidad la fiesta habría seguido día y noche durante 7<br />
días. Y posteriormente continuó el beber hasta su último San<br />
Fermin, que fue en 1959. Para Hemingway la fiesta <strong>de</strong> Pamplona<br />
dura prácticamente toda la vida”.2<br />
Antece<strong>de</strong>ntes clínicos previos<br />
Nacimiento: Nace en una clínica en 1899, al parecer sin complicaciones.<br />
Embarazo <strong>de</strong> curso normal.<br />
50 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):47-53<br />
Desarrollo: Crecimiento y <strong>de</strong>sarrollo normal, pubertad precoz.<br />
Leve <strong>de</strong>sajuste conductual en la adolescencia.<br />
Condiciones familiares armónicas y estables, aunque<br />
con falencias, según Hemingway.<br />
Infancia: Or<strong>de</strong>nada, con atisbos <strong>de</strong> rebeldía y <strong>de</strong> impulsividad.<br />
Crece en ambientes rurales; frecuente contacto con<br />
violencia natural.<br />
Familia: Padre con probable trastorno <strong>de</strong>l ánimo, se suicida<br />
mediante un tiro <strong>de</strong> escopeta.<br />
Otros familiares con antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> bipolaridad y/o<br />
<strong>de</strong> suicidio (Figura 1).<br />
Mórbidos: Múltiples hospitalizaciones por lesiones <strong>de</strong> guerra o<br />
por múltiples acci<strong>de</strong>ntes, terrestres o en avión.<br />
Hábitos: Consumo excesivo <strong>de</strong> alcohol <strong>de</strong>s<strong>de</strong> temprana edad,<br />
en forma regular y con embriagueces no patológicas<br />
ocasionales.<br />
Consumo regular <strong>de</strong> tabaco. No hay antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
consumo <strong>de</strong> otras substancias o medicamentos.<br />
<br />
<br />
<br />
Cuadro Clínico<br />
<br />
<br />
<br />
El análisis <strong>de</strong>l cuadro clínico presentado por E. Hemingway<br />
amerita una separación en dos períodos: la crisis <strong>de</strong> su último año<br />
<strong>de</strong> vida y el período anterior.<br />
Cuadro psiquiátrico final<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Figura 1 - Historia psiquiatrica familiar <strong>de</strong> E. Hemingway<br />
Luego <strong>de</strong> su última visita a Pamplona en 1959, Hemingway<br />
comienza a presentar un cuadro <strong>de</strong> ostracismo, retraimiento,<br />
nihilismo y <strong>de</strong>sconfianza progresivos. Sus intentos <strong>de</strong> escribir son<br />
abortados por crisis <strong>de</strong> cólera y <strong>de</strong> violencia. Escasamente abandona<br />
su casa en las afueras <strong>de</strong> Ketchum, mostrando franco <strong>de</strong>sinterés<br />
por su entorno y una actitud huraña. No hay datos sobre el<br />
consumo <strong>de</strong> alcohol durante esta fase. Progresivamente aparecen
signos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinterés vital, con frecuentes referencias en torno a la<br />
propia muerte. Con el tiempo, comienza a configurarse un <strong>de</strong>lirio<br />
<strong>de</strong> persecución, poco sistematizado, incluyendo a elementos <strong>de</strong>l<br />
FBI, <strong>de</strong> la CIA o <strong>de</strong> Cuba. El <strong>de</strong>lirio paranoí<strong>de</strong>o va, paulatinamente,<br />
acompañandose <strong>de</strong> alucinaciones acústicas y, al parecer,<br />
visuales, don<strong>de</strong> habría visualizado a dichos agentes en las afueras<br />
<strong>de</strong> su casa.<br />
La gravedad <strong>de</strong>l cuadro es confirmada por el médico <strong>de</strong><br />
cabecera, quién lo envía en 1960 a un tratamiento con hospitalización.<br />
Antes <strong>de</strong> su internación realiza varios intentos frustros<br />
por eliminarse.<br />
Durante su hospitalización se constatan las alucinaciones y el<br />
cuadro paranoí<strong>de</strong>o, diagnosticándose una Depresión Psicótica,<br />
por lo que se le practica una serie <strong>de</strong> TEC. Una vez superado el<br />
cuadro psicótico, se le vuelve a enviar a su hogar. Aquí permanece<br />
postrado y sin interés vital hasta Julio <strong>de</strong> 1961, don<strong>de</strong>, durante la<br />
noche, se dispara un tiro <strong>de</strong> escopeta en el cráneo. Muere inmediatamente.<br />
Junto a los síntomas antes mencionados, durante este período<br />
habría presentado anorexia, clara disminución <strong>de</strong> la libido,<br />
inhibición psicomotora, <strong>de</strong>sánimo, pérdida <strong>de</strong>l impulso, insomnio<br />
mixto, <strong>de</strong> conciliación y <strong>de</strong>l <strong>de</strong>spertar, negativismo, <strong>de</strong>sesperanza,<br />
irritabilidad y angustia difusa. En ocasiones se habrían comprobado<br />
conductas fóbicas, en particular en relación a otras personas<br />
y a los espacios abiertos.<br />
Alteraciones psiquiátricas previas<br />
Para la mayoría <strong>de</strong> los autores, no caben dudas <strong>de</strong> que E.<br />
Hemingway presentaba alteraciones conductuales y <strong>de</strong>l estado<br />
<strong>de</strong>l ánimo mucho antes <strong>de</strong> su cuadro psiquiátrico final. Existen<br />
múltiples <strong>de</strong>scripciones que revelan francas oscilaciones <strong>de</strong>l estado<br />
<strong>de</strong> ánimo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> su juventud, con una línea basal mas bien<br />
hipertímica. Hemingway escon<strong>de</strong> muy bien ciertos períodos en<br />
que sospechamos la presencia <strong>de</strong> fases <strong>de</strong>presivas, especialmente<br />
en los últimos años <strong>de</strong> su vida. Por el contrario, el escritor pone<br />
especial énfasis en subrayar los períodos <strong>de</strong> máxima expansión<br />
anímica o <strong>de</strong> euforia, como lo son,por ejemplo, las fiestas <strong>de</strong> San<br />
Fermin, la llegada a París en 1945 o las aventuras africanas. En<br />
forma continua observamos un estado <strong>de</strong> ánimo particularmente<br />
inquieto, extrovertido, acelerado, irritable, expansivo, contagiante,<br />
grandilocuente y <strong>de</strong>senfadado. Este estado, casi permanente<br />
hasta 1954, se alterna ocasionalmente con períodos <strong>de</strong><br />
introversión, retraimiento, nihilismo y mutismo.<br />
Cabe tener en consi<strong>de</strong>ración que E. Hemingway ostentaba<br />
con ingerir gran<strong>de</strong>s cantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alcohol, especialmente en los<br />
estados <strong>de</strong> exaltación anímica. Lamentamos no saber exactamente<br />
cual era su patrón regular <strong>de</strong> consumo, por lo que no<br />
po<strong>de</strong>mos excluir la presencia <strong>de</strong> una <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia alcohólica asociada<br />
a su cuadro clínico.<br />
Hipótesis Diagnóstica Final<br />
I: - Trastorno Bipolar, tipo II<br />
(Hipomanía crónica con Depresión Mayor Recurrente)<br />
- Consumo excesivo <strong>de</strong> substancias (alcohol y tabaco)<br />
II: - Sin diagnóstico<br />
(Probable disfunción <strong>de</strong> la personalidad <strong>de</strong>l Cluster 2)<br />
Diagnóstico diferencial<br />
Numerosos autores han puesto énfasis en los aspectos <strong>de</strong> la<br />
personalidad <strong>de</strong> E. Hemingway, para favorecer un diagnóstico <strong>de</strong><br />
un Trastorno <strong>de</strong> la Personalidad <strong>de</strong> tipo Limítrofe. Sus conductas<br />
violentas, los arranques impulsivos, la inestabilidad emocional y<br />
la incapacidad para establecer vínculos afectivos fundamentan<br />
esta postura. No obstante, al establecer el diagnóstico <strong>de</strong>finitivo e<br />
intentando evitar las discusiones académicas entre los autores<br />
mas “constitucionalistas” y los “psicodinamístas”, tenemos que<br />
tener en consi<strong>de</strong>ración cuatro elementos fundamentales.<br />
En primer lugar están los antece<strong>de</strong>ntes hereditarios <strong>de</strong> la<br />
familia Hemingway (Figura 1), que hasta el día <strong>de</strong> hoy no <strong>de</strong>jan<br />
<strong>de</strong> sorpren<strong>de</strong>rnos por su exceciva carga hacia conductas suicidas,<br />
pero también, por la mayor concentración <strong>de</strong> casos con una<br />
enfermedad <strong>de</strong>l ánimo. A su vez, en muchos familiares <strong>de</strong><br />
Hemingway, como su padre, se observan claramente elementos<br />
<strong>de</strong> un trastorno <strong>de</strong>l ánimo, pero no se encuentran signos claros <strong>de</strong><br />
un trastorno <strong>de</strong> personalidad.<br />
En segundo lugar, <strong>de</strong>bemos tener en consi<strong>de</strong>ración las evi<strong>de</strong>ntes<br />
oscilaciones <strong>de</strong>l estado <strong>de</strong>l ánimo que exhibe E.<br />
Hemingway durante su vida, las que no parecen estar relacionadas<br />
con eventos vitales específicos. Sobre la base <strong>de</strong> una<br />
hipomanía persistente, claramente evi<strong>de</strong>nciable en las fases <strong>de</strong><br />
expansión máxima, como lo son los San Fermines, el autor presentaba<br />
períodos totalmente opuestos, con evi<strong>de</strong>ntes características<br />
<strong>de</strong>presivas. Esto queda <strong>de</strong>mostrado no sólo por el análisis<br />
biográfico, sino por las <strong>de</strong>scripciones que hacen <strong>de</strong>l famoso<br />
escritor sus amigos mas cercanos.<br />
En tercer lugar, cabe consi<strong>de</strong>rar la personalidad premórbida<br />
<strong>de</strong> E. Hemingway, que si bien es impulsiva y muy compleja,<br />
nunca se <strong>de</strong>sborda, aún bajo el influjo <strong>de</strong>l alcohol. Durante toda<br />
su vida Hemingway mantuvo el control <strong>de</strong>seado sobre sus emociones,<br />
calculando cada paso a dar. Siendo un individuo<br />
extremadamente libre y creativo, nunca abandonó los límites <strong>de</strong><br />
todo indiviuo “respetable”, adaptándose bien a las contingencias<br />
y mostrando una clara tolerancia a las frustraciones. La muerte<br />
aparece al final <strong>de</strong> su vida, no como un acto impulsivo, sino como<br />
el <strong>de</strong>senlace ineludible <strong>de</strong> lo que había sido su vida, vale, <strong>de</strong>cir, su<br />
propia novela. Este alto grado <strong>de</strong> control, el reconocimiento y<br />
respeto <strong>de</strong> los límites y su evi<strong>de</strong>nte capacidad <strong>de</strong> construir un<br />
mito, aún a pesar <strong>de</strong> las oscilaciones anímicas, hacen poco<br />
probable la presencia <strong>de</strong> una personalidad muy <strong>de</strong>sestructurada.<br />
Creemos conveniente tener en consi<strong>de</strong>ración el cuadro clínico<br />
final, que se presenta claramente como una <strong>de</strong>presión psicótica<br />
muy severa, que requirió TEC. Es en este momento don<strong>de</strong> el<br />
cuadro psicótico se expresa en toda su magnitud, revelando alucinaciones,<br />
<strong>de</strong>lirios paranoí<strong>de</strong>os, fenómenos <strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalización<br />
y <strong>de</strong>srealización. El ánimo es francamente <strong>de</strong>presivo y<br />
existe una gran inhibición psicomotora. La rumiación con el tema<br />
<strong>de</strong> la muerte sella sin lugar a dudas la presencia <strong>de</strong> un trastorno<br />
<strong>de</strong>presivo. Y este trastorno aparece <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l marco <strong>de</strong> un suje-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):47-53 51
Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva<br />
to con evi<strong>de</strong>ntes oscilaciones anímicas, por lo que no po<strong>de</strong>mos<br />
eludir el diagnóstico <strong>de</strong> un trastorno bipolar, con hipomanías.<br />
Finalmente cabe preguntarse si la patología <strong>de</strong> Hemingway<br />
no correspon<strong>de</strong> simplemente a un problema <strong>de</strong> consumo excesivo<br />
o a una adiccion al alcohol. Porque no cabe duda la<br />
exageración en el consumo que el prominente autor solía experimentar.<br />
Pero las evi<strong>de</strong>ncias aquí <strong>de</strong>mostradas no son compatibles<br />
con este diagnóstico. Tanto los antece<strong>de</strong>ntes hereditarios, la personalidad<br />
previa como el cuadro clínico apuntan a un trastorno<br />
eminentemente endógeno, que si bien pudo haber estado influenciado<br />
por el uso <strong>de</strong> substancias, no logra explicarse cabalmente<br />
a través <strong>de</strong> el.<br />
Discusión<br />
Las relaciones entre la creatividad artística y la psicopatología<br />
han sido objeto <strong>de</strong> múltiples estudios y reflexiones fundamentadas.<br />
El caso <strong>de</strong> E. Hemingway resulta paradigmático para<br />
quienes <strong>de</strong>fien<strong>de</strong>n la tesis <strong>de</strong> la creatividad asociada al sufrimiento<br />
o a la <strong>de</strong>smesura biográfica. Su vida y su obra son una malla<br />
entreverada e indivisible, don<strong>de</strong> nunca se sabe quien está al servicio<br />
<strong>de</strong> quién. Como hemos observado, su propia muerte parece<br />
una trama irrenunciable <strong>de</strong> una novela vital.<br />
El fenómeno Hemingway resulta aún mas interesante cuando<br />
observamos la cantidad <strong>de</strong> acólitos que el autor nos ha heredado.4<br />
Su personalidad carismática y su espíritu aventurero ha <strong>de</strong>spertado<br />
un interés inusual para una figura <strong>de</strong> las letras. El premio<br />
nobel viene aquí no sólo a poner el broche <strong>de</strong> oro a una leyenda<br />
que se fue gestando en vida, sino a reafirmar la enorme atractividad<br />
que algunos <strong>de</strong> sus pares ejercen sobre su entorno. Este<br />
hecho no <strong>de</strong>bería sorpren<strong>de</strong>rnos.<br />
Des<strong>de</strong> las <strong>de</strong>scripciones originales <strong>de</strong> Falret sabemos que el<br />
Trastorno Bipolar pue<strong>de</strong> contagiar frecuentemente al público<br />
lego, en particular en la fase maniacal expansiva. Sabemos la irresistible<br />
fascinación que suelen ejercer algunos pacientes maníacos<br />
o hipomaníacos sobre sus pares, o sobre personas totalmente ajenas<br />
a ellos. En el ejemplo <strong>de</strong> Hemingway vemos retratada una vez<br />
mas la admirable capacidad <strong>de</strong> contagio y <strong>de</strong> fascinación que<br />
ejercen algunos pacientes bipolares sobre la población general,<br />
incluso en forma póstuma. A su vez, la alta contagiosidad <strong>de</strong> sus<br />
conductas irreverentes, <strong>de</strong> sus <strong>de</strong>safíos, <strong>de</strong> sus extralimitaciones y<br />
<strong>de</strong> sus <strong>de</strong>scarnadas aventuras hablan claramente en favor <strong>de</strong> la<br />
presencia <strong>de</strong> un trastorno bipolar.<br />
Pero tal vez lo mas interesante en el análisis <strong>de</strong> la patología <strong>de</strong><br />
E. Hemingway lo constituya la posibilidad <strong>de</strong> estudiar el<br />
trastorno bipolar y sus interacciones con la i<strong>de</strong>ntidad personal.<br />
Como hemos señalado previamente,5 el análisis fenomenológico<br />
revela que uno <strong>de</strong> los fundamentos comprensivos <strong>de</strong>l trastorno<br />
Bipolar lo constituye un grave problema en la consolidación <strong>de</strong> la<br />
i<strong>de</strong>ntidad. En nuestro trabajo sobre la personalidad y los<br />
trastornos <strong>de</strong>l ánimo escribíamos:<br />
“Des<strong>de</strong> la perspectiva antropológico-fenomenológica,<br />
po<strong>de</strong>mos ver la melancolía como la máxima negación <strong>de</strong>l<br />
ser, como la aproximación a la nada. El frágil mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ser<br />
se fundamenta básicamente en el ser para-si <strong>de</strong>l individuo<br />
melancolico. La carencia <strong>de</strong> vivencias y percepciones <strong>de</strong>l<br />
52 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):47-53<br />
mundo emocional, la hipertrofia <strong>de</strong>l rol laboral, la intolerancia<br />
al cambio, la falta <strong>de</strong> fantasías y la rigi<strong>de</strong>z configuran<br />
una i<strong>de</strong>ntidad frágil y muy vulnerable. La nada pareciera<br />
estar acompañando contínuamente al melancólico en su<br />
afán <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar el mundo, <strong>de</strong> eludir el cambio y la experiencia<br />
emocional. Al fracasar los mecanismos compensatorios<br />
<strong>de</strong> esta frágil i<strong>de</strong>ntidad, surge la melancolía.<br />
En el extremo opuesto <strong>de</strong> la melancolía, el paciente bipolar<br />
que atraviesa un estado maníaco pareciera experimentar<br />
una consolidación <strong>de</strong> su proyecto <strong>de</strong> ser. La manía se caracteriza<br />
por un aumento <strong>de</strong> las percepciones, por una clara<br />
hipertrofia <strong>de</strong> la conciencia <strong>de</strong> si mismo, por un gran<br />
<strong>de</strong>spliegue energético en funcion <strong>de</strong>l hacer y el tener, por un<br />
estado <strong>de</strong> euforia contínua y <strong>de</strong>smesurada y por la pérdida<br />
<strong>de</strong> las restricciones que normalmente limitan la conducta.<br />
La manía aparece como una consolidación completa <strong>de</strong>l ser<br />
en si, a través <strong>de</strong> la construccion ficticia <strong>de</strong> un ser para-si. La<br />
manía sugiere un estado <strong>de</strong> libertad plena, llevando incluso<br />
al contagio masivo.<br />
A diferencia <strong>de</strong> la melancolía, que se aproxima a la nada, la<br />
manía aparece y es vivenciada como una victoria contra la<br />
nada, contra el no ser. Una vez confrontada la ficción <strong>de</strong>l ser<br />
con la realidad y la conciencia, la manía se <strong>de</strong>sploma, apareciendo<br />
la amenaza <strong>de</strong>l no ser, <strong>de</strong> la melancolía. El sujeto<br />
hipomaníaco va a lograr mantener en forma contínua la ficción<br />
<strong>de</strong> su ser, esquivando así la realidad y la amenaza <strong>de</strong> la<br />
nada. Pero esta postura resulta particularmente difícil <strong>de</strong><br />
sustentar, llevando tar<strong>de</strong> o temprano a la <strong>de</strong>scompensación<br />
melancólica”.5<br />
Nos hemos permitido incluir aquí esta referencia por la<br />
proximidad existente entre los conceptos teóricos aquí enunciados<br />
y la vida, la obra y la personalidad <strong>de</strong> E. Hemingway. Como<br />
po<strong>de</strong>mos observar, E. Hemingway nos revela en toda su biografía<br />
una continua lucha contra la melancolía, pero mejor aún, un constante<br />
afán por consolidar una i<strong>de</strong>ntidad personal insuficiente.<br />
Su gran versatilidad caracterológica, su i<strong>de</strong>ntidad difusa, su<br />
personalidad <strong>de</strong> contornos irregulares, nos revelaban un conflicto<br />
claro en la <strong>de</strong>marcación <strong>de</strong>l propio “yo”. Y al hablar aquí <strong>de</strong><br />
“yo” no lo hacemos en el sentido <strong>de</strong> E. Erikson, sino mas bien en<br />
el opuesto, en el sentido <strong>de</strong> Krappman y <strong>de</strong> A. Kraus,6 quienes<br />
sostienen que el conflicto central <strong>de</strong>l trastorno bipolar es un<br />
problema <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntidad que se intenta resolver a través <strong>de</strong> una<br />
sobrei<strong>de</strong>ntificación con el rol laboral-vivencial. Kraus habla aquí<br />
<strong>de</strong> una “conducta hipernómica”, don<strong>de</strong> la <strong>de</strong>bilidad <strong>de</strong> la propia<br />
i<strong>de</strong>ntidad conduce a una excacerbación <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad <strong>de</strong> rol. El<br />
movimiento dialéctico entre la i<strong>de</strong>ntidad y la no i<strong>de</strong>ntidad es<br />
especialmente claro en el caso <strong>de</strong> E. Hemingway. Porque el claro<br />
déficit que el autor exhibe en la así <strong>de</strong>nominada i<strong>de</strong>ntidad - personal,<br />
dadas sus falencias afectivas, es intentado vanamente <strong>de</strong><br />
compensar a través <strong>de</strong> la hipertrofía <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad <strong>de</strong> “escritoraventurero”.<br />
A su vez, la continua búsqueda <strong>de</strong> aventuras y peligros<br />
y su afán <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar los límites, constituyen otra forma <strong>de</strong><br />
suplir el vacío existente en la esfera personal-afectiva. La propia<br />
sobrei<strong>de</strong>ntificación con el rol profesional conlleva un evi<strong>de</strong>nte<br />
distanciamiento en las relaciones interpersonales, con la consiguiente<br />
soledad resultante.
Coincidiendo con la mayoría <strong>de</strong> los pacientes bipolares,<br />
Hemingway revela durante toda su vida un grave conflicto <strong>de</strong><br />
consolidación <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ntidad, intentando infructuosamente <strong>de</strong><br />
resolver dicho conflicto a través <strong>de</strong> la vertiente creativa y <strong>de</strong> la<br />
sobrei<strong>de</strong>ntificación <strong>de</strong>l rol. El <strong>de</strong>senlace final no es, entonces,<br />
otra cosa, sino el resultado negativo <strong>de</strong> este conflicto, don<strong>de</strong> finalmente,<br />
<strong>de</strong>sprovisto <strong>de</strong> su rol y <strong>de</strong> la creatividad, el autor no pue<strong>de</strong><br />
eludir la auto<strong>de</strong>strucción. No lo pue<strong>de</strong> hacer, porque su “ser” ya<br />
no existe, porque su i<strong>de</strong>ntidad ya no alcanza para sobrevivir. El<br />
vacío, la nada se apo<strong>de</strong>ran <strong>de</strong> el, <strong>de</strong>jando claramente en evi<strong>de</strong>ncia<br />
su incapacidad <strong>de</strong> existir en si.<br />
Resulta notable comprobar en el caso <strong>de</strong> E. Hemingway <strong>de</strong><br />
que forma se interrelacionan los procesos biográficos, los procesos<br />
<strong>de</strong> creatividad y los aspectos centrales <strong>de</strong> la Bipolaridad,<br />
cuales son, a nuestro juicio, los problemas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntidad. El caso<br />
<strong>de</strong> Hemingway resulta paradigmático para reflejar la lucha <strong>de</strong> un<br />
individuo maníaco-<strong>de</strong>presivo contra su propio <strong>de</strong>stino, utilizando<br />
las herramientas que le parecen mas apropiadas. A juzgar por los<br />
resultados <strong>de</strong> su creatividad, ósea <strong>de</strong> su obra, sin duda que<br />
Hemingway habría vencido dicha lucha, pero si observamos el<br />
<strong>de</strong>senlace final, ya no po<strong>de</strong>mos asegurarlo. Porque si bien es cierto<br />
que la esencia <strong>de</strong> la estructura bipolar pue<strong>de</strong> favorecer el proceso<br />
<strong>de</strong> creación artística, cabe preguntarse a que precio <strong>de</strong>be<br />
nutrirse el arte. La vida <strong>de</strong> Hemingway es casi una continua tormenta,<br />
don<strong>de</strong> la literatura parece brindar un breve remanso en el<br />
trajín existencial. Sin embargo, al momento <strong>de</strong> terminar <strong>de</strong><br />
escribir, los problemas iniciales retornan con la misma intensidad<br />
<strong>de</strong> antaño, <strong>de</strong>jando en claro que la compensación hipernómica<br />
nunca termina por resolver el conflicto.<br />
Es justamente esta apreciación la que nos parece extremadamente<br />
relevante para el a<strong>de</strong>cuado tratamiento <strong>de</strong> nuestros<br />
pacientes bipolares. El caso <strong>de</strong> E. Hemingway nos permite visualizar<br />
claramente como los problemas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntidad constituyen<br />
un elemento central en dicha patología. El abordaje clínico que<br />
no tenga en consi<strong>de</strong>ración estos aspectos pue<strong>de</strong> llegar a ocasionar<br />
mayor perjuicio que beneficios, en particular cuando se trata<br />
<strong>de</strong> un personaje que opte por la compensación creativa. Es por<br />
ello que, junto con Kraus, queremos reforzar el concepto <strong>de</strong> efectuar<br />
en todo paciente bipolar, junto con la terapia farmacológica,<br />
una psicoterapia interpersonal que contemple los aspectos <strong>de</strong><br />
personalidad y <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntidad antes mencionados. Sólo <strong>de</strong> esta<br />
forma, pensamos, es posible lograr un avance real y un crecimiento<br />
subjetivo y objetivo <strong>de</strong> nuestros pacientes, acercándolos<br />
a una relación mas a<strong>de</strong>cuada consigo mismos, con sus semejantes<br />
y con su existencia.<br />
Summary<br />
An extensive pathographical study of the life, work and illness of E.<br />
Hemingway is presented.The different aspects of his personality, the<br />
genetic background, the tragic end and the clinical course of his disor<strong>de</strong>r<br />
and the probable diagnosis are discussed. Finally, the relationships<br />
that may exist between bipolarity, i<strong>de</strong>ntity and the process of<br />
artistic creation are discussed.<br />
Key-words: Pathography; Hemingway; Bipolar Disor<strong>de</strong>r;<br />
Psychotic Depression; Hypernomy<br />
Referencias<br />
1. Baker, C. Hemingway, el escritor como artista. Buenos Aires:<br />
Ediciones Corregidor, 1974.<br />
2. Rovit E. Ernest Hemingway. Buenos Aires: General Fabril<br />
Editora SA, 1971.<br />
3. Castillo-Pouche JL. Hemingway, entre la vida y la muerte.<br />
Barcelona: Ediciones Destino, 1968.<br />
4. Hotchner, AE. Papá Hemingway. México, DF: Organización<br />
Editorial Novaro SA, 1966.<br />
5. Heerlein A. Personalidad y Psicopatología. Santiago:<br />
Sociedad <strong>de</strong> Neurología, Psiquiatría y Neurocirugía, 1997.<br />
6. Kraus, A. : Psychotherapy Based on I<strong>de</strong>ntity Problems of<br />
Depressives. Am J Psychother 1995; 49:197-212.<br />
7. Kazin, A. Hemingway and Fitzgerald. American Heritage,<br />
1984:49-64.<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):47-53 53
Caso Histórico<br />
Clóvis <strong>de</strong> Faria Alvim *<br />
IRMÃ GERMANA<br />
NUN GERMANA<br />
Nos começos do século XIX, estranhos episódios ocorridos<br />
na Serra da Pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertaram não só gran<strong>de</strong> afluência <strong>de</strong> romeiros<br />
à ermida erguida no cimo daquela montanha como também<br />
a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viajantes ilustres, entre os quais, Spix, Martius<br />
e Saint-Hilaire,1 dando-nos este último circunstanciada notícia<br />
dos acontecimentos ali observados.<br />
No alto do monte, com permissão das autorida<strong>de</strong>s eclesiásticas,<br />
instalou-se uma jovem <strong>de</strong>vota, mais tar<strong>de</strong> conhecida com o<br />
nome <strong>de</strong> Irmã Germana, no abandonado claustro que o Irmão<br />
Barcarena <strong>de</strong>ixara vazio, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se fôra para a Eternida<strong>de</strong>. Por<br />
companhia tinha apenas a sua irmã, também <strong>de</strong>vota, e a assistência<br />
espiritual do vigário <strong>de</strong> Roças Novas, padre José Gonçalves.<br />
No recolhimento daquele ermo entregavam-se ambas à vida<br />
contemplativa, consumindo os seus dias no fervor das orações e<br />
as suas noites na quietu<strong>de</strong> das vigílias e penitências.<br />
Não tardou muito que a Irmã Germana, na exaltação mís-tica<br />
dos seus 34 anos, mas <strong>de</strong> compleição somática <strong>de</strong>licada e frágil, sucumbisse<br />
aos rigores do claustro, revelando estranhos sintomas físicos,<br />
logo interpretados pelo povo como <strong>de</strong> origem sobrenatural.<br />
Saint-Hilaire, que a viu em 1818, traçou uma <strong>de</strong>scrição pormenorizada<br />
do seu estado: “Conheci na Serra da Pieda<strong>de</strong> uma mulher<br />
<strong>de</strong> quem falavam muito nas comarcas <strong>de</strong> Sabará e Vila Rica. A<br />
irmã Germana, tal o seu nome, fôra atacada, 10 anos antes (escrito<br />
em 1818), <strong>de</strong> afecções histéricas, acompanhadas <strong>de</strong> convulsões violentas.<br />
Fizeram-na exorcismar; empregaram-se remédios inteiramente<br />
contrários ao seu estado e o mal agravou-se. Ao tempo da minha<br />
viagem ela chegara, havia já muito tempo, ao ponto <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r<br />
mais <strong>de</strong>ixar o leito, e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alimentos que ela tomava<br />
cada dia era pouco maior a que se dá a um recém-nascido.<br />
Ela não comia carne e recusava igualmente as gorduras, não po<strong>de</strong>ndo<br />
mesmo tomar um caldo. Alguns doces, queijo, um pouco <strong>de</strong><br />
pão ou farinha, constituíam todo o seu alimento; freqüentemente<br />
ela recusava alimentar-se e quase sempre era preciso obrigá-la a comer<br />
qualquer cousa.<br />
Era voz geral que os costumes <strong>de</strong> Germana haviam sido sempre<br />
puros e sua conduta irrepreensível. Durante o curso da sua moléstia,<br />
sua <strong>de</strong>voção crescia dia a dia; queria jejuar completamente às<br />
sextas e sábados; a principio sua mãe quis impedi-la, mas Germana<br />
<strong>de</strong>clarou que durante esses dois dias era-lhe inteiramente impossível<br />
tomar qualquer alimento e daí por diante ela passou-os sempre<br />
na mais completa abstinência.<br />
Para satisfazer a sua <strong>de</strong>voção pela Virgem ela se fêz transportar<br />
à serra da Pieda<strong>de</strong>, cuja capela fôra erguida sob a invocação <strong>de</strong> N. S.<br />
da Pieda<strong>de</strong>, e obteve permissão <strong>de</strong> morar nêsse asilo. Lá meditando<br />
Artigo adaptado <strong>de</strong>: “Um precursor da psiquiatria mineira”, <strong>de</strong><br />
Clóvis <strong>de</strong> Faria Alvim. Revista da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais<br />
1962; 12:234-250.<br />
* Ex-professor do Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e Neurologia da<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong> (in memoriam)<br />
54 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58<br />
um dia sôbre os mistérios da paixão, ela entrou numa espécie <strong>de</strong> êxtase;<br />
seus braços endureceram e esten<strong>de</strong>ram-se em forma <strong>de</strong> cruz;<br />
seus pés cruzaram-se igualmente e ela se manteve nessa atitu<strong>de</strong> durante<br />
48 horas. À época <strong>de</strong> minha viagem havia quatro anos que<br />
êsse fenômeno se <strong>de</strong>ra pela primeira vez e daí por diante êle se repetira<br />
semanalmente. A irmã Germana tomava essa atitu<strong>de</strong> extática<br />
na noite <strong>de</strong> quinta para sexta-feira, conservando-se assim até à<br />
noite <strong>de</strong> sábado para domingo, sem fazer movimento, sem proferir<br />
uma palavra, sem tomar qualquer alimento.”<br />
A notícia do estranho acontecimento divulgou-se rapidamente,<br />
apaixonando tôda a província. Logo acorreu à serra da Pieda<strong>de</strong><br />
“hum numero incrível <strong>de</strong> Romeiros <strong>de</strong> todos os lugares das Minas,<br />
sendo tal esta afluência, que apesar da elevação, <strong>de</strong>sabrigo e secura<br />
da montanha tem havido dias <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> dous mil concurrentes”,<br />
informa-nos o Dr. Antônio Gonçalves Gomi<strong>de</strong>.2<br />
O vigário <strong>de</strong> Roças Novas, padre José Gonçalves, diretor espiritual<br />
da enfêrma, assustado com os fatos, não tardou em comunicá-los<br />
ao bispo <strong>de</strong> Mariana, exprimindo-lhe o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> que a<br />
Germana fôsse examinada por homens eminentes.<br />
Dom Cipriano da Santíssima Trinda<strong>de</strong>, que na apreciação <strong>de</strong><br />
Saint-Hilaire era “um homem ajuizado e competente”, tentou<br />
inutilmente <strong>de</strong>movê-la do seu retiro, procurando interná-la no recolhimento<br />
<strong>de</strong> Macaúbas, para evitar a gran<strong>de</strong> celeuma que já se<br />
fazia em tôrno do pretenso milagre. Chegou a proibir a celebração<br />
da Santa Missa na montanha, alegando que El-Rei não havia<br />
concedido permissão. Os <strong>de</strong>votos, entretanto, não se conformaram<br />
com a proibição. Solicitaram diretamente ao soberano a revogação<br />
da or<strong>de</strong>m, sendo prontamente atendidos. Germana, que<br />
já se havia retirado da serra, foi novamente levada à sua cela por<br />
mãos <strong>de</strong>votas, fazendo recru<strong>de</strong>scer com a sua presença o fervor<br />
das romarias.<br />
Por essa ocasião, dois cirurgiões afoitos, os Drs. Antônio Pedro<br />
<strong>de</strong> Souza e Manoel Quintão da Silva, firmaram um laudo médico,<br />
datado da Serra da Pieda<strong>de</strong>, em 2 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1814, atestando<br />
a origem sobrenatural do fenômeno.<br />
“Essa <strong>de</strong>claração”, escreve Saint-Hilaire,3 ficou manuscrita, mas<br />
circulou <strong>de</strong> mão em mão, sendo <strong>de</strong>la tirado um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
cópias.”<br />
Depois <strong>de</strong> variadas consi<strong>de</strong>rações sôbre o estado físico da<br />
Germana, sua anorexia admirável e a sua postura da crucificação,<br />
concluíram os dois peritos: “Julgamos terminada a questão: nós seríamos<br />
mentirosos e temerários se ousássemos someter ao juizo medico<br />
um facto, que só nos enche <strong>de</strong> admiração e <strong>de</strong> respeito para com<br />
o Ser Supremo na consi<strong>de</strong>ração da bonda<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong> Jesus Christo,<br />
nosso Amabilissimo Re<strong>de</strong>mptor. Vin<strong>de</strong>, ó incrédulos, e vê<strong>de</strong>. Se<br />
nos dizeis, que ha huma especie <strong>de</strong> melancolia que consiste em erro<br />
<strong>de</strong> imaginação, e que os enfermos attacados <strong>de</strong>ste mal se julgão<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Centro <strong>de</strong> Memória<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong><br />
Av. Prof. Alfredo Balena, 190<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG
transformados em animaes, ou em outras cousas como aquellas Moças<br />
curadas pelo Pastor Melampus, as quaes se julgarão transformadas<br />
em vaccas, e que tal fora a enfermida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nabuchodonozor.<br />
Sim, he, he verda<strong>de</strong> que ha essa enfermida<strong>de</strong> e tambem rara,<br />
mas o que a pa<strong>de</strong>ce não tem intervallo algum <strong>de</strong> melho-ramento, a<br />
sua imaginação roda sempre no mesmo erro, até que se cure, porem<br />
a consi<strong>de</strong>ração viva da paixão <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus Christo não faz<br />
enfermos, mas Santos.”<br />
Contrariamente ao que pensavam os ilustres signatários do<br />
laudo, a questão não terminou tão simplesmente, com a santificarão<br />
da Germana, promovida por leigos.<br />
Logo após a divulgação do documento apareceu um opúsculo,<br />
que circulou amplamente, impugnando as conclusões dos<br />
peritos.<br />
O seu autor preferiu acobertar-se no anonimato, não se julgando<br />
suficientemente garantido pelas autorida<strong>de</strong>s, contra a sandice<br />
do povo, que acorria em massa ao santuário.<br />
Na introdução da “Impugnação analytica ao exame feito pelos<br />
clínicos Antonio Pedro <strong>de</strong> Souza e Manoel Quintão da Silva, em<br />
huma rapariga que julgarão santa, na Capella <strong>de</strong> Nossa Senhora da<br />
Pieda<strong>de</strong> da Serra”, e encaminhada ao “Ilmo. Sr. Dr. Manoel Vieira<br />
da Silva, Geral Inspector da Arte <strong>de</strong> Curar”, escreveu o articulista:4<br />
“Permittame Vossa Senhoria comparecer anonimo, porque se<br />
pela Fé e Auctorida<strong>de</strong> da Approvação <strong>de</strong> Vossa Senhoria tenho a<br />
certeza do quanto reprova, os sectários do erro, não me penso livre<br />
das tene-brosas maquinações dos seus fautores, cujo resentimento<br />
crescerá à proporção do triunfo da verda<strong>de</strong>.”<br />
Não tardou muito, entretanto, que se <strong>de</strong>scobrisse o autor da<br />
impugnarão, que fêz imprimir o seu trabalho no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
em 1814, no auge da crise religiosa. Tratava-se <strong>de</strong> um médico<br />
muito culto, o Dr. Antônio Gonçalves Gomi<strong>de</strong>, natural <strong>de</strong> Minas,<br />
nascido em 1770 e falecido em 1835, e então “assistente na zona<br />
conflagrada pela influência da santa.”<br />
Homem <strong>de</strong> larga cultura e projeção política, o Dr. Gomi<strong>de</strong>,<br />
formado pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Edimburgo, foi eleito constituinte<br />
em 1823 e mais tar<strong>de</strong>, senador do Império, honrando sempre a<br />
sua terra no <strong>de</strong>sempenho das funções públicas.<br />
Era “um clínico notável, latinista e moralista”, segundo expressão<br />
<strong>de</strong> Homem <strong>de</strong> Mello (in Fávero, Flamínio, o. c.).<br />
Na “bibliografia médico-legal brasileira”, escreve Flamínio<br />
Fávero,5 organizada em 1921, pelo Professor Oscar Freire, e<br />
apresentada à Aca<strong>de</strong>mia Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, a “Impugnação<br />
Analytica” do dr. Gomi<strong>de</strong> figura como o primeiro documento<br />
médico-legal aparecido no Brasil.<br />
São raríssimos os exemplares <strong>de</strong>sta publicação. O “Arquivo<br />
Público Mineiro” possui um, que fez reproduzir na sua “Revista”,<br />
precedido da seguinte nota explicativa: “Não ha em Minas quem<br />
não tenha ouvido alludir a uma jovem <strong>de</strong>vota que durante algum<br />
tempo habitou a serra da Pieda<strong>de</strong>, attrahindo ali a attenção e veneração<br />
<strong>de</strong> innumeros romeiros e a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns viajantes<br />
ilustres, nacionais e extrangeiros. Os extasis da irmã Germana passaram<br />
em julgado na crença popular, e ainda hoje o seu nome é invocado<br />
como o <strong>de</strong> uma santa milagrosa. Em 1814, porem, na flagrancia<br />
do fervor religioso do povo, a que se associavam homens <strong>de</strong><br />
alguma cultura scientifica, appareceu, entre as opiniões discolas, um<br />
opusculo que se tornou celebre. Embora publicado anonymamente,<br />
não se tardou em divulgar a sua verda<strong>de</strong>ira origem. O sr. Antonio<br />
Gonçalves Gomi<strong>de</strong> (l770-1835), natural <strong>de</strong> Minas e então assistente<br />
na zona conflagrada pela influencia da santa, teve a coragem <strong>de</strong><br />
contestar a crendice commum, e fez imprimir o seu trabalho em<br />
1814, no qual Saint Hilaire achou “plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sciencia e <strong>de</strong> logica”<br />
(Voyage dans le district <strong>de</strong>s diamants, pág. 144, 1º vol.).<br />
A “Revista do Arquivo Público Mineiro” reproduziu na integra<br />
no seu número referente ao ano <strong>de</strong> 1906, sob o título “Um<br />
Opúsculo Precioso”, a referida impugnação, à qual Saint-Hilaire<br />
achou “cheia <strong>de</strong> ciência e lógica, on<strong>de</strong> prova, com multidão <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s,<br />
que os êxtases <strong>de</strong> Germana não eram senão o resultado<br />
<strong>de</strong> uma catalepsia.”<br />
A impugnação é longa, escrita em tom polêmico, por vêzes<br />
irônico, e entremeada <strong>de</strong> citações estrangeiras. Nela <strong>de</strong>nota o seu<br />
autor gran<strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> história e <strong>de</strong> medicina, além <strong>de</strong> familiarida<strong>de</strong><br />
com a literatura psiquiátrica <strong>de</strong> então e o domínio <strong>de</strong><br />
várias línguas.<br />
Aparecem freqüentemente no <strong>de</strong>correr do seu trabalho referências<br />
ou citações <strong>de</strong> nomes famosos que legaram à psiquiatria<br />
alguma contribuição, entre os quais, Pinel, Cullen, Sauvages,<br />
Crichton, Chiarugi, Haslan, Tissot, etc.<br />
Ao final do seu estudo vem uma pequena bibliografia <strong>de</strong>nominada<br />
“catalogo dos Livros em que se encontrão casos circunstanciados<br />
<strong>de</strong> Catalepsia”, com a indicação dos autores, livros e revistas<br />
consultados.<br />
O Dr. Gomi<strong>de</strong> teve ainda o cuidado <strong>de</strong> escrever no rodapé<br />
uma pequena nota explicativa, esclarecendo a sua posição reli-giosa<br />
em face dos acontecimentos. Diz êle: “De nenhum modo, (como<br />
se manifesta no conteudo <strong>de</strong>ste Opusculo) me propuz a impugnar a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver pessoas Devotas, Inspiradas e Santas; porem,<br />
Canonizar os Santos pertence exclusivamente à Igreja, e ao Phylosopho<br />
compete <strong>de</strong>scobrir e promulgar a verda<strong>de</strong> natural.” A contestação<br />
<strong>de</strong>sagradou aos <strong>de</strong>votos e, o que é mais grave, incorreu na censura<br />
do assistente eclesiástico, que lamentou não ter o seu autor se<br />
dado ao trabalho <strong>de</strong> ir examinar pessoalmente a enfêrma.<br />
Parece-nos que o Dr. Gomi<strong>de</strong> temeu subir a serra, tendo já<br />
anteriormente expandido a sua opinião contrária à interpretação<br />
reinante. Da mesma forma que compareceu anônimo com o seu<br />
opúsculo, omitiu, <strong>de</strong>liberadamente o exame, para não atrair sôbre<br />
si a atenção dos <strong>de</strong>votos.<br />
A omissão, contudo, não invalida absolutamente o documento.<br />
É perfeitamente dispensável o exame quando se trata <strong>de</strong> dar<br />
parecer sôbre laudo médico já existente.<br />
“O parecer”, escreve Hélio Gomes,6 “que importa na crítica serena<br />
e fundamentada <strong>de</strong> um documento médico-legal, vale pela autorida<strong>de</strong><br />
científica e moral <strong>de</strong> quem o subscreve. Não está obrigado<br />
a compromisso legal o opinante. É documento exclusivamente particular.”<br />
E, ainda, Flamínio Fávero nos ensina:7 “Êsses pareceres constam,<br />
comumente, <strong>de</strong> quatro partes: preâmbulo, exposição, discussão<br />
e conclusões, faltando é claro, a parte <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição propriamente<br />
dita, porquanto em geral, não há exames a serem feitos.”<br />
Não obstante a doutrina consagrada pelos legistas, o Sr. Augusto<br />
<strong>de</strong> Lima Júnior8 glosou, <strong>de</strong> maneira contrária, o pre-tenso<br />
cochilo do Dr. Gomi<strong>de</strong>, escrevendo na edição dominical do “Estado<br />
<strong>de</strong> Minas”, do dia 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1958: “Outro médico, o<br />
Dr. Antônio Gonçalves Gomi<strong>de</strong>, mais tar<strong>de</strong> constituinte, em 1823,<br />
e senador do Império, dispensando-se <strong>de</strong> ir até a serra examinar <strong>de</strong><br />
visu o caso, publicou sôbre êle um folhêto, <strong>de</strong>nominando <strong>de</strong> catalépticos<br />
os fenômenos manifestados pela irmã Germana. Atribuindo a<br />
causa a uma complicação histérica da rapariga, argumentava o Dr.<br />
Gomi<strong>de</strong>, entre outras cousas, que ‘interrompido por mais ou menos<br />
o equilíbrio e correspondência simpática, entre o canal alimentar,<br />
órgãos sexuais, e sistema nervoso, se tinham originado aberrações<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58 55
Irmã Germana<br />
do princípio vital, tanto mais terríveis quantas fôssem as perturbações<br />
do referido equilíbrio.’<br />
Como se vê, continua o articulista, a explicação é ainda mais<br />
confusa do que o próprio fenômeno. Mas não ficou nisso o douto<br />
opositor dos que tinham examinado a Irmã Germana, e esten<strong>de</strong>u-se<br />
em argumentos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m fisiológica e nervosa, todos êles, afinal,<br />
que convencem pouco da naturalida<strong>de</strong> do fenômeno, assim como o<br />
laudo dos impugnados, não induziria, forçosamente, à origem sobrenatural<br />
dêles.<br />
Se o laudo dos peritos é <strong>de</strong> argumentação fraca, a impugnação<br />
do Dr. Gomi<strong>de</strong> não passa <strong>de</strong> um inteligente jôgo <strong>de</strong> palavras, complicado<br />
com abundantes citações <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> histeria e catalepsia,<br />
previamente qualificados como tais...<br />
Permaneceu e permanece a dúvida em quem, <strong>de</strong> boa-fé, se propuser<br />
a julgar do fato pelos testemunhos que dêles nos ficaram, o<br />
que não impediu que a lembrança da singular penitente ficasse ligada<br />
à serra da Pieda<strong>de</strong>. Irmã Germana, transportada para o recolhimento<br />
<strong>de</strong> Macaúbas, por or<strong>de</strong>m do bispo <strong>de</strong> Mariana, ali terminou<br />
seus dias, sempre apresentando, até o instante final, os espantosos<br />
fatos que a celebrizaram. Ninguém, ainda hoje, sobe as pedregosas<br />
e férreas encostas da serra da Pieda<strong>de</strong>, em visita à abandonada cela<br />
on<strong>de</strong> ela habitou e on<strong>de</strong>, tantas vêzes, teve seus êxtases, sem experimentar<br />
uma intensa emoção, ao recordar-se da pobre menina, cuja<br />
existência foi um martírio sôbre aquele píncaro famoso, on<strong>de</strong> Nossa<br />
Senhora apareceu à menina cega, curando-a. A velha capela <strong>de</strong><br />
Barcarena lá está branqueando ao sol e aos luares, e <strong>de</strong> longe, bem<br />
<strong>de</strong> longe, se lhe avista o vulto no horizonte, lembrando uma das<br />
mais belas tradições da nossa terra.”<br />
Discordamos fundamentalmente da interpretação dada à<br />
“Impugnação” pelo Sr. Augusto <strong>de</strong> Lima Júnior, que parece mais<br />
inclinado a acreditar na origem sobrenatural dos fenômenos<br />
apresentados pela Germana.<br />
A citação que faz o ilustre historiador mineiro, <strong>de</strong> um pequeno<br />
trecho da contestação, situado fora do seu contexto e da sua<br />
época, torna-se ininteligível.<br />
O parecer do Dr. Gomi<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixa dúvida quanto à natureza<br />
do mal. É uma peça minuciosa, exaustiva, amplamente documentada.<br />
É algo <strong>de</strong> extraordinário que existisse em Minas naquela<br />
época, em local tão <strong>de</strong>serto e <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> recursos, homem<br />
<strong>de</strong> tamanha cultura e <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> preconceitos, para afrontar corajosamente<br />
a crendice comum.<br />
Pena é que não possamos transcrever todo o documento,<br />
dada a sua extensão, para o leitor julgar do seu mérito.<br />
Vamos, contudo, extrair dêle algumas proposições <strong>de</strong> maior<br />
relêvo, para dar uma idéia, ainda que incompleta, da sua importância.<br />
Já na “Advertência”, que prece<strong>de</strong> à impugnarão propriamente<br />
dita, o seu autor <strong>de</strong>clara: “Contrariando as proposições do exame,<br />
que a proclamou Santa, vou <strong>de</strong>monstrar, que huma semiologia<br />
rasoavel nada mais acharia que doença,” Logo em seguida vem<br />
uma indagação <strong>de</strong> profundo sentido filosófico: “Talvez me arguão<br />
dizendo: que te importa a piedosa frau<strong>de</strong>, em que vivem satisfeitos<br />
os credulos? Privallos <strong>de</strong>sta illusão não he tirar-lhes hum entretenimento<br />
que os consola?.”<br />
A impugnarão propriamente dita começa da seguinte maneira:<br />
“Do estado pathologico da Doente são consequencia todos os<br />
phenomenos, que se apresentão, e que podião ser, como infinitas vezes<br />
se tem observado, mais extraordinarios, sem que <strong>de</strong>ssem ocasião<br />
à criminosa apoteose, com que se tem admirado os actuaes.<br />
56 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58<br />
Todavia as differentes anomalias da acção nervosa sobre a contração<br />
muscular tem em todos os tempos cultos e lugares induzido<br />
pessoas ignorantes a acreditar na influencia humas vezes <strong>de</strong> Deos, e<br />
outras do Diabo.<br />
Os credulos Arabes se persuadirão, que os acci<strong>de</strong>ntes epilep-ticos<br />
<strong>de</strong> seu Propheta (doença que pelo mesmo principio teve o nome<br />
<strong>de</strong> morbus sacer) provinhão do Commercio com o Céo, e com o<br />
Anjo Gabriel. As prophetizas da Antiguida<strong>de</strong> Pagan nada mais erão<br />
do que mulheres vaporosas, cujas contorsões convulsivas em parte<br />
reaes, e em parte misturadas <strong>de</strong> exageração, e <strong>de</strong> impostura, o vulgo<br />
reputava por movimentos impetuosos da Divinda<strong>de</strong>, que mal cabia<br />
nos corpos que a continhão.<br />
A persuasão da influencia do Demonio tem sido mais geral, e<br />
até Hoffman, e outros Medicos respeitáveis escreverão sobre ella, e<br />
na verda<strong>de</strong> parece mais natural imputar males terríveis ao Espirito<br />
perverso e maligno, do que a Deos infinitamente bom e sabio, incapaz<br />
portanto <strong>de</strong> se regosijar com dores <strong>de</strong> suas creaturas favorecidas.<br />
Houve tempo em que a Philosophia consistia em ver prodigios<br />
na natureza; e o que seria ordinario nos olhos da razão se magnificava<br />
pelo microscopio do fanatimo.”<br />
Mais adiante, comentando a anorexia da paciente, que dificilmente<br />
tomava alimentos e dêles se privava completamente às sextas<br />
e sábados, lembra o Dr. Gomi<strong>de</strong>: “Pouco ou quasi nada, tomado<br />
relativamente a cada hum po<strong>de</strong> vir a ser bastante para outro. O<br />
sufficiente <strong>de</strong> huma rapariga ha annos hysterica, com movimentos<br />
irritativos retrogados no canal alimentar, que vive como os animaes<br />
que invernão entorpecidos pelo frio, em huma inacção absoluta,<br />
sempre <strong>de</strong> cama, e no escuro, <strong>de</strong>ve ser muito pouco ou quasi nada<br />
comparativamente ao nosso necessário, e nada <strong>de</strong> todo nos acessos<br />
periodicos.”<br />
Depois <strong>de</strong>sta explanação, que po<strong>de</strong>ria ser subscrita pelos nutrólogos<br />
mo<strong>de</strong>rnos, o autor indaga com surprêsa: “Se a anorexia<br />
santifica, qual é a vossa opinião sobre os que pa<strong>de</strong>cem a voracida<strong>de</strong><br />
bulimica? E qual seria o alimento <strong>de</strong> uma estatua?”<br />
O Dr. Gomi<strong>de</strong> não se limitou ao diagnóstico do mal. Depois<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar textualmente: “Pa<strong>de</strong>ce pois a vossa Santa huma Catalepsia<br />
convulsiva, especie quarta da mencionada taboa <strong>de</strong> Crichton”,<br />
consi<strong>de</strong>rou os variados aspetos semiológicos da enfermida<strong>de</strong>.<br />
Procurou explicar <strong>de</strong> maneira engenhosa a periodicida<strong>de</strong> das<br />
crises catalépticas, que atingiam o seu acme aproximadamente no<br />
mesmo dia e hora em que expirou Jesus Cristo.<br />
“O Capitão João Gomes <strong>de</strong> Araujo tem huma tropa <strong>de</strong> bestas<br />
com que em todos os Sabbados exporta da roça mantimentos para a<br />
villa <strong>de</strong> Caethé. As bestas apparecem espontaneamente em todos os<br />
dias <strong>de</strong> manhã e <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> para tomar a ração <strong>de</strong> milho no que são<br />
infalíveis, e até importunas; porem, aos Sabbados não só não vem<br />
por si à casa, como se escon<strong>de</strong>m e fogem, sendo preciso procurallas<br />
e tanger para receber as cargas.<br />
A dor do trabalho constantemente repetida no fim <strong>de</strong> cada sete<br />
revoluções diurnas, faz que as i<strong>de</strong>as, e movimentos irritativos se renovem<br />
habitualmente no fim das referidas revoluções.”<br />
O exemplo citado, lembrado também por Saint-Hilaire nas<br />
suas memórias, po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rado hoje à luz dos reflexos<br />
condicionados.<br />
Mais plausível seria entretanto explicar o condicionamento<br />
psicológico das crises pela fôrça persuasiva do dia da semana em<br />
que sobrevinham, consagrado à morte do Salvador.<br />
Depois <strong>de</strong> justificar longamente o seu diagnóstico, com exemplos<br />
e citações tomados da História da <strong>Medicina</strong>, o autor do opús-
culo voltou-se para a terapêutica, antecipando em muitos pontos<br />
os conhecimentos atuais, <strong>de</strong> maneira realmente surpreen<strong>de</strong>nte.<br />
“Sim. Tudo manifesta e com a maior evi<strong>de</strong>ncia, que he Catalepsia<br />
convulsiva, porem <strong>de</strong>vieis passar avante, e tinheis ainda huma<br />
obrigação essencial, e a unica necessária para encher, que era traçar<br />
o plano <strong>de</strong> cura a miserável Doente, que abandonada à marcha do<br />
mal, ha <strong>de</strong> ficar <strong>de</strong> todo louca, ou morrer apopletica em alguns dos<br />
accessos.<br />
Podieis aconselhar a eletricida<strong>de</strong> ou o Galvanismo, que nestas<br />
enfermida<strong>de</strong>s se tem colhido soberanos effeitos, os oxidos e saes <strong>de</strong><br />
ferro, cobre, prata e zinco; o ether e o amoniaco; a hiperoxigenação<br />
do ar inspirado com que Beddoes, Thorton e outros Pneumaticos<br />
tem obtido a cura <strong>de</strong> taes affecções; a quina, a quassia, a angustura;<br />
a valeriana, a serpentaria, a arnica; a canela, o gengibre, o cardamomo;<br />
a datura-stramonium tão recommendada por Hufeland, o opio,<br />
e em alta dosis, às onze horas das noites <strong>de</strong> Quintas-feiras; a mirrha,<br />
a assafetida, a canfora; o almiscar, o castóreo, o fosforo, &. &.<br />
A transfusão?<br />
Na escolha, combinação, varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> formulas, prescrição <strong>de</strong><br />
dosis e intervalos, com que or<strong>de</strong>nasseis estes e outros remedios darieis<br />
provas <strong>de</strong> circunspecção e <strong>de</strong> talentos superiores na Arte <strong>de</strong> curar,<br />
sendo mais interessante, e vantajoso à humanida<strong>de</strong> sofredora;<br />
que fosseis Práticos circunspectos e talentosos, do que transcen<strong>de</strong>ndo<br />
os limites da vossa missão <strong>de</strong>clamadores ineptos, e inuteis à humanida<strong>de</strong><br />
em geral.”<br />
Não passou <strong>de</strong>spercebido ao Dr. Gomi<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
frau<strong>de</strong> ou simulação, tantas vêzes repetida, monotonamente, em<br />
casos idênticos, como lembra muito acertadamente o Prof. Jean<br />
Lhermitte em seu livro “Místicos e Falsos Místicos”.4<br />
O nosso precursor continua em tom polêmico: “Vós fazeis ultrage<br />
à Religião, e à Igreja, quando, dando a questão por terminada,<br />
resolveis, e <strong>de</strong>cidis, tão prompta e cathegoricamente <strong>de</strong> negocio,<br />
que Ella examina, e analysa com a mais profunda excavação, e em<br />
que contrasta todas as provas, quilate por quilate, com hum criterio<br />
divino. Os que duvidão da vossa Santa, porque lhe conhecem a<br />
doença, não são incredulos, são pru<strong>de</strong>ntes, e orthodoxos, como são<br />
superticiosos e nescios, os que a querem por força canonizar.”<br />
Insistindo ainda na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> simulação, prossegue o Dr.<br />
Gomi<strong>de</strong>: “Não se duvida da realida<strong>de</strong>; mas era do vosso <strong>de</strong>ver indagar<br />
previamente, e com a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, tino, e sagacida<strong>de</strong>, que o mesmo<br />
Fo<strong>de</strong>re insinua em toda a <strong>Medicina</strong> Legal, privativa-mente no<br />
Tom. 1 Cap. 14; e no § 162, se a doença era ou não fingida, tanto<br />
pelos innumeraveis exemplos <strong>de</strong> falsificações <strong>de</strong>ste genero, como<br />
pela pon<strong>de</strong>ravel these do Doutor Cullen, <strong>de</strong> que a Catalepsia é sempre<br />
simulada.<br />
Porem vós não viestes observar huma Cataleptica; vinheis <strong>de</strong><br />
casa prevenidos a ver huma Santa.”<br />
Também não escapou ao ilustre médico a gran<strong>de</strong> repercussão<br />
social do acontecimento, capaz <strong>de</strong> engendrar no espírito das massas<br />
incultas manifestações coletivas anormais.<br />
Antecipando-se ainda aqui ao seu tempo, advertiu o Dr. Gomi<strong>de</strong><br />
às autorida<strong>de</strong>s quanto aos riscos inerentes ao fanatismo,<br />
lembrando os melhores postulados da Psicologia Social: “A credulida<strong>de</strong><br />
da multidão ignorante, chancelada pelo vosso galimacias,<br />
além <strong>de</strong> consagração <strong>de</strong> erro, damnifica directamente a socieda<strong>de</strong>,<br />
privando-a por calculo bem mo<strong>de</strong>rado, <strong>de</strong> hum milhão <strong>de</strong> serviços<br />
na sofrega concurrencia <strong>de</strong> romeiros, que empregados em qualquer<br />
trabalho productivo, terião augmentado sensivelmente a riqueza da<br />
Nação.”<br />
Adiante, com algumas proposições can<strong>de</strong>ntes, no melhor estilo<br />
polemista da época, contínua o ilustre precursor da psiquiatria<br />
brasileira: “A Serra da Pieda<strong>de</strong> será huma Officina ou Seminario<br />
<strong>de</strong> Santos, e consta que <strong>de</strong>ntre o grupo <strong>de</strong> beatas algumas se vão<br />
gradualmente elevando à mesma perfeição, a cujos mais rapidos<br />
progressos obsta a promiscuida<strong>de</strong> dos sexos, que promovendo o pejo<br />
diverte a attenção do espetaculo imitavel aos nervos e musculos <strong>de</strong><br />
cada huma.”<br />
Em seguida lembra o autor numerosos exemplos <strong>de</strong> contágio<br />
mental registrados na literatura médica <strong>de</strong> então. Chambom afirmava<br />
que a “vista reiterada <strong>de</strong> simptomas nervosos, as faz com facilida<strong>de</strong><br />
nascer entre mulheres <strong>de</strong>licadas.” Baglivio mencionava a<br />
transmissão da epilepsia a um espectador. Whytt viu muitas vêzes<br />
afecções histéricas adquiridas da mesma ma-neira. Preston <strong>de</strong>screveu<br />
“a progressiva communicação <strong>de</strong> convulsões, que começarão<br />
em huma Rapariga assustada pela aplicação <strong>de</strong> hum rato vivo<br />
sobre o rosto.”<br />
Após esta enumeração <strong>de</strong> casos tomados da História da <strong>Medicina</strong>,<br />
escreve o Dr. Gomi<strong>de</strong>, pateticamente: “Fazei que vossas<br />
mulheres, vossas irmans, e vossas filhas contemplem na Serra da<br />
Pieda<strong>de</strong> o culto tributado à vossa Santa, cujos pés e mãos se beijão,<br />
cujas relíquias se guardão com veneração; que testemunhem compa<strong>de</strong>cidas<br />
e horrorizadas as espantosas convulsões; e tereis a vaidosa<br />
satisfação <strong>de</strong> ver algumas <strong>de</strong>las, a vosso modo, Santificadas.”<br />
O opúsculo termina com uma breve exortação aos peritos,<br />
contendo ainda em apêndice, corno já foi mencionado, “Um Catalogo<br />
dos Livros em que se encontrão casos circunstanciados <strong>de</strong> Catalepsia.”<br />
“Retirai-vos. I<strong>de</strong> rectificar os vossos juizos estudando, nas Obras<br />
que po<strong>de</strong>r<strong>de</strong>s da lista junta, a Etiologia, Semiotica e Therapeutica<br />
da doença, que vista pela primeira vez na pretendida Santa vos fascinou<br />
com tanto assombro.”<br />
Acreditamos suficientemente <strong>de</strong>monstrado que o Dr. Antôrio<br />
Gonçalves Gomi<strong>de</strong>, nascido em Minas, em 1770, possuía vastos<br />
conhecimentos <strong>de</strong> Patologia Mental, como era conhecida na<br />
época a nossa especialida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ndo ser consi<strong>de</strong>rado, com justiça,<br />
o precursor da psiquiatria em nossa terra.<br />
Foi contemporâneo <strong>de</strong> Pinel e <strong>de</strong> Benjamin Rush, o patriarca<br />
da psiquiatria americana. Prece<strong>de</strong>u <strong>de</strong> alguns anos o famoso Dr.<br />
José Martins da Cruz Jobim, que na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em<br />
1830, bradou contra o modo <strong>de</strong>sumano <strong>de</strong> tratamento dado aos<br />
alienados.<br />
Para finalizar êste trabalho, algumas consi<strong>de</strong>rações mais sobre<br />
o estado mental da Germana, corretamente diagnosticado pelo<br />
ilustre clínico.<br />
Saint-Hilaire, que a viu em transe, <strong>de</strong>clara que a rapariga era<br />
<strong>de</strong> magreza e <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> extrema, mas que a sua fisionomia era<br />
doce e agradável. Perguntou-lhe o naturalista como se achava e<br />
ela lhe respon<strong>de</strong>u, com voz quase sumida, que “estava do que merecia.”<br />
Tentou o sábio experimentar nela a ação do “magnetismo<br />
animal,” mas não obteve êxito. Entretanto, o seu confessor conseguia<br />
influenciá-la <strong>de</strong> tal maneira que podia interromper os seus<br />
êxtases para fazê-la comungar.<br />
Não escapou ao arguto observador francês a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
estar a <strong>de</strong>vota rapariga “magnetizada” pelo seu diretor espiritual,<br />
apesar da sua total ignorância do fenômeno. Escreve ele:<br />
“Se o que esse padre me relatou sobre sua ascendência sobre<br />
Germana não foi exagerado, os partidários do magnetismo animal<br />
daí tirariam provavelmente gran<strong>de</strong> partido em apoio da sua doutrina.<br />
Afirmou-me, com efeito, que em meio ás mais terríveis convul-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58 57
Irmã Germana<br />
sões era bastante que ele tocasse na doente para torná-la calma.<br />
Quando Germana se achava em seus êxtases periódicos, seus membros<br />
adquiriam tal rigi<strong>de</strong>z que seria mais fácil quebrá-los que dobrálos;<br />
mas se se po<strong>de</strong> acreditar no testemunho <strong>de</strong> seu confessor, por<br />
pouco que tocasse o braço ou a mão da doente ele lhes dava a posição<br />
que quizesse. O que é certo é que tendo o confessor <strong>de</strong> Germana<br />
lhe or<strong>de</strong>nado que comungasse em um dos seus dias <strong>de</strong> êxtases,<br />
ela se levantara, num movimento convulso, do leito em que havia<br />
sido levada à igreja; ajoelhada, mas com os braços sempre cruzados,<br />
ela recebeu a santa hóstia, e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa ocasião sempre repetiu a comunhão<br />
no meio <strong>de</strong> seus extases. Aliás, o diretor <strong>de</strong> Germana falava<br />
sempre com muita simplicida<strong>de</strong> do seu dominio sobre a pretensa<br />
santa; ele o atribuia à docilida<strong>de</strong> da enferma e seu respeito pelo carater<br />
sacerdotal, acrescentando que qualquer outro eclesiástico po<strong>de</strong>ria<br />
conseguir os mesmos resultados. Esse homem, dizia-me com<br />
aquela confiança que os magnetizadores exigem dos seus a<strong>de</strong>ptos: a<br />
obediência <strong>de</strong>ssa pobre moça é tal que, se eu lhe or<strong>de</strong>nar que passe<br />
uma semana inteira sem se alimentar, ela não hesitará em aten<strong>de</strong>rme,<br />
e nada sofrerá; mas, acrescentava, receio ofen<strong>de</strong>r a Deus com<br />
uma experiência <strong>de</strong>ssas.”<br />
É curioso notar no trecho citado, a terminologia própria da<br />
época. Saint-Hilaire usou a expressão “magnetismo animal” para<br />
<strong>de</strong>signar o fenômeno hipnótico. Mesmer estava vivo e Braid ainda<br />
não <strong>de</strong>spontara. Somente em 1843 introduziu êste último, na linguagem<br />
médica, os têrmos hipnotismo, hipnótico e hipnotizar.7<br />
“Voltando na sexta-feira ao alto da montanha - continua o naturalista<br />
nas suas memórias - fui, pela segunda vez, ao quarto da<br />
Germana. Ela se achava sôbre o seu leito, <strong>de</strong>itada <strong>de</strong> costas, com a<br />
cabeça envolta em um lenço. Seus braços estavam em cruz; um dêles,<br />
<strong>de</strong>tido pela pare<strong>de</strong>, não tivera a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r-se completamente;<br />
o outro estendia-se para fora da cama e estava apoiado<br />
sôbre um tamborete. A doente tinha as mãos extremamente frias, o<br />
polegar e o indicador estavam esticados, os outros <strong>de</strong>dos fechados,<br />
os joelhos dobrados e os pés colocados um sôbre o outro. Nessa posição<br />
Germana conservava a mais perfeita imobilida<strong>de</strong>; seu pulso<br />
era apenas perceptível e po<strong>de</strong>r-se-ia acreditá-la morta se seu peito,<br />
<strong>de</strong>vido à respiração, não agitasse ligeiramente a coberta.<br />
Experimentei varias vezes dobrar seus braços, inutilmente; a rigi<strong>de</strong>z<br />
dos musculos aumentava em consequência <strong>de</strong> meus esforços e<br />
convenci-me <strong>de</strong> que se insistisse po<strong>de</strong>ria prejudicar a doente. Na<br />
verda<strong>de</strong> fechei suas mãos varias vezes, mas no momento em que largava<br />
seus <strong>de</strong>dos eles retomavam a posição anterior. A irmã <strong>de</strong> Germana,<br />
que ordinariamente cuidava <strong>de</strong>la, e que se achava presente na<br />
ocasião <strong>de</strong> minha visita, disse-me que essa pobre moça não se apresentava<br />
sempre tão calma durante seus extases, como nesse dia; que<br />
na verda<strong>de</strong> seus pés e seus braços ficavam constantemente imóveis,<br />
mas que ela frequentemente gemia e suspirava, que sua cabeça se<br />
agitava sobre o travesseiro, e que movimentos convulsivos se manifestavam<br />
principalmente aí pelas três horas, momento em que Jesus<br />
Cristo expirara.”<br />
A <strong>de</strong>scrição do sábio francês não <strong>de</strong>ixa dúvidas quanto ao<br />
transe cataléptico <strong>de</strong> Germana, corretamente diagnosticado pelo<br />
Dr. Gomi<strong>de</strong>, e que imitava, com a sua postura, a crucificação.<br />
Não faz, contudo, referência alguma à estigmatização, embora os<br />
seus pés estivessem como que encravados um sobre o outro. É<br />
importante notar que o transe apareceu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter meditado<br />
um dia a pobre moça sôbre os mistérios da Paixão.<br />
Alguns teóricos do misticismo explicam a postura e as chagas<br />
dos gran<strong>de</strong>s estigmatizados pela habitual concentração da atenção<br />
sôbre o crucifixo, que é contemplado diariamente, em parti-<br />
58 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58<br />
cular estado <strong>de</strong> espírito. É a i<strong>de</strong>ntificação com o Salvador, ou melhor,<br />
a Compaixão (compassio), que leva o místico a participar dos<br />
seus sofrimentos, reproduzindo na sua própria carne a atitu<strong>de</strong> e<br />
as chagas do Cristo.<br />
Este “complexo da crucificação”, diz Jean Lhermitte,9 produz<br />
em indivíduos frágeis e dotados <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong> exagerada,<br />
uma influência muito particular. A propósito, lembra que<br />
para Thurston a influência do estado somático é essencial.<br />
“Os santos fisicamente vigorosos, escreve, não foram jamais<br />
agraciados com estigmas, apesar da sua <strong>de</strong>voção à Paixão <strong>de</strong> Nosso<br />
Senhor e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> participar dos seus sofrimentos. Ao passo que<br />
numerosas mulheres <strong>de</strong>votas, que jamais foram beatificadas, e cuja<br />
história revela certas extra-vagâncias da sensibilida<strong>de</strong>, foram contempladas<br />
com efusões sanguinolentas, das cinco chagas <strong>de</strong> Jesus<br />
Cristo.”<br />
Jean Lhermitte não po<strong>de</strong> ser acusado <strong>de</strong> parcialida<strong>de</strong>; além <strong>de</strong><br />
neuropsiquiatra famoso, é católico praticante, tendo publicado o<br />
seu livro com o “Nihil Obstat” e o “Imprimatur” das autorida<strong>de</strong>s<br />
eclesiásticas parisienses.<br />
No <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> esclarecer os aci<strong>de</strong>ntes da vida mística autên-tica,<br />
bem como das contrafações do misticismo, escreveu o ilustre professor<br />
uma pequena obra prima - “Místicos e Falsos Místicos” - na<br />
qual observa que no Oriente não se produzem estigmatizações, ao<br />
contrário do Oci<strong>de</strong>nte, on<strong>de</strong> são relativamente freqüentes. É possível,<br />
acrescenta, que esta particularida<strong>de</strong> esteja ligada à arte e às<br />
diversas maneiras <strong>de</strong> representação do Cristo.<br />
“Não <strong>de</strong>scobrimos na arte bizantina, escreve, a dor que se exala<br />
dos nossos calvários, dos nossos crucifixos, ou das pinturas realistas<br />
dos norte-europeus. Não se experimenta em face do Crucificado a<br />
compaixão e o sofrimento compartido; o que domina é a gran<strong>de</strong>za,<br />
o esplendor, a majesta<strong>de</strong> dAquêle que ressuscitou.”<br />
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
CCP agra<strong>de</strong>ce ao Centro <strong>de</strong> Memória da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />
da <strong>UFMG</strong> e ao Dr. Ciro Gomi<strong>de</strong> pela prestimosa e valiosa<br />
contribuição.<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Saint-Hilaire H. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e litoral<br />
do Brasil (tradução <strong>de</strong> Pena LA). São Paulo: Companhia<br />
Editora Nacional; 1941. Coleção Brasiliana, vol. 210, p. 100.<br />
2. Gomi<strong>de</strong> AG. Impugnação analytica ao exame feito pelos clínicos<br />
Antonio Pedro <strong>de</strong> Souza e Manoel Quintão da Silva,<br />
em huma rapariga que julgarão Santa, na Capella <strong>de</strong> Nossa<br />
Senhora da Pieda<strong>de</strong> da Serra (Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1814). In: Um<br />
opusculo precioso; Revista do Archivo Publico Mineiro, Fascículos,<br />
I, II, III e IV,1906 Belo Horizonte. p. 759-774.<br />
3. Fávero F. <strong>Medicina</strong> Legal. 3ª ed. São Paulo: Livraria Martins<br />
Editora, 1945. Vol. 1, p. 14 e 44.<br />
4. Gomes H. <strong>Medicina</strong> Legal. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria Freitas<br />
Bastos S.A., 1957. Vol. 1, p. 45 e 82.<br />
5. Lima Jr A. Povoadores dos Arredores da Serra da Pieda<strong>de</strong>.<br />
Estado <strong>de</strong> Minas 1958 10 <strong>de</strong> agosto.<br />
6. Lliermitte J. Mystiques et Faux Mystiques. Paris: Bloud &<br />
Gay; 1952.<br />
7. Zilboorg G, Henry GW. Historia <strong>de</strong> la Psicologia Medica.<br />
Buenos Aires: Libreria Hachette S.A.; 1945. p. 390.
Homenagem<br />
Maurício Viotti Daker *<br />
Resumo<br />
DEMÊNCIA PRECOCE NA SEXTA EDIÇÃO DE KRAEPELIN EM 1899<br />
DEMENTIA PRAECOX IN KRAEPELIN’S SIXTH EDITION IN 1899<br />
Em homenagem aos 100 anos da sexta edição do tratado <strong>de</strong> Kraepelin,<br />
em que pela primeira vez foram <strong>de</strong>limitados em capítulos<br />
próprios a <strong>de</strong>mência precoce e a psicose maníaco-<strong>de</strong>pressiva, traduzimos<br />
para o português a <strong>de</strong>scrição dos sintomas gerais da <strong>de</strong>mência<br />
precoce. Segue anexo com os índices referentes às classificações<br />
dos transtornos mentais contidos em várias edições <strong>de</strong> seu<br />
tratado, que permitem vislumbrar o extraordinário avanço obtido<br />
até a sexta edição.<br />
Palavras-chave: Emil Kraepelin; Dementia Praecox; História da<br />
<strong>Psiquiatria</strong><br />
Casos Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong> homenageia os 100 anos da sexta<br />
edição do tratado <strong>de</strong> Kraepelin com a tradução dos sintomas<br />
gerais da <strong>de</strong>mência precoce. Nessa edição foram <strong>de</strong>limitados pela<br />
primeira vez em contornos atuais e em capítulos próprios a <strong>de</strong>mência<br />
precoce e a psicose maníaco-<strong>de</strong>pressiva. No texto original,<br />
segue a presente <strong>de</strong>scrição ao longo <strong>de</strong> outras 215 páginas, a<br />
<strong>de</strong>scrição das formas hebefrênica, catatônica e paranói<strong>de</strong>, bem<br />
como consi<strong>de</strong>rações sobre as causas, o diagnóstico e diagnóstico<br />
diferencial, mais o tratamento da <strong>de</strong>mência precoce.<br />
O primeiro volume <strong>de</strong>ssa “edição clássica” se intitula “<strong>Psiquiatria</strong><br />
Geral”, on<strong>de</strong> são abordadas as causas dos transtornos<br />
mentais, suas manifestações psicopatológicas, os cursos, a investigação<br />
diagnóstica e o tratamento. O segundo diz respeito à “<strong>Psiquiatria</strong><br />
Clínica”, com exposição dos diversos quadros clínicos: os<br />
relacionados a infecções, os associados a esgotamento físico, a intoxicações,<br />
os transtornos tireogênicos, a <strong>de</strong>mência precoce, a <strong>de</strong>mência<br />
paralítica, os transtornos oriundos <strong>de</strong> acometimentos cerebrais,<br />
os da ida<strong>de</strong> avançada, o transtorno mental maníaco-<strong>de</strong>pressivo,<br />
a paranóia, as neuroses, os estados psicopáticos e as inibições<br />
ou retardos do <strong>de</strong>senvolvimento psíquico. Como se po<strong>de</strong><br />
observar, trata-se <strong>de</strong> tratado com formato e temas atuais.<br />
Anexo divulgamos os índices referentes às classificações da<br />
primeira, terceira, quinta e sexta edições <strong>de</strong> Kraepelin, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos<br />
observar o extraordinário avanço obtido. Embora não traduzidos,<br />
acreditamos que o leitor po<strong>de</strong>rá compreen<strong>de</strong>r gran<strong>de</strong><br />
parte do texto, por se tratarem muitas vezes <strong>de</strong> expressões <strong>de</strong> origem<br />
grega ou latina.<br />
* Prof. Adjunto Doutor do Departmento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e<br />
Neurologia da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong>.<br />
Capítulo V. A Dementia praecox.<br />
Sob o nome <strong>de</strong> <strong>de</strong>mentia praecox seja-nos permitido resumir<br />
provisoriamente uma série <strong>de</strong> quadros <strong>de</strong> doenças cuja proprieda<strong>de</strong><br />
comum consiste no <strong>de</strong>sfecho em um peculiar estado <strong>de</strong>ficitário.<br />
Parece, na verda<strong>de</strong>, que esse <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong>sfavorável não tem<br />
que ocorrer sem exceção, mas ocorre com tal freqüência que, por<br />
enquanto, preten<strong>de</strong>mos insistir na <strong>de</strong>nominação em uso. Talvez<br />
ainda fossem mais a<strong>de</strong>quadas outras <strong>de</strong>nominações como a <strong>de</strong>menza<br />
primitiva dos italianos ou a expressão preferida por Rieger<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>mentia simplex. Com base nos fatos clínicos e anatômicos<br />
até agora conhecidos, não posso duvidar que lidamos aqui com<br />
lesões severas do córtex cerebral e, <strong>de</strong> regra, no máximo parcialmente<br />
reversíveis. No entanto, se o processo <strong>de</strong> doença é sempre<br />
o mesmo, isso, por ora, tem que ser consi<strong>de</strong>rado ainda totalmente<br />
incerto.<br />
Sob o ponto <strong>de</strong> vista clínico, se recomenda, talvez, para efeito<br />
<strong>de</strong> clareza, manter-se separados três grupos principais da <strong>de</strong>mentia<br />
praecox, que todavia estão sem dúvida ligados através <strong>de</strong><br />
fluidas transições uns com os outros. Preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signar essas<br />
formas como hebefrênica, catatônica e paranói<strong>de</strong>. A primeira <strong>de</strong>las<br />
correspon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>signada por mim anteriormente <strong>de</strong> <strong>de</strong>mentia<br />
praecox, a segunda à catatonia, enquanto que a terceira abrange a<br />
<strong>de</strong>mentia paranoi<strong>de</strong>s e, além disso, aqueles casos que correspon<strong>de</strong>riam<br />
à paranóia, caso não levassem rapidamente a um acentuado<br />
grau <strong>de</strong> fraqueza mental. Todo o domínio da <strong>de</strong>mentia praecox<br />
correspon<strong>de</strong>, em essência, aos quadros <strong>de</strong> doença antes <strong>de</strong>signados<br />
Verblödungsprocesse*. Gostaria <strong>de</strong> sugerir essa mudança na<br />
<strong>de</strong>signação, porque também a paralisia e a <strong>de</strong>mência senil, assim<br />
como uma série <strong>de</strong> outros processos <strong>de</strong> doença po<strong>de</strong>m da mesma<br />
forma ser compreendidos com o nome <strong>de</strong> Verblödungsprocesse.<br />
A varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> estados <strong>de</strong> quadros clínicos que observamos<br />
no curso da <strong>de</strong>mentia praecox é <strong>de</strong> tal magnitu<strong>de</strong> que, freqüentemente,<br />
numa observação superficial, a correspondência interna é<br />
apenas dificilmente reconhecida. Não obstante, <strong>de</strong>frontamo-nos<br />
reiteradamente com certos transtornos básicos em forma mais ou<br />
menos característica, <strong>de</strong> modo mais puro, na verda<strong>de</strong>, nos estados<br />
finais, nos quais as manifestações mais casuais e passageiras do<br />
processo <strong>de</strong> doença recuaram diante das duradouras e marcantes<br />
alterações da vida psíquica.<br />
* Termo <strong>de</strong> difícil tradução: "processo <strong>de</strong> embrutecimento" ou <strong>de</strong> "imbecilização", ainda <strong>de</strong><br />
"embotamento mental ou psíquico", sempre <strong>de</strong>notando um especial enfraquecimento psíquico.<br />
Entida<strong>de</strong> disposta na 5ª edição do Tratado <strong>de</strong> Kraepelin <strong>de</strong>ntre as "Doenças Metabólicas",<br />
em conjunto com a psicose mixe<strong>de</strong>matosa, o cretinismo e a <strong>de</strong>mentia paralytica, com<br />
as subformas <strong>de</strong>mentia praecox, catatonia e <strong>de</strong>mentia paranoi<strong>de</strong>s.<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e Neurologia<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong><br />
Av. Prof. Alfredo Balena 190<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67 59
Demência precoce na sext edição <strong>de</strong> Kraepelin em 1899<br />
A simples consi<strong>de</strong>ração das impressões externas não costuma<br />
transparecer na <strong>de</strong>mentia praecox um acometimento por dano grave.<br />
Os doentes percebem muito bem, em geral, o que ocorre em<br />
torno <strong>de</strong>les, freqüentemente muito melhor do que se po<strong>de</strong>ria esperar<br />
ante seus comportamentos. É surpreen<strong>de</strong>nte que doentes<br />
com aparência <strong>de</strong> total embotamento tenham apreendido corretamente<br />
todos os possíveis pormenores do seu ambiente; <strong>de</strong> repente<br />
conhecem os nomes <strong>de</strong> seus companheiros e observam mudanças<br />
no traje do médico. Em virtu<strong>de</strong> disso, no mais das vezes a<br />
orientação também está intacta. Sabem, via <strong>de</strong> regra, on<strong>de</strong> se encontram,<br />
reconhecem as pessoas, possuem clareza quanto à noção<br />
<strong>de</strong> tempo. Apenas em estupor e em impetuosos estados ansiosos<br />
po<strong>de</strong> a orientação encontrar-se <strong>de</strong> vez em quando mais fortemente<br />
perturbada, mas é francamente característico que os doentes<br />
permaneçam plenamente lúcidos apesar da mais forte inquietação.<br />
Por outro lado, todavia, a orientação é prejudicada não raramente<br />
por <strong>de</strong>lírios. Os doentes indicam falsamente locais e pessoas ou dizem<br />
uma data errada, não <strong>de</strong>vido a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r e<br />
<strong>de</strong> refletir corretamente, senão porque suas idéias <strong>de</strong>lirantes são<br />
mais po<strong>de</strong>rosas do que os pontos <strong>de</strong> referência fornecidos pela<br />
percepção. Decerto, não é sempre possível ter clareza sobre essa<br />
situação, porque muitas vezes os doentes não prestam nenhuma<br />
informação ou o fazem <strong>de</strong> forma propositadamente falsa.<br />
Os sentidos em nossos pacientes estão acometidos com muita<br />
frequência por graves transtornos, surgindo falsas percepções. Especialmente<br />
na evolução aguda ou subaguda da doença elas quase<br />
nunca faltam. Aqui e ali acompanham toda a evolução da doença;<br />
usualmente diminuem gradualmente mais tar<strong>de</strong>, para então<br />
nos estados finais se apresentarem somente <strong>de</strong> vez em quando<br />
com alguma força. No mais das vezes são falseamentos auditivos,<br />
a seguir falseamentos visuais e das sensações, a percepção <strong>de</strong> correntes<br />
elétricas, toques ou influências. No início da doença os falseamentos<br />
costumam possuir conteúdo <strong>de</strong>sagradável e os doentes<br />
encontrar-se intensamente inquietos. Mais tar<strong>de</strong>, no mais das vezes,<br />
tornam-se impassíveis, se excluirmos os estados passageiros<br />
<strong>de</strong> agitação. Alguns doentes contemplam os falseamentos como<br />
produções artísticas, como um tipo <strong>de</strong> teatro que lhes é encenado,<br />
divertem-se também com isso. Mas outros não tomam qualquer<br />
conhecimento da situação e somente ante questionamento insistente<br />
prestam alguma informação esparsa sobre o conteúdo <strong>de</strong><br />
seus falseamentos. No mais das vezes essa informação é totalmente<br />
insensata e incoerente. Assim ouvia um doente, no mais, plenamente<br />
sereno e or<strong>de</strong>nado, frases duradouras como as seguintes,<br />
que mostram claramente a manifestação da rigi<strong>de</strong>z da i<strong>de</strong>ação:<br />
“Pois nós mesmos po<strong>de</strong>mos sempre esperar que <strong>de</strong>vemos nos<br />
<strong>de</strong>ixar pagar outros pensamentos. Pois nós mesmos queremos<br />
querer sabê-lo, quem conosco <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>ixar a porca cabeça<br />
atormentar loucamente até a morte. Não, nós mesmos<br />
não somos mais tão tolos e não ligamos sempre para isso, se<br />
<strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>ixar diminuir a bebe<strong>de</strong>ira. Porque nós fazemos<br />
loucamente mesmo e a nós mesmos <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>ixar enganar<br />
porca e tolamente.”<br />
A consciência do doente está em muitos casos plena e duradouramente<br />
clara. Apenas em estados <strong>de</strong> agitação e <strong>de</strong> estupor ela<br />
chega, em parte, à turvação, muito embora esta seja, no mais das<br />
60 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67<br />
vezes, menos acentuada do que parece à primeira vista. Graves<br />
transtornos apresenta regularmente, pelo contrário, a atenção.<br />
Ainda que freqüentemente se po<strong>de</strong> fazer com que o doente preste<br />
atenção, persiste não raro gran<strong>de</strong> distraimento, que torna impossível<br />
uma duradoura insistência num mesmo objeto. Sobretudo<br />
falta ao doente, quase sempre, o interesse, a tendência <strong>de</strong> dirigir<br />
sua atenção aos fenômenos em seu meio a partir <strong>de</strong> impulsos<br />
internos próprios. Muito embora percebam corretamente o que<br />
se passa em torno <strong>de</strong>les, não se atentam ao ocorrido, procuram<br />
não apreendê-lo e compreendê-lo. Em estupor profundo ou em<br />
avançada imbecilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ainda tornar-se totalmente impossível<br />
estimular <strong>de</strong> qualquer modo a atenção do doente. Contrariamente,<br />
vez por outra se observa durante o <strong>de</strong>saparecimento do<br />
estupor o surgimento <strong>de</strong> uma certa curiosida<strong>de</strong> nos doentes; eles<br />
observam furtivos o que se passa no quarto, acompanham o médico<br />
à distância, vêem através das portas abertas, mas se viram<br />
quando chamados ou olham no vazio quando se quer mostrarlhes<br />
algo. Aparentemente, aqui a atenção que ressurge é mantida<br />
oclusa através do negativismo.<br />
A memória dos doentes está relativamente pouco perturbada.<br />
São capazes <strong>de</strong> informar corretamente, quando querem, sobre<br />
seus passados, sabem freqüentemente com precisão <strong>de</strong> dias há<br />
quanto tempo estão no sanatório. Preservam às vezes seus conhecimentos<br />
adquiridos na escola com surpreen<strong>de</strong>nte resistência, até<br />
o período do mais profundo embotamento mental. Lembro-me<br />
<strong>de</strong> um parvo moço camponês que diante do mapa era capaz <strong>de</strong><br />
apontar sem hesitação qualquer cida<strong>de</strong>; um outro impressionava<br />
por seus conhecimentos históricos; ainda outros resolvem com facilida<strong>de</strong><br />
difíceis cálculos matemáticos. Também a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
fixar está geralmente bem preservada. No entanto, verifica-se<br />
após severo estupor, não raramente, que os doentes não <strong>de</strong>têm<br />
praticamente nenhuma ou apenas obscura lembrança dos fenômenos<br />
durante longos períodos <strong>de</strong> tempo; mas, por outro lado,<br />
mesmo doentes totalmente alheios conseguem, no mais das vezes<br />
facilmente, gravar números ou nomes que, então, dias e semanas<br />
<strong>de</strong>pois po<strong>de</strong>m evocar corretamente. Decerto, respostas errôneas<br />
são freqüentemente fornecidas, antes <strong>de</strong> tudo <strong>de</strong>vido ao negativismo,<br />
até que se torna claro, ante investigação mais profunda,<br />
que o doente tinha gravado muito bem a tarefa.<br />
O pensamento dos doentes costuma estar sempre, mais cedo<br />
ou mais tar<strong>de</strong>, sensivelmente acometido. Mesmo se <strong>de</strong>ixarmos <strong>de</strong><br />
lado a confusão dos estados <strong>de</strong> agitação e o estupor, no qual não<br />
po<strong>de</strong>mos acessar os processos internos, ocorre via <strong>de</strong> regra mais<br />
e mais uma certa <strong>de</strong>sagregação do pensamento, como <strong>de</strong>screvemos<br />
antes pormenorizadamente. Em casos mais leves, esta se<br />
mostra, talvez, apenas na maior distratibilida<strong>de</strong> e inconstância, no<br />
repentino passar <strong>de</strong> um objeto a outro, no entrelaçar <strong>de</strong> modos <strong>de</strong><br />
fala superficiais com pensamentos tangenciais; em transtornos<br />
mais graves, no entanto, <strong>de</strong>senvolve-se não raramente a confusão<br />
da linguagem com sua plena perda <strong>de</strong> conexão e seus neologismos.<br />
Decerto <strong>de</strong>ve aqui ser reconhecido que o pensamento propriamente<br />
está possivelmente muito menos perturbado do que as<br />
aparências indicam, já que em certas circunstâncias os doentes<br />
não apenas apreen<strong>de</strong>m bem, como também <strong>de</strong>senvolvem o<br />
apreendido e po<strong>de</strong>m <strong>de</strong> certo modo comportar-se <strong>de</strong> forma or<strong>de</strong>nada.<br />
De resto, nos pensamentos dos doentes quase sempre nos<br />
<strong>de</strong>paramos com os sinais <strong>de</strong> estereotipia, <strong>de</strong> retenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>termi-
nadas idéias que po<strong>de</strong>m inclusive dominar o pensamento <strong>de</strong> tal<br />
forma que durante semanas ou meses se manifestam sempre as<br />
mesmas escassas locuções. Freqüentemente, observamos também<br />
a tendência a rimas, a repetição sem sentido <strong>de</strong> sons, a forçadas<br />
brinca<strong>de</strong>iras com palavras.<br />
Muito prejudicada é, sem exceção, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> juízo dos<br />
doentes. Embora <strong>de</strong> vez em quando se movimentem tão seguros<br />
em conhecida trilha, logo costumam fracassar assim que se trata<br />
<strong>de</strong> assimilar mentalmente novas experiências. Não mais compreen<strong>de</strong>m<br />
corretamente o que suce<strong>de</strong> em torno <strong>de</strong>les, não se dão<br />
conta das circunstâncias, não meditam, não chegam à conclusão<br />
mais indicada e não fazem reparos a si mesmos. Por conseqüência,<br />
possuem no mais das vezes uma idéia totalmente falsa <strong>de</strong> suas<br />
situações, <strong>de</strong> seus estados. Se também existe não raramente uma<br />
certa consciência da alteração doentia que os envolveu, falta-lhes<br />
usualmente a compreensão mais profunda para a gravida<strong>de</strong> do<br />
transtorno e para as extensas consequências que o mesmo lhe trará<br />
para todo o futuro.<br />
Com extrema freqüência se <strong>de</strong>senvolvem nesse terreno idéias<br />
<strong>de</strong>lirantes, passageiras ou duradouras. No primeiro momento da<br />
doença elas costumam apresentar prepon<strong>de</strong>rantemente conteúdo<br />
<strong>de</strong> tristeza, idéias hipocondríacas, <strong>de</strong> culpa e <strong>de</strong> perseguição.<br />
Mais tar<strong>de</strong> se associam freqüentemente idéias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, ou estas<br />
bem que se apresentam em primeiro plano. Todas essas idéias<br />
<strong>de</strong>lirantes mostram muito prontamente, via <strong>de</strong> regra, um caráter<br />
absurdo e excêntrico, aparentemente <strong>de</strong>vido ao enfraquecimento<br />
mental que rapidamente se <strong>de</strong>senvolve. Elas também não são<br />
imutáveis, senão que seus conteúdos variam mais ou menos rapidamente<br />
mediante o <strong>de</strong>saparecimento dos anteriores, novos elementos<br />
se apresentam. Às vezes os doentes manifestam quase todos<br />
os dias novas particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>lirantes, apesar <strong>de</strong> certa característica<br />
duradoura, e bem que se <strong>de</strong>ixam ainda incitar, através<br />
<strong>de</strong> persuasão, a inventar quaisquer formações <strong>de</strong>lirantes. Na<br />
gran<strong>de</strong> maioria dos casos a formação <strong>de</strong>lirante, inicialmente muito<br />
exuberante, cessa gradual e totalmente. Quando muito, permanecem<br />
ainda por algum tempo idéias <strong>de</strong>lirantes isoladas, que não<br />
mais são elaboradas, ou elas emergem <strong>de</strong> tempos em tempos, ou<br />
finalmente caem duradoura e plenamente no esquecimento. Apenas<br />
naquele grupo <strong>de</strong> observações que preten<strong>de</strong>mos resumir<br />
como formas paranói<strong>de</strong>s, as idéias <strong>de</strong>lirantes se conservam por<br />
mais tempo, mas também aqui elas se tornam sempre mais <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadas<br />
e <strong>de</strong>sconexas.<br />
Ocorrem regularmente transtornos muito marcantes e profundos<br />
na vida afetiva <strong>de</strong> nossos doentes. O início da doença é<br />
constituído por alterações afetivas extremamente freqüentes <strong>de</strong><br />
tristeza e ansieda<strong>de</strong>, às vezes com intensa agitação. Algo mais raros<br />
são estados <strong>de</strong> animado divertimento com constantes risos<br />
exuberantes. No entanto, muito mais importante do que esses estados<br />
passageiros é o embotamento afetivo, que se manifesta sem<br />
exceção em maior ou menor grau e que representa uma das características<br />
essenciais do processo <strong>de</strong> doença. Já a falta <strong>de</strong> interesse<br />
para com o meio, acima referida, po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rada<br />
como manifestação parcial <strong>de</strong>ste transtorno geral, uma vez que os<br />
motivos internos para a intensida<strong>de</strong> da atenção são fornecidos<br />
precisamente pelas emoções. A peculiar indiferença dos doentes<br />
ante suas relações outrora calorosas, a extinção da simpatia para<br />
com parentes e amigos, da satisfação com ativida<strong>de</strong>s e trabalho,<br />
com diversão e prazeres, é não raro o primeiro e mais marcante<br />
sinal do mal que irrompe. Os doentes, mesmo quando <strong>de</strong> certa<br />
forma os movimentos expressivos ainda são intensos, não sentem<br />
nenhuma alegria <strong>de</strong> fato e nenhuma tristeza mais, não nutrem <strong>de</strong>sejos<br />
nem receios, senão que vivem apáticos ao longo do dia, ora<br />
embotados e ensimesmados, ora em hilarida<strong>de</strong> supérflua. Mesmo<br />
ante mal-estar corporal parece, muitas vezes, terem-se tornado insensíveis,<br />
toleram posições <strong>de</strong>sconfortáveis, agulhadas e feridas<br />
sem se importarem muito com isso. Muitas vezes, no entanto, a<br />
alimentação é mantida por muito tempo como uma especial atração.<br />
Observa-se os doentes receberem seus parentes sem cumprimentos<br />
ou outro sinal <strong>de</strong> estímulo agradável, mas revistam apressadamente<br />
suas bolsas e cestas a procura <strong>de</strong> alimentos, que costumam<br />
abocanhar prontamente até o último resto. Também nos estados<br />
finais da doença a total indiferença ante todos os fenômenos<br />
do meio é uma característica fundamental do quadro clínico.<br />
Aqui po<strong>de</strong> muito bem, sob certas circunstâncias, associar-se uma<br />
certa irritabilida<strong>de</strong>, que no mais das vezes se manifesta apenas esporadicamente<br />
e mais raramente permanece duradoura.<br />
Passo a passo com esse profundo transtorno da vida afetiva<br />
caminham as propagadas e variadas manifestações doentias no<br />
campo do comportamento e ação, que mais conferem a todo o<br />
quadro clínico sua peculiar característica. O fundamento geral<br />
parece ser sobretudo uma redução da vonta<strong>de</strong>, como se apresenta<br />
particularmente na abulia dos estados finais, mas que frequentemente<br />
se manifesta com clareza já <strong>de</strong> início. Os doentes per<strong>de</strong>m<br />
cada impulso próprio para a ação e a ativida<strong>de</strong>, sentam-se ociosos<br />
a esmo, <strong>de</strong>scuidam <strong>de</strong> suas obrigações, muito embora talvez ainda<br />
estejam em condições <strong>de</strong> se ocuparem <strong>de</strong> estímulos externos<br />
<strong>de</strong> modo mais or<strong>de</strong>nado. Ao lado <strong>de</strong>ssa incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />
autônoma po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver-se duradoura ou passageiramente<br />
um impulso mais ou menos intenso para o movimento, que sob<br />
certas circunstâncias aumenta até o mais tempestuoso frenesi.<br />
Mas também aqui não lidamos, como abordado anteriormente,<br />
com um aumento da vonta<strong>de</strong>, senão que apenas com uma excitação<br />
motora; os movimentos não visam a realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />
objetivos, senão que constituem a expressão <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada <strong>de</strong><br />
tensão interna.<br />
No entanto, associa-se a essa excitação, via <strong>de</strong> regra, também<br />
uma facilitada transformação <strong>de</strong> impulsos <strong>de</strong> movimento em ação.<br />
Observamos nossos doentes em repentinos acometimentos <strong>de</strong>stroçar<br />
vidros, colocar as pernas através da gra<strong>de</strong> da janela, <strong>de</strong>rrubar<br />
mesas e ca<strong>de</strong>iras, machucar-se, fazer sérias tentativas <strong>de</strong> suicídio.<br />
Todas essas ações absurdas costumam ser executadas repentinamente<br />
como um raio e com gran<strong>de</strong> violência, assim que emerge o<br />
impulso para tanto. Faltam aos doentes nessas circunstâncias razões<br />
compreensíveis para o movimento, agem impulsivamente<br />
sem dar conta da finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus atos, mesmo se, por vezes,<br />
procuram ainda justificá-los posteriormente através <strong>de</strong> reflexões.<br />
Essa incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reprimir impulsos emergentes não se encontra,<br />
porém, apenas na excitação, senão que freqüentemente<br />
também no estupor da <strong>de</strong>mentia praecox. Este é dominado, em geral,<br />
pela manifestação do bloqueio da vonta<strong>de</strong>; cada impulso é, <strong>de</strong><br />
início, apagado através <strong>de</strong> outro ainda mais forte em sentido contrário.<br />
Desse modo surge o sintoma doentio do negativismo, que<br />
encontramos aqui com infindável frequência nas mais diversas<br />
formas. Aqui pertencem a inflexível oposição contra cada mudan-<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67 61
Demência precoce na sext edição <strong>de</strong> Kraepelin em 1899<br />
ça <strong>de</strong> postura, contra a ingestão <strong>de</strong> alimentos e a vestimenta, o fechar<br />
dos olhos, o <strong>de</strong>sviar a cabeça e o esgueirar-se ao ser-lhe dirigida<br />
a palavra, a retenção <strong>de</strong> fezes, urina e saliva, o escon<strong>de</strong>r-se<br />
sob a roupa <strong>de</strong> cama, o <strong>de</strong>sdém ao leito, o mutismo, a procura <strong>de</strong><br />
respostas disparatadas, a repentina interrupção <strong>de</strong> movimentos e<br />
ações iniciados, a inacessibilida<strong>de</strong> ante todas as solicitações e intervenções.<br />
Esse negativismo, cuja expressão e intensida<strong>de</strong> na verda<strong>de</strong><br />
muda com freqüência, mas que apenas raramente é influenciável<br />
<strong>de</strong> fora, po<strong>de</strong> também ser <strong>de</strong> todo interrompido repentina<br />
e bruscamente mediante impulsos internos, <strong>de</strong> modo que o até então<br />
inerte doente logo pratica com a maior energia e rapi<strong>de</strong>z alguma<br />
ação insensata qualquer, para, talvez da mesma forma repentina,<br />
submergir <strong>de</strong> retorno ao estado anterior.<br />
Freqüentemente, todavia, os impulsos uma vez emergentes<br />
não <strong>de</strong>saparecem <strong>de</strong> novo prontamente, senão que se repetem<br />
renovados ao longo <strong>de</strong> períodos mais curtos ou longos. Desse<br />
modo resultam todas aquelas variadas estereotipias do movimento<br />
e da ação, que <strong>de</strong> forma tão singular constituem nomeadamente<br />
o quadro da catatonia, além da verbigeração e finalmente<br />
dos maneirismos, que pelo menos em sua maior parte nada mais<br />
são do que enrijecidas alterações doentias das correntes ações. A<br />
respiração, a fala, a escrita, o parar e o andar, o vestir-se e <strong>de</strong>spirse,<br />
o dar as mãos e alimentar-se, os gestos não fluem do modo<br />
usualmente <strong>de</strong>sembaraçado, senão que vêm <strong>de</strong>terminados,<br />
acompanhados, atravessados por toda sorte <strong>de</strong> impulsos acessórios,<br />
que apesar das mais variadas diversida<strong>de</strong>s pessoais ainda<br />
mostram certas formas sempre repetidas e, sobretudo, nos mesmos<br />
doentes se mantêm freqüentemente ao longo <strong>de</strong> anos ou décadas<br />
com gran<strong>de</strong> resistência. Mais adiante teremos que <strong>de</strong>screvê-las<br />
em <strong>de</strong>talhes.<br />
Com a severa perturbação da vonta<strong>de</strong>, com o <strong>de</strong>clínio dos<br />
próprios impulsos e inibições, po<strong>de</strong>ria finalmente encontrar-se<br />
também próximamente relacionado o sintoma do automatismo<br />
ao comando, muito freqüente na <strong>de</strong>mentia praecox. Os doentes,<br />
particularmente em avançado embotamento mental, não são apenas<br />
no geral dóceis, <strong>de</strong> modo a formar a indispensável classe daquela<br />
gran<strong>de</strong> população que voluntariamente se submete à uniforme<br />
rotina diária dos gran<strong>de</strong>s sanatórios, senão que mostram<br />
também em pormenores freqüentes sinais <strong>de</strong> elevada sugestionabilida<strong>de</strong>.<br />
Em gran<strong>de</strong> número observamos, temporariamente ou<br />
até a morte, catalepsia, muito freqüentemente também ecolalia e<br />
ecopraxia. É certo que a apresentação <strong>de</strong>sses transtornos muda<br />
com freqüência, mas poucos doentes com <strong>de</strong>mentia praecox não<br />
apresentariam um ou outro <strong>de</strong>sses sintomas em alguma época da<br />
evolução da doença.<br />
A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho dos doentes está, sem exceção, sensivelmente<br />
comprometida. Eles têm que ser motivados em tudo,<br />
param diante <strong>de</strong> cada pequena dificulda<strong>de</strong>, não são capazes <strong>de</strong> se<br />
adaptar a novas condições. Um <strong>de</strong> meus doentes, que sob orientação<br />
redigia cópias rápida e <strong>de</strong>sembaraçadamente, tantas vezes<br />
quanto se quisesse, era incapaz <strong>de</strong> seguir os sinais <strong>de</strong> parênteses.<br />
Em que pese pormenorizada instrução prévia, reproduzia sempre<br />
tudo impensadamente da mesma forma, como lhe vinha diante da<br />
pena. Outros se encontram em condições <strong>de</strong> repetir com gran<strong>de</strong><br />
asseio trabalhos anteriormente exercitados, mas fracassam tão<br />
logo novas tarefas lhe são colocadas. Aqui chegamos então, freqüentemente,<br />
a <strong>de</strong>sempenhos particularmente excêntricos, traba-<br />
62 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67<br />
lhos manuais, <strong>de</strong>senhos, nos quais, ao lado <strong>de</strong> vestígios <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong><br />
técnica, manifestam-se a perda do sentido <strong>de</strong> beleza e a tendência<br />
ao extravagante. Do mesmo modo, no <strong>de</strong>sempenho musical<br />
costuma tornar-se visível o <strong>de</strong>clínio dos sentimentos artísticos<br />
finos em suas apresentações ora sem expressão, ora distorcidas e<br />
arbitrárias.<br />
Além dos transtornos psíquicos, é <strong>de</strong> se mencionar uma série<br />
<strong>de</strong> manifestações doentias corporais, cuja precisa relação com a<br />
doença <strong>de</strong> base, no entanto, ainda não é certa em todos os pontos.<br />
Antes <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>ve-se mencionar aqui os acessos que já foram<br />
<strong>de</strong>scritos por Kahlbaum e Jensen. São no mais das vezes <strong>de</strong>sfalecimentos<br />
ou espasmos epileptiformes, que, ora isoladamente,<br />
ora mais amiú<strong>de</strong>, manifestam-se em nossos doentes. Mais raramente<br />
são espasmos em regiões musculares isoladas (face, braço),<br />
tetania ou mesmo acessos apopletiformes com paralisia mais duradoura;<br />
inclusive, tais acometimentos também foram relatados<br />
algumas vezes na história pregressa. Eu mesmo vi uma vez um sério<br />
colapso com espasmos na meta<strong>de</strong> esquerda do corpo e na face<br />
direita. Não <strong>de</strong> todo raro constitui um tal acesso o primeiro sinal<br />
da incipiente doença. Assim vi, <strong>de</strong>ntre outros, um estudante <strong>de</strong><br />
mais ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jovem especialmente talentoso, que repentinamente<br />
foi acometido por coma, do qual ele apenas muito gradualmente<br />
<strong>de</strong>spertou novamente. Afora uma leve diferença pupilar,<br />
fenômeno facial e forte aumento dos reflexos, não havia nenhum<br />
vestígio <strong>de</strong> manifestação cerebral. No entanto, o paciente apresentou,<br />
quando o examinei poucas semanas <strong>de</strong>pois, o marcante<br />
quadro do prematuro déficit mental, que até hoje persiste. Todos<br />
esses acessos são aproximadamente duas vezes mais frequentes<br />
em mulheres do que em homens. Segundo minha lista, estariam<br />
presentes em cerca <strong>de</strong> 18% dos casos. Além disso, numa gran<strong>de</strong><br />
série <strong>de</strong> doentes os espasmos ou <strong>de</strong>sfalecimentos foram já na juventu<strong>de</strong><br />
prece<strong>de</strong>ntes, restando a dúvida se po<strong>de</strong>mos conferir uma<br />
correlação entre eles e o transtorno mental. Finalmente, foram<br />
observados freqüentemente espasmos e paralisias histeriformes,<br />
afonia, singultus, repentino enrijecer, contraturas locais e outros<br />
acometimentos semelhantes. Várias vezes existiam peculiares e<br />
duradouros movimentos coréicos, que eu, <strong>de</strong> preferência, acredito<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>signar com a expressão “ataxia atetói<strong>de</strong>”. Em dois casos,<br />
durante um estado <strong>de</strong> apático aturdimento, chegou-se a provar<br />
transtornos claramente afásicos. Os doentes eram incapazes<br />
<strong>de</strong> reconhecer e <strong>de</strong>nominar os objetos a eles apresentados, ainda<br />
que pu<strong>de</strong>ssem falar e visivelmente faziam o maior esforço para<br />
dar a informação solicitada. Repetidamente transmitiam, após<br />
longa hesitação, falsos nomes. O transtorno <strong>de</strong>sapareceu novamente<br />
poucas horas <strong>de</strong>pois.<br />
Os reflexos tendinosos estão regularmente aumentados, muitas<br />
vezes até <strong>de</strong> forma muito consi<strong>de</strong>rável. Freqüentemente, se<br />
encontra também excitabilida<strong>de</strong> mecânica aumentada <strong>de</strong> músculos<br />
e nervos. As pupilas estão, muitas vezes, visivelmente dilatadas,<br />
especialmente nos estados <strong>de</strong> agitação; vez por outra se observa<br />
clara mas variável diferença pupilar, assim como distúrbios<br />
bulbares. Generalizados são, ainda, transtornos vasomotores, cianose,<br />
e<strong>de</strong>mas circunscritos, <strong>de</strong>rmatografia em todos os graus; em<br />
casos isolados ocorre forte sudorese. A secreção salivar parece estar<br />
freqüentemente aumentada; pu<strong>de</strong> assim colher 375 cm cúbicos<br />
<strong>de</strong> saliva <strong>de</strong> um doente em seis horas. A ativida<strong>de</strong> cardíaca é<br />
submetida a gran<strong>de</strong>s variações, ora lentificada, mais freqüente-
mente algo acelerada, muitas vezes também fraca e irregular. A<br />
temperatura corporal está no mais das vezes baixa; uma vez a vi<br />
baixar até 33,8ºC. A menstruação costuma estar ausente ou se<br />
tornar irregular.<br />
Muito freqüentemente observo aumento difuso da tireói<strong>de</strong>, algumas<br />
vezes a diminuição <strong>de</strong> tais aumentos imediatamente antes<br />
da primeira apresentação da manifestação doentia, também repetidas<br />
e rápidas mudanças na extensão da glândula durante a evolução<br />
da doença. Em casos isolados havia exoftalmia e tremores.<br />
Finalmente nos <strong>de</strong>paramos, não raro, assim como em parentes dos<br />
doentes, com espessamento mixe<strong>de</strong>matoso da pele, em especial da<br />
face. Infelizmente, <strong>de</strong>vido à freqüência <strong>de</strong> indícios <strong>de</strong> cretinismo<br />
entre nós, esses achados não <strong>de</strong>vem ser, em princípio, mais valorizados.<br />
Muito freqüentemente parece existirem estados anêmicos.<br />
Na urina encontrei uma vez açúcar; uma vez havia poliúria.<br />
O sono dos doentes está freqüentemente perturbado durante<br />
toda a evolução da doença, mesmo quando se encontram tranquilos.<br />
A ingestão <strong>de</strong> alimentos varia <strong>de</strong> uma total recusa até a mais<br />
forte gula. O peso corporal costuma diminuir inicialmente, freqüentemente<br />
<strong>de</strong> forma muito consi<strong>de</strong>rável até o extremo emagrecimento,<br />
mesmo apesar da mais rica alimentação. Mais tar<strong>de</strong>, ao<br />
contrário, observamos o peso aumentar, no mais das vezes rapidamente<br />
e <strong>de</strong> modo totalmente fora do comum, <strong>de</strong> modo que o<br />
doente em pouco tempo assume a aparência <strong>de</strong> extremamente<br />
bem nutrido e saudável. Das curvas aqui reproduzidas, a primeira<br />
mostra o curso do peso corporal numa habitual evolução <strong>de</strong><br />
um estupor catatônico com <strong>de</strong>senlace em imbecilização <strong>de</strong> grau<br />
médio. Apesar <strong>de</strong> que após o <strong>de</strong>spertar do estupor se instalou<br />
uma leve excitação, o peso <strong>de</strong> fato aumentou muito. A curva IV<br />
advém <strong>de</strong> doente que apesar da mais cuidadosa assistência e rica<br />
alimentação evoluiu, sem qualquer doença orgânica, para o mais<br />
elevado grau <strong>de</strong> marasmo. A curva V representa finalmente,<br />
numa catatonia inicial, uma série <strong>de</strong> oscilações bastante regulares<br />
que coincidiam com as mudanças entre estupor e maior clareza.<br />
Mais tar<strong>de</strong> essa regularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sapareceu e se atingiu duradouro<br />
embotamento mental.<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Curva III - Catatonia. Estupor seguido <strong>de</strong> embotamento mental com<br />
leve excitabilida<strong>de</strong>.<br />
Curva IV - Catatonia com intensa excitação. Morte no mais elevado<br />
grau <strong>de</strong> marasmo sem doença orgânica. Temperatura subnormal; rica<br />
alimentação.<br />
As <strong>de</strong>scrições clínicas do gran<strong>de</strong> campo da <strong>de</strong>mentia praecox<br />
se <strong>de</strong>frontam com consi<strong>de</strong>ráveis dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong><br />
que a <strong>de</strong>limitação dos diversos quadros <strong>de</strong> doença é apenas artificialmente<br />
exequível. É verda<strong>de</strong> que existe toda uma série <strong>de</strong><br />
configurações que se repetem mais freqüentemente, mas entre<br />
elas se colocam tão numerosas transições que, apesar <strong>de</strong> todos os<br />
esforços, hoje parece impossível alojar <strong>de</strong> modo inconteste cada<br />
caso numa <strong>de</strong>terminada forma. A seguinte tentativa <strong>de</strong> agrupamento<br />
(nas formas hebefrênica, catatônica e paranói<strong>de</strong>, nota do<br />
tradutor) não possui outro valor senão o <strong>de</strong> uma clara abrangência.<br />
É possível, sim, que um conhecimento mais preciso da essência<br />
da <strong>de</strong>mentia praecox um dia nos colocará em mãos pontos <strong>de</strong><br />
vista para sua divisão clínica, que hoje nos é ainda totalmente <strong>de</strong>sconhecida.<br />
Summary<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Curva V - Catatonia. Alternância entre estupor e clareza.<br />
As a reverential regard to the hundredth anniversary of the sixth<br />
edition of Kraepelin’s textbook, in which for the first time the <strong>de</strong>mentia<br />
praecox and the manic-<strong>de</strong>pressive illness were <strong>de</strong>limited in own<br />
chapters, we have translated to Portuguese the <strong>de</strong>scription of the<br />
general symptoms of <strong>de</strong>mentia praecox. It follows annexed the table<br />
of contents regarding the classifications of the mental disor<strong>de</strong>rs in<br />
several editions that allows us to see the extraordinary <strong>de</strong>velopment<br />
obtained up to the sixth edition.<br />
Key-words: Emil Kraepelin; Dementia Praecox; History of<br />
Psychiatry<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67 63
Demência precoce na sext edição <strong>de</strong> Kraepelin em 1899<br />
64 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67<br />
ANEXO<br />
PRIMEIRA EDIÇÃO<br />
TERCEIRA EDIÇÃO
QUINTA EDIÇÃO<br />
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67 65
Demência precoce na sext edição <strong>de</strong> Kraepelin em 1899<br />
66 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67<br />
SEXTA EDIÇÃO
Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67 67
1 - A Revista Casos Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong> <strong>de</strong>stina-se à<br />
publicação <strong>de</strong> casos clínicos psiquiátricos em diversas<br />
modalida<strong>de</strong>s, bem como discussões e comentários<br />
sobre os mesmos.<br />
2 - A revista tem periodicida<strong>de</strong> semestral (junho e<br />
<strong>de</strong>zembro) com a seguinte estrutura: Editorial, Autorelato,<br />
Artigos Originais, Casos Literários, Patografia,<br />
Caso Histórico, Homenagem, Seguimento, Cartas<br />
In<strong>de</strong>x e Normas <strong>de</strong> Publicação.<br />
2.1 - Para efeito <strong>de</strong> categorização dos artigos, consi<strong>de</strong>ra-se:<br />
a) Auto-relato: <strong>de</strong>scrição pelo próprio portador <strong>de</strong><br />
transtorno mental <strong>de</strong> sua condição, envolvendo<br />
sua vivência pessoal, a sintomatologia, as repercussões<br />
psicossociais, o tratamento ou outras<br />
questões que julgue pertinente, acompanhada<br />
eventualmente <strong>de</strong> complementos por membro<br />
do Corpo Editorial e sempre <strong>de</strong> discussão por<br />
especialista em seu caso.<br />
b) Trabalhos Originais: trabalhos que apresentam a<br />
experiência psiquiátrica, ou <strong>de</strong> profissional que<br />
li<strong>de</strong> com portadores <strong>de</strong> transtorno mental, em<br />
função da discussão do raciocínio, lógica, ética,<br />
abordagem, tática, estratégia, modo, alerta <strong>de</strong><br />
problemas usuais ou não, que ressaltam sua<br />
importância na atuação clínica ou psicossocial e<br />
mostrem caminho, conduta e comportamento<br />
para sua solução.<br />
c) Caso Literário: trabalhos que se relacionem a<br />
<strong>de</strong>scrições literárias envolvendo transtornos<br />
mentais ou traços <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>.<br />
d) Patografia: casos clínicos focados na biografia <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminada personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> renome portadora<br />
<strong>de</strong> transtorno mental, com o objetivo <strong>de</strong> apresentar<br />
elementos psicopatológicos interessantes e o<br />
significado <strong>de</strong>stes para sua obra.<br />
e) Caso Histórico: casos clínicos <strong>de</strong> valor histórico<br />
sob aspecto <strong>de</strong>scritivo, diagnóstico, terapêutico<br />
ou outros, acompanhados <strong>de</strong> comentários ou<br />
discussão.<br />
f) Homenagem: Divulgação <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong>scritivo <strong>de</strong><br />
transtorno mental, <strong>de</strong> autor a ser homenageado<br />
por razão especial.<br />
g) Seguimento: notas sobre a evolução <strong>de</strong> caso apresentado<br />
em edições anteriores.<br />
h) Cartas: comentários por parte do leitor sobre o<br />
conteúdo dos artigos ou sobre a revista, com<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> réplica pelo autor ou pelos editores.<br />
i) In<strong>de</strong>x: compilação por diagnóstico da CID-10 e do<br />
DSM-IV dos casos das edições anteriores.<br />
3 - Os trabalhos recebidos serão analisados pelo Corpo<br />
Editorial da Casos Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong>, que se<br />
reserva o direito <strong>de</strong> recusar trabalhos ou fazer sugestões<br />
quanto à estruturação e redação para tornar mais<br />
prática a publicação e manter certa uniformida<strong>de</strong>. No<br />
caso <strong>de</strong> artigos muito extensos, a Revista <strong>de</strong> Casos<br />
Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong> se reserva o direito <strong>de</strong> publicá-los<br />
em quantas edições julgar necessárias.<br />
4 - Os trabalhos <strong>de</strong>vem vir em duas vias, digitados em<br />
espaço duplo, impresso em papel padrão ISO A4<br />
(210 x 297mm), com margens <strong>de</strong> 25mm, trazendo na<br />
última página o en<strong>de</strong>reço e telefone do autor e a indicação<br />
da categoria do artigo, conforme item 2.1,<br />
acompanhado do disquete com o arquivo nos<br />
padrões Word 6.0 ou superior, fonte Arial ou Times<br />
New Roman tamanho 12.<br />
5 - Para efeito <strong>de</strong> normalização, serão adotados os<br />
Requerimentos do Comitê Internacional <strong>de</strong> Editores<br />
<strong>de</strong> Revistas Médicas (Estilo Vancouver) que são<br />
seguidos pelas mais conceituadas revistas científicas<br />
internacionais. Estas normas po<strong>de</strong>rão ser encontradas<br />
na íntegra nas seguintes publicações:<br />
International Committé of Medical Journal. Editors,<br />
Uniforms requeriments for manuscripts submitted<br />
to biomedical journals. Can Med Assoc J 1995;<br />
152(9):1459-65 e em espanhol, no Bol Of Sanit<br />
Panam 1989; 107 (5): 422-31 e, em português na<br />
Revista ABP-APAL 1998; 20(1): 31-38.<br />
68 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):68-68<br />
NORMAS DE PUBLICAÇÃO<br />
6 - Todo trabalho <strong>de</strong>verá ter a seguinte estrutura e<br />
or<strong>de</strong>m:<br />
a) título (com tradução para o inglês);<br />
b) nome completo do autor (ou autores), acompanhado(s)<br />
<strong>de</strong> seu(s) respectivos(s) título(s);<br />
c) citação da instituição on<strong>de</strong> foi realizado o<br />
trabalho;<br />
d) resumo do trabalho em português, sem exce<strong>de</strong>r<br />
um limite <strong>de</strong> 150 palavras;<br />
e) Palavras-chave (três a <strong>de</strong>z), <strong>de</strong> acordo com a lista<br />
Medical Subject Headings (MeSH) do In<strong>de</strong>x<br />
Medicus;<br />
f) Texto: Introdução, Material ou Casuística e<br />
Método ou Descrição do Caso, Resultados, Discussão<br />
e/ou Comentários (quando couber) e<br />
Conclusões (quando couber);<br />
g) Summary (resumo em língua inglesa), consistindo<br />
na correta versão do resumo para aquela<br />
língua;<br />
h) Key-words (palavras-chave em língua inglesa) <strong>de</strong><br />
acordo com a lista Medical Subject Headings<br />
(MeSH) do In<strong>de</strong>x Medicus;<br />
i) Agra<strong>de</strong>cimentos (opcional);<br />
j) Referências bibliográficas como especificado no<br />
item 8;<br />
k) En<strong>de</strong>reço do autor para correspondências<br />
7 - As ilustrações <strong>de</strong>vem ser colocadas imediatamente<br />
após a referência a elas. Dentro <strong>de</strong> cada categoria<br />
<strong>de</strong>verão ser numeradas seqüencialmente durante o<br />
texto. Exemplo: (Tabela 1, Figura 1). Cada ilustração<br />
<strong>de</strong>ve ter um título e a fonte <strong>de</strong> on<strong>de</strong> foi extraída.<br />
Cabeçalhos e legendas <strong>de</strong>vem ser suficientemente<br />
claros e compreensíveis sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consulta<br />
ao texto. As referências às ilustrações no texto <strong>de</strong>verão<br />
ser mencionadas entre parênteses, indicando a<br />
categoria e o número da tabela ou figura. Ex: (Tabela<br />
1). As fotografias <strong>de</strong>verão ser em preto e branco,<br />
apresentadas em envelope à parte, serem nítidas e <strong>de</strong><br />
bom contraste, feitas em papel brilhante e trazer no<br />
verso: nome do autor, título do artigo e número com<br />
que irão figurar no texto.<br />
8 - As referências bibliográficas são numeradas consecutivamente,<br />
na or<strong>de</strong>m em que são mencionadas pela<br />
primeira vez no texto. São apresentadas <strong>de</strong> acordo<br />
com as normas do Comitê Internacional <strong>de</strong> Editores<br />
<strong>de</strong> Revistas Médicas, citado no item 5. Os títulos das<br />
revistas são abreviados <strong>de</strong> acordo com o In<strong>de</strong>x<br />
Medicus, na publicação “List of Journals In<strong>de</strong>xed in<br />
In<strong>de</strong>x Medicus”, que se publica anualmente como<br />
parte do número <strong>de</strong> janeiro, em separata. As referências<br />
no texto <strong>de</strong>vem ser citadas mediante número arábico<br />
sobrescrito e após a pontuação, quando for o<br />
caso, correspon<strong>de</strong>ndo às referências no final do artigo.<br />
Nas referências bibliográficas, citar como abaixo:<br />
8.1 - PERIÓDICOS<br />
a) Artigo padrão <strong>de</strong> revista. Incluir o nome <strong>de</strong> todos os<br />
autores, quando são seis ou menos. Se são sete ou<br />
mais, anotar os três primeiros, seguidos <strong>de</strong> et al.<br />
You CH, Lee HY, Chey RY, Menguy R.<br />
Electrogastrografic study of patients with unexplained<br />
nausea, bloating and vomiting.<br />
Gastroenteroly 1980; 79: 311-4.<br />
b) Autor corporativo:<br />
The Royal Mars<strong>de</strong>n Hospital Bone-Marrow<br />
Transplantation Team. Failure os syngeneic<br />
bone-marrow graft without preconditioning in<br />
post hepatitis marrow aplasia. Lancet 1977; 2:242-<br />
4.<br />
c) Sem autoria (entrar pelo título):<br />
Coffee drinking and cancer of the pancreas<br />
(Editorial). Br Med J 1981; 283: 628.<br />
d) Suplemento <strong>de</strong> revista:<br />
Mastri AR. Neuropathy of diabetic neurogenic<br />
blad<strong>de</strong>r. Ann Intern Med 1980; 92 (2 pt 2): 316-8.<br />
Frumin AM, Nussabaum J, Esposito M.<br />
Functional asplenia: <strong>de</strong>monstration of esplenic<br />
activity by bone marrow sean (resumem). Blood<br />
1979; 54 (suppl 1): 26.<br />
e) Revistas paginadas por fascículos:<br />
Seamenn WB. The case of the pancreatic pseudocyst.<br />
Hosp Pract 1981; 16 (sep): 24-5.<br />
8.2 - LIVROS E OUTRAS MONOGRAFIAS<br />
a) Autor(es) - pessoa física:<br />
Eisen HN. Immunology: an introduction to<br />
molecular and cellular principles of the immune<br />
response. 5th. New York: Harper and How;<br />
1974: 406.<br />
b) Editor, compilador, coor<strong>de</strong>nador como autor:<br />
Dausset J, Colombanij D, eds. Histocompatibility<br />
testing 1972. Copenhague: Munksgaard; 1973:<br />
12-8.<br />
8.2.1 - Capítulo <strong>de</strong> livro:<br />
Weinstein L, Swartz MN. Pathogenic properties<br />
of invading microorganisms. In: So<strong>de</strong>man WA<br />
Jr, So<strong>de</strong>man WA, eds. Pathologic physiology:<br />
mechanisms, of disease. Phila<strong>de</strong>lphia: WB<br />
Saun<strong>de</strong>rs; 1974: 457-72.<br />
8.2.2 - Trabalhos apresentados em congressos, seminários, reuniões,<br />
etc:<br />
DuPont B. Bone marrow transplantation in severe<br />
combined immuno<strong>de</strong>ficiency with and unrelated<br />
MLC complatible donor. In: Whithe HJ,<br />
Smith R, eds. Proceedings of the third annual<br />
meeting of the International Society for<br />
Experimental Hematology, 1974: 44-6.<br />
8.2.3 - Monografia que forma parte <strong>de</strong> uma série:<br />
Hunninghake GW, Ga<strong>de</strong>ck JE, Szapiel SV et al.<br />
The human alveolar macrophage. In: Harris CC,<br />
ed. Cultured human cells and tissues in biomedical<br />
research. New York: Aca<strong>de</strong>mic Press, 1980:<br />
54-6 (Stoner GD, ed. Methods and perspectives<br />
in cell biology; vol. 1).<br />
8.2.4 - Publicação <strong>de</strong> um organismo:<br />
Ranofsky AL. Surgical operations in short-estay<br />
hospitals: United States - 1975. Hyattsville,<br />
Maryland: National Center for Helth Statistics.<br />
1978; Dhew publication num. (PHS) 78-1785<br />
(Vital and Health statistics; serie 13, nm. 34).<br />
8.3 - TESES<br />
Caims RB. Infrared spectroscopic studies of solid<br />
oxigens (Tesis doctoral). Berkeley, California:<br />
University of California; 1965; 156pp.<br />
8.4 - ARTIGO DE JORNAL (não científico)<br />
Shaffer RA. Advances in chemistry are starting to<br />
unlock musteiries of the brain: discoveries could help<br />
cure alcoholism and isnomnia, explain mental illnes.<br />
How the messengers work. Wall Street Journal, 1977;<br />
ago. 12:1 (col. 1). 10 (cl. 1).<br />
8.5 - ARTIGO DE REVISTA (não científica)<br />
Roueche B. Annals of Medicine: the Santa Claus<br />
culture. The New Yorker, 1971; sep. 4: 66-81.<br />
9 - Agra<strong>de</strong>cimentos <strong>de</strong>vem constar <strong>de</strong> parágrafo à parte,<br />
colocado antes das referências bibliográficas, após as<br />
key-words.<br />
10 - As medidas <strong>de</strong> comprimento, altura, peso e volume<br />
<strong>de</strong>vem ser expressas em unida<strong>de</strong>s do sistema métrico<br />
<strong>de</strong>cimal (metro, quilo, litro) ou seus múltiplos e<br />
submúltiplos. As temperaturas em graus Celsius. Os<br />
valores <strong>de</strong> pressão arterial em milímetros <strong>de</strong> mercúrio.<br />
Abreviaturas e símbolos <strong>de</strong>vem obe<strong>de</strong>cer<br />
padrões internacionais. Ao empregar pela primeira<br />
vez uma abreviatura, esta <strong>de</strong>ve ser precedida do<br />
termo ou expressão completos, salvo se se tratar <strong>de</strong><br />
uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medida comum.<br />
11 - Os casos omissos serão resolvidos pela Comissão<br />
Editorial.<br />
12 - A publicação não se responsabiliza pelas opiniões<br />
emitidas nos artigos.<br />
13 - Os artigos <strong>de</strong>vem ser enviados para:<br />
COOPMED<br />
Casos Clínicos em <strong>Psiquiatria</strong><br />
Av. Alfredo Balena, 190<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG<br />
Fone: (31) 273 1955<br />
Fax: (31) 226 7955