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Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

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Revelações<br />

mento, amigos, algo difícil <strong>de</strong> ocorrer em pacientes <strong>de</strong>teriorados<br />

cognitivamente.<br />

Um início precoce é um fator <strong>de</strong> mal prognóstico em várias<br />

doenças mentais. No caso da esquizofrenia a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início precoce<br />

<strong>de</strong>monstrou ser um fator preditivo para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> resistência ao tratamento neuroléptico.6 No caso <strong>de</strong> PBL po<strong>de</strong>r-se-ia<br />

contra-argumentar que se trata <strong>de</strong> uma “esquizofrenia<br />

<strong>de</strong> bom prognóstico”, na medida em que o paciente apresenta alguns<br />

dos fatores preditivos associados a uma evolução mais favorável<br />

(menos <strong>de</strong>teriorante): ser casado, ausência <strong>de</strong> história psiquiátrica<br />

prévia, ausência <strong>de</strong> alterações prévias <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>,<br />

bom relacionamento social, antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> bom <strong>de</strong>sempenho<br />

escolar e no trabalho, ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> início tardio.5<br />

O relato <strong>de</strong> PBL apresenta trechos que sugerem um quadro<br />

<strong>de</strong> excitação (p.ex. “Sentia-me com um po<strong>de</strong>r imenso e com conhecimentos<br />

totais”; “Sei que ia assustando cada vez mais as pessoas.<br />

Era como se fosse um teleguiado, pois sabia o que fazia, mas<br />

não podia parar <strong>de</strong> agir e fazer escândalos”). Por outro lado, o paciente<br />

recebeu o diagnóstico <strong>de</strong> 296.3 (<strong>de</strong>pressão). Estaríamos na<br />

realida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> um transtorno bipolar com sintomas psicóticos?<br />

O pouco que sabemos <strong>de</strong> sua evolução não aponta para tal<br />

direção e, na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> sua situação atual, há a informação da<br />

presença <strong>de</strong> um quadro <strong>de</strong>lirante alucinatório persistente, sem remissões,<br />

o que não seria esperado nos transtornos bipolares.<br />

Penso que numa discussão <strong>de</strong> caso <strong>de</strong>vemos adotar sempre a<br />

estratégia do Advogado do Diabo: procurar refutar a hipótese do<br />

diagnóstico principal até o limite máximo, para que as evidências<br />

a seu favor tenham peso maior que o das evidências contrárias.<br />

Assim temos evidências neste caso <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> um transtorno<br />

<strong>de</strong>lirante, e não <strong>de</strong> uma esquizofrenia, com relativa conservação<br />

da personalida<strong>de</strong>. No entanto, há algumas evidências <strong>de</strong> sintomas<br />

maniformes e um diagnóstico anterior <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão. O paciente<br />

po<strong>de</strong>ria ter recebido tratamento correspon<strong>de</strong>nte (anti<strong>de</strong>pressivos,<br />

estabilizadores do humor), mas só há a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong><br />

uso <strong>de</strong> antipsicóticos (Haldol®, Neozine®, Semap®‚) que, diga-se<br />

<strong>de</strong> passagem, quando interrompidos, levaram a um retorno da<br />

sintomatologia (“ ...em junho/83 parei <strong>de</strong> tomar remédio ‘no peito’....<br />

em julho/83 voltei a sentir a presença dos invisíveis…”).<br />

No caso dos transtornos <strong>de</strong>lirantes a ocorrência concomitante<br />

<strong>de</strong> sintomas do humor não é novida<strong>de</strong>. Por exemplo, comentando<br />

a história dos transtornos <strong>de</strong>lirantes, Kendler chama atenção que<br />

Esquirol <strong>de</strong>nominava “monomanias” quadros <strong>de</strong>lirantes associados<br />

a humor elevado e aumento das capacida<strong>de</strong>s física e mental.7<br />

Mesmo o caso Schreber já foi interpretado como um transtorno<br />

do humor8 uma vez que o próprio Freud <strong>de</strong>screveu sintomas <strong>de</strong>pressivos<br />

nas manifestações iniciais do caso.3 A própria CID-10<br />

admite que nos transtornos <strong>de</strong>lirantes persistentes “sintomas <strong>de</strong>pressivos<br />

ou mesmo um episódio <strong>de</strong>pressivo bem marcado (F32.)<br />

po<strong>de</strong>m estar presentes <strong>de</strong> forma intermitente...” (p. 96).9<br />

No entanto, uma questão maior na discussão <strong>de</strong>ste caso: a estrutura<br />

do <strong>de</strong>lírio do paciente PBL. Como já fora observado por<br />

vários autores, apesar <strong>de</strong> comprometidos, os pacientes <strong>de</strong>lirantes<br />

apresentam-se relativamente preservados em outras áreas, o que<br />

também se evi<strong>de</strong>ncia no paciente objeto <strong>de</strong> nossa discussão. Para<br />

explicar tal fenômeno Esquirol cunhou o termo <strong>de</strong>lírio parcial<br />

para estes casos.7 Do ponto <strong>de</strong> vista da evolução, autores que tiveram<br />

a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar seguimento aos pacientes <strong>de</strong>scritos<br />

10 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11<br />

por Kraepelin pu<strong>de</strong>ram observar que os que apresentavam a chamada<br />

paranóia, um transtorno <strong>de</strong>lirante puro sem alucinações, tiveram<br />

melhor prognóstico que os parafrênicos, que tendiam para<br />

uma evolução <strong>de</strong>teriorante em muitos dos casos.4<br />

A estrutura <strong>de</strong>lirante <strong>de</strong> PBL, <strong>de</strong>scrita através do seu relato,<br />

não parece sistematizada, mas isto po<strong>de</strong> estar limitado pelos dotes<br />

literários do paciente, que variam da mesma forma que o das<br />

pessoas sãs. A maioria <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>lírios são <strong>de</strong> caráter místico-religioso,<br />

eivados por idéias <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za. Seu linguajar é facilmente<br />

encontrado em pessoas que professam a religião espírita e que<br />

nada têm <strong>de</strong> <strong>de</strong>lirante.<br />

Há, portanto, uma gran<strong>de</strong> influência cultural no <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong>ste<br />

paciente e aqui surge uma questão, se quisermos classificá-lo <strong>de</strong><br />

acordo com a nosologia ou a nosografia atuais: para CID-10, nos<br />

transtornos <strong>de</strong>lirantes persistentes (F22) os <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong>vem ser<br />

“claramente pessoais e não subculturais” (p. 96).9 Enten<strong>de</strong>mos<br />

que o verda<strong>de</strong>iro quadro <strong>de</strong>lirante se caracteriza pela presença <strong>de</strong><br />

um construto pessoal tão idiossincrático que não permite ser<br />

compartilhado com os outros. Para se ter uma idéia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>lírio<br />

cuja construção é pessoal citamos o que Schreber escreveu a<br />

um <strong>de</strong>terminado ponto <strong>de</strong> sua obra:<br />

“A capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interferir <strong>de</strong>ste modo sobre os nervos<br />

<strong>de</strong> uma pessoa é, antes <strong>de</strong> mais nada, própria dos raios divinos...<br />

Só posso encontrar a explicação para isso no fato <strong>de</strong> que o professor<br />

Fleschig <strong>de</strong> algum modo se permitiu fazer uso dos raios divinos;<br />

mais tar<strong>de</strong> além do professor Fleschig, raios divinos também<br />

se puseram em contato com meus nervos... Assim, relativamente<br />

cedo, esta interferência teve lugar na forma <strong>de</strong> uma coação a pensar...”<br />

(pp. 68-69)2<br />

O <strong>de</strong>lírio <strong>de</strong> PBL está longe <strong>de</strong> ser algo tão elaborado, construído<br />

à partir <strong>de</strong> uma teoria pessoal, como fizera Schreber. Por<br />

outro lado surge também uma contradição se quisermos classificar<br />

este paciente <strong>de</strong>ntro dos critérios dos “transtornos <strong>de</strong>lirantes”<br />

da DSM IV, pois nestes casos os <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong>vem ser “não bizarros”<br />

como ocorre na esquizofrenia. A idéia <strong>de</strong> “bizarria” na DSM IV<br />

é <strong>de</strong>rivada do conceito <strong>de</strong> plausibilida<strong>de</strong>: assim é consi<strong>de</strong>rado bizarro<br />

um <strong>de</strong>lírio on<strong>de</strong> uma pessoa afirma que “...uma pessoa removeu<br />

meus órgão internos e colocou os órgãos <strong>de</strong> outra pessoa<br />

sem <strong>de</strong>ixar qualquer cicatriz” e como não bizarros aquelas situações<br />

plausíveis <strong>de</strong> ocorrência na vida real, tais como “ser seguido,<br />

envenenado, infectado, amado à distância, enganado pela esposa<br />

ou amante” (pp. 296-297).10<br />

Por estes critérios os <strong>de</strong>lírios <strong>de</strong> Schreber são francamente bizarros<br />

e os <strong>de</strong> PBL nem tanto: um dos médiums que o aten<strong>de</strong>u<br />

chegou a afirmar que ele não tinha doença alguma, fornecendo<br />

uma explicação apropriada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma certa cultura, compartilhando<br />

<strong>de</strong> suas idéias.<br />

Summary<br />

Presentation of a case by the own patient, a man that once was seminarian<br />

and that has a high educational level. He presented psychotic<br />

symptomatology full of mediumistic revelations and was retired<br />

for some years. He <strong>de</strong>scribes in <strong>de</strong>tails his first symptoms and its<br />

consequences, as well as his via crucis through psychiatric treatments.<br />

Today he works and lives normally. He does not consi<strong>de</strong>r his symptomatology<br />

as originated from disease.

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