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Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

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transformados em animaes, ou em outras cousas como aquellas Moças<br />

curadas pelo Pastor Melampus, as quaes se julgarão transformadas<br />

em vaccas, e que tal fora a enfermida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nabuchodonozor.<br />

Sim, he, he verda<strong>de</strong> que ha essa enfermida<strong>de</strong> e tambem rara,<br />

mas o que a pa<strong>de</strong>ce não tem intervallo algum <strong>de</strong> melho-ramento, a<br />

sua imaginação roda sempre no mesmo erro, até que se cure, porem<br />

a consi<strong>de</strong>ração viva da paixão <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus Christo não faz<br />

enfermos, mas Santos.”<br />

Contrariamente ao que pensavam os ilustres signatários do<br />

laudo, a questão não terminou tão simplesmente, com a santificarão<br />

da Germana, promovida por leigos.<br />

Logo após a divulgação do documento apareceu um opúsculo,<br />

que circulou amplamente, impugnando as conclusões dos<br />

peritos.<br />

O seu autor preferiu acobertar-se no anonimato, não se julgando<br />

suficientemente garantido pelas autorida<strong>de</strong>s, contra a sandice<br />

do povo, que acorria em massa ao santuário.<br />

Na introdução da “Impugnação analytica ao exame feito pelos<br />

clínicos Antonio Pedro <strong>de</strong> Souza e Manoel Quintão da Silva, em<br />

huma rapariga que julgarão santa, na Capella <strong>de</strong> Nossa Senhora da<br />

Pieda<strong>de</strong> da Serra”, e encaminhada ao “Ilmo. Sr. Dr. Manoel Vieira<br />

da Silva, Geral Inspector da Arte <strong>de</strong> Curar”, escreveu o articulista:4<br />

“Permittame Vossa Senhoria comparecer anonimo, porque se<br />

pela Fé e Auctorida<strong>de</strong> da Approvação <strong>de</strong> Vossa Senhoria tenho a<br />

certeza do quanto reprova, os sectários do erro, não me penso livre<br />

das tene-brosas maquinações dos seus fautores, cujo resentimento<br />

crescerá à proporção do triunfo da verda<strong>de</strong>.”<br />

Não tardou muito, entretanto, que se <strong>de</strong>scobrisse o autor da<br />

impugnarão, que fêz imprimir o seu trabalho no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

em 1814, no auge da crise religiosa. Tratava-se <strong>de</strong> um médico<br />

muito culto, o Dr. Antônio Gonçalves Gomi<strong>de</strong>, natural <strong>de</strong> Minas,<br />

nascido em 1770 e falecido em 1835, e então “assistente na zona<br />

conflagrada pela influência da santa.”<br />

Homem <strong>de</strong> larga cultura e projeção política, o Dr. Gomi<strong>de</strong>,<br />

formado pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Edimburgo, foi eleito constituinte<br />

em 1823 e mais tar<strong>de</strong>, senador do Império, honrando sempre a<br />

sua terra no <strong>de</strong>sempenho das funções públicas.<br />

Era “um clínico notável, latinista e moralista”, segundo expressão<br />

<strong>de</strong> Homem <strong>de</strong> Mello (in Fávero, Flamínio, o. c.).<br />

Na “bibliografia médico-legal brasileira”, escreve Flamínio<br />

Fávero,5 organizada em 1921, pelo Professor Oscar Freire, e<br />

apresentada à Aca<strong>de</strong>mia Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong>, a “Impugnação<br />

Analytica” do dr. Gomi<strong>de</strong> figura como o primeiro documento<br />

médico-legal aparecido no Brasil.<br />

São raríssimos os exemplares <strong>de</strong>sta publicação. O “Arquivo<br />

Público Mineiro” possui um, que fez reproduzir na sua “Revista”,<br />

precedido da seguinte nota explicativa: “Não ha em Minas quem<br />

não tenha ouvido alludir a uma jovem <strong>de</strong>vota que durante algum<br />

tempo habitou a serra da Pieda<strong>de</strong>, attrahindo ali a attenção e veneração<br />

<strong>de</strong> innumeros romeiros e a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns viajantes<br />

ilustres, nacionais e extrangeiros. Os extasis da irmã Germana passaram<br />

em julgado na crença popular, e ainda hoje o seu nome é invocado<br />

como o <strong>de</strong> uma santa milagrosa. Em 1814, porem, na flagrancia<br />

do fervor religioso do povo, a que se associavam homens <strong>de</strong><br />

alguma cultura scientifica, appareceu, entre as opiniões discolas, um<br />

opusculo que se tornou celebre. Embora publicado anonymamente,<br />

não se tardou em divulgar a sua verda<strong>de</strong>ira origem. O sr. Antonio<br />

Gonçalves Gomi<strong>de</strong> (l770-1835), natural <strong>de</strong> Minas e então assistente<br />

na zona conflagrada pela influencia da santa, teve a coragem <strong>de</strong><br />

contestar a crendice commum, e fez imprimir o seu trabalho em<br />

1814, no qual Saint Hilaire achou “plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sciencia e <strong>de</strong> logica”<br />

(Voyage dans le district <strong>de</strong>s diamants, pág. 144, 1º vol.).<br />

A “Revista do Arquivo Público Mineiro” reproduziu na integra<br />

no seu número referente ao ano <strong>de</strong> 1906, sob o título “Um<br />

Opúsculo Precioso”, a referida impugnação, à qual Saint-Hilaire<br />

achou “cheia <strong>de</strong> ciência e lógica, on<strong>de</strong> prova, com multidão <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s,<br />

que os êxtases <strong>de</strong> Germana não eram senão o resultado<br />

<strong>de</strong> uma catalepsia.”<br />

A impugnação é longa, escrita em tom polêmico, por vêzes<br />

irônico, e entremeada <strong>de</strong> citações estrangeiras. Nela <strong>de</strong>nota o seu<br />

autor gran<strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> história e <strong>de</strong> medicina, além <strong>de</strong> familiarida<strong>de</strong><br />

com a literatura psiquiátrica <strong>de</strong> então e o domínio <strong>de</strong><br />

várias línguas.<br />

Aparecem freqüentemente no <strong>de</strong>correr do seu trabalho referências<br />

ou citações <strong>de</strong> nomes famosos que legaram à psiquiatria<br />

alguma contribuição, entre os quais, Pinel, Cullen, Sauvages,<br />

Crichton, Chiarugi, Haslan, Tissot, etc.<br />

Ao final do seu estudo vem uma pequena bibliografia <strong>de</strong>nominada<br />

“catalogo dos Livros em que se encontrão casos circunstanciados<br />

<strong>de</strong> Catalepsia”, com a indicação dos autores, livros e revistas<br />

consultados.<br />

O Dr. Gomi<strong>de</strong> teve ainda o cuidado <strong>de</strong> escrever no rodapé<br />

uma pequena nota explicativa, esclarecendo a sua posição reli-giosa<br />

em face dos acontecimentos. Diz êle: “De nenhum modo, (como<br />

se manifesta no conteudo <strong>de</strong>ste Opusculo) me propuz a impugnar a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver pessoas Devotas, Inspiradas e Santas; porem,<br />

Canonizar os Santos pertence exclusivamente à Igreja, e ao Phylosopho<br />

compete <strong>de</strong>scobrir e promulgar a verda<strong>de</strong> natural.” A contestação<br />

<strong>de</strong>sagradou aos <strong>de</strong>votos e, o que é mais grave, incorreu na censura<br />

do assistente eclesiástico, que lamentou não ter o seu autor se<br />

dado ao trabalho <strong>de</strong> ir examinar pessoalmente a enfêrma.<br />

Parece-nos que o Dr. Gomi<strong>de</strong> temeu subir a serra, tendo já<br />

anteriormente expandido a sua opinião contrária à interpretação<br />

reinante. Da mesma forma que compareceu anônimo com o seu<br />

opúsculo, omitiu, <strong>de</strong>liberadamente o exame, para não atrair sôbre<br />

si a atenção dos <strong>de</strong>votos.<br />

A omissão, contudo, não invalida absolutamente o documento.<br />

É perfeitamente dispensável o exame quando se trata <strong>de</strong> dar<br />

parecer sôbre laudo médico já existente.<br />

“O parecer”, escreve Hélio Gomes,6 “que importa na crítica serena<br />

e fundamentada <strong>de</strong> um documento médico-legal, vale pela autorida<strong>de</strong><br />

científica e moral <strong>de</strong> quem o subscreve. Não está obrigado<br />

a compromisso legal o opinante. É documento exclusivamente particular.”<br />

E, ainda, Flamínio Fávero nos ensina:7 “Êsses pareceres constam,<br />

comumente, <strong>de</strong> quatro partes: preâmbulo, exposição, discussão<br />

e conclusões, faltando é claro, a parte <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição propriamente<br />

dita, porquanto em geral, não há exames a serem feitos.”<br />

Não obstante a doutrina consagrada pelos legistas, o Sr. Augusto<br />

<strong>de</strong> Lima Júnior8 glosou, <strong>de</strong> maneira contrária, o pre-tenso<br />

cochilo do Dr. Gomi<strong>de</strong>, escrevendo na edição dominical do “Estado<br />

<strong>de</strong> Minas”, do dia 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1958: “Outro médico, o<br />

Dr. Antônio Gonçalves Gomi<strong>de</strong>, mais tar<strong>de</strong> constituinte, em 1823,<br />

e senador do Império, dispensando-se <strong>de</strong> ir até a serra examinar <strong>de</strong><br />

visu o caso, publicou sôbre êle um folhêto, <strong>de</strong>nominando <strong>de</strong> catalépticos<br />

os fenômenos manifestados pela irmã Germana. Atribuindo a<br />

causa a uma complicação histérica da rapariga, argumentava o Dr.<br />

Gomi<strong>de</strong>, entre outras cousas, que ‘interrompido por mais ou menos<br />

o equilíbrio e correspondência simpática, entre o canal alimentar,<br />

órgãos sexuais, e sistema nervoso, se tinham originado aberrações<br />

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58 55

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