Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG
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Irmã Germana<br />
sões era bastante que ele tocasse na doente para torná-la calma.<br />
Quando Germana se achava em seus êxtases periódicos, seus membros<br />
adquiriam tal rigi<strong>de</strong>z que seria mais fácil quebrá-los que dobrálos;<br />
mas se se po<strong>de</strong> acreditar no testemunho <strong>de</strong> seu confessor, por<br />
pouco que tocasse o braço ou a mão da doente ele lhes dava a posição<br />
que quizesse. O que é certo é que tendo o confessor <strong>de</strong> Germana<br />
lhe or<strong>de</strong>nado que comungasse em um dos seus dias <strong>de</strong> êxtases,<br />
ela se levantara, num movimento convulso, do leito em que havia<br />
sido levada à igreja; ajoelhada, mas com os braços sempre cruzados,<br />
ela recebeu a santa hóstia, e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa ocasião sempre repetiu a comunhão<br />
no meio <strong>de</strong> seus extases. Aliás, o diretor <strong>de</strong> Germana falava<br />
sempre com muita simplicida<strong>de</strong> do seu dominio sobre a pretensa<br />
santa; ele o atribuia à docilida<strong>de</strong> da enferma e seu respeito pelo carater<br />
sacerdotal, acrescentando que qualquer outro eclesiástico po<strong>de</strong>ria<br />
conseguir os mesmos resultados. Esse homem, dizia-me com<br />
aquela confiança que os magnetizadores exigem dos seus a<strong>de</strong>ptos: a<br />
obediência <strong>de</strong>ssa pobre moça é tal que, se eu lhe or<strong>de</strong>nar que passe<br />
uma semana inteira sem se alimentar, ela não hesitará em aten<strong>de</strong>rme,<br />
e nada sofrerá; mas, acrescentava, receio ofen<strong>de</strong>r a Deus com<br />
uma experiência <strong>de</strong>ssas.”<br />
É curioso notar no trecho citado, a terminologia própria da<br />
época. Saint-Hilaire usou a expressão “magnetismo animal” para<br />
<strong>de</strong>signar o fenômeno hipnótico. Mesmer estava vivo e Braid ainda<br />
não <strong>de</strong>spontara. Somente em 1843 introduziu êste último, na linguagem<br />
médica, os têrmos hipnotismo, hipnótico e hipnotizar.7<br />
“Voltando na sexta-feira ao alto da montanha - continua o naturalista<br />
nas suas memórias - fui, pela segunda vez, ao quarto da<br />
Germana. Ela se achava sôbre o seu leito, <strong>de</strong>itada <strong>de</strong> costas, com a<br />
cabeça envolta em um lenço. Seus braços estavam em cruz; um dêles,<br />
<strong>de</strong>tido pela pare<strong>de</strong>, não tivera a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r-se completamente;<br />
o outro estendia-se para fora da cama e estava apoiado<br />
sôbre um tamborete. A doente tinha as mãos extremamente frias, o<br />
polegar e o indicador estavam esticados, os outros <strong>de</strong>dos fechados,<br />
os joelhos dobrados e os pés colocados um sôbre o outro. Nessa posição<br />
Germana conservava a mais perfeita imobilida<strong>de</strong>; seu pulso<br />
era apenas perceptível e po<strong>de</strong>r-se-ia acreditá-la morta se seu peito,<br />
<strong>de</strong>vido à respiração, não agitasse ligeiramente a coberta.<br />
Experimentei varias vezes dobrar seus braços, inutilmente; a rigi<strong>de</strong>z<br />
dos musculos aumentava em consequência <strong>de</strong> meus esforços e<br />
convenci-me <strong>de</strong> que se insistisse po<strong>de</strong>ria prejudicar a doente. Na<br />
verda<strong>de</strong> fechei suas mãos varias vezes, mas no momento em que largava<br />
seus <strong>de</strong>dos eles retomavam a posição anterior. A irmã <strong>de</strong> Germana,<br />
que ordinariamente cuidava <strong>de</strong>la, e que se achava presente na<br />
ocasião <strong>de</strong> minha visita, disse-me que essa pobre moça não se apresentava<br />
sempre tão calma durante seus extases, como nesse dia; que<br />
na verda<strong>de</strong> seus pés e seus braços ficavam constantemente imóveis,<br />
mas que ela frequentemente gemia e suspirava, que sua cabeça se<br />
agitava sobre o travesseiro, e que movimentos convulsivos se manifestavam<br />
principalmente aí pelas três horas, momento em que Jesus<br />
Cristo expirara.”<br />
A <strong>de</strong>scrição do sábio francês não <strong>de</strong>ixa dúvidas quanto ao<br />
transe cataléptico <strong>de</strong> Germana, corretamente diagnosticado pelo<br />
Dr. Gomi<strong>de</strong>, e que imitava, com a sua postura, a crucificação.<br />
Não faz, contudo, referência alguma à estigmatização, embora os<br />
seus pés estivessem como que encravados um sobre o outro. É<br />
importante notar que o transe apareceu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter meditado<br />
um dia a pobre moça sôbre os mistérios da Paixão.<br />
Alguns teóricos do misticismo explicam a postura e as chagas<br />
dos gran<strong>de</strong>s estigmatizados pela habitual concentração da atenção<br />
sôbre o crucifixo, que é contemplado diariamente, em parti-<br />
58 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58<br />
cular estado <strong>de</strong> espírito. É a i<strong>de</strong>ntificação com o Salvador, ou melhor,<br />
a Compaixão (compassio), que leva o místico a participar dos<br />
seus sofrimentos, reproduzindo na sua própria carne a atitu<strong>de</strong> e<br />
as chagas do Cristo.<br />
Este “complexo da crucificação”, diz Jean Lhermitte,9 produz<br />
em indivíduos frágeis e dotados <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong> exagerada,<br />
uma influência muito particular. A propósito, lembra que<br />
para Thurston a influência do estado somático é essencial.<br />
“Os santos fisicamente vigorosos, escreve, não foram jamais<br />
agraciados com estigmas, apesar da sua <strong>de</strong>voção à Paixão <strong>de</strong> Nosso<br />
Senhor e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> participar dos seus sofrimentos. Ao passo que<br />
numerosas mulheres <strong>de</strong>votas, que jamais foram beatificadas, e cuja<br />
história revela certas extra-vagâncias da sensibilida<strong>de</strong>, foram contempladas<br />
com efusões sanguinolentas, das cinco chagas <strong>de</strong> Jesus<br />
Cristo.”<br />
Jean Lhermitte não po<strong>de</strong> ser acusado <strong>de</strong> parcialida<strong>de</strong>; além <strong>de</strong><br />
neuropsiquiatra famoso, é católico praticante, tendo publicado o<br />
seu livro com o “Nihil Obstat” e o “Imprimatur” das autorida<strong>de</strong>s<br />
eclesiásticas parisienses.<br />
No <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> esclarecer os aci<strong>de</strong>ntes da vida mística autên-tica,<br />
bem como das contrafações do misticismo, escreveu o ilustre professor<br />
uma pequena obra prima - “Místicos e Falsos Místicos” - na<br />
qual observa que no Oriente não se produzem estigmatizações, ao<br />
contrário do Oci<strong>de</strong>nte, on<strong>de</strong> são relativamente freqüentes. É possível,<br />
acrescenta, que esta particularida<strong>de</strong> esteja ligada à arte e às<br />
diversas maneiras <strong>de</strong> representação do Cristo.<br />
“Não <strong>de</strong>scobrimos na arte bizantina, escreve, a dor que se exala<br />
dos nossos calvários, dos nossos crucifixos, ou das pinturas realistas<br />
dos norte-europeus. Não se experimenta em face do Crucificado a<br />
compaixão e o sofrimento compartido; o que domina é a gran<strong>de</strong>za,<br />
o esplendor, a majesta<strong>de</strong> dAquêle que ressuscitou.”<br />
Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
CCP agra<strong>de</strong>ce ao Centro <strong>de</strong> Memória da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong><br />
da <strong>UFMG</strong> e ao Dr. Ciro Gomi<strong>de</strong> pela prestimosa e valiosa<br />
contribuição.<br />
Referências Bibliográficas<br />
1. Saint-Hilaire H. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e litoral<br />
do Brasil (tradução <strong>de</strong> Pena LA). São Paulo: Companhia<br />
Editora Nacional; 1941. Coleção Brasiliana, vol. 210, p. 100.<br />
2. Gomi<strong>de</strong> AG. Impugnação analytica ao exame feito pelos clínicos<br />
Antonio Pedro <strong>de</strong> Souza e Manoel Quintão da Silva,<br />
em huma rapariga que julgarão Santa, na Capella <strong>de</strong> Nossa<br />
Senhora da Pieda<strong>de</strong> da Serra (Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1814). In: Um<br />
opusculo precioso; Revista do Archivo Publico Mineiro, Fascículos,<br />
I, II, III e IV,1906 Belo Horizonte. p. 759-774.<br />
3. Fávero F. <strong>Medicina</strong> Legal. 3ª ed. São Paulo: Livraria Martins<br />
Editora, 1945. Vol. 1, p. 14 e 44.<br />
4. Gomes H. <strong>Medicina</strong> Legal. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria Freitas<br />
Bastos S.A., 1957. Vol. 1, p. 45 e 82.<br />
5. Lima Jr A. Povoadores dos Arredores da Serra da Pieda<strong>de</strong>.<br />
Estado <strong>de</strong> Minas 1958 10 <strong>de</strong> agosto.<br />
6. Lliermitte J. Mystiques et Faux Mystiques. Paris: Bloud &<br />
Gay; 1952.<br />
7. Zilboorg G, Henry GW. Historia <strong>de</strong> la Psicologia Medica.<br />
Buenos Aires: Libreria Hachette S.A.; 1945. p. 390.