Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG
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Caso Histórico<br />
Clóvis <strong>de</strong> Faria Alvim *<br />
IRMÃ GERMANA<br />
NUN GERMANA<br />
Nos começos do século XIX, estranhos episódios ocorridos<br />
na Serra da Pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertaram não só gran<strong>de</strong> afluência <strong>de</strong> romeiros<br />
à ermida erguida no cimo daquela montanha como também<br />
a curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viajantes ilustres, entre os quais, Spix, Martius<br />
e Saint-Hilaire,1 dando-nos este último circunstanciada notícia<br />
dos acontecimentos ali observados.<br />
No alto do monte, com permissão das autorida<strong>de</strong>s eclesiásticas,<br />
instalou-se uma jovem <strong>de</strong>vota, mais tar<strong>de</strong> conhecida com o<br />
nome <strong>de</strong> Irmã Germana, no abandonado claustro que o Irmão<br />
Barcarena <strong>de</strong>ixara vazio, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se fôra para a Eternida<strong>de</strong>. Por<br />
companhia tinha apenas a sua irmã, também <strong>de</strong>vota, e a assistência<br />
espiritual do vigário <strong>de</strong> Roças Novas, padre José Gonçalves.<br />
No recolhimento daquele ermo entregavam-se ambas à vida<br />
contemplativa, consumindo os seus dias no fervor das orações e<br />
as suas noites na quietu<strong>de</strong> das vigílias e penitências.<br />
Não tardou muito que a Irmã Germana, na exaltação mís-tica<br />
dos seus 34 anos, mas <strong>de</strong> compleição somática <strong>de</strong>licada e frágil, sucumbisse<br />
aos rigores do claustro, revelando estranhos sintomas físicos,<br />
logo interpretados pelo povo como <strong>de</strong> origem sobrenatural.<br />
Saint-Hilaire, que a viu em 1818, traçou uma <strong>de</strong>scrição pormenorizada<br />
do seu estado: “Conheci na Serra da Pieda<strong>de</strong> uma mulher<br />
<strong>de</strong> quem falavam muito nas comarcas <strong>de</strong> Sabará e Vila Rica. A<br />
irmã Germana, tal o seu nome, fôra atacada, 10 anos antes (escrito<br />
em 1818), <strong>de</strong> afecções histéricas, acompanhadas <strong>de</strong> convulsões violentas.<br />
Fizeram-na exorcismar; empregaram-se remédios inteiramente<br />
contrários ao seu estado e o mal agravou-se. Ao tempo da minha<br />
viagem ela chegara, havia já muito tempo, ao ponto <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r<br />
mais <strong>de</strong>ixar o leito, e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alimentos que ela tomava<br />
cada dia era pouco maior a que se dá a um recém-nascido.<br />
Ela não comia carne e recusava igualmente as gorduras, não po<strong>de</strong>ndo<br />
mesmo tomar um caldo. Alguns doces, queijo, um pouco <strong>de</strong><br />
pão ou farinha, constituíam todo o seu alimento; freqüentemente<br />
ela recusava alimentar-se e quase sempre era preciso obrigá-la a comer<br />
qualquer cousa.<br />
Era voz geral que os costumes <strong>de</strong> Germana haviam sido sempre<br />
puros e sua conduta irrepreensível. Durante o curso da sua moléstia,<br />
sua <strong>de</strong>voção crescia dia a dia; queria jejuar completamente às<br />
sextas e sábados; a principio sua mãe quis impedi-la, mas Germana<br />
<strong>de</strong>clarou que durante esses dois dias era-lhe inteiramente impossível<br />
tomar qualquer alimento e daí por diante ela passou-os sempre<br />
na mais completa abstinência.<br />
Para satisfazer a sua <strong>de</strong>voção pela Virgem ela se fêz transportar<br />
à serra da Pieda<strong>de</strong>, cuja capela fôra erguida sob a invocação <strong>de</strong> N. S.<br />
da Pieda<strong>de</strong>, e obteve permissão <strong>de</strong> morar nêsse asilo. Lá meditando<br />
Artigo adaptado <strong>de</strong>: “Um precursor da psiquiatria mineira”, <strong>de</strong><br />
Clóvis <strong>de</strong> Faria Alvim. Revista da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais<br />
1962; 12:234-250.<br />
* Ex-professor do Departamento <strong>de</strong> <strong>Psiquiatria</strong> e Neurologia da<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong> (in memoriam)<br />
54 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58<br />
um dia sôbre os mistérios da paixão, ela entrou numa espécie <strong>de</strong> êxtase;<br />
seus braços endureceram e esten<strong>de</strong>ram-se em forma <strong>de</strong> cruz;<br />
seus pés cruzaram-se igualmente e ela se manteve nessa atitu<strong>de</strong> durante<br />
48 horas. À época <strong>de</strong> minha viagem havia quatro anos que<br />
êsse fenômeno se <strong>de</strong>ra pela primeira vez e daí por diante êle se repetira<br />
semanalmente. A irmã Germana tomava essa atitu<strong>de</strong> extática<br />
na noite <strong>de</strong> quinta para sexta-feira, conservando-se assim até à<br />
noite <strong>de</strong> sábado para domingo, sem fazer movimento, sem proferir<br />
uma palavra, sem tomar qualquer alimento.”<br />
A notícia do estranho acontecimento divulgou-se rapidamente,<br />
apaixonando tôda a província. Logo acorreu à serra da Pieda<strong>de</strong><br />
“hum numero incrível <strong>de</strong> Romeiros <strong>de</strong> todos os lugares das Minas,<br />
sendo tal esta afluência, que apesar da elevação, <strong>de</strong>sabrigo e secura<br />
da montanha tem havido dias <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> dous mil concurrentes”,<br />
informa-nos o Dr. Antônio Gonçalves Gomi<strong>de</strong>.2<br />
O vigário <strong>de</strong> Roças Novas, padre José Gonçalves, diretor espiritual<br />
da enfêrma, assustado com os fatos, não tardou em comunicá-los<br />
ao bispo <strong>de</strong> Mariana, exprimindo-lhe o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> que a<br />
Germana fôsse examinada por homens eminentes.<br />
Dom Cipriano da Santíssima Trinda<strong>de</strong>, que na apreciação <strong>de</strong><br />
Saint-Hilaire era “um homem ajuizado e competente”, tentou<br />
inutilmente <strong>de</strong>movê-la do seu retiro, procurando interná-la no recolhimento<br />
<strong>de</strong> Macaúbas, para evitar a gran<strong>de</strong> celeuma que já se<br />
fazia em tôrno do pretenso milagre. Chegou a proibir a celebração<br />
da Santa Missa na montanha, alegando que El-Rei não havia<br />
concedido permissão. Os <strong>de</strong>votos, entretanto, não se conformaram<br />
com a proibição. Solicitaram diretamente ao soberano a revogação<br />
da or<strong>de</strong>m, sendo prontamente atendidos. Germana, que<br />
já se havia retirado da serra, foi novamente levada à sua cela por<br />
mãos <strong>de</strong>votas, fazendo recru<strong>de</strong>scer com a sua presença o fervor<br />
das romarias.<br />
Por essa ocasião, dois cirurgiões afoitos, os Drs. Antônio Pedro<br />
<strong>de</strong> Souza e Manoel Quintão da Silva, firmaram um laudo médico,<br />
datado da Serra da Pieda<strong>de</strong>, em 2 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1814, atestando<br />
a origem sobrenatural do fenômeno.<br />
“Essa <strong>de</strong>claração”, escreve Saint-Hilaire,3 ficou manuscrita, mas<br />
circulou <strong>de</strong> mão em mão, sendo <strong>de</strong>la tirado um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />
cópias.”<br />
Depois <strong>de</strong> variadas consi<strong>de</strong>rações sôbre o estado físico da<br />
Germana, sua anorexia admirável e a sua postura da crucificação,<br />
concluíram os dois peritos: “Julgamos terminada a questão: nós seríamos<br />
mentirosos e temerários se ousássemos someter ao juizo medico<br />
um facto, que só nos enche <strong>de</strong> admiração e <strong>de</strong> respeito para com<br />
o Ser Supremo na consi<strong>de</strong>ração da bonda<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong> Jesus Christo,<br />
nosso Amabilissimo Re<strong>de</strong>mptor. Vin<strong>de</strong>, ó incrédulos, e vê<strong>de</strong>. Se<br />
nos dizeis, que ha huma especie <strong>de</strong> melancolia que consiste em erro<br />
<strong>de</strong> imaginação, e que os enfermos attacados <strong>de</strong>ste mal se julgão<br />
En<strong>de</strong>reço para correspondência:<br />
Centro <strong>de</strong> Memória<br />
<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da <strong>UFMG</strong><br />
Av. Prof. Alfredo Balena, 190<br />
30130-100 - Belo Horizonte - MG