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Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

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Irmã Germana<br />

do princípio vital, tanto mais terríveis quantas fôssem as perturbações<br />

do referido equilíbrio.’<br />

Como se vê, continua o articulista, a explicação é ainda mais<br />

confusa do que o próprio fenômeno. Mas não ficou nisso o douto<br />

opositor dos que tinham examinado a Irmã Germana, e esten<strong>de</strong>u-se<br />

em argumentos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m fisiológica e nervosa, todos êles, afinal,<br />

que convencem pouco da naturalida<strong>de</strong> do fenômeno, assim como o<br />

laudo dos impugnados, não induziria, forçosamente, à origem sobrenatural<br />

dêles.<br />

Se o laudo dos peritos é <strong>de</strong> argumentação fraca, a impugnação<br />

do Dr. Gomi<strong>de</strong> não passa <strong>de</strong> um inteligente jôgo <strong>de</strong> palavras, complicado<br />

com abundantes citações <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> histeria e catalepsia,<br />

previamente qualificados como tais...<br />

Permaneceu e permanece a dúvida em quem, <strong>de</strong> boa-fé, se propuser<br />

a julgar do fato pelos testemunhos que dêles nos ficaram, o<br />

que não impediu que a lembrança da singular penitente ficasse ligada<br />

à serra da Pieda<strong>de</strong>. Irmã Germana, transportada para o recolhimento<br />

<strong>de</strong> Macaúbas, por or<strong>de</strong>m do bispo <strong>de</strong> Mariana, ali terminou<br />

seus dias, sempre apresentando, até o instante final, os espantosos<br />

fatos que a celebrizaram. Ninguém, ainda hoje, sobe as pedregosas<br />

e férreas encostas da serra da Pieda<strong>de</strong>, em visita à abandonada cela<br />

on<strong>de</strong> ela habitou e on<strong>de</strong>, tantas vêzes, teve seus êxtases, sem experimentar<br />

uma intensa emoção, ao recordar-se da pobre menina, cuja<br />

existência foi um martírio sôbre aquele píncaro famoso, on<strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora apareceu à menina cega, curando-a. A velha capela <strong>de</strong><br />

Barcarena lá está branqueando ao sol e aos luares, e <strong>de</strong> longe, bem<br />

<strong>de</strong> longe, se lhe avista o vulto no horizonte, lembrando uma das<br />

mais belas tradições da nossa terra.”<br />

Discordamos fundamentalmente da interpretação dada à<br />

“Impugnação” pelo Sr. Augusto <strong>de</strong> Lima Júnior, que parece mais<br />

inclinado a acreditar na origem sobrenatural dos fenômenos<br />

apresentados pela Germana.<br />

A citação que faz o ilustre historiador mineiro, <strong>de</strong> um pequeno<br />

trecho da contestação, situado fora do seu contexto e da sua<br />

época, torna-se ininteligível.<br />

O parecer do Dr. Gomi<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixa dúvida quanto à natureza<br />

do mal. É uma peça minuciosa, exaustiva, amplamente documentada.<br />

É algo <strong>de</strong> extraordinário que existisse em Minas naquela<br />

época, em local tão <strong>de</strong>serto e <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> recursos, homem<br />

<strong>de</strong> tamanha cultura e <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> preconceitos, para afrontar corajosamente<br />

a crendice comum.<br />

Pena é que não possamos transcrever todo o documento,<br />

dada a sua extensão, para o leitor julgar do seu mérito.<br />

Vamos, contudo, extrair dêle algumas proposições <strong>de</strong> maior<br />

relêvo, para dar uma idéia, ainda que incompleta, da sua importância.<br />

Já na “Advertência”, que prece<strong>de</strong> à impugnarão propriamente<br />

dita, o seu autor <strong>de</strong>clara: “Contrariando as proposições do exame,<br />

que a proclamou Santa, vou <strong>de</strong>monstrar, que huma semiologia<br />

rasoavel nada mais acharia que doença,” Logo em seguida vem<br />

uma indagação <strong>de</strong> profundo sentido filosófico: “Talvez me arguão<br />

dizendo: que te importa a piedosa frau<strong>de</strong>, em que vivem satisfeitos<br />

os credulos? Privallos <strong>de</strong>sta illusão não he tirar-lhes hum entretenimento<br />

que os consola?.”<br />

A impugnarão propriamente dita começa da seguinte maneira:<br />

“Do estado pathologico da Doente são consequencia todos os<br />

phenomenos, que se apresentão, e que podião ser, como infinitas vezes<br />

se tem observado, mais extraordinarios, sem que <strong>de</strong>ssem ocasião<br />

à criminosa apoteose, com que se tem admirado os actuaes.<br />

56 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):54-58<br />

Todavia as differentes anomalias da acção nervosa sobre a contração<br />

muscular tem em todos os tempos cultos e lugares induzido<br />

pessoas ignorantes a acreditar na influencia humas vezes <strong>de</strong> Deos, e<br />

outras do Diabo.<br />

Os credulos Arabes se persuadirão, que os acci<strong>de</strong>ntes epilep-ticos<br />

<strong>de</strong> seu Propheta (doença que pelo mesmo principio teve o nome<br />

<strong>de</strong> morbus sacer) provinhão do Commercio com o Céo, e com o<br />

Anjo Gabriel. As prophetizas da Antiguida<strong>de</strong> Pagan nada mais erão<br />

do que mulheres vaporosas, cujas contorsões convulsivas em parte<br />

reaes, e em parte misturadas <strong>de</strong> exageração, e <strong>de</strong> impostura, o vulgo<br />

reputava por movimentos impetuosos da Divinda<strong>de</strong>, que mal cabia<br />

nos corpos que a continhão.<br />

A persuasão da influencia do Demonio tem sido mais geral, e<br />

até Hoffman, e outros Medicos respeitáveis escreverão sobre ella, e<br />

na verda<strong>de</strong> parece mais natural imputar males terríveis ao Espirito<br />

perverso e maligno, do que a Deos infinitamente bom e sabio, incapaz<br />

portanto <strong>de</strong> se regosijar com dores <strong>de</strong> suas creaturas favorecidas.<br />

Houve tempo em que a Philosophia consistia em ver prodigios<br />

na natureza; e o que seria ordinario nos olhos da razão se magnificava<br />

pelo microscopio do fanatimo.”<br />

Mais adiante, comentando a anorexia da paciente, que dificilmente<br />

tomava alimentos e dêles se privava completamente às sextas<br />

e sábados, lembra o Dr. Gomi<strong>de</strong>: “Pouco ou quasi nada, tomado<br />

relativamente a cada hum po<strong>de</strong> vir a ser bastante para outro. O<br />

sufficiente <strong>de</strong> huma rapariga ha annos hysterica, com movimentos<br />

irritativos retrogados no canal alimentar, que vive como os animaes<br />

que invernão entorpecidos pelo frio, em huma inacção absoluta,<br />

sempre <strong>de</strong> cama, e no escuro, <strong>de</strong>ve ser muito pouco ou quasi nada<br />

comparativamente ao nosso necessário, e nada <strong>de</strong> todo nos acessos<br />

periodicos.”<br />

Depois <strong>de</strong>sta explanação, que po<strong>de</strong>ria ser subscrita pelos nutrólogos<br />

mo<strong>de</strong>rnos, o autor indaga com surprêsa: “Se a anorexia<br />

santifica, qual é a vossa opinião sobre os que pa<strong>de</strong>cem a voracida<strong>de</strong><br />

bulimica? E qual seria o alimento <strong>de</strong> uma estatua?”<br />

O Dr. Gomi<strong>de</strong> não se limitou ao diagnóstico do mal. Depois<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar textualmente: “Pa<strong>de</strong>ce pois a vossa Santa huma Catalepsia<br />

convulsiva, especie quarta da mencionada taboa <strong>de</strong> Crichton”,<br />

consi<strong>de</strong>rou os variados aspetos semiológicos da enfermida<strong>de</strong>.<br />

Procurou explicar <strong>de</strong> maneira engenhosa a periodicida<strong>de</strong> das<br />

crises catalépticas, que atingiam o seu acme aproximadamente no<br />

mesmo dia e hora em que expirou Jesus Cristo.<br />

“O Capitão João Gomes <strong>de</strong> Araujo tem huma tropa <strong>de</strong> bestas<br />

com que em todos os Sabbados exporta da roça mantimentos para a<br />

villa <strong>de</strong> Caethé. As bestas apparecem espontaneamente em todos os<br />

dias <strong>de</strong> manhã e <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> para tomar a ração <strong>de</strong> milho no que são<br />

infalíveis, e até importunas; porem, aos Sabbados não só não vem<br />

por si à casa, como se escon<strong>de</strong>m e fogem, sendo preciso procurallas<br />

e tanger para receber as cargas.<br />

A dor do trabalho constantemente repetida no fim <strong>de</strong> cada sete<br />

revoluções diurnas, faz que as i<strong>de</strong>as, e movimentos irritativos se renovem<br />

habitualmente no fim das referidas revoluções.”<br />

O exemplo citado, lembrado também por Saint-Hilaire nas<br />

suas memórias, po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rado hoje à luz dos reflexos<br />

condicionados.<br />

Mais plausível seria entretanto explicar o condicionamento<br />

psicológico das crises pela fôrça persuasiva do dia da semana em<br />

que sobrevinham, consagrado à morte do Salvador.<br />

Depois <strong>de</strong> justificar longamente o seu diagnóstico, com exemplos<br />

e citações tomados da História da <strong>Medicina</strong>, o autor do opús-

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