08.06.2013 Views

Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

mantendo ativida<strong>de</strong>s musicoterápicas há semanas. Em realida<strong>de</strong>,<br />

até o momento da procura do prontuário, encontrávamos dificulda<strong>de</strong><br />

em imaginar a história daquela pessoa, quem seria ele, uma<br />

vez que seu estado psíquico mal permitia que pudéssemos enten<strong>de</strong>r<br />

o que falava. Inicialmente, eram raras as aproximações <strong>de</strong> forma<br />

espontânea e, quando o fazia, mostrava-se tímido, ambivalente<br />

e fragilmente assustado. Quando falava, fazia-o baixo e incompreensivelmente.<br />

Quando, já com um pouco mais <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>,<br />

pedíamos que repetisse alguma frase, sorria, aparentemente envergonhado,<br />

e novamente voltava a murmurar frases sem sentido,<br />

palavras com significação inusual acompanhadas <strong>de</strong> mímicas e<br />

entonações incoerentes entre si. Surpreendia como, apesar <strong>de</strong> nos<br />

parecer <strong>de</strong>sconexa, a tonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas comunicações <strong>de</strong>notava<br />

perfeita harmonia consigo mesmo. Parecia não perceber que ninguém<br />

compreendia o que falava.<br />

A primeira internação data <strong>de</strong> 1990, no próprio IPUB. Verificamos<br />

que, na ocasião, o boletim <strong>de</strong> entrada apontou para o diagnóstico<br />

<strong>de</strong> esquizofrenia simples. Uma segunda internação, em<br />

1993, indicou o mesmo diagnóstico. Em 1997, na terceira, encontrou-se<br />

a categoria hebefrenia. Seria esta uma evolução da primeira,<br />

ou nomes diferentes para uma mesma condição clínica?<br />

Muito embora a história pessoal não seja o objeto do presente<br />

estudo, queremos apontar para algumas questões paralelas. A<br />

busca <strong>de</strong> prontuários levanta, sempre, algumas reflexões. Nessas<br />

ocasiões, é comum <strong>de</strong>parar-nos com dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aproximação,<br />

não raro intransponíveis. Em sua gran<strong>de</strong> maioria, os registros<br />

contêm apenas aquilo que justifica a intervenção daquele<br />

que está relatando os dados em questão. Tal critério <strong>de</strong> elaboração,<br />

inevitavelmente comprometido, revela diversas dificulda<strong>de</strong>s,<br />

uma <strong>de</strong>las relacionada à impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abordagem <strong>de</strong><br />

certos problemas que extrapolam a visão clínica daquele que elaborou<br />

o registro em estudo. A conclusão possível é que o prontuário<br />

serve como documento, apenas da forma peculiar pela<br />

qual o profissional foi capaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o objeto <strong>de</strong> seu trabalho,<br />

na ocasião das anotações. Sabidamente, a bagagem teórica<br />

do entrevistador, seus conceitos e preconceitos, características<br />

<strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> e até sua própria história <strong>de</strong> vida pessoal, são<br />

elementos <strong>de</strong>terminantes na construção do material clínico <strong>de</strong>scrito<br />

em prontuário. Se consi<strong>de</strong>rarmos como válido o pressuposto<br />

<strong>de</strong> que, em nome <strong>de</strong> uma pretensa exatidão empírica, a clínica<br />

<strong>de</strong>scritiva quase não reconhece os aspectos subjetivos relacionados<br />

ao jogo dinâmico das manifestações esquizofrênicas, mesmo<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> especulações etiopatogênicas, não encontramos<br />

dificulda<strong>de</strong>s para evi<strong>de</strong>nciar sua ausência na maioria dos<br />

registros <strong>de</strong> prontuários. A <strong>de</strong>finição que cada profissional possui<br />

a respeito do que é sintoma, por exemplo, mostra-se capaz <strong>de</strong><br />

influenciar a avaliação das manifestações sintomáticas e, ao ser<br />

reconhecido sob diferentes configurações, cada sintoma po<strong>de</strong><br />

passar a compor igualmente outros complexos sintomáticos.<br />

Dessa forma, a investigação <strong>de</strong> prontuários nos revela o principal<br />

problema levantado por aqueles que não reconhecem a importância<br />

das evidências <strong>de</strong> sofrimento ou prazer, nem sempre<br />

verbalizadas, porém invariavelmente disfarçadas (estudos estatíscos<br />

<strong>de</strong>monstram altíssima incidência <strong>de</strong> suicídio, tentativas <strong>de</strong><br />

suicídio e comportamentos auto-agressivos entre pacientes esquizofrênicos).3<br />

Somos, nesses casos, incapazes <strong>de</strong> reconhecer a<br />

condição humana <strong>de</strong>sses pacientes, muito embora seja esta a<br />

condição que os fazem buscar nossos serviços.<br />

Carlos chegou ao setor <strong>de</strong> musicoterapia encaminhado por<br />

uma psicóloga. Quando verificada sua história pessoal e constatada<br />

sua experiência como bailarino, a coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> musicoterapia<br />

o encaminhou ao grupo aqui referido.<br />

Sem precisar <strong>de</strong> maiores <strong>de</strong>talhes sobre os dados pessoais do<br />

paciente para o presente estudo, <strong>de</strong>tivemo-nos neste tópico apenas<br />

a pretexto <strong>de</strong> apresentar, en passant, algumas <strong>de</strong> nossas reflexões<br />

a propósito das anotações <strong>de</strong> prontuário.<br />

Preocupados, entretanto, em estudar as observações clínicas<br />

obtidas, plenas <strong>de</strong> aspectos subjetivos e pouco consistentes do<br />

ponto <strong>de</strong> vista quantitativo, procuramos transformar estas observações<br />

em dados mensuráveis, referidos pela literatura como<br />

“empiricamente” palpáveis.<br />

Para avaliar a atuação <strong>de</strong> Carlos no <strong>de</strong>correr das sessões foi<br />

elaborado um gráfico que pu<strong>de</strong>sse mostrar o perfil <strong>de</strong> seu processo<br />

musicoterápico, no que diz respeito a expressivida<strong>de</strong>. Com<br />

isso, confeccionamos um critério classificatório dimensional, capaz<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scriminar quatro níveis/dimensões diferentes do mesmo<br />

problema.<br />

Algumas palavras preliminares, entretanto, para que possamos<br />

justificar semelhante escolha <strong>de</strong> avaliação. Em primeiro lugar,<br />

a conjugação <strong>de</strong> esforços em construir uma teoria “consistente”,<br />

baseada em dados empíricos, efetuada pela psiquiatria mundial<br />

ao longo dos últimos 20 anos, tem privilegiado estudos quantitativos<br />

em <strong>de</strong>trimento dos estudos qualitativos. Se, por um lado,<br />

reconhecemos nesse esforço a preocupação <strong>de</strong> se evitar excessos<br />

especulativos, por outro, verifica-se hoje uma verda<strong>de</strong>ira escassez<br />

<strong>de</strong> trabalhos clínicos voltados para o estudo psicopatológico. Assim,<br />

buscar uma conciliação entre a firmeza da experiência vivida<br />

com o alcance das suposições imaginadas tem marcado nossas<br />

preocupações clínicas. Em segundo lugar, dimensionar diferentes<br />

níveis <strong>de</strong> expressão parece-nos o mesmo que contextualizar a<br />

vida <strong>de</strong> relações, problema <strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za no universo das<br />

manifestações esquizofrênicas.<br />

O gráfico (Figura 1) <strong>de</strong>termina diferentes níveis <strong>de</strong> funcionamento<br />

a cada sessão. Para sua compreensão, é preciso esclarecer<br />

como se <strong>de</strong>fine cada nível.<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Figura 1 - Gráfico com os níveis <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong> do paciente ao<br />

longo das sessões<br />

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):16-20 17

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!