08.06.2013 Views

Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

Psiquiatria - Faculdade de Medicina - UFMG

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Musicoterapia e psiquiatria: um estudo <strong>de</strong> caso<br />

Por expressivida<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>mos energia <strong>de</strong> expressão.*<br />

Definimos o nível 1 <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong> como: ausência completa<br />

<strong>de</strong> iniciativa e expressão. Essa é a fase em que o paciente parece<br />

indiferente, apático ou superficial; <strong>de</strong>monstra rigi<strong>de</strong>z nos movimentos;<br />

não toca e não canta.<br />

O nível 2 se caracteriza pela pouca expressivida<strong>de</strong> sonoro/musical<br />

e corporal, comprometimento parcial do pragmatismo, linguagem<br />

verbal incoerente e empobrecida. Neste nível, o paciente escolhe<br />

um instrumento apenas quando solicitado e toca sem interesse,<br />

com pouco investimento no que produz. Faz comentários consigo<br />

mesmo, sem sintonia com o ambiente, utiliza-se <strong>de</strong> neologismos<br />

e apresenta verbigeração. Apresenta dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> verbalizar<br />

sentimentos e sensações, movimenta-se timidamente.<br />

No nível 3 há aumento na expressão sonoro/musical e corporal,<br />

com coerência e a<strong>de</strong>quação da expressão verbal. Aqui, já estabelece<br />

“diálogos rítmicos” com os outros pacientes ou com as musicoterapeutas.<br />

Descobre novos instrumentos e novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

tocá-los, parece experimentar sensações provenientes <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>scoberta.<br />

Sugere frases para as improvisações musicais e explora o<br />

ambiente, aumentando a movimentação do corpo no espaço.<br />

O nível 4 correspon<strong>de</strong> a uma autonomia no “fazer musical”,<br />

aumento do repertório <strong>de</strong> movimentos corporais e ao uso da linguagem<br />

verbal mais clara e a<strong>de</strong>quada. O paciente canta versos, improvisando<br />

e recriando,** <strong>de</strong>monstra a graciosida<strong>de</strong> natural dos movimentos<br />

com maior espontaneida<strong>de</strong> e utiliza melhor a fala para<br />

fazer comentários sobre si mesmo e sobre os outros.<br />

O Processo Musicoterápico<br />

Na primeira sessão que Carlos participou, a coor<strong>de</strong>nadora do<br />

grupo solicitou que cada participante <strong>de</strong>senhasse seus corpos<br />

numa folha <strong>de</strong> papel em branco, ouvindo ao fundo uma improvisação<br />

melódica em dó maior feita no piano. Tal proposta preten<strong>de</strong>u<br />

caracterizar a expressão da imagem corporal, em <strong>de</strong>senho, <strong>de</strong><br />

cada paciente. Carlos <strong>de</strong>senhou dois pés em posição <strong>de</strong> balé clássico<br />

(Figura 2).<br />

Figura 2 - O “corpo” <strong>de</strong> Carlos<br />

* De acordo com <strong>de</strong>finição encontrada no Dicionário Brasileiro <strong>de</strong> Língua<br />

Portuguesa - Mirador.<br />

** Improvisação e recriação musical são técnicas musicoterápicas. Na primeira,<br />

o paciente toca e canta livremente, criando ele próprio o ritmo, a melodia e/ou<br />

a letra (no caso das canções). A recriação musical é a utilização <strong>de</strong> composições<br />

já existentes com significados particulares para cada um que canta ou toca. É,<br />

entretanto, uma criação <strong>de</strong> outra pessoa.<br />

*** Nossa prática clínica indica que o medo <strong>de</strong> enlouquecer é, em realida<strong>de</strong>,<br />

o medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a coerência e organização dos pensamentos, ainda que<br />

<strong>de</strong>lirantes.<br />

**** Aberastury refere-se particularmente ao tambor. A enciclopédia francesa<br />

Pleia<strong>de</strong> <strong>de</strong> Musique aponta a “sonaille” (espécie <strong>de</strong> afoxé primitivo) como o<br />

primeiro instrumento que o homem criou. Trata-se <strong>de</strong> sementes amarradas<br />

com cipós aos tornozelos.<br />

18 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):16-20<br />

Ao final <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>senho, a coor<strong>de</strong>nadora sugeriu que cada<br />

paciente escolhesse um instrumento musical que pu<strong>de</strong>sse expressar<br />

pela forma, ou pelo som que produzia, o mesmo que fora <strong>de</strong>senhado<br />

há pouco. Num <strong>de</strong>terminado momento, Carlos escolheu<br />

um pequeno tambor e tocou.<br />

Figura 3 - Som <strong>de</strong> tambor tocado por Carlos<br />

Nas consi<strong>de</strong>rações sobre o que é terapêutico, supomos que o<br />

<strong>de</strong>senho da imagem corporal, bem como o ritmo produzido através<br />

do instrumento escolhido, tenham ligação com sua história<br />

pessoal. Afinal, os pés são partes fundamentais no corpo <strong>de</strong> um<br />

bailarino e todo início <strong>de</strong> espetáculo é indicado por três sinais sonoros.<br />

Especulações <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m po<strong>de</strong>m ser reforçadas quando<br />

reconhecemos que um <strong>de</strong> nossos comportamentos primitivos<br />

mais freqüentes é tornar o <strong>de</strong>sconhecido conhecido. Quando<br />

assim o fazemos, dominamos o que não faz sentido e é <strong>de</strong>sconhecido,<br />

questão nuclear nos processos <strong>de</strong> cisão dos processos<br />

psíquicos.***<br />

A hipótese foi reforçada através <strong>de</strong> seu comentário seguinte:<br />

“É o início <strong>de</strong> tudo... o som da criação é... o som do meu corpo... o<br />

dia... <strong>de</strong> hoje... não será... como ontem”.<br />

Voltando à <strong>de</strong>scrição dos diferentes níveis <strong>de</strong> nossa Figura 1,<br />

po<strong>de</strong>mos perceber que, ainda no início <strong>de</strong> seu processo musicoterápico,<br />

Carlos parte do nível 2. Mesmo com dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão<br />

musical, verbal e corporal, não observamos ausência<br />

completa <strong>de</strong> iniciativa e expressão.<br />

Nas duas sessões que se seguiram, Carlos começou a <strong>de</strong>monstrar<br />

aumento <strong>de</strong> sua expressão (primeira linha ascen<strong>de</strong>nte no gráfico).<br />

Em um exercício corporal, on<strong>de</strong> os pés eram utilizados para<br />

produzir ritmos, ele utiliza o afoxé sob os pés, com movimentos<br />

<strong>de</strong>slizantes e comenta: “Senti calor... está bom.........anti-<strong>de</strong>pressivo.........<br />

o barulho do afoxé...... ficou alegre”.<br />

Na quarta sessão, ele atinge o nível 3. O aumento <strong>de</strong> sua produção<br />

sonoro/musical fica claro quando, ao chegar na sala da<br />

Musicoterapia, tira os sapatos sem qualquer solicitação da coor<strong>de</strong>nadora,<br />

dirige-se ao armário <strong>de</strong> instrumentos e pega o afoxé<br />

para, em seguida, colocá-los sob seus pés (repetindo os movimentos<br />

da sessão anterior), enquanto toca o tamborim. Sua movimentação<br />

corporal também é mais ampla, visto que dirige-se ao espelho<br />

e, olhando para sua própria imagem refletida, abre os braços<br />

<strong>de</strong> maneira coreográfica.<br />

Para facilitarmos a expressão <strong>de</strong> Carlos, valorizávamos toda e<br />

qualquer manifestação sonora trazida por ele, <strong>de</strong>monstrando nossa<br />

aceitação através <strong>de</strong> espelhamentos rítmicos e musicando suas<br />

frases, que eram também cantadas pelo grupo.<br />

A sexta sessão tornou-se significativa porque foi a primeira<br />

vez que Carlos cantou uma melodia composta <strong>de</strong> vários versos<br />

com pronúncia clara, coor<strong>de</strong>nada, respeitando o ritmo e o senti-

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!