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28 TERESINA-PI, SETEMBRO DE 2010<br />
SEGUNDA-FEIRA DE ÁGUAS: PROSTITUIÇÃO E TRADIÇÃO<br />
Prostituição: a profissão mais antiga do mundo. Eis<br />
frase que circula no imaginário de diferentes povos,<br />
quase sempre, ou sempre, em tom zombeteiro. Na verdade,<br />
trata-se de tema complexo, com matizes as mais<br />
distintas possíveis, em diferentes países dos cinco continentes.<br />
Os elementos culturais, como conhecimentos,<br />
técnicas, bens, valores, hábitos, costumes, tendências,<br />
vulnerabilidades, gostos e tradições diferem mundo<br />
afora. As legislações de cada nação seguem linha própria.<br />
Aqui e ali, divergências incríveis ou coincidências inesperadas.<br />
Em países islâmicos, as mulheres são condenadas<br />
à morte. Na Índia, literalmente banidas do convívio<br />
social. Afinal, as jovens são reservadas para belas cerimônias<br />
de casamento, ainda hoje, estabelecido pelas famílias<br />
como um negócio lucrativo, enquanto os homens<br />
não hesitam em usufruir os prazeres do sexo junto às fêmeas<br />
de países vizinhos ou estrangeiras de outras partes<br />
que visitam o país. Teoricamente,<br />
às ocultas, mas sob o<br />
olhar cúmplice dos companheiros,<br />
o que lhes assegura<br />
status de herói.<br />
Alemanha, Holanda,<br />
Nova Zelândia e Suíça regulamentam<br />
e outorgam à prostituição<br />
direitos similares às<br />
outras categorias de trabalho.<br />
Nos Estados Unidos e<br />
na Austrália, a situação é<br />
mais confusa, com legalização<br />
em determinadas regiões,<br />
por exemplo, estados<br />
de Nevada e Sydney. Na<br />
Suécia, a punição vai para os<br />
clientes, e não para as prestadoras<br />
de “serviço”. Em<br />
contraposição a posicionamentos<br />
tão díspares, há nações<br />
que nem legalizam nem<br />
perseguem os praticantes de<br />
forma ostensiva, com exceção<br />
da prostituição infantil,<br />
cuja linha de ação é justificadamente<br />
implacável. Brasil<br />
e Espanha são exemplos.<br />
No Brasil, o meretrício não<br />
constitui crime, e, sim, as<br />
atividades correlatas, tais como favorecimento, indução<br />
e tráfico de mulheres. Em se tratando da Espanha, em<br />
2007, o Congresso vota contra a legalização da prostituição,<br />
em meio a polêmicas estridentes. Afinal, segundo<br />
dados publicados pela imprensa, nesse país,<br />
atuam na prostituição 400 mil mulheres (das quais, inacreditavelmente,<br />
98% são estrangeiras), movimentando<br />
por ano cifra em torno de 18 milhões de euros. São<br />
dados que dimensionam o problema, que também é grave<br />
no Brasil, cujos números exatos sobre a prostituição não<br />
são dignos de crédito, por uma razão única e inequívoca:<br />
a fragilidade que ronda o conceito da prostituição per se.<br />
O significado dicionarista, em qualquer idioma, define<br />
a prostituição como comércio habitual ou profissional do<br />
amor sexual, ou seja, o sexo pago. Nesta concepção tão<br />
simplista, onde inserir mulheres de programa, que se vendem<br />
por valor imensuravelmente alto, que envolvem carros<br />
de última geração, apartamentos, viagens, instâncias em<br />
paraísos, jóias etc.etc.? Outra faceta, também mutável, é<br />
que a profissão agrega, agora, mais e mais homens, que se<br />
vendem por dinheiro, em troca de vida aparentemente<br />
fácil. E o que nos parece mais paradoxal é a atitude da sociedade<br />
como um todo. Ao tempo em que as pessoas condenam<br />
as (os) profissionais do sexo, cada vez mais,<br />
anúncios de jornais divulgam serviços, com detalhes sórdidos<br />
sobre as proezas oferecidas; programas de TV convidam<br />
prostitutas ou michês, para que narrem sua<br />
trajetória; páginas eletrônicas da internet oferecem de<br />
tudo, absolutamente de tudo; sites, com a finalidade explícita<br />
de reduzir a solidão humana, terminam por mostrar<br />
pretensões escusas; há serviços telefônicos para a consumação<br />
do sexo; e assim por diante...<br />
Todo este preâmbulo tão-somente para chegar às tradições<br />
culturais e à complexidade subjacente a elas. Há casos<br />
curiosos. Na Espanha, em particular, desde a Constituição<br />
de 1978, inexiste religião oficial. Há cuidados especiais e<br />
oficiais para o cumprimento da prescrição constitucional.<br />
Por exemplo, a página eletrônica do Governo de Madrid,<br />
www.munimadrid.es, não traz quaisquer dados sobre religião.<br />
Mesmo assim, é visível a estreita relação entre Estado<br />
e Igreja Católica, com mais de 95% de católicos numa população<br />
estimada em 46.063.511 habitantes, segundo dados<br />
oficiais do ano de 2008. E o que ocorre, em Castilla e<br />
Leon, ou mais precisamente, em Salamanca, embora a tra-<br />
dição venha se expandindo a outras províncias, parece-nos<br />
uma das tradições culturais mais surpreendentes.<br />
É a chamada segunda-feira de águas (lunes de aguas).<br />
Sua origem remonta ao longínquo século XVI. Por ordem<br />
do rei Felipe II, durante os 40 dias entre a quarta-feira de<br />
cinzas até o domingo de Páscoa, as prostitutas locais, à<br />
época, são levadas para fora da cidade, ao outro lado do rio<br />
Tormes, que banha a cidade, para evitar tentação aos “pobres”<br />
homens. Permanecem isoladas, sob a custódia do denominado<br />
Padre Putas, cargo instituído por um dos<br />
membros da realeza. Finda a Quaresma, os jovens (porque<br />
libertos das obrigações maritais), sob o olhar conivente dos<br />
mais velhos, se juntam para uma grande festa de boas-vindas<br />
às mulheres que chegam, sedutoras e belas, em barcos<br />
devidamente engalanados.<br />
A cada ano, na segunda-feira, logo após as celebrações<br />
da Ressurreição de Cristo, a cidade literalmente para ou<br />
reduz drasticamente sua movimentação. Em bandos ruidosos,<br />
famílias inteiras, grupos de amigos, amantes, pessoas<br />
solitárias, enfim, crianças, jovens, adultos e velhos seguem<br />
às margens do rio Tormes, onde comem, bebem, cantam,<br />
amam, leem, jogam cartas ou conversa fora, por todo o dia.<br />
E, desde a década de 80 do século passado, à semelhança<br />
do que acontece em Teresina (Piauí), com o “carro das<br />
putas”, no período carnavalesco, há barcos que chegam à<br />
Salamanca, em lunes de aguas, com mulheres fantasiadas<br />
e acompanhadas de um “padre”, numa representação sim-<br />
bólica dos fatos passados.<br />
Em tudo isto, o que causa espanto é o paradoxo que se<br />
conserva por tantos séculos: ainda que as leis vigentes da<br />
Espanha não criminalizem a prostituição, uma sociedade<br />
majoritariamente católica celebra, com vigor e esplendor,<br />
uma tradição cultural que põe em relevo a “utilidade” e a<br />
“beleza” da prostituição. E o que é mais surpreendente:<br />
trata-se de uma nação, cujos movimentos em prol da dignidade<br />
da mulher são intensos. Há uma infinidade de associações.<br />
Há uma quantidade quase imensurável de<br />
seminários, cursos e eventos similares, promovidos por<br />
instituições salmantinas de ensino superior, em defesa dos<br />
direitos humanos. Para quem batalha nesta trincheira, é<br />
evidente que mulheres e homens, ao se prostituírem, não<br />
somente se despem aos olhos de outros, mas, sobretudo,<br />
aviltam corpo e alma, sujeitando-se à crueldade desses outros<br />
e/ou a aberrações de quaisquer naturezas. As prostitu-<br />
DIVULGAÇÃO<br />
tas e/ou os michês afirmam,<br />
com veemência, que homens<br />
e mulheres que os frequentam<br />
são extremamente<br />
verdadeiros em seus lençóis.<br />
Despem as máscaras<br />
sociais. Expõem sua face<br />
mais sórdida, mais cruel,<br />
mais bestial e, mormente, a<br />
mais verdadeira. Travestem-se<br />
em quatro paredes.<br />
Por outro lado, há que<br />
se convir que nada disto é<br />
privilégio de um só país.<br />
São as tradições de ontem<br />
moldando hábitos de hoje.<br />
São costumes de nossos<br />
avós e bisavós nos deixando<br />
antever a natureza<br />
humana, como irremediavelmente<br />
única, embora<br />
oculta sob véus distintos.<br />
São as civilizações construídas<br />
e reconstruídas a<br />
cada momento, coletivamente<br />
ou individualmente,<br />
em suas contradições inevitáveis.<br />
A prova está no sucesso<br />
da celebrada<br />
brasileira Surfistinha, nome de guerra de Raquel Pacheco,<br />
cujo maior mérito é ter optado, numa fase de sua vida, pelo<br />
meretrício. Ao primeiro livro, O doce veneno do escorpião,<br />
lançado em 2005, sob intensa publicidade e, por conseguinte,<br />
com estrondoso sucesso editorial e bombástica polêmica<br />
em diferentes meios sociais, seguem outros títulos.<br />
E isto, num país, onde acadêmicos e literatos, com frequência,<br />
percorrem verdadeiro calvário para publicar seus<br />
trabalhos. E lá está a jovem, como convidada de honra em<br />
distintos programas televisivos e de distintas emissoras.<br />
Em outubro de 2010, ei-la na grande tela. É o momento do<br />
filme homônimo O doce veneno... , que conta com Deborah<br />
Secco como protagonista. Hoje, Raquel Pacheco está<br />
na mídia, na Wikipedia e no The New York Times. Ou seja,<br />
povos distintos, em momentos distintos ou formas distintas,<br />
enaltecem a prostituição<br />
como tradição cultural (ou não)<br />
e assim ela segue como a profissão<br />
mais antiga do mundo e,<br />
quiçá, a mais gloriosa. Nós, brasileiros,<br />
temos, pois, nossa<br />
lunes de aguas ou nossas lunes<br />
de aguas!<br />
Maria das Graças Targino<br />
Prof. Dra. da UFPI<br />
gracatargino@hotmail.com