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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

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Deixei-o nessa reticência, e fui <strong>de</strong>scalçar as botas, que estavam apertadas. Uma vez aliviado, respirei à larga, e <strong>de</strong>itei-me<br />

a fio comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás <strong>de</strong>les, entrávamos numa relativa bem-aventurança. Então consi<strong>de</strong>rei que as<br />

botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer <strong>de</strong> as <strong>de</strong>scalçar.<br />

Mortifica os pés, <strong>de</strong>sgraçado, <strong>de</strong>smortifica-os <strong>de</strong>pois, e aí tens a felicida<strong>de</strong> barata, ao sabor dos sapateiros e <strong>de</strong> Epicuro.<br />

Enquanto esta idéia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha per<strong>de</strong>r-se no<br />

horizonte do pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a <strong>de</strong>scalçar as suas botas. E <strong>de</strong>scalçou-as o lascivo.<br />

Quatro ou cinco dias <strong>de</strong>pois, saboreava esse rápido, inefável e incoercível momento <strong>de</strong> gozo, que suce<strong>de</strong> a uma dor pungente,<br />

a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a<br />

fome, com o fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>parar a ocasião <strong>de</strong> comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicida<strong>de</strong> terrestre.<br />

Em verda<strong>de</strong> vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par <strong>de</strong> botas curtas.<br />

Tu, minha Eugênia, é que não as <strong>de</strong>scalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor,<br />

triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem... O que eu não sei<br />

é se a tua existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa <strong>de</strong> menos fizesse patear a tragédia<br />

humana.<br />

CAPÍTULO 37<br />

Enfim!<br />

Enfim! eis aqui Virgília. Antes <strong>de</strong> ir à casa do Conselheiro Dutra, perguntei a meu pai se havia algum ajuste prévio <strong>de</strong><br />

casamento.<br />

- Nenhum ajuste. Há tempos, conversando com ele a teu respeito, confessei-lhe o <strong>de</strong>sejo que tinha <strong>de</strong> te ver <strong>de</strong>putado; e<br />

<strong>de</strong> tal modo falei, que ele prometeu fazer alguma coisa, e creio que o fará. Quanto à noiva, é o nome que dou a uma<br />

criaturinha, que é uma jóia, uma flor, uma estrela, uma coisa rara... é a filha <strong>de</strong>le; imaginei que, se casasses com ela, mais<br />

<strong>de</strong>pressa serias <strong>de</strong>putado.<br />

- Só isto?<br />

- Só isto.<br />

Fomos dali à casa do Dutra. Era uma pérola esse homem, risonho, jovial, patriota, um pouco irritado com os males<br />

públicos, mas não <strong>de</strong>sesperando <strong>de</strong> os curar <strong>de</strong>pressa. Achou que a minha candidatura era legítima; convinha, porém, esperar<br />

alguns meses. E logo me apresentou à mulher, - uma estimável senhora, - e à filha, que não <strong>de</strong>smentiu em nada o panegírico<br />

<strong>de</strong> meu pai. Juro-vos que em nada. Rele<strong>de</strong> o capitulo 28. Eu, que levava idéias a respeito da pequena, fitei-a <strong>de</strong> certo modo;<br />

ela, que não sei se as tinha, não me fitou <strong>de</strong> modo diferente; e o nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente conjugal. No fim<br />

<strong>de</strong> um mês estávamos íntimos.<br />

CAPÍTULO 38<br />

A Quarta Edição<br />

- Venha cá jantar amanhã, disse-me o Dutra uma noite.<br />

Aceitei o convite. No dia seguinte, man<strong>de</strong>i que a sege me esperasse no largo <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Paula, e fui dar várias<br />

voltas. Lembra-vos ainda a minha teoria das edições humanas? Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição,<br />

revista e emendada, mas ainda inçada <strong>de</strong> <strong>de</strong>scuidos e barbarismos; <strong>de</strong>feito que, aliás, achava alguma compensação no tipo,<br />

que era elegante, e na enca<strong>de</strong>rnação, que era luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives, consulto o relógio e<br />

cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja que tinha à mão; era um cubículo, - pouco mais, - empoeirado e escuro.<br />

Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se <strong>de</strong>stacava logo à<br />

primeira vista; mas logo que se <strong>de</strong>stacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora<br />

bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, <strong>de</strong>strufram-lhe a flor das graças. As bexigas tinham sido<br />

terríveis; os sinais, gran<strong>de</strong>s e muitos, faziam saliências e encarnas, <strong>de</strong>clives e aclives, e davam uma sensação <strong>de</strong> lixa grossa,<br />

enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou,<br />

entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo penteado ao <strong>de</strong>sdém, estava ruço e quase tão poento como os<br />

portais da loja. Num dos <strong>de</strong>dos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros? essa mulher era Marcela.<br />

Não a conheci logo; era difícil; ela porém conheceu-me apenas lhe dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a<br />

expressão usual por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe um movimento como para escon<strong>de</strong>r-se ou fugir; era o instinto da<br />

vaida<strong>de</strong>, que não durou mais <strong>de</strong> um instante. Marcela acomodou-se e sorriu.<br />

- Quer comprar alguma coisa? disse ela esten<strong>de</strong>ndo-me a mão.<br />

Não respondi nada. Marcela compreen<strong>de</strong>u a causa do meu silêncio (não era difícil), e só hesitou, creio eu, em <strong>de</strong>cidir o<br />

que dominava mais, se o assombro do presente, se a memória do passado. Deu-me uma ca<strong>de</strong>ira, e, com o balcão permeio,<br />

falou-me longamente <strong>de</strong> si, da vida que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter, das sauda<strong>de</strong>s, dos <strong>de</strong>sastres, enfim das<br />

bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a <strong>de</strong>cadência. Verda<strong>de</strong> é que tinha a<br />

alma <strong>de</strong>crépita. Ven<strong>de</strong>ra tudo, quase tudo; um homem, que a amara outrora, e lhe morreu nos braços, <strong>de</strong>ixara-lhe aquela loja<br />

<strong>de</strong> ourivesaria, mas, para que a <strong>de</strong>sgraça fosse completa, era agora pouco buscada a loja - talvez pela singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<br />

dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me que lhe contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em dizer-lha; não era longa, nem<br />

interessante.<br />

- Casou? disse Marcela no fim <strong>de</strong> minha narração.<br />

- Ainda não, respondi secamente.<br />

Marcela lançou os olhos para a rua, com a atonia <strong>de</strong> quem reflete ou relembra; eu <strong>de</strong>ixei-me ir então ao passado, e, no<br />

meio das recordações e sauda<strong>de</strong>s, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera tanto <strong>de</strong>satino. Não era esta certamente a<br />

Marcela <strong>de</strong> 1822; mas a beleza <strong>de</strong> outro tempo valia uma terça parte dos meus sacrifícios? Era o que eu buscava saber,<br />

interrogando o rosto <strong>de</strong> Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, já outrora, como hoje,<br />

ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que não souberam ver-lha; eram olhos da primeira edição.<br />

- Mas por que entrou aqui? Viu-me da rua? Perguntou ela, saindo daquela espécie <strong>de</strong> torpor.<br />

- Não, supunha entrar numa casa <strong>de</strong> relojoeiro; queria comprar um vidro para este relógio; vou a outra parte; <strong>de</strong>sculpe-me;<br />

tenho pressa.

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