Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional
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menos sórdido; e <strong>de</strong>pois sim, <strong>de</strong>pois vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa re<strong>de</strong> que me embalou a melhor parte dos<br />
anos que <strong>de</strong>correram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inventário <strong>de</strong> meu pai até 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma <strong>de</strong> toucador, não cui<strong>de</strong>s que<br />
o man<strong>de</strong>i <strong>de</strong>rramar para meu regalo; é um vestígio da N. ou da Z. ou da U. - que todas essas letras maiúsculas embalaram aí a<br />
sua elegante abjeção. Mas, se além do aroma, quiseres outra coisa, fica-te com o <strong>de</strong>sejo, porque eu não guar<strong>de</strong>i retratos, nem<br />
cartas, nem memórias; a mesma comoção esvaiu-se e só me ficaram as letras iniciais.<br />
Vivi meio recluso, indo <strong>de</strong> longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a mor parte do tempo passei-a comigo<br />
mesmo. Vivia; <strong>de</strong>ixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora buliçoso, ora apático, entre a ambição e o<br />
<strong>de</strong>sânimo. Escrevia política e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as folhas públicas e cheguei a alcançar certa<br />
reputação <strong>de</strong> polemista e <strong>de</strong> poeta. Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já <strong>de</strong>putado, e <strong>de</strong> Virgília, futura marquesa,<br />
perguntava a mim mesmo por que não seria melhor <strong>de</strong>putado e melhor marquês do que o Lobo Neves, - eu, que valia mais,<br />
muito mais do que ele, - e dizia isto a olhar para a ponta do nariz...<br />
CAPÍTULO 48<br />
Um Primo <strong>de</strong> Virgília<br />
- Sabe quem chegou ontem <strong>de</strong> São Paulo? perguntou-me uma noite o Luis Dutra.<br />
O Luís Dutra era um primo <strong>de</strong> Virgília, que também privava com as musas. Os versos <strong>de</strong>le agradavam e valiam mais do<br />
que os meus; mas ele tinha necessida<strong>de</strong> da sanção <strong>de</strong> alguns, que lhe confirmasse o aplauso dos outros. Como fosse<br />
acanhado, não interrogava a ninguém; mas <strong>de</strong>leitava-se com ouvir alguma palavra <strong>de</strong> apreço; então criava novas forças e<br />
arremetia juvenilmente ao trabalho.<br />
Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma coisa, corria à minha casa, e entrava a girar em volta <strong>de</strong> mim, espreita <strong>de</strong> um<br />
juízo, <strong>de</strong> uma palavra, <strong>de</strong> um gesto, que lhe aprovasse a recente produção, e eu falava-lhe <strong>de</strong> mil coisas diferentes, - do último<br />
baile do Catete, da discussão das câmaras, <strong>de</strong> berlindas e cavalos, - <strong>de</strong> tudo, menos dos seus versos ou prosas. Ele<br />
respondia-me, a principio com animação, <strong>de</strong>pois mais frouxo, torcia a ré<strong>de</strong>a da conversa para o assunto <strong>de</strong>le, abria um livro,<br />
perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a ré<strong>de</strong>a para o outro lado, e lá ia<br />
ele atrás <strong>de</strong> mim, até que empacava <strong>de</strong> todo e sala triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar <strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong>sanimá-lo,<br />
eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz...<br />
CAPÍTULO 49<br />
A Ponta do Nariz<br />
Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já meditaste alguma vez no <strong>de</strong>stino do nariz, amado<br />
leitor? A explicação do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, - e tal explicação confesso que até certo<br />
tempo me pareceu <strong>de</strong>finitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros <strong>de</strong> filosofia, atinei<br />
com a única, verda<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong>finitiva explicação.<br />
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do<br />
nariz, com o fim único <strong>de</strong> ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, per<strong>de</strong> o sentimento das coisas<br />
externas, embeleza-se no invisível, apreen<strong>de</strong> o impalpável, <strong>de</strong>svincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do<br />
ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> a obter não pertence ao faquir somente: é<br />
universal. Cada homem tem necessida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> contemplar o seu próprio nariz, para o fim <strong>de</strong> ver a luz celeste, e tal<br />
contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das socieda<strong>de</strong>s. Se os<br />
narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se<br />
com as primeiras tribos.<br />
Ouço daqui uma objeção do leitor: - Como po<strong>de</strong> ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a<br />
contemplar o seu próprio nariz?<br />
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro <strong>de</strong> um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja <strong>de</strong> chapéus;<br />
é a loja <strong>de</strong> um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças<br />
ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que<br />
é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que <strong>de</strong> igual preço. Mortifica-se<br />
naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperida<strong>de</strong><br />
do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante é<br />
que os olhos se fixam na ponta do nariz.<br />
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao<br />
indivíduo. Procriação, equilíbrio.<br />
CAPÍTULO 50<br />
Virgília Casada<br />
- Quem chegou <strong>de</strong> São Paulo foi minha prima Virgília, casada com o Lobo Neves, continuou Luis Dutra.<br />
- Ah!<br />
- E só hoje é que eu soube uma coisa, seu maganão...<br />
- Que foi?<br />
- Que você quis casar com ela.<br />
- Idéias <strong>de</strong> meu pai. Quem lhe disse isso?<br />
- Ela mesma. Falei-lhe muito em você, e ela então contou-me tudo.<br />
No dia seguinte, estando na rua do Ouvidor, porta da tipografia do Plancher, vi assomar, a distância, uma mulher<br />
esplêndida. Era ela; só a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal ponto a natureza e a arte lhe haviam dado o último<br />
apuro. Cortejamo-nos; ela seguiu; entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco acima; eu fiquei atônito.<br />
Oito dias <strong>de</strong>pois, encontrei-a num baile; creio que chegamos a trocar duas ou três palavras. Mas noutro baile, dado daí a<br />
um mês, em casa <strong>de</strong> uma senhora, que ornara os salões do primeiro reinado, e não <strong>de</strong>sornava então os do segundo, a<br />
aproximação foi maior e mais longa, porque conversamos e valsamos. A valsa é uma <strong>de</strong>liciosa coisa. Valsamos; e não nego