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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

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O Almoço<br />

Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem prazer, uma coisa mista, alívio e sauda<strong>de</strong>,<br />

tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia,<br />

<strong>de</strong>via pa<strong>de</strong>cer um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, <strong>de</strong>rramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A<br />

realida<strong>de</strong> pura é que eu almocei, como nos <strong>de</strong>mais dias, acudindo ao coração com as lembranças da minha aventura, e ao<br />

estômago com os acepipes <strong>de</strong> M. Prudhon...<br />

...Velhos do meu tempo, lembrai-vos <strong>de</strong>sse mestre cozinheiro do hotel Pharoux, um sujeito que, segundo dizia o dono da<br />

casa, havia servido nos famosos Véry e Véfour, <strong>de</strong> Paris, e mais nos palácios do Con<strong>de</strong> Molé e do Duque <strong>de</strong> la<br />

Rochefoucauld? Era insigne. Entrou no Rio <strong>de</strong> janeiro com a polca... A polca, M. Prudhon, o Tivoli, o baile dos estrangeiros, o<br />

Cassino, eis algumas das melhores recordações daquele tempo; mas sobretudo os acepipes do mestre eram <strong>de</strong>liciosos.<br />

Eram, e naquela manhã parece que o diabo do homem adivinhara a nossa catástrofe. jamais o engenho e a arte lhe foram<br />

tão propícios. Que requinte <strong>de</strong> temperos! que ternura <strong>de</strong> carnes! que rebuscado <strong>de</strong> formas! Comia-se com a boca, com os<br />

olhos, com o nariz. Não guar<strong>de</strong>i a conta <strong>de</strong>sse dia; do contrário, é mui provável que a <strong>de</strong>ixasse nestas páginas; sei que foi<br />

cara. Ai dor! era-me preciso enterrar magnificamente os meus amores. Eles lá iam, mar em fora, no espaço e no tempo, e eu<br />

ficava-me ali numa ponta <strong>de</strong> mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios; ficava-me para os não ver<br />

nunca mais, porque ela po<strong>de</strong>ria tomar e tomou, mas o eflúvio da manhã quem é que o pediu ao crepúsculo da tar<strong>de</strong>?<br />

CAPÍTULO 116<br />

Filosofia das Folhas Velhas<br />

Fiquei tão triste com o fim do último capítulo que estava capaz <strong>de</strong> não escrever este, <strong>de</strong>scansar um pouco, purgar o<br />

espírito da melancolia que a empacha, e continuar <strong>de</strong>pois. Mas não, não quero per<strong>de</strong>r tempo.<br />

A partida <strong>de</strong> Virgília <strong>de</strong>u-me uma amostra da viuvez. Nos primeiros dias meti-me em casa, a fisgar moscas, como<br />

Domiciano, se não mente o Suetônio, mas a fisgá-las <strong>de</strong> um modo particular: com os olhos. Fisgava-as uma a uma, no fundo<br />

<strong>de</strong> uma sala gran<strong>de</strong>, estirado na re<strong>de</strong> com um livro aberto entre as mãos. Era tudo: sauda<strong>de</strong>s, ambições, um pouco <strong>de</strong> tédio, e<br />

muito <strong>de</strong>vaneio solto. Meu tio cônego morreu nesse intervalo; item, dois primos; e eu não me <strong>de</strong>i por abalado; levei-os ao<br />

cemitério, como quem leva dinheiro a um banco. Que digo? como quem leva cartas ao correio: selei as cartas, meti-as na<br />

caixinha, e <strong>de</strong>ixei ao carteiro o cuidado <strong>de</strong> as entregar em mão própria. Foi também por esse tempo que nasceu minha<br />

sobrinha Venância, filha do Cotrim. Morriam uns, nasciam outros: eu continuava às moscas.<br />

Outras vezes agitava-me. Ia às gavetas, entomava as cartas antigas, dos amigos, dos parentes, das namoradas (até as <strong>de</strong><br />

Marcela), e abria-as todas, li-as uma a uma, e recompunha o pretérito... Leitor ignaro, se não guardas as cartas da juventu<strong>de</strong>,<br />

não conhecerás um dia a filosofia das folhas velhas, não gostarás o prazer <strong>de</strong> ver-te, ao longe, na penumbra, com um chapéu<br />

<strong>de</strong> três bicos, botas <strong>de</strong> sete léguas e longas barbas assírias, a bailar ao som <strong>de</strong> uma gaita anacreôntica. Guarda as tuas cartas<br />

da juventu<strong>de</strong>!<br />

Ou, se te não apraz o chapéu <strong>de</strong> três bicos, empregarei a locução <strong>de</strong> um velho marujo, familiar da casa <strong>de</strong> Cotrim; direi<br />

que, se guardares as cartas da juventu<strong>de</strong>, acharás ocasião <strong>de</strong> "cantar uma sauda<strong>de</strong>". Parece que os nossos marujos dão este<br />

nome às cantigas <strong>de</strong> terra, entoadas no alto-mar. Como expressão poética, é o que se po<strong>de</strong> exigir mais triste.<br />

CAPÍTULO 117<br />

O Humanitismo<br />

Duas forças, porém, além <strong>de</strong> uma terceira, compeliam-se a tomar à vida agitada do costume: Sabina e Quincas Borba.<br />

Minha irmã encaminhou a candidatura conjugal <strong>de</strong> Nhá-loló <strong>de</strong> um modo verda<strong>de</strong>iramente impetuoso. Quando <strong>de</strong>i por mim<br />

estava com a moça quase nos braços. Quanto ao Quincas Borba, expôs-me enfim o Humanitismo, sistema <strong>de</strong> filosofia<br />

<strong>de</strong>stinado a arruinar todos os <strong>de</strong>mais sistemas.<br />

- Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens. Conta<br />

três fases Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a expansiva, começo das coisas; a dispersiva, aparecimento do<br />

homem; e contará mais uma, a contrativa absorção do homem e das coisas. A expansão, iniciando o universo, sugeriu a<br />

Humanitas o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> o gozar, e dai a dispersão, que não é mais do que a multiplicação personificada da substância original.<br />

Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba <strong>de</strong>senvolveu-a <strong>de</strong> um modo profundo, fazendo notar as<br />

gran<strong>de</strong>s linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição<br />

dos homens pelas diferentes partes do corpo <strong>de</strong> Humanitas; mas aquilo que na religião indiana tinha apenas uma estreita<br />

significação teológica e política, era no Humanitismo a gran<strong>de</strong> lei do valor pessoal. Assim, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r do peito ou dos rins <strong>de</strong><br />

Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r dos cabelos ou da ponta do nariz. Dai a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cultivar e temperar o músculo. Hércules ou Herakles não foi senão um símbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto o<br />

Quincas Borba pon<strong>de</strong>rou que o paganismo po<strong>de</strong>ria ter chegado à verda<strong>de</strong>, se se não houvesse amesquinhado com a parte<br />

galante dos seus mitos. Nada disso acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja nova não há aventuras fáceis, nem quedas,<br />

nem tristezas, nem alegrias pueris. O amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior<br />

benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte (o que é um <strong>de</strong>licioso influxo <strong>de</strong> Humanitas),<br />

segue-se que a transmissão da vida, longe <strong>de</strong> ser uma ocasião <strong>de</strong> galanteio, é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto,<br />

verda<strong>de</strong>iramente há só uma <strong>de</strong>sgraça: é não nascer.<br />

- Imagina, por exemplo, que eu não tinha nascido, continuou o Quincas Borba; é positivo que não teria agora o prazer <strong>de</strong><br />

conversar contigo, comer esta batata, ir ao teatro, e para tudo dizer numa só palavra: viver. Nota que não faço do homem um<br />

simples veículo <strong>de</strong> Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido;<br />

dai a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> adorar-se a si próprio. Queres uma prova da superiorida<strong>de</strong> do meu sistema? Contempla a inveja. Não há<br />

moralista grego ou turco, cristão ou muçulmano, que troveje contra o sentimento da inveja, O acordo é universal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

campos da Iduméia até o Alto da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as retóricas rafadas, e estuda a<br />

inveja, esse sentimento tão sutil e tão nobre. Sendo cada homem uma redução <strong>de</strong> Humanitas, é claro que nenhum homem é<br />

fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o algoz que<br />

executa o con<strong>de</strong>nado po<strong>de</strong> excitar o vão clamor dos poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige em Humanitas<br />

uma infração da lei <strong>de</strong> Humanitas. O mesmo direi do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força <strong>de</strong> Humanitas.

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