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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

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jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e <strong>de</strong>ixavam-me ver a nossa casa, a nossa família, as nossas festas.<br />

Suportei a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da vizinhança lembrou-se <strong>de</strong> zangarrear na clássica rabeca, e<br />

essa voz - porque até então a recordação era muda, - essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me comoveu,<br />

que...<br />

Os olhos <strong>de</strong>la estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e mórbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue,<br />

um pedaço <strong>de</strong> minha mãe, e eu disse-lho com ternura, com sincerida<strong>de</strong>... Súbito, ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um<br />

anjinho <strong>de</strong> cinco anos.<br />

- Entra, Sara, disse Sabina.<br />

Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a pequena, espantada, empurrava-me o ombro com a<br />

mãozinha, quebrando o corpo para <strong>de</strong>scer... Nisto, aparece-me porta um chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos<br />

que o Cotrim. Eu estava tão comovido, que <strong>de</strong>ixei a filha e lancei-me aos braços do pai. Talvez essa efusão o <strong>de</strong>sconcertou um<br />

pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples prólogo. Daí a pouco falávamos como bons amigos velhos. Nenhuma<br />

alusão ao passado, muitos planos <strong>de</strong> futuro, promessa <strong>de</strong> jantarmos em casa um do outro. E não <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> dizer que essa<br />

troca <strong>de</strong> jantares podia ser que tivesse uma curta interrupção, porque eu andava com idéias <strong>de</strong> uma viagem ao Norte. Sabina<br />

olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram que essas idéias não tinham senso comum. Que diacho podia<br />

eu achar no Norte? Pois não era na corte, em plena corte, que <strong>de</strong>via continuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do<br />

tempo? Que, na verda<strong>de</strong>, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim, acompanhava-me <strong>de</strong> longe, e, não obstante uma<br />

briga ridícula, teve sempre interesse, orgulho, vaida<strong>de</strong> nos meus triunfos. Ouvia o que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas<br />

salas; era um concerto <strong>de</strong> louvores e admirações. E <strong>de</strong>ixa-se isso para ir passar alguns meses na província, sem necessida<strong>de</strong>,<br />

sem motivo sério? A menos que não fosse política...<br />

- Justamente política, disse eu.<br />

- Nem assim, replicou ele dai a um instante. - E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> outro silêncio: - Seja como for, venha jantar hoje conosco.<br />

- Certamente que vou; mas, amanhã ou <strong>de</strong>pois, hão <strong>de</strong> vir jantar comigo.<br />

- Não sei, não sei, objetou Sabina; em casa <strong>de</strong> homem solteiro... Você precisa casar, mano. Também eu quero uma<br />

sobrinha, ouviu?<br />

Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa; a reconciliação <strong>de</strong> uma família vale bem um gesto<br />

enigmático.<br />

CAPÍTULO 82<br />

Questão <strong>de</strong> Botânica<br />

Digam o que quiserem dizer os hipocondríacos: a vida é uma coisa doce. Foi o que eu pensei comigo, ao ver Sabina, o<br />

marido e a filha <strong>de</strong>scerem <strong>de</strong> tropel as escadas, dizendo muitas palavras afetuosas para cima, on<strong>de</strong> eu ficava - no patamar, - a<br />

dizer-lhes outras tantas para baixo. E continuei a pensar que, na verda<strong>de</strong>, era feliz. Amava-me uma mulher, tinha a confiança<br />

do marido, ia por secretário <strong>de</strong> ambos, e reconciliava-me com os meus. Que podia <strong>de</strong>sejar mais, em vinte e quatro horas?<br />

Nesse mesmo dia, tratando <strong>de</strong> aparelhar os ânimos, comecei a espalhar que talvez fosse para o Norte como secretário <strong>de</strong><br />

província, a fim <strong>de</strong> realizar certos <strong>de</strong>sígnios políticos, que me eram pessoais. Disse-o na rua do Ouvidor, repeti-o no dia<br />

seguinte, no Pharoux e no teatro. Alguns, ligando a minha nomeação à do Lobo Neves, que já andava em boatos, sorriam<br />

maliciosamente, outros batiam-me no ombro. No teatro disse-me uma senhora que era levar muito longe o amor da escultura.<br />

Referia-se às belas formas <strong>de</strong> Virgília.<br />

Mas a alusão mais rasgada que me fizeram foi em casa <strong>de</strong> Sabina, três dias <strong>de</strong>pois. Fê-la um certo Garcez, velho<br />

cirurgião, pequenino, trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos noventa anos, sem adquirir jamais aquela<br />

compostura austera, que é a gentileza do ancião. A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira surpresa da<br />

natureza humana.<br />

- Já sei, <strong>de</strong>sta vez vai ler Cícero, disse-me ele, ao saber da viagem.<br />

- Cicero! exclamou Sabina.<br />

- Pois então? Seu mano é um gran<strong>de</strong> latinista. Traduz Virgílio <strong>de</strong> relance. Olhe que é Virgílio e não Virgília... não<br />

confunda...<br />

E ria, <strong>de</strong> um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina empali<strong>de</strong>ceu e olhou para mim, receosa <strong>de</strong> alguma réplica; mas sorriu,<br />

quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçá-lo. As outras pessoas olhavam-me com um ar <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>, indulgência e<br />

simpatia; era transparente que não acabavam <strong>de</strong> ouvir nenhuma novida<strong>de</strong>. O caso dos meus amores andava mais público do<br />

que eu podia supor. E entretanto sorri, um sorriso curto, fugitivo e guloso, - palreiro como as pegas <strong>de</strong> Sintra. Virgília era um<br />

belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a principio, quando ouvia alguma alusão aos<br />

nossos amores; mas palavra <strong>de</strong> honra! sentia cá <strong>de</strong>ntro uma impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu-me<br />

sorrir, e continuei a fazê-lo das outras vezes. Não sei se há aí algum Hobbes ou Spinosa que explique o fenômeno. Eu<br />

explico-o assim: a princípio, o contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado; andando o<br />

tempo, <strong>de</strong>sabotoou-se em flor, e apareceu aos olhos do próximo. Simples questão <strong>de</strong> botânica.<br />

CAPÍTULO 83<br />

O Cotrim tirou-me daquele gozo, levando-me à janela.<br />

- Você quer que lhe diga uma coisa? perguntou ele; - não faça essa viagem; é insensata, é perigosa.<br />

- Porquê?<br />

- Você bem sabe porque, tomou ele: é, sobretudo, perigosa, muito perigosa. Aqui na corte, um caso <strong>de</strong>sses per<strong>de</strong>-se na<br />

multidão da gente e dos interesses; mas na província muda <strong>de</strong> figura; e tratando-se <strong>de</strong> personagens políticos, é realmente<br />

insensatez. As gazetas <strong>de</strong> oposição, logo que farejarem o negócio, passam a imprimi-lo com todas as letras, e aí virão as<br />

chufas, os remoques, as alcunhas...<br />

- Mas não entendo...

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