02.08.2013 Views

Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo, <strong>de</strong> modo que insensivelmente me achei<br />

à porta do hotel Pharoux. De costume jantava ai; mas, não tendo <strong>de</strong>liberadamente andado, nenhum merecimento da ação me<br />

cabe, e sim às pernas, que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com <strong>de</strong>sdém ou indiferença. Eu mesmo, até<br />

então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos fatigáveis, quando não podíeis ir além <strong>de</strong> certo ponto, e me <strong>de</strong>ixáveis<br />

com o <strong>de</strong>sejo a avoaçar, à semelhança <strong>de</strong> galinha atada pelos pés.<br />

Aquele caso, porém, foi um raio <strong>de</strong> luz. Sim, pernas amigas, vós <strong>de</strong>ixastes à minha cabeça o trabalho <strong>de</strong> pensar em<br />

Virgília, e dissestes uma à outra: - Ele precisa comer, são horas <strong>de</strong> jantar, vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciência<br />

<strong>de</strong>le, uma parte fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito, não abalroe as gentes e as carroças, tire o<br />

chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel. E cumpristes à risca o vosso propósito, amáveis pernas, o<br />

que me obriga a imortalizar-vos nesta página.<br />

CAPÍTULO 67<br />

A Casinha<br />

Jantei e fui a casa. Lá achei uma caixa <strong>de</strong> charutos, que me mandara o Lobo Neves, embrulhada em papel <strong>de</strong> seda, e<br />

ornada <strong>de</strong> fitinhas cor-<strong>de</strong>-rosa. Entendi, abria-a, e tirei este bilhete:<br />

"Meu B...<br />

Desconfiam <strong>de</strong> nós; tudo está perdido; esqueça-me para sempre. Não nos veremos mais. A<strong>de</strong>us; esqueça-se da infeliz V..<br />

a."<br />

Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à casa <strong>de</strong> Virgília. Era tempo; estava arrependida. Ao<br />

vão <strong>de</strong> uma janela, contou-me o que se passara com a baronesa. A baronesa disse-lhe francamente que se falara muito, no<br />

teatro, na noite anterior, a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves; tinham comentado as minhas relações na<br />

casa; em suma, éramos objeto da suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer.<br />

- O melhor é fugirmos, insinuei.<br />

- Nunca, respon<strong>de</strong>u ela abanando a cabeça.<br />

Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito <strong>de</strong>la estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a<br />

consi<strong>de</strong>ração pública. Virgília era capaz <strong>de</strong> iguais e gran<strong>de</strong>s sacrifícios para conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe<br />

<strong>de</strong>ixava uma. Talvez senti alguma coisa semelhante a <strong>de</strong>speito; mas as comoções daqueles dois dias eram já muitas, e o<br />

<strong>de</strong>speito morreu <strong>de</strong>pressa. Vá lá; arranjemos a casinha.<br />

Com efeito, achei-a, dias <strong>de</strong>pois, expressamente feita em um recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada <strong>de</strong> fresco, com<br />

quatro janelas na frente e duas <strong>de</strong> cada lado – todas com venezianas cor <strong>de</strong> tijolo, - trepa<strong>de</strong>ira nos cantos, jardim na frente;<br />

mistério e solidão. Um brinco!<br />

Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida <strong>de</strong> Virgília, em cuja casa fora costureira e agregada.<br />

Virgília exercia sobre ela verda<strong>de</strong>ira fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria facilmente o resto.<br />

Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência <strong>de</strong> posse exclusiva, <strong>de</strong> domínio absoluto, alguma<br />

coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o <strong>de</strong>coro. Já estava cansado das cortinas do outro, das ca<strong>de</strong>iras, do<br />

tapete, do canapé, <strong>de</strong> todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicida<strong>de</strong>. Agora podia evitar<br />

os jantares freqüentes, o chá <strong>de</strong> todas as noites, enfim a presença do filho <strong>de</strong>les, meu cúmplice e meu inimigo. A casa<br />

resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta - dali para <strong>de</strong>ntro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional,<br />

nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, - um só mundo, um só casal,<br />

uma só vida, uma só vonta<strong>de</strong>, uma só afeição - a unida<strong>de</strong> moral <strong>de</strong> todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias.<br />

CAPÍTULO 68<br />

O Vergalho<br />

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver e ajustar a casa.<br />

Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente<br />

estas únicas palavras: - "Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica,<br />

respondia com uma vergalhada nova.<br />

- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!<br />

- Meu senhor! gemia o outro.<br />

- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.<br />

Parei, olhei... justos céus! Quem havia <strong>de</strong> ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio - o que meu pai<br />

libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele <strong>de</strong>teve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo<br />

<strong>de</strong>le.<br />

- E, sim, nhonhô.<br />

- Fez-te alguma coisa?<br />

- É um vadio e um bêbado muito gran<strong>de</strong>. Ainda hoje <strong>de</strong>ixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cida<strong>de</strong>, e ele<br />

<strong>de</strong>ixou a quitanda para ir na venda beber.<br />

- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.<br />

- Pois não, nhonhô manda, não pe<strong>de</strong>. Entra para casa, bêbado!<br />

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a cavar cá <strong>de</strong>ntro uma<br />

infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu<br />

gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que<br />

meti mais <strong>de</strong>ntro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha <strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>sfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha- lhe um freio na boca, e<br />

<strong>de</strong>sancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha <strong>de</strong> si mesmo, dos braços, das pernas,<br />

podia trabalhar, folgar, dormir, <strong>de</strong>sagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se <strong>de</strong>sbancava: comprou um escravo, e<br />

ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que <strong>de</strong> mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!