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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

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havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão da vonta<strong>de</strong>. Esta idéia<br />

embriagou-me; eliminados assim o mundo, a moral e o marido, não haveria mais que penetrar naquela habitação dos anjos.<br />

- Virgília, disse, eu proponho-te uma coisa.<br />

- Que é?<br />

- Amas-me?<br />

- Oh! suspirou ela, cingindo-me os braços ao pescoço.<br />

Virgília amava-me com fúria; aquela resposta era a verda<strong>de</strong> patente. Com os braços ao meu pescoço, calada, respirando<br />

muito, <strong>de</strong>ixou-se ficar a olhar para mim, com os seus gran<strong>de</strong>s e belos olhos, que davam uma sensação singular <strong>de</strong> luz úmida; e<br />

eu <strong>de</strong>ixei-me estar a vê-los, a namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciável como a morte. A beleza <strong>de</strong> Virgília<br />

tinha agora um tom grandioso, que não possuira antes <strong>de</strong> casar. Era <strong>de</strong>ssas figuras talhadas em pentélico, <strong>de</strong> um lavor nobre,<br />

rasgado e puro, tranqüilamente bela, como as estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha o aspecto das naturezas<br />

cálidas, e podia-se dizer que, na realida<strong>de</strong>, resumia todo o amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em que exprimia<br />

mudamente tudo quanto po<strong>de</strong> dizer a pupila humana. Mas o tempo urgia; <strong>de</strong>slacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fito<br />

nela, perguntei-lhe se tinha coragem.<br />

- De quê?<br />

- De fugir. Iremos para on<strong>de</strong> nos for mais cômodo, uma casa gran<strong>de</strong> ou pequena, à tua vonta<strong>de</strong>, na roça ou na cida<strong>de</strong>, ou<br />

na Europa, on<strong>de</strong> te parecer, on<strong>de</strong> ninguém nos aborreça, e não haja perigos para ti, on<strong>de</strong> vivamos um para o outro... Sim?<br />

fujamos. Tar<strong>de</strong> ou cedo, ele po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir alguma coisa, e estarás perdida... ouves? perdida... morta... e ele também, porque<br />

eu o matarei, juro-te.<br />

Interrompi-me; Virgília empali<strong>de</strong>cera muito, <strong>de</strong>ixou cair os braços e sentou-se no canapé. Esteve assim alguns instantes,<br />

sem me dizer palavra, não sei se vacilante na escolha, se aterrada com a idéia da <strong>de</strong>scoberta e da morte. Fui-me a ela, insisti<br />

na proposta, disse-lhe todas as vantagens <strong>de</strong> uma vida a sós, sem zelos, nem terrores, nem aflições. Virgília ouvia-me calada;<br />

<strong>de</strong>pois disse:<br />

- Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-me do mesmo modo.<br />

Mostrei-lhe que não. O mundo era assaz vasto, e eu tinha os meios <strong>de</strong> viver on<strong>de</strong> quer que houvesse ar puro e muito sol;<br />

ele não chegaria até lá; só as gran<strong>de</strong>s paixões são capazes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s ações, e ele não a amava tanto que pu<strong>de</strong>sse ir<br />

buscá-la, se ela estivesse longe. Virgília fez um gesto <strong>de</strong> espanto e quase indignação; murmurou que o marido gostava muito<br />

<strong>de</strong>la.<br />

- Po<strong>de</strong> ser, respondi eu; po<strong>de</strong> ser que sim...<br />

E fui até a janela, e comecei a assobiar e a rufar com os <strong>de</strong>dos no peitoril. Virgília chamou-me; eu <strong>de</strong>ixei-me estar, a<br />

remoer os meus zelos, a <strong>de</strong>sejar estrangular o marido, se o tivesse ali à mão... Justamente, nesse instante, apareceu na<br />

chácara o Lobo Neves. Não tremas assim, leitora pálida; <strong>de</strong>scansa, que não hei <strong>de</strong> rubricar esta lauda com um pingo <strong>de</strong><br />

sangue. Logo que o Lobo Neves entrou na chácara, fiz-lhe um gesto amigo, acompanhado <strong>de</strong> uma palavra graciosa; Virgília<br />

retirou-se apressadamente da sala, e ele entrou daí a três minutos.<br />

- Está cá há muito tempo? disse-me ele.<br />

- Não.<br />

Entrara sério, pesado, <strong>de</strong>rramando os olhos <strong>de</strong> um modo distraído, costume seu, que trocou logo por uma verda<strong>de</strong>ira<br />

expansão <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong>, quando viu chegar o filho, o nhonhô, o futuro bacharel do capítulo 8; tomou-o nos braços, levantou-o<br />

ao ar, beijou-o muitas vezes. Eu, que tinha ódio ao menino, afastei-me <strong>de</strong> ambos. Virgília tomou à sala<br />

- Ah! respirou Lobo Neves, sentando-se preguiçosamente no sofá.<br />

- Cansado? perguntei eu.<br />

- Muito; aturei duas maçadas <strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m, uma na câmara e outra na rua. E ainda temos terceira, acrescentou,<br />

olhando para a mulher.<br />

- Que é? perguntou Virgília.<br />

- Um... Adivinha!<br />

Virgília sentara-se ao lado <strong>de</strong>le, pegou-lhe numa das mãos, compós-lhe a gravata, e tomou a perguntar o que era.<br />

- Nada menos que um camarote.<br />

- Para a Candiani?<br />

- Para a Candiani.<br />

Virgília bateu palmas, levantou-se, <strong>de</strong>u um beijo no filho, com um ar <strong>de</strong> alegria pueril, que <strong>de</strong>stoava muito da figura; <strong>de</strong>pois<br />

perguntou se o camarote era <strong>de</strong> boca ou do centro, consultou o marido, em voz baixa, acerca da toilette que faria, da ópera<br />

que se cantava, e <strong>de</strong> não sei que outras coisas.<br />

- Você janta conosco, doutor, disse-me o Lobo Neves.<br />

- Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o melhor vinho do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

- Nem por isso bebe muito.<br />

Ao jantar, <strong>de</strong>smenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim, menos do que era preciso para per<strong>de</strong>r a razão. Já estava<br />

excitado, fiquei um pouco mais. Era a primeira gran<strong>de</strong> cólera que eu sentia contra Virgília. Não olhei uma só vez para ela<br />

durante o jantar; falei <strong>de</strong> política, da imprensa, do ministério, creio que falaria <strong>de</strong> teologia, se a soubesse, ou se me lembrasse.<br />

O Lobo Neves acompanhava-me com muita placi<strong>de</strong>z e dignida<strong>de</strong>, e até com certa benevolência superior; e tudo aquilo me<br />

irritava também, e me tomava mais amargo e longo o jantar. Despedi-me apenas nos levantamos da mesa.<br />

- Até logo, não? perguntou o Lobo Neves.<br />

- Po<strong>de</strong> ser.<br />

E saí.<br />

CAPÍTULO 64<br />

A Transação<br />

Vaguei pelas ruas e recolhi-me às nove horas. Não po<strong>de</strong>ndo dormir, atirei-me a ler e escrever. As onze horas estava<br />

arrependido <strong>de</strong> não ter ido ao teatro, consultei o relógio, quis vestir-me, e sair. Julguei, porém, que chegaria tar<strong>de</strong>; <strong>de</strong>mais, era<br />

dar prova <strong>de</strong> fraqueza. Evi<strong>de</strong>ntemente, Virgília começava a aborrecer-se <strong>de</strong> mim, pensava eu. E esta idéia fez-me<br />

sucessivamente <strong>de</strong>sesperado e frio, disposto a esquecê-la e a matá- la. Via-a dali mesmo, reclinada no camarote, com os seus<br />

magníficos braços nus, - os braços que eram meus, só meus - fascinando os olhos <strong>de</strong> todos, com o vestido soberbo que havia<br />

<strong>de</strong> ter, o colo <strong>de</strong> leite, os cabelos postos em bandós, à maneira do tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos <strong>de</strong>la...<br />

Via-a assim, e doía-me que a vissem outros. Depois, começava a <strong>de</strong>spi-la, a pôr <strong>de</strong> lado as jóias e sedas, a <strong>de</strong>spenteá- la com

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