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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

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CAPÍTULO 69<br />

Um Grão <strong>de</strong> Sandke<br />

Este caso faz-me lembrar um doido que conheci. Chamava-se Romualdo e dizia ser Tamerlão. Era a sua gran<strong>de</strong> e única<br />

mania, e tinha uma curiosa maneira <strong>de</strong> a explicar.<br />

- Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas adoeci, e tomei tanto tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro,<br />

tanto tártaro, que fiquei Tártaro, e até rei dos Tártaros. O tártaro tem a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer Tártaros.<br />

Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável que o leitor não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça<br />

nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim contada, no papel, e a propósito <strong>de</strong> um vergalho recebido e transferido, força<br />

é confessar que é muito melhor voltar à casinha da Gamboa; <strong>de</strong>ixemos os Romualdos e Prudêncios.<br />

CAPÍTULO 70<br />

Dona Plácida<br />

Voltemos à casinha. Não serias capaz <strong>de</strong> lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário<br />

<strong>de</strong>itou-a abaixo para substitui-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito<br />

para Alexandre; um <strong>de</strong>svão <strong>de</strong> telhado é o infinito para as andorinhas.<br />

E vejam agora a neutralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma lancha <strong>de</strong> náufragos, que vai dar<br />

à costa: dorme hoje um casal <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s no mesmo espaço <strong>de</strong> chão que sofreu um casal <strong>de</strong> pecados. Amanhã po<strong>de</strong> lá dormir<br />

um eclesiástico, <strong>de</strong>pois um assassino, <strong>de</strong>pois um ferreiro, <strong>de</strong>pois um poeta, e todos abençoarão esse canto <strong>de</strong> terra, que lhes<br />

<strong>de</strong>u algumas ilusões.<br />

Virgília fez daquilo um brinco; <strong>de</strong>signou as alfaias mais idôneas, e dispô-las com a intuição estética da mulher elegante; eu<br />

levei para lá alguns livros, e tudo ficou sob a guarda <strong>de</strong> Dona Plácida, suposta, e, a certos respeitos, verda<strong>de</strong>ira dona da casa.<br />

Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal ce<strong>de</strong>u. Creio que chorava, a princípio:<br />

tinha nojo <strong>de</strong> si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dois meses; falava-me<br />

com eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por ofendido, tratava-a com carinho e<br />

respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência, <strong>de</strong>pois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma história patética<br />

dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei que outros<br />

toques <strong>de</strong> novela. Dona Plácida não rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessida<strong>de</strong> da consciência.<br />

Ao cabo <strong>de</strong> seis meses quem nos visse a todos três juntos diria que Dona Plácida era minha sogra.<br />

Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio <strong>de</strong> cinco contos, - os cinco contos achados em Botafogo, - como um pão para a velhice.<br />

Dona Plácida agra<strong>de</strong>ceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> rezar por mim, todas as noites, diante <strong>de</strong> uma<br />

imagem da Virgem que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.<br />

CAPÍTULO 71<br />

O Senão do Livro<br />

Começo a arrepen<strong>de</strong>r-me <strong>de</strong>ste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros<br />

capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternida<strong>de</strong>. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro,<br />

traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior <strong>de</strong>feito <strong>de</strong>ste livro és tu, leitor. Tu tens pressa <strong>de</strong><br />

envelhecer, e o livro anda <strong>de</strong>vagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo<br />

são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu,<br />

escorregam e caem...<br />

E caem! - Folhas misérrimas do meu cipreste, heis <strong>de</strong> cair, como quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos,<br />

dar-vos-ia uma lágrima <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>. Esta é a gran<strong>de</strong> vantagem da morte, que, se não <strong>de</strong>ixa boca para rir, também não <strong>de</strong>ixa<br />

olhos para chorar... Heis <strong>de</strong> cair. Turvo é o ar que respirais, amadas folhas. O sol que vos alumia, com ser <strong>de</strong> toda gente, é um<br />

sol opaco e reles, <strong>de</strong> cemitério e carnaval.<br />

CAPÍTULO 72<br />

O Bibliômano<br />

Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas últimas linhas, uma frase muito parecida com<br />

<strong>de</strong>spropósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro.<br />

Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além dos livros,<br />

inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe <strong>de</strong>scobre o <strong>de</strong>spropósito; lê, relê, treslê, <strong>de</strong>sengonça as palavras, saca uma<br />

sílaba, <strong>de</strong>pois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por <strong>de</strong>ntro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as,<br />

esfrega-as no joelho, lava-as, e nada. Fica sempre o mesmo <strong>de</strong>spropósito.<br />

E um bibliômano. Não conhece o autor; este nome <strong>de</strong> <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong> não vem nos seus dicionários biográficos. Achou o<br />

volume, por acaso, no pardieiro <strong>de</strong> um alfarrabista. Comprou- o por duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a<br />

<strong>de</strong>scobrir que era um exemplar único... Unico! Vós, que não só amais os livros, senão que pa<strong>de</strong>ceis a mania <strong>de</strong>les, vós sabeis<br />

mui bem o valor <strong>de</strong>sta palavra, e adivinhais, portanto, as <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> meu bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das Índias, o<br />

papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse <strong>de</strong> trocar por esse único exemplar; e não porque seja o das<br />

minhas <strong>Memórias</strong>, fazia a mesma coisa com o Almanac <strong>de</strong> Laemmert, uma vez que fosse único.<br />

O pior é o <strong>de</strong>spropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no olho direito, todo entregue à<br />

nobre e áspera função <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar o <strong>de</strong>spropósito. Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o<br />

achado do livro e a <strong>de</strong>scoberta da sublimida<strong>de</strong>, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não <strong>de</strong>scobre nada e<br />

contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único. Nesse<br />

momento passa-lhe por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do po<strong>de</strong>r. Ele dá <strong>de</strong> ombros, fecha a janela,<br />

estira-se na re<strong>de</strong> e folheia o livro <strong>de</strong>vagar, com amor, aos goles... Um exemplar único!

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