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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional

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urburinho surdo e ligeiro das conversas particulares. E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora <strong>de</strong>pois, quando me retirei<br />

do baile, às quatro da manhã, o que é que fui achar no fundo do carro? Os meus cinqüenta anos. Lá estavam eles os teimosos,<br />

não tolhidos <strong>de</strong> frio, nem reumáticos, - mas cochilando a sua fadiga, um pouco cobiçosos <strong>de</strong> cama e <strong>de</strong> repouso. Então, - e<br />

vejam até que ponto po<strong>de</strong> ir a imaginação <strong>de</strong> um homem, com sono, - então pareceu-me ouvir <strong>de</strong> um morcego encarapitado no<br />

tejadilho: Senhor <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas luzes, nas sedas, - enfim, nos outros.<br />

CAPÍTULO 135<br />

Oblivion<br />

E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o livro e não lê as restantes. Para ela extinguiu-se o<br />

interesse da minha vida, que era o amor. Cinqüenta anos! Não é ainda a invali<strong>de</strong>z, mas já não é a frescura. Venham mais <strong>de</strong>z,<br />

e eu enten<strong>de</strong>rei o que um inglês dizia, enten<strong>de</strong>rei que "coisa é não achar já quem se lembre <strong>de</strong> meus pais, e <strong>de</strong> que modo me<br />

há <strong>de</strong> encarar o próprio ESQUECIMENTO".<br />

Vai em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é que se dêem todas as honras a um personagem tão <strong>de</strong>sprezado e tão<br />

digno, conviva da última hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do atual reinado, e mais dolorosamente a que<br />

ostentou suas graças em flor sob o ministério Paraná, porque esta acha-se mais perto do triunfo, e sente já que outras lhe<br />

tomaram o carro. Então, se é digna <strong>de</strong> si mesma, não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; não busca no olhar<br />

<strong>de</strong> hoje a mesma saudação do olhar <strong>de</strong> ontem, quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, <strong>de</strong> alma alegre e pé<br />

veloz. Tempora mutantur. E ela compreen<strong>de</strong>rá que este turbilhão é assim mesmo, leva as folhas do mato e o farrapos do<br />

caminho, sem exceção nem pieda<strong>de</strong>; e se tiver um pouco <strong>de</strong> filosofia, não invejará, mas lastimará as que lhe tomaram o carro,<br />

porque também elas hão <strong>de</strong> ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espetáculo, cujo fim é divertir o planeta Saturno, que anda<br />

muito aborrecido.<br />

CAPÍTULO 136<br />

Inutilida<strong>de</strong><br />

Mas, ou muito me engano, ou acabo <strong>de</strong> escrever um capítulo inútil.<br />

CAPÍTULO 137<br />

A Barretina<br />

E daí, não; ele resume as reflexões que fiz no dia seguinte ao Quincas Borba, acrescentando que me sentia acabrunhado,<br />

e mil outras coisas tristes. Mas esse filósofo, com o elevado tino <strong>de</strong> que dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na<br />

la<strong>de</strong>ira fatal da melancolia.<br />

- Meu caro <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>, não te <strong>de</strong>ixes vencer <strong>de</strong>sses vapores. Que diacho! é preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer!<br />

brilhar! influir! dominar! Cinqüenta anos é a ida<strong>de</strong> da ciência e do governo. Ânimo, <strong>Brás</strong> <strong>Cubas</strong>; não me sejas palerma. Que<br />

tens tu com essa sucessão <strong>de</strong> ruína ou <strong>de</strong> flor a flor? Trata <strong>de</strong> saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do<br />

choramingas que se <strong>de</strong>ita à margem do rio para o fim <strong>de</strong> lastimar o curso incessante das águas. O ofício <strong>de</strong>las é não parar<br />

nunca; acomoda-te com a lei, e trata <strong>de</strong> aproveitá-la.<br />

Vê-se nas menores coisas o que vale a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> filósofo. As palavras do Quincas Borba tiveram o condão<br />

<strong>de</strong> sacudir o torpor moral e mental em que andava. Vamos lá; façamo-nos governo. Crê-lo-eis pósteros? Eu não havia<br />

intervindo até então nos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>bates. Cortejava a pasta por meio <strong>de</strong> rapapés, chás, comissões <strong>de</strong> votos; e a pasta não<br />

vinha. Urgia apo<strong>de</strong>rar-me da tribuna.<br />

Comecei <strong>de</strong>vagar. Três dias <strong>de</strong>pois, discutindo-se o orçamento da Justiça, aproveitei o ensejo para perguntar<br />

mo<strong>de</strong>stamente ao ministro se não julgava útil diminuir a barretina na guarda nacional. Não tinha vasto alcance o objeto da<br />

pergunta; mas ainda assim <strong>de</strong>monstrei que não era indigno das cogitações <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> Estado; e citei Filopêmen, que<br />

or<strong>de</strong>nou a substituição dos broquéis <strong>de</strong> suas tropas, que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lanças, que<br />

eram <strong>de</strong>masiado leves; fato que a história não achou que <strong>de</strong>smentisse a gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas páginas. O tamanho das nossas<br />

barretinas estava pedindo um corte profundo, não só por serem <strong>de</strong>selegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nas<br />

paradas, ao sol, o excesso do calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo certo que um dos preceitos <strong>de</strong> Hipócrates era<br />

trazer a cabeça fresca, parecia cruel obrigar um cidadão, por simples consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> uniforme, a arriscar a saú<strong>de</strong> e a vida, e<br />

conseqüentemente o futuro da família. A Câmara e o Governo <strong>de</strong>viam lembrar-se que a Guarda <strong>Nacional</strong> era o anteparo da<br />

liberda<strong>de</strong> e da in<strong>de</strong>pendência, e que o cidadão, chamado a um serviço gratuito, freqüente e penoso, tinha direito a que se lhe<br />

diminuísse o ônus, <strong>de</strong>cretando um uniforme leve e maneiro. Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça dos<br />

cidadãos, e a pátria precisava <strong>de</strong> cidadãos cuja fronte pu<strong>de</strong>sse levantar-se altiva e serena diante do po<strong>de</strong>r; e conclui com esta<br />

idéia; o chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é árvore <strong>de</strong> cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore do <strong>de</strong>serto,<br />

das praças e dos jardins.<br />

Vária foi a impressão <strong>de</strong>ste discurso. Quanto à forma, ao rapto eloqüente, à parte literária e filosófica, a opinião foi só<br />

uma; disseram-me todos que era completo, e que <strong>de</strong> uma barretina ninguém ainda conseguira tirar tantas idéias. Mas a parte<br />

política foi consi<strong>de</strong>rada por muitos <strong>de</strong>plorável; alguns achavam o meu discurso um <strong>de</strong>sastre parlamentar; enfim, vieram<br />

dizer-me que outros me davam já em oposição, entrando nesse número os oposicionistas da câmara, que chegaram a insinuar<br />

a convivência <strong>de</strong> uma moção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança. Repeli energicamente tal interpretação, que não era só errônea, mas caluniosa,<br />

à vista da notorieda<strong>de</strong> com que eu sustentava o Gabinete; acrescentei que a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diminuir a barretina não era<br />

tamanha que não pu<strong>de</strong>sse esperar alguns anos; e que, em todo caso, eu transigiria na extensão do corte, contentando-me com<br />

três quartos <strong>de</strong> polegada ou menos; enfim; dado mesmo que a minha idéia não fosse adotada, bastava-me tê-la iniciado no<br />

parlamento.<br />

O Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma. Não sou homem político, disse-me ele ao jantar; não sei se andaste<br />

bem ou mal; sei que fizeste um excelente discurso. E então notou as partes mais salientes, as belas imagens, os argumentos<br />

fortes, com esse comedimento <strong>de</strong> louvor que tão bem fica a um gran<strong>de</strong> filósofo; <strong>de</strong>pois, tomou o assunto à sua conta, e<br />

impugnou a barretina com tal força, com tamanha luci<strong>de</strong>z, que acabou convencendo-me efetivamente do seu perigo.

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