Memórias Póstumas de Brás Cubas - Fundação Biblioteca Nacional
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tinha que fosse baixo? Naturalmente Virgília não soube o que fez; era possível que já estivesse arrependida. Olhei para o<br />
papel, um pedaço <strong>de</strong> papel amarrotado, mas inflexível. Tive comichões <strong>de</strong> o rasgar, em trinta mil pedaços, e atirá-los ao vento,<br />
como o último <strong>de</strong>spojo da minha aventura; mas recuei a tempo; o amor-próprio, o vexame da fuga, a idéia do medo... Não<br />
havia remédio senão ir.<br />
- Diga-lhe que vou.<br />
- Aon<strong>de</strong>? perguntou Dona Plácida.<br />
- On<strong>de</strong> ela disse que me espera.<br />
- Não me disse nada.<br />
- Neste papel.<br />
Dona Plácida arregalou os olhos: - Mas esse papel, achei- o hoje <strong>de</strong> manhã, nesta sua gaveta, e pensei que...<br />
Tive uma sensação esquisita. Reli o papel, mirei-o, remirei-o; era, em verda<strong>de</strong>, um antigo bilhete <strong>de</strong> Virgília, recebido no<br />
começo dos nossos amores, uma certa entrevista na chácara, que me levou efetivamente a saltar o muro, um muro baixo e<br />
discreto. Guar<strong>de</strong>i o papel e... Tive uma sensação esquisita.<br />
CAPÍTULO 112<br />
A Opinião<br />
Mas estava escrito que esse dia <strong>de</strong>via ser o dos lances dúbios. Poucas horas <strong>de</strong>pois, encontrava-me eu com o Lobo<br />
Neves, na rua do Ouvidor; e falamos da presidência e da política. Ele aproveitou o primeiro conhecido que nos passou à<br />
ilharga, e <strong>de</strong>ixou-me, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos cumprimentos. Lembra-me que estava retraído, mas <strong>de</strong> um retraimento que forcejava<br />
por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à critica, se este meu juízo for temerário!) pareceu-me que ele tinha medo -<br />
não medo <strong>de</strong> mim, nem <strong>de</strong> si, nem do código, nem da consciência; tinha medo da opinião. Supus que esse tribunal anônimo e<br />
invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite posto à vonta<strong>de</strong> do Lobo Neves. Talvez que ele já não amasse a<br />
mulher; e, assim, po<strong>de</strong> ser que o coração fosse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido (e <strong>de</strong> novo insto pela boa<br />
vonta<strong>de</strong> da crítica!) cuido que ele estaria pronto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado <strong>de</strong> muitas relações<br />
pessoais; mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquérito acerca do<br />
caso, que coligiria uma a uma todas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria na palestra das<br />
chácaras <strong>de</strong>socupadas, essa terrível opinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família. Ao mesmo tempo tornou<br />
impossível o <strong>de</strong>sforço que seria a divulgação. Ele não podia mostrar-se ressentido comigo, sem igualmente buscar a<br />
separação conjugal; e teve então <strong>de</strong> simular a mesma ignorância <strong>de</strong> outrora, e, por <strong>de</strong>dução, iguais sentimentos.<br />
Que lhe custasse creio; naqueles dias, principalmente, vio <strong>de</strong> modo que <strong>de</strong>via custar-lhe muito. Mas o tempo (e é outro<br />
ponto em que eu espero a indulgência dos homens pensadores!), o tempo caleja a sensibilida<strong>de</strong>, e oblitera a memória das<br />
coisas; era <strong>de</strong> supor que os anos lhe <strong>de</strong>spontassem os espinhos, que a distância dos fatos apagasse os respectivos contornos,<br />
que uma sombra <strong>de</strong> dúvida retrospectiva cobrisse a nu<strong>de</strong>z da realida<strong>de</strong>; enfim, que a opinião se ocupasse um pouco com<br />
outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria satisfazer as ambições do pai; seria o her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> todos os seus afetos. Isso, e a<br />
ativida<strong>de</strong> externa, e o prestígio público, e a velhice <strong>de</strong>pois, a doença, o <strong>de</strong>clínio, a morte, um responso, uma notícia biográfica,<br />
e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma página <strong>de</strong> sangue.<br />
CAPÍTULO 113<br />
A Solda<br />
A conclusão, se há alguma no capitulo anterior, é que a opinião é uma boa solda das instituições domésticas. Não é<br />
impossível que eu <strong>de</strong>senvolva este pensamento, antes <strong>de</strong> acabar o livro; mas também não é impossível que o <strong>de</strong>ixe como<br />
está. De um ou <strong>de</strong> outro modo, é uma boa solda a opinião, e tanto na or<strong>de</strong>m doméstica, como na política. Alguns metafísicos<br />
biliosos têm chegado ao extremo <strong>de</strong> a darem como simples produto da gente chocha ou medíocre; mas é evi<strong>de</strong>nte que, ainda<br />
quando um conceito tão extremado não trouxesse em si mesmo a resposta, bastava consi<strong>de</strong>rar os efeitos salutares da opinião,<br />
para concluir que ela é a obra superfina da flor dos homens, a saber, do maior número.<br />
CAPÍTULO 114<br />
Fim <strong>de</strong> um Diálogo<br />
- Sim, é amanhã. Você vai a bordo?<br />
- Está doida? É impossível.<br />
- Então, a<strong>de</strong>us!<br />
- A<strong>de</strong>us!<br />
- Não se esqueça <strong>de</strong> Dona Plácida. Vá vê-la algumas vezes. Coitada! Foi ontem <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> nós; chorou muito, disse<br />
que eu não a veria mais... É uma boa criatura, não é?<br />
- Certamente.<br />
- Se tivermos <strong>de</strong> escrever, ela receberá as cartas. Agora até daqui a...<br />
- Talvez dois anos?<br />
- Qual! ele diz que só até fazer as eleições.<br />
- Sim? então até breve. Olhe que estão olhando para nós.<br />
- Quem?<br />
- Ali do sofá. Separemo-nos.<br />
- Custa-me muito.<br />
- Mas é preciso; a<strong>de</strong>us, Virgília!<br />
- Até breve. A<strong>de</strong>us!<br />
CAPÍTULO 115