04.08.2013 Views

unijuí – universidade regional do noroeste do estado do rio grande ...

unijuí – universidade regional do noroeste do estado do rio grande ...

unijuí – universidade regional do noroeste do estado do rio grande ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

UNIJUÍ <strong>–</strong> UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO<br />

DO RIO GRANDE DO SUL<br />

VERA MARIA WERLE<br />

O DISCURSO JURÍDICO-PENAL E A SUA<br />

REPERCUSSÃO NO PROCESSO EMANCIPATÓRIO FEMININO<br />

Ijuí (RS)<br />

2005


VERA MARIA WERLE<br />

O DISCURSO JURÍDICO-PENAL E A SUA<br />

REPERCUSSÃO NO PROCESSO EMANCIPATÓRIO FEMININO<br />

Dissertação de Mestra<strong>do</strong> apresentada ao<br />

Curso de Pós-graduação Stricto Sensu em<br />

Desenvolvimento, Gestão e Cidadania como<br />

requisito para obtenção <strong>do</strong> título de Mestre.<br />

UNIJUÍ <strong>–</strong> Universidade Regional <strong>do</strong> Noroeste<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul.<br />

DEJ <strong>–</strong> Departamento de Estu<strong>do</strong>s Jurídicos.<br />

Orienta<strong>do</strong>ra: Profª. Drª. Odete Maria de Oliveira<br />

Ijuí (RS)<br />

2005<br />

2


VERA MARIA WERLE<br />

O DISCURSO JURÍDICO-PENAL E A SUA<br />

REPERCUSSÃO NO PROCESSO EMANCIPATÓRIO FEMININO<br />

Dissertação de Mestra<strong>do</strong> aprovada pela<br />

banca examina<strong>do</strong>ra abaixo subscrita para a<br />

obtenção <strong>do</strong> título de Mestre.<br />

UNIJUÍ - Universidade Regional <strong>do</strong> Noroeste<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul.<br />

Área de Concentração: Direito, cidadania e<br />

Desenvolvimento<br />

3<br />

Ijuí, 9 de maio de 2005<br />

_________________________- Doutora <strong>–</strong> UNIJUÍ<br />

Odete Maria de Oliveira<br />

Profª. Orienta<strong>do</strong>ra<br />

_________________________ - Doutor <strong>–</strong><br />

_________________________ - Doutor <strong>–</strong><br />

_________________________ - Doutor <strong>–</strong>


Dedico este trabalho a meus filhos,<br />

Raquel, Natana e Felipe, fonte de<br />

aprendizagem constante; a meus pais Edith<br />

e Reymun<strong>do</strong> Werle, de quem aprendi a lutar<br />

pelos meus ideais; as minhas irmãs, Rita,<br />

Elaine, Marlise, Anira, Amara e Leila, que<br />

souberam ousar e inovar a “tradição”.<br />

4


AGRADECIMENTOS<br />

Externo a minha sincera gratidão à professora<br />

Odete Maria de Oliveira, pois, muito mais <strong>do</strong> que<br />

orientar este trabalho com sabe<strong>do</strong>ria e<br />

dedicação, soube indicar o caminho para o<br />

crescimento e aprimoramento intelectuais, sem<br />

perder de vista, entretanto, o significa<strong>do</strong> da<br />

generosidade humana.<br />

Também agradeço a to<strong>do</strong>s os professores que ao<br />

longo <strong>do</strong> curso de Mestra<strong>do</strong> contribuíram na<br />

construção de uma aprendizagem significativa e<br />

crítica, o que foi fundamental na definição desta<br />

proposta de pesquisa e para oportunizar novos<br />

espaços de convivência.<br />

E, por último, dirijo os meus agradecimentos a<br />

to<strong>do</strong>s aqueles que, de uma ou outra forma,<br />

contribuíram na realização deste trabalho.<br />

5


Die welt, si wird dich schlecht begaben, glaube mir’s! Sofern du<br />

willst ein Leben haben: raub dir´s! (Lebensrückblick)<br />

Lou Andréas-Salomé, História das Mulheres no Ocidente, 1991.<br />

6


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO...............................................................................................<br />

1 SISTEMA PENAL: DO CONTROLE SOCIAL À VIOLÊNCIA<br />

INSTITUCIONAL...........................................................................................<br />

1.1 A Genealogia <strong>do</strong> Moderno Saber Penal..................................................<br />

1.1.1 A Reforma <strong>do</strong> Século XVIII: Um Direito Penal Legitima<strong>do</strong> pelo<br />

Contrato Social...............................................................................<br />

1.1.2 O Direito Penal sob o Paradigma da Racionalidade Científica......<br />

1.1.3 Escola Clássica: O Crime é uma Ação de Livre Arbít<strong>rio</strong>................<br />

1.1.4 Escola Positiva: Da Responsabilidade Moral à Responsabilidade<br />

Social..............................................................................................<br />

1.2 As Legislações Penais <strong>do</strong> Século XX......................................................<br />

1.3 O Mito <strong>do</strong> Direito Penal Igualitá<strong>rio</strong> e sua Lógica de Exclusão e<br />

Seletividade.............................................................................................<br />

2 O DISCURSO ENQUANTO ESTRATÉGIA CRIADORA DE GÊNERO.....<br />

2.1 Discursos, Verdade e Gênero: A Dialética <strong>do</strong> Poder..............................<br />

2.2 Representações da Mulher na História: Contradições............................<br />

2.2.1 O Poder das Mulheres no Século XIX............................................<br />

2.3 Filosofia e Ciência: O Sistema Biná<strong>rio</strong> <strong>do</strong> Sexo......................................<br />

2.3.1 A Sexualidade Feminina na Psicanálise.........................................<br />

2.4 O Direito e a Proteção ao Modelo Familiar Burguês...............................<br />

2.4.1 A Mulher no Direito Penal <strong>do</strong> Século XIX.......................................<br />

3 O DIREITO PENAL SOB UMA PERPECTIVA DE GÊNERO....................<br />

3.1 O Direito Penal e a sua Própria Versão de Gênero................................<br />

3.1.1 Controle Social: (Re) Produção da Ideologia de Gênero...............<br />

3.2 Sistema Penal: Da Proteção à Violência Institucional.............................<br />

10<br />

17<br />

17<br />

25<br />

28<br />

36<br />

41<br />

48<br />

51<br />

61<br />

61<br />

76<br />

80<br />

90<br />

102<br />

111<br />

118<br />

124<br />

124<br />

131<br />

139<br />

7


3.2.1 Moral Pública: Violação <strong>do</strong>s Direito Individuais..............................<br />

3.2.2 A Violência Discursiva <strong>do</strong>s Tribunais..............................................<br />

3.3 Criminologia e Feminismo: Impasses e Contradições.............................<br />

3.3.1 Demandas Feministas na Arena Penal..........................................<br />

3.3.2 Perspectivas para um Novo Paradigma no Direito Penal...............<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................<br />

REFERÊNCIAS............................................................................................<br />

142<br />

155<br />

160<br />

163<br />

166<br />

172<br />

178<br />

8


RESUMO<br />

Embora velhas tradições se curvem diante da vertiginosa mudança <strong>do</strong>s<br />

referentes de gênero, certos conceitos, discursos e instituições permanecem<br />

carrega<strong>do</strong>s de significantes que encerram uma concepção político-ideológica sobre a<br />

mulher, idéia inscrita sob os imperativos das relações de poder emanadas <strong>do</strong> corpo<br />

social. Erigir a problemática da mulher em relação ao poder sanciona<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

constitui, portanto, o objeto deste trabalho, elabora<strong>do</strong> a partir de pesquisa bibliográfica<br />

empreendida para esse fim. Parte-se da análise de configuração <strong>do</strong> moderno discurso<br />

jurídico-penal, consideran<strong>do</strong> as múltiplas determinações e mediações históricas que o<br />

constituem. Na mesma perspectiva apresentar-se-ão os discursos representativos <strong>do</strong><br />

ideal de feminilidade, uma vez que pronunciam e legitimam os espaços e funções da<br />

mulher na modernidade. Delimita-se, assim, o campo teórico no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> qual se<br />

discutirá os efeitos <strong>do</strong> discurso jurídico-penal, considera<strong>do</strong> na modalidade lei, <strong>do</strong>utrina e<br />

jurisprudência, sobre o status de sujeito da mulher e na fixação de subjetividades. Esta<br />

pesquisa revela uma tentativa de contribuir para a discussão e superação <strong>do</strong> ainda<br />

hegemônico paradigma patriarcal que permeia a práxis <strong>do</strong> sistema penal.<br />

Palavras-chave: Sistema penal; Discurso; Gênero; Poder.<br />

9


ABSTRACT<br />

Alhough old traditions end up accepting the quick changes of the referents of<br />

gender, some concepts, discourses and institutions stick to concepts which embody an<br />

ideological-political concept of women, an idea under the <strong>do</strong>minance of the relations of<br />

power enacted from the social organization. The discussion of the problematic<br />

interchange between women and the public institutions is the modern juridical penal<br />

discourse is the focus of this research based on bibliographical research. An analysis of<br />

the modern judical penal discourse in the base of this study, taking into consideration<br />

the innumerous determinations and historical mediations that embody it. In the same<br />

perspective the representative discourse of the ideal female will be discussed since it<br />

shows and legitimates the functions and the spaces occupied by women in modern<br />

times. The theoretical field will thus be delimited to make it more appropriated to discuss<br />

the effects of the juridical and penal discourse and its corresponding jurisprudence,<br />

considering law, <strong>do</strong>ctrine and legal procedures about the status of being a woman and<br />

its related identities. The research tries to contribute in the discussion and the<br />

overcoming of the hegemonic patriarchal concept which is still present in the discourse<br />

and praxis of the penal system.<br />

Key-word: Penal system; Discourse; Gender; Power.<br />

10


INTRODUÇÃO<br />

Mulheres da era contemporânea vivem sob o imperativo de novas demandas,<br />

suas perspectivas e realizações alargaram-se, transpon<strong>do</strong> os limites <strong>do</strong> casamento e da<br />

maternidade, redefinin<strong>do</strong>-se as relações de gênero no meio familiar e social. São novos<br />

papéis e lugares, implican<strong>do</strong> a remodelação <strong>do</strong>s espaços público e priva<strong>do</strong> e a<br />

transformação <strong>do</strong> status social e jurídico da mulher.<br />

Nessa perspectiva, inserir a categoria de gênero na análise <strong>do</strong> discurso jurídico-<br />

penal poderá, à primeira vista, mostrar-se anacrônico. Há, pois, um entendimento<br />

corrente de que após a promulgação da Constituição Federal de 1988, declaran<strong>do</strong><br />

expressamente a igualdade formal entre os sexos, as discussões sobre a posição da<br />

mulher na sociedade ten<strong>do</strong> por referência o Direito, perderam parte <strong>do</strong> seu senti<strong>do</strong>.<br />

Esse pensamento opera com uma categoria unitária de gênero. Como a mulher<br />

participa de to<strong>do</strong>s os grupos sociais, <strong>do</strong>s mais privilegia<strong>do</strong>s aos mais oprimi<strong>do</strong>s, existe<br />

em todas as faixas etárias, tornou-se comum a problemática feminina ser tomada numa<br />

11


perspectiva genérica, o que obscurece o seu caráter pluralista, comprometen<strong>do</strong> a<br />

análise. É preciso lembrar, também, que inovações legislativas ainda estão longe de<br />

produzir a sua necessária eficácia.<br />

De outra parte, o discurso jurídico, pela natureza secularizada <strong>do</strong> Direito,<br />

permanece, em alguns campos, incomunicável com as transformações sociais e as<br />

demais esferas da sociedade. Não obstante, mantém-se à margem de discussões e<br />

reflexões as quais poderiam abalar o seu sistema de <strong>do</strong>minação e os códigos de<br />

significação que o constituem.<br />

Com vistas a essa perspectiva, assinala-se que as especificidades de gênero<br />

configuram uma temática pouco explorada pelas teorias jurídicas, lançan<strong>do</strong> à luz das<br />

ciências sociais um campo vasto e complexo à investigação. A trajetória <strong>do</strong> discurso<br />

jurídico, saber constituí<strong>do</strong> historicamente a partir de componentes político-ideológicos, é<br />

um <strong>do</strong>mínio extremamente promete<strong>do</strong>r para a história <strong>do</strong> gênero.<br />

Em nenhum outro campo, a distinção entre os sexos mantém-se tão fortemente<br />

caracterizada. Carece, entretanto, de investigação nas teorias feministas o status<br />

jurídico da mulher no discurso penal, cuja ambigüidade é expressa na relação entre<br />

sujeito de direitos e objeto de proteção. Continuam obscuros, portanto, os limites entre<br />

a proteção <strong>do</strong>s bens jurídicos tutela<strong>do</strong>s pelo Direito Penal e a proteção de um status<br />

quo re(colocan<strong>do</strong>) a mulher na posição de vítima, eterna merece<strong>do</strong>ra da proteção<br />

12


estatal, produto de uma lógica subjacente a um paternalismo generaliza<strong>do</strong> determina<strong>do</strong><br />

pelo gênero.<br />

Valen<strong>do</strong>-se de uma abordagem interdisciplinar a transitar por vá<strong>rio</strong>s campos das<br />

ciências humanas (Direito, Criminologia, Lingüística, Antropologia, Psicanálise e<br />

Sociologia), propõe-se, por meio desta pesquisa, erigir a problemática da mulher em<br />

relação ao poder sanciona<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Busca-se, assim, entender a relação da<br />

mulher com o Direito Penal, evidencian<strong>do</strong>, num primeiro momento, a trajetória histórica<br />

<strong>do</strong> moderno saber penal enquanto instrumental teórico e empírico <strong>do</strong> sistema penal<br />

contemporâneo.<br />

Trata-se de demonstrar as bases fundacionais no marco <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> moderno, da<br />

nova teoria penal, definin<strong>do</strong> o âmbito, os instrumentos e a função <strong>do</strong> Direito Penal, as<br />

promessas <strong>do</strong> seu discurso, o seu déficit de realização e a crise de sua legitimidade.<br />

Significa compreender o discurso jurídico-penal em seu senti<strong>do</strong> amplo, as verdades<br />

declaradas, seus efeitos de poder. Essa incursão se revela não um fim em si mesmo,<br />

mas um instrumento de análise para inserir a categoria de gênero no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Direito<br />

Penal, objeto desta pesquisa.<br />

Entende-se que discutir a problemática da mulher em relação ao poder sancionar<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é, primeiramente, questionar a estrutura da teoria penal em nível de discurso<br />

hegemônico. É nessa perspectiva que se definiu a questão meto<strong>do</strong>lógica vertebral<br />

orientan<strong>do</strong> a proposta desta pesquisa. Parte-se, portanto, da análise <strong>do</strong>s processos<br />

13


históricos de constituição da <strong>do</strong>gmática penal para compreender no referi<strong>do</strong> processo<br />

as relações de poder que formam sujeitos e <strong>do</strong>mínios de conhecimento, num<br />

pressuposto que a historicidade <strong>do</strong>s fatos sociais consiste fundamentalmente na<br />

explicação da multiplicidade de determinações fundamentais e secundárias que os<br />

produzem.<br />

Num segun<strong>do</strong> espaço, para efeitos de inserir a categoria de gênero no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Direito Penal, estar-se-á evidencian<strong>do</strong> os discursos filosófico e científicos <strong>do</strong> século XIX<br />

que, associa<strong>do</strong>s aos discursos jurídico, político e religioso, configuram estratégias ou<br />

técnicas cria<strong>do</strong>ras de gênero, pronunciam e legitimam os papéis políticos e sociais na<br />

sociedade burguesa oitocentista, segun<strong>do</strong> os atributos naturais correspondentes ao<br />

homem e à mulher. Trata-se de uma análise <strong>do</strong>s saberes a partir das condições<br />

políticas de possibilidade <strong>do</strong>s discursos, uma vez que esses se fundam no plano<br />

dialético da realidade social e na natureza intersubjetiva de sua apreensão.<br />

Toma-se por referência o século XIX, ten<strong>do</strong> em vista que representa um marco<br />

temporal significativo para análise da categoria de gênero no Direito Penal<br />

contemporâneo, uma vez que configura o campo cultural o qual melhor exprime a<br />

modernidade 1 , constituin<strong>do</strong>-se um perío<strong>do</strong> de particular significação na fixação de<br />

identidades, em termos reais, ideológicos e simbólicos.<br />

1 O termo “modernidade” não está sen<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong> aqui enquanto relativo à Idade Moderna, perío<strong>do</strong> que se estende<br />

de 1453 à Revolução Francesa. Toma-se o vocábulo num senti<strong>do</strong> mais amplo, significan<strong>do</strong> o campo cultural, político<br />

e econômico que se delineou na Europa com o desenvolvimento <strong>do</strong> capitalismo.<br />

14


De outra parte, enquanto reflexo da ciência positivista e da consolidação <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> de Direito na Europa, representa no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> Direito um momento de maior<br />

refinamento e concretude de categorias relevantes e sujeitos jurídicos. A infe<strong>rio</strong>ridade<br />

da mulher é inscrita no texto legal com detalhes mais sutis e de forma mais polarizada,<br />

fixan<strong>do</strong> mais rigorosamente o gênero, estimulan<strong>do</strong> as mulheres a assumir essas<br />

identidades.<br />

Delimita-se, assim, o campo teórico no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> qual se discutirá a relação da<br />

mulher com o sistema penal na contemporaneidade: o impacto <strong>do</strong> discurso jurídico-<br />

penal, na modalidade lei, <strong>do</strong>utrina e jurisprudência, no status de sujeito da mulher e na<br />

fixação de identidades. Por isso, a importância em assinalar o ideal de gênero com o<br />

qual opera o sistema penal, os componentes político-ideológicos que determinam o seu<br />

discurso sobre a mulher, marcan<strong>do</strong> a sua práxis.<br />

Valorar o patriarca<strong>do</strong> sustenta<strong>do</strong> pelo Direito Penal requer considerar como o<br />

discurso jurídico-penal não apenas tem gênero, mas como ele funciona, também, na<br />

produção discursiva de mulher (enquanto oposição ao homem) e na construção<br />

discursiva de determina<strong>do</strong>s tipos de mulher. Esse pressuposto permite transpor o<br />

senti<strong>do</strong> negativo <strong>do</strong> Direito Penal, os seus efeitos de poder em termos negativos e<br />

pensá-lo na sua forma de produzir discurso, verdades e subjetividades, perspectiva<br />

assinala por Michel Foucault e que constitui uma das fontes epistemológicas<br />

orientan<strong>do</strong> este estu<strong>do</strong>.<br />

15


Uma vez que ser mulher já não é mais um fator de discriminação nas práticas<br />

institucionais ou no acesso à justiça, corresponder a determina<strong>do</strong>s estereótipos<br />

impregna<strong>do</strong>s de valores patriarcais torna-se crité<strong>rio</strong> relevante na orientação das<br />

decisões judiciais. Esse aspecto leva a outro ponto da discussão a que se propõe esta<br />

pesquisa: elucidar, além da violência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> constitucional burguês, a violência<br />

estrutural das relações de gênero no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> sistema penal.<br />

Situa-se, nesses contornos, o terceiro momento <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> que irá<br />

assinalar ainda os para<strong>do</strong>xos e as contradições decorrentes das reivindicações<br />

feministas na arena penal. O que as mulheres buscam com as suas demandas na<br />

arena penal? Quais as concepções simbólico-ideológicas subjacentes no conteú<strong>do</strong> de<br />

suas demandas?<br />

Vislumbrar qualquer perspectiva de rompimento com o paradigma patriarcal<br />

inscrito no sistema penal implica considerar as questões assinaladas e importa a<br />

tomada de uma nova posição da mulher enquanto sujeito reivindicante. É nesses<br />

termos que se apresenta a hipótese assinalada por este estu<strong>do</strong>.<br />

Aponta-se, também, para uma maior concentração das lutas feministas no<br />

campo da positividade jurídica e em outros meios alternativos, áreas mais sintonizadas<br />

com a causa das mulheres e que terão alcance indireto na arena penal. Isso implica,<br />

incontestavelmente, numa maior participação das mulheres nos espaços de debate e<br />

decisão política.<br />

16


Os aspectos acima apresenta<strong>do</strong>s serão evidencia<strong>do</strong>s a partir de uma análise<br />

teórica, valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> indutivo e ten<strong>do</strong> por instrumento a pesquisa bibliográfica<br />

empreendia para este estu<strong>do</strong>. Observa-se, ainda, que as traduções feitas no texto de<br />

autores estrangeiros, cujas obras não apresentam tradução na Língua Portuguesa, são<br />

de responsabilidade da mestranda.<br />

O objetivo maior é contribuir para uma discussão acadêmica capaz de orientar as<br />

políticas criminais, as políticas públicas voltadas à mulher e para uma desconstrução <strong>do</strong><br />

pensamento e da prática judiciária. Por conseguinte, configura, também, um momento<br />

ímpar de pensar e refletir sobre os imperativos, demandas e desafios que se<br />

apresentam à mulher <strong>do</strong> século XXI.<br />

17


1 SITEMA PENAL: DO CONTROLE SOCIAL À VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL<br />

1.1 A Genealogia 2 <strong>do</strong> Moderno 3 Saber Penal<br />

A teoria <strong>do</strong> moderno Direito Penal originou-se no marco histórico <strong>do</strong> Iluminismo 4 ,<br />

rompen<strong>do</strong> com os fundamentos da prática punitiva <strong>do</strong> Antigo Regime 5 , caracterizada<br />

pela obscuridade das leis, pelo despotismo e pela crueldade das penas impostas.<br />

2<br />

Para Michel Foucault, a genealogia espreita os acontecimentos ti<strong>do</strong>s como sem história no anseio de reencontrar o<br />

momento em que ainda não aconteceram. É a procura <strong>do</strong>s começos históricos, indica as verdades ainda não<br />

verdadeiras.O genealogista trata da proveniência, <strong>do</strong> lugar onde os acontecimentos são acasos e não causalidades; ele<br />

faz descobrir “que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos <strong>–</strong> não existem a verdade e o ser, mas<br />

a exte<strong>rio</strong>ridade <strong>do</strong> acidente. [...] A história é efetiva se genealógica”. In: NICOLAZZI, Fernan<strong>do</strong> F. As histórias de<br />

Michel Foucault. [texto], Curitiba, 2001. Disponível em:< http://klepsidra.net/klepsidra12/foucault.html>. Acesso<br />

em: 28 jan. 2005.<br />

3<br />

Em contraponto ao saber contemporâneo. Perío<strong>do</strong> de tempo entre a queda <strong>do</strong> Impé<strong>rio</strong> Romamo <strong>do</strong> Oriente (1453) e<br />

a Revolução Francesa (1789).<br />

4<br />

Corrente de pensamento afirman<strong>do</strong> que as leis naturais regulam as relações sociais e considera os homens<br />

naturalmente bons e iguais entre si <strong>–</strong> quem os corrompe é a sociedade. Defende a igualdade social e jurídica, a<br />

liberdade individual, a não-intervenção estatal na economia e a separação de poderes. Ocorre entre a Revolução<br />

Inglesa (1688) e a Revolução Francesa (1789). Tem como principais idealiza<strong>do</strong>res John Locke, Charles<br />

Montesquieu, François-Marie Voltaire e Jean-Jacques Rousseau. In: PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA,<br />

Luís. História da filosofia. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964, p. 283-294.<br />

5<br />

Regime político que pre<strong>do</strong>minava na França antes da Revolução Francesa, caracteriza<strong>do</strong> pela centralização <strong>do</strong> poder<br />

monárquico. Aléxis de Tocqueville (1805-1859) foi um <strong>do</strong>s primeiros pensa<strong>do</strong>res sociais <strong>do</strong> século XIX a se<br />

interessar seriamente com o problema da burguesia. Escreveu sobre o background (pano de fun<strong>do</strong>, origem) da<br />

Revolução Francesa na obra O Antigo Regime e a Revolução (1856), na qual enfatiza o fato de que, entre as<br />

condições as quais criaram o caráter específico da Revolução Francesa, estava a centralização quase contínua da<br />

administração política que vinha ocorren<strong>do</strong> naquele país desde o fim da Idade Média. In: NISBET, Robert. Os<br />

filósofos sociais. Trad. Yvette Vieira Pinto de Almeida. Brasília: UnB, 1982, p. 417.<br />

18


Começava a ser delineada uma política criminal inspirada nos princípios da filosofia<br />

política liberal clássica, um discurso crítico desenvolvi<strong>do</strong> em diversos países europeus<br />

durante o século XVIII. 6<br />

Além da Filosofia <strong>do</strong> Direito Penal, o novo saber penal tem suas bases<br />

fundacionais na Filosofia da Ciência <strong>do</strong> Direito Penal 7 , inscreven<strong>do</strong> um segun<strong>do</strong><br />

momento da Escola Clássica 8 , o qual se estende até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX 9 , quan<strong>do</strong> a<br />

sua matriz teórica passa a ser orientada pela Dogmática Penal 10 e pela Criminologia 11 ,<br />

desenvolvidas na esteira <strong>do</strong> pensamento positivista. 12<br />

6<br />

BARATTA. Alessandro. Criminologia crítica e Crítica <strong>do</strong> direito penal. Trad. Juarez Cirino <strong>do</strong>s Santos. Rio de<br />

Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 31-32.<br />

7<br />

Conforme Eduar<strong>do</strong> Rabenhorst, a Filosofia <strong>do</strong> Direito Penal é assim chamada porque nasceu da reflexão filosófica e<br />

diferentemente das ciências, se apóia na prática de questionar e submeter conceitos e idéias ao teste de bons<br />

argumentos. In: MEDEIROS, Cristina C. S. Filosofia ou teoria <strong>do</strong> direito. Recife: UFPE, 200?, p. 1. Disponível<br />

em:. Acesso em 11 fev. 2005. Já a Filosofia da Ciência <strong>do</strong><br />

Direito Penal é derivada da consciência crítica <strong>do</strong> homem moderno sobre o problema penal como problema<br />

filosófico e jurídico, detentora de méto<strong>do</strong> próp<strong>rio</strong> e caráter <strong>do</strong>gmático. É, portanto, a passagem de uma concepção<br />

filosófica para uma concepção jurídica, mas filosoficamente fundamentada. In: BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio<br />

de Janeiro: Forense, 1967. t. 1, p. 81.<br />

8<br />

Denominação cunhada em 1880 por Henrique Ferri para designar o pensamento <strong>do</strong>s <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res de diversos<br />

países europeus que a<strong>do</strong>taram os ideais <strong>do</strong> Iluminismo e os instrumentaram no ramo das ciências jurídicas. Muito<br />

mais <strong>do</strong> que um bloco homogêneo de concepções, caracteriza-se pela sua unidade ideológica e seu méto<strong>do</strong> lógicoabstrato<br />

e não experimental, próp<strong>rio</strong> das ciências naturais. Para essa escola, crime não e um ente de fato, mas<br />

entidade jurídica; não é uma ação, mas infração. É a violação de um direito. São precursores da Escola Clássica o<br />

inglês Jeremias Bentham (1748-1832), o alemão Anselmo von Feuerbach (1775-1833), o italiano Gian Domenico<br />

Romagnosi (1761-1835), contu<strong>do</strong> o maior expoente foi, sem dúvida, o mestre de Pisa, Francesco Carrara (1805-<br />

1888). In: MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 1990, v. 1, p. 41-42.<br />

9<br />

Idem.<br />

10<br />

Ciência normativa que tem por objeto as normas jurídico-penais e por méto<strong>do</strong> o técnico-jurídico (dedutivo). In:<br />

MANNHEIN, Hermann. Criminologia comparada. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1985. v. 1, p. 10.<br />

11<br />

Ciência causal-explicativa <strong>do</strong> fenômeno da criminalidade que nasce na esteira <strong>do</strong> pensamento positivista.<br />

12<br />

Movimento naturalista <strong>do</strong> século XVIII o qual pregava a supremacia da investigação experimental em oposição à<br />

indagação puramente racional, influencian<strong>do</strong> fortemente a teoria <strong>do</strong> Direito Penal. É marca<strong>do</strong> pelo pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong><br />

pensamento filosófico de Augusto Comte (1798-1857), defensor da idéia de que to<strong>do</strong> saber <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> físico advinha<br />

de fenômenos "positivos" (reais) da experiência, constituin<strong>do</strong> esses os únicos objetos de investigação <strong>do</strong><br />

conhecimento. In: MIRABETE. Op. cit., p. 42.<br />

19


A epistemologia 13 aludida inscreve a moderna ciência <strong>do</strong> Direito Penal como<br />

instrumental técnico da justiça penal vigente, orientan<strong>do</strong> a teoria e a práxis das<br />

agências que compõem o sistema penal (normas jurídicas, judiciá<strong>rio</strong>, aparelhos da<br />

polícia e penitenciá<strong>rio</strong>), por conseguinte, é esse o saber que produz o novo discurso<br />

jurídico-penal 14 enquanto instrumento de controle social, caracteriza<strong>do</strong> pela prática de<br />

valores específicos marca<strong>do</strong>s pela ambigüidade: se por um la<strong>do</strong> o discurso declara<strong>do</strong> é<br />

humanista e garanti<strong>do</strong>r, por outro, oculta a sua relação com o poder e a <strong>do</strong>minação.<br />

Percorrer a trajetória histórica <strong>do</strong> moderno discurso jurídico-penal, origina<strong>do</strong> na<br />

Europa, mas que fortemente influenciou as legislações <strong>do</strong>s países latino- americanos, é<br />

assinalar a vontade que o conduz e a intenção estratégica que o sustenta, num<br />

pressuposto de que o Direito, enquanto produto histórico, configura, também, uma<br />

manifestação das relações de poder.<br />

Ao analisar as relações entre direito e poder, Michel Foucault 15 sustenta que, nas<br />

sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração <strong>do</strong> pensamento jurídico se<br />

13<br />

É uma filosofia voltada para o estu<strong>do</strong> da ciência (<strong>do</strong> grego epistheme = conhecimento, ciência, e logoV = estu<strong>do</strong>,<br />

discurso). É usada em <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s: para indicar o estu<strong>do</strong> da origem e <strong>do</strong> valor <strong>do</strong> conhecimento humano em geral e<br />

nesse senti<strong>do</strong> é sinônimo de gnosiologia ou crítica; ou para significar o estu<strong>do</strong> das ciências (físicas e humanas), <strong>do</strong>s<br />

princípios sobre o qual se fundam, <strong>do</strong>s crité<strong>rio</strong>s de verificação e de verdade, <strong>do</strong> valor <strong>do</strong>s sistemas científicos. In:<br />

MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia jurídica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 2-3.<br />

14<br />

Discurso jurídico-penal toma o senti<strong>do</strong> neste estu<strong>do</strong> de “saber penal”, “<strong>do</strong>gmática penal”, ou ciência <strong>do</strong> Direito<br />

Penal.<br />

15<br />

Paul-Michel Foucault, francês nasci<strong>do</strong> em 15 de outubro de 1926, filho de Anna Malapert e Paul Foucault.<br />

Pertencia a uma família onde a Medicina era tradição: o pai, o avô paterno e materno foram cirurgiões. Desde ce<strong>do</strong><br />

demonstrou interesse pela história, voltan<strong>do</strong>-se depois para a Filosofia, decepcionan<strong>do</strong> o pai, embora fosse apoia<strong>do</strong><br />

pela mãe. Conviveu com os tormentos da segunda Guerra Mundial, quan<strong>do</strong> se mu<strong>do</strong>u para Paris e iniciou seus<br />

estu<strong>do</strong>s na École Normale da Rue d'Ulm. Era solitá<strong>rio</strong> e fecha<strong>do</strong>, apresentan<strong>do</strong> pouco interesse pelo contato social.<br />

Talvez por isso tenha desenvolvi<strong>do</strong> tão fortemente a ironia, uma das suas características mais marcantes. Em 1948,<br />

tentou suicídio. Essa experiência o colocou em contato com a psiquiatria, psicologia e psicanálise, o que marcou<br />

profundamente a sua obra. Foi leitor de Platão, Georg W. Hegel, Immanuel Kant, Karl Marx, Friedrich Nietzsche,<br />

20


fez essencialmente em torno de poder real. Segun<strong>do</strong> o autor, “é a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> poder real,<br />

em seu proveito e para servir-lhe de instrumento de justificação que o edifício jurídico<br />

de nossa sociedade foi elabora<strong>do</strong>” 16 , lembran<strong>do</strong> que essa construção teve como pilar o<br />

Direito Romano, cuja ressurreição no século XII significou efetivamente um <strong>do</strong>s<br />

instrumentos técnicos e constitutivos <strong>do</strong> poder monárquico autoritá<strong>rio</strong>, administrativo e<br />

absolutista.<br />

Consoante o autor, é <strong>do</strong> poder real que se discute nos <strong>grande</strong>s edifícios <strong>do</strong><br />

pensamento e <strong>do</strong> saber jurídico: como forma de legitimar o poder <strong>do</strong> soberano, ou mais<br />

tarde, para questionar seus limites e seus privilégios. “A teoria <strong>do</strong> Direito, da Idade<br />

Média em diante, tem essencialmente o papel de fixar a legitimidade <strong>do</strong> poder; isto é, o<br />

problema maior em torno <strong>do</strong> qual se organiza toda a teoria <strong>do</strong> direito é o da<br />

soberania”. 17<br />

Edmund Husserl, Martin Heidegger, Sigmund Freud, Gaston Bachelard, Jacques Lacan, dentre outros, se<br />

aprofundan<strong>do</strong> nos estu<strong>do</strong>s de Immanuel Kant. Admitia a influência de Martin Heidegger em sua obra, chegan<strong>do</strong> a<br />

afirmar: "To<strong>do</strong> o meu devir filosófico foi determina<strong>do</strong> por minha leitura de Heidegger". Influencia<strong>do</strong> também por<br />

Friedrich Nietzsche, por quem se apaixonou, e por Gaston Bachelard. Fez amizade com Louis Althusser, aderin<strong>do</strong> ao<br />

parti<strong>do</strong> comunista. Licenciou-se em Filosofia em 1948, e em Psicologia, em 1949. Também obteve o diploma de<br />

Psicologia Patológica, em 1952. Lecionou Psicologia e Filosofia em <strong>universidade</strong>s da Alemanha, Suécia, Tunísia e<br />

EUA. Trabalhou como psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Escreveu para diversos jornais. Viajou o<br />

mun<strong>do</strong> apresentan<strong>do</strong> conferências. Em 1955, foi morar na Suécia, onde conheceu Georges Dumézil. Esse contato foi<br />

importante para a evolução <strong>do</strong> seu pensamento. Conviveu com intelectualidades de sua época, como Jean-Paul<br />

Sartre, Jean Genet, Georges Canguilhem, Gilles Deleuze, Merlau-Ponty, Henri Ey, Jacques Lacan, Ludwig<br />

Binswanger. Em 1961, defendeu tese de Doutora<strong>do</strong>, intitulada "Loucura e Desrazão". Publicou várias obras, dentre<br />

elas: Doença Mental e Psicologia (1954); As Palavras e as Coisas (1966); A Arqueologia <strong>do</strong> Saber (1969); A Ordem<br />

<strong>do</strong> Discurso (1970); Vigiar e Punir (1977); O Cuida<strong>do</strong> de Si - História da Sexualidade III (1984). Michel Foucault<br />

faleceu no dia 25 de junho de 1984, em plena produção intelectual. Seu pensamento pode ser localiza<strong>do</strong> como parte<br />

<strong>do</strong> debate sobre modernidade, onde a razão iluminista ocupa o local de destaque. In: NICOLAZZI. Op. cit., p. 2-3.<br />

16 FOUCAULT, Michel. Microfísica <strong>do</strong> poder. Trad. Roberto Macha<strong>do</strong>. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 180.<br />

17 Idem, p. 181.<br />

21


O criminoso, “que mais tarde se tornará o alvo da intervenção penal, o objeto que<br />

ela pretende corrigir e transformar, o <strong>do</strong>mínio de uma série de ciências e de práticas<br />

estranhas <strong>–</strong> ‘penitenciárias’, ‘criminológicas’” 18 , aparece na época das Luzes, não como<br />

tema de um saber positivo, ou como objeção contra a barbárie <strong>do</strong>s suplícios, mas sim a<br />

“economia <strong>do</strong>s castigos” coloca o homem como limite <strong>do</strong> direito, era fazer com que o<br />

“poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos,<br />

contraditó<strong>rio</strong>s da soberania às vezes, mas de efeitos continuamente distribuí<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

poder público”. 19<br />

Para Michel Foucault, durante to<strong>do</strong> o século XVIII formou-se uma nova estratégia<br />

para o exercício <strong>do</strong> poder de castigar. As teorias <strong>do</strong> direito significaram uma retomada<br />

política ou filosófica dessa estratégia, ten<strong>do</strong> como principal objetivo fazer da punição e<br />

da repressão das ilegalidades uma função regular, coexistente à sociedade. Era punir<br />

com mais universalidade, inserin<strong>do</strong> mais profundamente no corpo social o poder de<br />

punir. 20 Portanto, a humanidade ou a suavidade <strong>do</strong>s castigos, se por um la<strong>do</strong> assumiam<br />

o significa<strong>do</strong> de limitar o poder real, por outro estavam fortemente articuladas com<br />

novos mecanismos de poder que começavam a se configurar no limiar <strong>do</strong> sistema<br />

capitalista.<br />

Em sua análise sobre a relação entre poder e Direito, o autor introduz um terceiro<br />

elemento: a produção da verdade. O poder é o exerci<strong>do</strong> através da produção de<br />

18 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 64.<br />

19 Idem, p. 69.<br />

20 Idem, p. 69-70.<br />

22


verdades. É o poder que interroga, indaga, registra e institucionaliza a busca da<br />

verdade. De outra parte, observa que essa verdade é que determina o conteú<strong>do</strong> da lei e<br />

produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte,<br />

efeitos <strong>do</strong> poder.<br />

O que Michel Foucault propõe é uma inversão na direção da análise <strong>do</strong> discurso<br />

<strong>do</strong> Direito como forma de fazer sobressair o fato da <strong>do</strong>minação que o constitui; suas<br />

relações, não de soberania, mas das múltiplas formas de <strong>do</strong>minação que podem ser<br />

exercidas numa sociedade. Sugere, para a compreensão <strong>do</strong> Direito como instrumento<br />

de <strong>do</strong>minação 21 e como técnica de sujeição polimorfa 22 , a análise, não a partir da<br />

soberania em seu edifício único ou central, mas das múltiplas sujeições que existem e<br />

funcionam no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> corpo social.<br />

Segun<strong>do</strong> o autor, o poder deve ser analisa<strong>do</strong> como algo que circula, como algo<br />

que só funciona em cadeia, já que o poder não se aplica aos indivíduos, apenas passa<br />

por eles. Cada indivíduo é centro de transmissão <strong>do</strong> poder, está sempre em posição de<br />

o exercer ou sofrer a sua ação. Nesse senti<strong>do</strong>, afirma: “efetivamente, aquilo que faz<br />

com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identifica<strong>do</strong>s e constituí<strong>do</strong>s<br />

21 Para Foucault, <strong>do</strong>minação toma o senti<strong>do</strong>, não de uma <strong>do</strong>minação global de uns sobre os outros, ou de um grupo<br />

sobre o outro, mas sim as múltiplas formas de <strong>do</strong>minação que podem se exercer na sociedade. “Portanto, não o rei<br />

em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as<br />

múltiplas sujeições que existem e funcionam no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> corpo social”. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica <strong>do</strong><br />

poder, p. 181.<br />

22 Ao se entregar à ideologia, o sujeito realiza, de forma aparentemente livre, seu próp<strong>rio</strong> processo de sujeição,<br />

estan<strong>do</strong> sujeito a mudar de personalidade ou assumir várias formas (polimorfa), porque os AIEs (escola, família,<br />

exército, sociedade, etc.) transmitem modelos, para melhor manejar essa sujeição. In: ALTHUSSER, Louis.<br />

Aparelhos ideológicos <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Trad. Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro:<br />

Graal Editora, 2001, p. 68-78.<br />

23


enquanto indivíduos é um <strong>do</strong>s seus primeiros efeitos de poder”. 23 O indivíduo, pois, não<br />

é o outro <strong>do</strong> poder, é um <strong>do</strong>s seus primeiros efeitos 24 . “O indivíduo é um efeito <strong>do</strong> poder<br />

e simultaneamente, ou pelo próp<strong>rio</strong> fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão.<br />

O poder passa através <strong>do</strong> indivíduo que ele constitui”. 25<br />

É nessa perspectiva que será registrada neste capítulo a trajetória de<br />

constituição <strong>do</strong> moderno saber penal. Não se trata de uma análise descendente<br />

(dedutiva), partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo central <strong>do</strong> poder para evidenciar os seus efeitos na<br />

construção <strong>do</strong> discurso penal. É antes um estu<strong>do</strong> analítico, cujo objetivo será assinalar<br />

como os vá<strong>rio</strong>s poderes (econômico, político, científico, sempre considera<strong>do</strong>s no inte<strong>rio</strong>r<br />

da dinâmica social) concorrem na configuração <strong>do</strong> moderno e <strong>do</strong> contemporâneo saber<br />

penal e como este, enquanto poder disciplina<strong>do</strong>r e mecanismo de controle social <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, com suas técnicas e táticas próprias, torna-se útil no processo de ascensão <strong>do</strong><br />

capitalismo, na conformação <strong>do</strong> poder político e <strong>do</strong> poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e sobremaneira,<br />

consideran<strong>do</strong> agora o objeto deste estu<strong>do</strong>, como o saber penal interage na sua relação<br />

com a mulher enquanto estratégia de sujeição e de regulação <strong>do</strong> comportamento<br />

23 FOUCAULT, Michel. Microfísica <strong>do</strong> poder, p. 183.<br />

24 Nas relações de poder e <strong>do</strong>minação, a sujeição <strong>do</strong> indivíduo não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da<br />

ideologia, há um “saber” <strong>do</strong> corpo, uma tecnologia política <strong>do</strong> corpo que é posta em jogo pelos aparelhos e<br />

instituições que, pelos seus mecanismos e efeitos, atuam como uma microfísica <strong>do</strong> poder, colocan<strong>do</strong> o sujeito em um<br />

nível diferente. Não concebe o poder como uma propriedade, mas como uma estratégia, cujos efeitos de <strong>do</strong>minação<br />

não são atribuí<strong>do</strong>s a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos.<br />

Assim, na direção contrária <strong>do</strong> verdadeiro de sua época, em que psicanalistas e historia<strong>do</strong>res viam o poder a partir de<br />

uma acepção jurídica e negativa, que expulsa, reprime, proíbe e esconde a possibilidade de o sujeito se constituir, se<br />

manifestar, Michel Foucault concebe o poder como uma técnica-estratégica-positiva, na qual antes de reprimir a<br />

subjetivação, ele define papéis, modela os indivíduos e produz, portanto, subjetividades. In: FOUCAULT, Michel.<br />

Vigiar e punir, p. 25-27.<br />

25 FOUCAULT, Michel. Microfísica <strong>do</strong> poder, p. 184.<br />

24


feminino, crian<strong>do</strong> e recrian<strong>do</strong> estereótipos os quais traduzem a condição da mulher no<br />

evoluir da história 26 .<br />

Essa questão remete ao problema central <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> aqui proposto: a natureza<br />

jurídica <strong>do</strong> Direito Penal é, por excelência, da negatividadade e da repressividade,<br />

entretanto o poder nele inscrito não é somente repressivo, produz discurso. Esse, por<br />

sua vez, legitima a lógica seletiva com que opera o sistema penal e dá sustentabilidade,<br />

ainda, a um paradigma masculino que, de sua manifesta função de proteção, a sua<br />

função latente e efetiva de subordinação e infe<strong>rio</strong>rização da mulher, funciona como um<br />

suporte e dispositivo institucional impedin<strong>do</strong> o pleno reconhecimento <strong>do</strong>s direitos de<br />

liberdade, autonomia e igualdade das mulheres.<br />

Pergunta-se, por conseguinte, o que as mulheres buscam através de suas<br />

reivindicações na arena penal? Quais as conquistas que serão efetivamente<br />

alcançadas por meio de suas demandas criminaliza<strong>do</strong>ras? Em que medida deve o<br />

Esta<strong>do</strong> intervir nas relações privadas? E, ainda, quais as perspectivas para o<br />

rompimento da matriz patriarcal em que se assenta o Direito Penal, condição para<br />

tornar o sistema penal um instrumento de luta em prol de um modelo cultural no qual os<br />

atributos <strong>do</strong> masculino e <strong>do</strong> feminino sejam mais <strong>do</strong> que meras emanações de relações<br />

de poder?<br />

26 Esta questão será abordada no capítulo 3.<br />

25


1.1.1 A Reforma <strong>do</strong> Século XVIII: Um Direito Penal Legitima<strong>do</strong> pelo Contrato<br />

Social<br />

O marco inicial <strong>do</strong> Direto Penal contemporâneo 2728 , origina<strong>do</strong> na Europa e<br />

transnacionaliza<strong>do</strong> aos países periféricos da América Latina, remonta à reforma penal<br />

<strong>do</strong> século XVIII, simbolizada na obra Dei Delitti e Delle Pene (1764), de Cesare<br />

Beccaria. No âmbito <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, é marcada pela passagem da ordem feudal e <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> Absolutista (Antigo Regime) para a ordem capitalista e o Esta<strong>do</strong> de Direito<br />

Liberal 29 na Europa.<br />

27 A expressão Direito Penal contemporâneo quer significar o Direito Penal atual, cujas bases teóricas remontam ao<br />

Direito Penal moderno. Autores como K. F. Hommel, na Alemanha; Pablo Anselmo von Feuerbach e Jeremías<br />

Bentham, na Inglaterra; Gaetano Filangieri, Giovanni Carmignani e Gian<strong>do</strong>ménico Romagnosi na Itália, entre outros,<br />

foram propaga<strong>do</strong>res das bases utilitaristas a que se vincula o progresso de sistemas penais de níti<strong>do</strong> matiz preventivo.<br />

As diretrizes conceituais e pragmáticas por eles traçadas serviram de fundamento à obra que inicia o Direito Penal<br />

contemporâneo e planta marco indicativo de uma importante linha de pensamento no curso <strong>do</strong> Direito Penal clássico.<br />

In: SOUSA, Daniel B. R. Diretrizes axiológicas e políticas para a pena criminal. Revista da Escola de Direito,<br />

Universidade Católica de Pelotas, v. 2, n. 1, jan./dez. 2001, p. 37. Disponível em: . Acesso em 3 fev. 2005.<br />

28 Estu<strong>do</strong>s recentes referem que Cesare Beccaria ao publicar obra Dei delitti e delle pene em 1764, fun<strong>do</strong>u o direito<br />

penal contemporâneo. In: WEIS, Carlos. Aumentar as penas inibe a criminalidade? Folha de S. Paulo, 11.11.2000.<br />

Disponível em:. Acesso em 13 fev 2005. Certamente, as idéias<br />

filosóficas e teorias da redistribuição desde Immanuel Kant e Georg W. Hegel, e da prevenção <strong>–</strong> Cesare Beccaria,<br />

Gaetano Filangieri, Giovanni Carmignani, Pablo A. Von Feuerbach, Gian<strong>do</strong>ménico Romagnosi <strong>–</strong> culminaram com<br />

alterações no Direito Penal no perío<strong>do</strong> histórico, desencadean<strong>do</strong> a formação de novos valores da ação indivíduo<br />

social. Portanto, assim como o Direito Penal moderno se prolonga e cimenta-se no contemporâneo, é de se supor que<br />

o Direito Penal contemporâneo aparece nesse perío<strong>do</strong> (por exemplo, medidas de segurança) como uma primeira<br />

tentativa de atenuar as imperfeições <strong>do</strong> sistema penal de bases retributivas.<br />

29 O “Esta<strong>do</strong> de Direito Liberal” marca uma segunda etapa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Moderno, simbolizan<strong>do</strong> o fim <strong>do</strong> regime feudal<br />

e <strong>do</strong> poder monárquico. Estrutura-se sobre os princípios da legalidade, igualdade e separação de poderes, to<strong>do</strong>s<br />

objetivan<strong>do</strong> assegurar a proteção <strong>do</strong>s direitos individuais, nas relações entre particulares e entre estes e o Esta<strong>do</strong>. O<br />

papel <strong>do</strong> Direito era o de garantir as liberdades individuais, já que se proclamava, com base no direito natural, serem<br />

os cidadãos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de direitos fundamentais, universais e inalienáveis. O Esta<strong>do</strong> de Direito Liberal, embora<br />

idealiza<strong>do</strong> para proteger as liberdades individuais, acabou por gerar profundas desigualdades sociais, provocan<strong>do</strong><br />

reações em busca da defesa <strong>do</strong>s direitos sociais <strong>do</strong> cidadão.<br />

26


De cunho mais filosófico-sociológico <strong>do</strong> que jurídico, a teoria <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r italiano<br />

propõe um sistema de normas jurídicas que restaurasse a dignidade <strong>do</strong> indivíduo e o<br />

seu direito em face <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, imprimin<strong>do</strong> um caráter humanitá<strong>rio</strong> à teoria penal.<br />

Cesare Beccaria 30 fundamenta o direito de punir <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no contrato social,<br />

concepção abstrata e ideológica de sociedade entendida como uma totalidade de<br />

indivíduos, valores e interesses; teoria defendida por Thomas Hobbes 31 e que está na<br />

origem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. As leis, segun<strong>do</strong> Beccaria, não foram suficientes para a garantia das<br />

partes de liberdades sacrificadas pelos atores sociais em prol da vida em sociedade e<br />

da segurança <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Era preciso, afirma, protegê-las contra a usurpação de cada<br />

particular, “pois a tendência <strong>do</strong> homem é tão forte para o despotismo, que ele procura<br />

incessantemente, não só retirar da massa comum a sua parte de liberdade, como<br />

também usurpar a <strong>do</strong>s outros” 32 . Seriam necessá<strong>rio</strong>s meios sensíveis e muito<br />

poderosos para sufocar esse espírito despótico. Nesse senti<strong>do</strong>, sublinha Alessandro<br />

Baratta 33 , para Beccaria, o dano social e a defesa social são os elementos<br />

fundamentais da teoria <strong>do</strong> delito e da teoria da pena.<br />

30 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 19-22.<br />

31 Filósofo inglês <strong>do</strong> século XVII, funda<strong>do</strong>r da filosofia moral e política inglesa. Em o Leviatã (1651), primeira<br />

versão completa da comunidade política absoluta na Idade Moderna, descreve o governo <strong>do</strong>s Tu<strong>do</strong>rs, que haviam<br />

transforma<strong>do</strong> a Inglaterra no governo político mais centraliza<strong>do</strong> da Europa, dan<strong>do</strong> ao Esta<strong>do</strong> a mais completa<br />

concepção de nacionalidade e cidadania, e também crian<strong>do</strong> a única ordem social, em to<strong>do</strong> o Ocidente, onde todas as<br />

subordinações competitivas <strong>–</strong> aristocracia, Igreja, guilda, mosteiro, Universidade e comunidade local - haviam si<strong>do</strong><br />

subjugadas. Em suas teorias, afirma que os homens, no esta<strong>do</strong> da natureza, eram inimigos uns <strong>do</strong>s outros e viviam<br />

em guerra permanente. E como toda guerra termina com a vitória <strong>do</strong>s mais fortes, o Esta<strong>do</strong> surgiu como resulta<strong>do</strong><br />

dessa vitória, sen<strong>do</strong> uma organização de grupos <strong>do</strong>minantes para manter o <strong>do</strong>mínio sobre os venci<strong>do</strong>s. Essa teoria da<br />

força apóia-se aparentemente nos fatos históricos: no processo da formação originária <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s quase sempre<br />

houve luta; a guerra foi, em geral, o princípio cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s povos. To<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> representa, por sua natureza, uma<br />

organização e <strong>do</strong>minação. In: NISBET. Op. cit., p. 144-153.<br />

32 BECCARIA. Op. cit., p. 19.<br />

33 BARATTA. Op. cit., p. 33.<br />

27


A soberania da nação está no cerne de toda a construção da teoria penal de<br />

Cesare Beccaria. O soberano, encarrega<strong>do</strong> pelas leis como depositá<strong>rio</strong> das liberdades<br />

sacrificadas pelo bem geral, estava incumbi<strong>do</strong> de fazer as leis gerais, as quais to<strong>do</strong>s<br />

deveriam obedecer, fican<strong>do</strong> o julgamento de quem as violasse a cargo <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>,<br />

ao qual caberia apenas aplicar a lei dentro de um silogismo perfeito. Não era esse, pois,<br />

intérprete da lei, o legítimo intérprete era o soberano, representante da sociedade e<br />

depositá<strong>rio</strong> das vontades atuais de to<strong>do</strong>s. “Se o juiz for obriga<strong>do</strong> a elaborar um<br />

raciocínio a mais, ou se fizer por sua conta, tu<strong>do</strong> se torna incerto e obscuro”, sentencia<br />

o filósofo. 34<br />

Com as leis penais cumpridas à letra, era possível a qualquer cidadão calcular<br />

exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável e isso, segun<strong>do</strong> o autor, poderia<br />

fazer com que se desviasse <strong>do</strong> crime, visto que a sua teoria considera a ação delituosa<br />

como uma escolha objetiva e consciente de quem a comete.<br />

O trata<strong>do</strong> de Beccaria estabelece importantes fundamentos para a consagração<br />

<strong>do</strong> Princípio da Legalidade: apenas as leis poderiam dizer o que é crime e definir as<br />

suas penas. Já o direito de estabelecer as leis pertencia à pessoa <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r,<br />

representante de sociedade enquanto contrato social, que se opunha ao ante<strong>rio</strong>r esta<strong>do</strong><br />

de natureza 35 . O méto<strong>do</strong> dedutivo de lógica abstrata, ou o silogismo perfeito, era a<br />

34 BECCARIA. Op. cit., p. 22.<br />

35 No esta<strong>do</strong> de natureza, to<strong>do</strong>s os homens viviam sem estarem sujeitos a qualquer lei. Por isso viviam em caráter<br />

supostamente solitá<strong>rio</strong>, em condições caracterizadas por constante me<strong>do</strong>, pela guerra e pela mais profunda<br />

insegurança, pois a luta de uns contra os outros era constante. Como uma solução ao instável esta<strong>do</strong> natural em que<br />

viviam os homens, ou seja, da compreensão <strong>do</strong> homem como um ser que deseja o poder, como uma forma incessante<br />

de sobrevivência, Thomas Hobbes infere a essência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> como uma entidade que é composta pela soma <strong>do</strong>s<br />

28


garantia contra as arbitrariedades e impunha os limites <strong>do</strong> poder de punir em face das<br />

liberdades individuais.<br />

1.1.2 O Direito Penal sob o Paradigma da Racionalidade Científica<br />

A transição da antiga 36 para a moderna justiça penal nasce imbricada a um novo<br />

modelo de Esta<strong>do</strong>, às novas descobertas das ciências, que imprimiram à vida moderna<br />

a marca da racionalidade, fundada no princípio cartesiano 37 . Michel Foucault observa<br />

que essa transição foi marcada por um deslocamento <strong>do</strong> objeto e <strong>do</strong>s objetivos na<br />

estratégia de punir: “<strong>do</strong> corpo para a mente, da minimização <strong>do</strong>s custos econômico e<br />

político para a maximização da eficácia” 38 .<br />

vá<strong>rio</strong>s poderes individuais <strong>do</strong>s homens em sociedade. É neste momento que se dá a passagem <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de natureza<br />

para o esta<strong>do</strong> de sociedade, quan<strong>do</strong> o individual é sobredetermina<strong>do</strong> pelo coletivo. Essa realização foi possível<br />

através de <strong>do</strong>is princípios básicos à psicologia <strong>do</strong> homem: o desejo <strong>–</strong> instinto <strong>–</strong> e a razão. O que o pensa<strong>do</strong>r<br />

denomina lei natural, no que concerne ao homem, é a relação que ele estabelece entre o desejo egoísta ou seu instinto<br />

de conservação e a razão inata, pois mesmo em seu caráter pré-social, presume-se, ele conseguiu antever as<br />

vantagens da soberania e da associação política absoluta, cujo resulta<strong>do</strong> foi um contrato social, <strong>do</strong> qual surgiu a<br />

comunidade política absoluta: o Leviatã. In: NISBET. Op. cit., p. 147-148.<br />

36 Refere à justiça tradicional, praticada principalmente na França, no perío<strong>do</strong> ante<strong>rio</strong>r à Revolução Francesa, pois na<br />

expressão de Foucault, o que os reforma<strong>do</strong>res em seu discurso crítico atacam na justiça tradicional, antes de<br />

estabelecer os princípios de uma nova penalidade, é o excesso de castigo, mais liga<strong>do</strong> a uma irregularidade que a um<br />

abuso <strong>do</strong> poder de punir. Em virtude disso, “a 24 de março de 1790, Thouret abre na Constituinte a discussão sobre a<br />

nova organização <strong>do</strong> poder judiciá<strong>rio</strong>”. In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, p. 67.<br />

37 Renée Descartes (1596-1650) formalizou radicalmente a dicotomia corpo-alma ao contrapor o modelo anatômico<br />

(corpo, organismo humano) ao modelo metafísico (alma, natureza humana). Encerra o Eu na imanência <strong>do</strong> cogito, ou<br />

seja, o Eu de Descartes é somente um Eu pensante. Excluin<strong>do</strong> <strong>do</strong> Eu o sentir e o agir, fragmenta o homem,<br />

dividin<strong>do</strong>-o em <strong>do</strong>is princípios distintos <strong>–</strong> o corpo e a alma. Em conseqüência disso, os fatos psíquicos e fisiológicos<br />

começaram a ser estuda<strong>do</strong>s e aborda<strong>do</strong>s separadamente. Essa concepção <strong>do</strong> corpo como prisão da alma defende a<br />

necessidade de mortificar o corpo para purificar a alma a fim de evitar que aquele seja um obstáculo à realização <strong>do</strong><br />

ideal platônico de Bem e de Verdade (a afetividade e a corporeidade como empecilhos ao exercício espontâneo <strong>do</strong><br />

ato moral). In: ROCHA, Demerval Florêncio da. A corporeidade no processo de educação em saúde: um ensaio<br />

bibliográfico. [2003]. Disponível em: . Acesso<br />

em 10 de fev. 2005.<br />

38 FOUCUALT, Michel. Vigiar e punir, p. 69.<br />

29


Essa estratégia estava inscrita, segun<strong>do</strong> o autor, num processo mais amplo e<br />

geral de disciplina <strong>do</strong> corpo, fundamenta<strong>do</strong> no <strong>grande</strong> livro O Homem-máquina 39 , cujas<br />

primeiras páginas foram escritas por Descartes 40 dentro de uma concepção anátomo-<br />

metafísica e que seria continua<strong>do</strong> por médicos e filósofos. Esse processo foi efetiva<strong>do</strong> a<br />

partir de uma estratégia técnico-política, constituída de um conjunto de regulamentos<br />

militares, escolares e hospitalares, e por mecanismos empíricos e reflexivos para<br />

controlar e corrigir as operações <strong>do</strong> corpo.<br />

Também observa que essas técnicas ou estratégias não visam ao cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

corpo como se ele fosse uma massa indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente;<br />

“de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da<br />

mecânica <strong>–</strong> movimentos, gestos atitude, rapidez [...]” 41 .<br />

A disciplina, como uma mecânica <strong>do</strong> poder no século XVIII, já não se<br />

fundamenta mais na relação de apropriação <strong>do</strong>s corpos, como na época da escravidão;<br />

39 A obra de Julien Offroy de la Mettrie (1709-1751), com o título original L´Homme Machine (1747), apresenta uma<br />

redução materialista da alma e uma teoria geral <strong>do</strong> adestramento (FOUCAULT, Idem, p. 118) ao sustentar que “a<br />

alma é apenas um termo vão sem qualquer significa<strong>do</strong>. Concluamos então audaciosamente que o homem é uma<br />

máquina”. In: CHANGEUX, J-P. O homem neuronal. Trad. Artur J. P. Monteiro. Lisboa: Dom Quixote, 1991, p.<br />

47.<br />

40 Em sua obra Discurso <strong>do</strong> Méto<strong>do</strong> (1637), Reneé Descates fundiu suas idéias metafísicas com suas pesquisas<br />

científicas, fazen<strong>do</strong> a introdução de três ensaios científicos: a Dioptrique, o Méteores e a Geométrie. No<br />

entendimento de Ana Maria Silva, em Descartes, corpo humano é <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da natureza, o corpo é puramente<br />

corpo, assim como a alma é puramente alma, princípio que autoriza a razão e a ciência, como sua instituição, a<br />

conhecer e <strong>do</strong>minar o corpo humano, tarefas que serão exacerbadas na atualidade. Ao separar radicalmente as<br />

dimensões corpo e alma, a perspectiva cartesiana reforça a idéia de funcionamento corporal independente da idéia de<br />

essência, como uma maquinaria que atua com princípios mecânicos próp<strong>rio</strong>s. O funcionamento <strong>do</strong> corpo por esses<br />

parâmetros é reproduzi<strong>do</strong> detalhadamente por Descartes em seu Discurso <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> (penúltimo capítulo ou quinta<br />

parte), a partir da obra Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (1628), de Willian Harvey,<br />

fisiologista <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XVII, de quem difere por recusar qualquer recurso às “qualidades ocultas” ou<br />

interrelações com a alma, fazen<strong>do</strong> uma descrição da circulação <strong>do</strong> sangue de forma estritamente mecânica. In:<br />

SILVA, Ana Maria. Elementos para compreender a modernidade <strong>do</strong> corpo numa sociedade racional. Cadernos<br />

Codes, Florianópolis, ano 19, n. 4 S, ago. 1999, p. 12.<br />

41 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, p. 119.<br />

30


nem nos padrões da <strong>do</strong>mesticidade, da vassalidade ou <strong>do</strong> ascetismo, é antes “uma arte<br />

<strong>do</strong> corpo humano, que visa não unicamente as suas habilidades, nem tão pouco<br />

aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o<br />

torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente”. 42 O corpo humano,<br />

continua o autor, “entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o<br />

recompõe” 43 . A disciplina fabrica corpos submissos, exercita<strong>do</strong>s, “dóceis’“, aumentan<strong>do</strong><br />

a sua força (em termos econômicos de utilidade) e diminuem essas mesmas forças (em<br />

termos políticos de obediência).<br />

Ainda conforme Michel Foucault 44 , durante o século XVIII, dentro e fora <strong>do</strong><br />

sistema judiciá<strong>rio</strong>, forma-se uma nova estratégia para o exercício <strong>do</strong> poder de castigar,<br />

configuran<strong>do</strong> um movimento de reação contra o poder <strong>do</strong> soberano e a prática <strong>do</strong><br />

suplício como meio de punição. Seria também uma reação às ilegalidades toleradas<br />

durante o Antigo Regime 45 no inte<strong>rio</strong>r de cada estrato social. Significou o nascimento de<br />

uma nova política contra tais ilegalidades, ten<strong>do</strong> como principal fim a defesa <strong>do</strong>s<br />

interesses da emergente classe burguesa que, na mesma esteira <strong>do</strong>s diretos civis,<br />

buscava assegurar pelo viés <strong>do</strong> Direito Penal o seu direito de propriedade.<br />

42 Idem, p. 119.<br />

43 Idem, ibidem.<br />

44 Idem, p. 66-70.<br />

45 Com o fim <strong>do</strong> Antigo Regime pela Revolução Francesa (1789 a 1799), o processo revolucioná<strong>rio</strong> vive três fases:<br />

(1) A fase da Assembléia Nacional (1789-1792) sob o <strong>do</strong>mínio da alta burguesia, instituin<strong>do</strong> o Novo Regime,<br />

(Constituição de 1791), notabiliza<strong>do</strong> pela monarquia constitucional e pela garantia da propriedade privada; (2) A<br />

fase da Convenção Nacional (1792-1795), que marca o término da monarquia e a proclamação da república, em<br />

setembro de 1792 <strong>–</strong> ten<strong>do</strong> por destaque o conflito entre girondinos e jacobinos; (3) A fase <strong>do</strong> Diretó<strong>rio</strong> (1795-1799),<br />

instituin<strong>do</strong> no coman<strong>do</strong> da alta burguesia que anulou as conquistas populares para viabilizar um governo liberal. No<br />

entanto, essa nova ordem sofreu internamente a oposição jacobina e, externamente, os ataques das potências<br />

absolutistas européias. Com a Constituição de 13 de dezembro de 1799, que institui uma nova ordem jurídica e<br />

marca início <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> napolênico, se encerra o ciclo revolucioná<strong>rio</strong> inicia<strong>do</strong> em 1789. A construção da base da<br />

nova sociedade completa-se com a promulgação <strong>do</strong> Código Napoleônico em 1804. In: SIEYÈS, Emmanuel Joseph.<br />

A constituinte burguesa <strong>–</strong> Q’est-ce que lê tiers état? Trad. Norma Azere<strong>do</strong>. Rio de Janeiro: Líber, 1986, p. 20-30.<br />

31


Nesse senti<strong>do</strong>, observa o autor, os novos textos legais, embora impunham<br />

limitações precisas ao poder de punir <strong>do</strong> soberano, tornavam-se, de certa forma, mais<br />

pesa<strong>do</strong>s, o que acabou por implicar um exercício mais “aperta<strong>do</strong>” e mais “meticuloso”<br />

da justiça que tende a levar em conta toda uma pequena delinqüência (principalmente<br />

as ilegalidades populares sobre os bens) que até antão escapavam aos olhos da lei.<br />

Nascia, então, uma justiça penal mais atenta ao corpo social, numa adaptação e<br />

harmonia <strong>do</strong>s instrumentos cria<strong>do</strong>s para vigiar o comportamento cotidiano das pessoas:<br />

identidade, atividades e gestos aparentemente sem consequências para o Esta<strong>do</strong>. Esse<br />

controle sobre o comportamento humano atribuiu nova importância ao espaço priva<strong>do</strong>,<br />

em que a família passa a ser alvo <strong>do</strong>s olhos <strong>do</strong> poder estatal. 46 Com a criação <strong>do</strong>s<br />

Tribunais de Família, na França, em 1790, parte <strong>do</strong> controle ante<strong>rio</strong>rmente exerci<strong>do</strong><br />

pela Igreja por meio da confissão passa ao poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, uma vez que as famílias<br />

recorriam cada vez mais à justiça como forma de resolver os seus conflitos internos.<br />

Com a intimidade da família desnudada pelos Tribunais de Família, a esfera<br />

pública passa a ter, inclusive, um rigoroso controle sobre a sexualidade <strong>do</strong>s homens,<br />

mulheres e crianças, ou como afirma Michel Foucault, “O sexo não se julga apenas,<br />

administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser<br />

assumi<strong>do</strong> por discursos analíticos. No século XVIII o sexo se torna uma questão de<br />

‘polícia’ “. 47<br />

46 Aspecto que será analisa<strong>do</strong> no capítulo 2.<br />

47 FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade. Trad., Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon<br />

Albuquerque. 11.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 29.<br />

32


Observa-se que a nova teoria <strong>do</strong> Direito Penal é gestada no cerne <strong>do</strong> Iluminismo,<br />

<strong>do</strong> cientificismo, da ascensão <strong>do</strong> capitalismo como mo<strong>do</strong> de produção e da instituição<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal, ou seja, está circunscrita num novo modelo social, político e<br />

econômico nortea<strong>do</strong> pelo paradigma da racionalidade individual e coletiva.<br />

Era o advento da modernidade, projeto sociocultural que emerge entre o século<br />

XVI e final <strong>do</strong> século XVIII na Europa, materializan<strong>do</strong>-se, porém, na trajetória <strong>do</strong> século<br />

XIX, com a expansão <strong>do</strong> capitalismo e a consolidação da democracia 48 . No dizer de<br />

Boaventura de Sousa Santos 49 , trata-se de um projeto ambicioso pela magnitude de<br />

suas promessas: justiça, autonomia, solidariedade, identidade e igualdade. A lógica e a<br />

racionalidade construídas para a realização de algumas de suas promessas levaram ao<br />

déficit de outras, apontan<strong>do</strong> para a contradição <strong>do</strong> processo.<br />

A crise e a decadência <strong>do</strong> feudalismo, entre os séculos XI e XV 50 , assinalan<strong>do</strong> a<br />

perda da influência da concepção teológica de mun<strong>do</strong> e de sociedade, são<br />

48<br />

Antes <strong>do</strong> término <strong>do</strong> século XIX, as monarquias mais significativas da Europa Ocidental haviam a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> uma<br />

Constituição que limitava o poder real e entregava uma parte <strong>do</strong> poder ao povo. Em muitos países, foi instituí<strong>do</strong> um<br />

corpo legislativo representativo cria<strong>do</strong> à semelhança <strong>do</strong> Parlamento britânico. É possível, portanto, que a política<br />

britânica tenha si<strong>do</strong> a maior influência na universalização da democracia, embora tenha si<strong>do</strong> igualmente <strong>grande</strong> o<br />

fascínio exerci<strong>do</strong> pela Revolução Francesa. Poste<strong>rio</strong>rmente, o êxito da consolidação das instituições democráticas<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s serviu como modelo para muitos povos. As principais características da democracia moderna são<br />

a liberdade individual, a igualdade perante a lei, o sufrágio universal e a educação. Na verdade, a democracia se<br />

consoli<strong>do</strong>u na Europa no pós-guerra através da aplicação de um conceito restrito de soberania. Esse perío<strong>do</strong>,<br />

denomina<strong>do</strong> de segunda onda de democratização, vai de 1943 a 1962, e foi altamente bem sucedi<strong>do</strong> em relação à<br />

implantação e à consolidação da democracia na Europa de forma bastante similar à prescrição feita por Schumpeter.<br />

Na medida em que as elites políticas aderem ao sistema de representação política, o acesso <strong>do</strong>s mais qualifica<strong>do</strong>s às<br />

posições de liderança torna-se garantida. In: SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialism, and democracy.<br />

Nova Iorque/Londres: Harper & Brothers, 1942, p. 280.<br />

49<br />

SANTOS, Boaventura de Souza. La Transición Postmoderna: Derecho y Política. Cuadernos de Filosofia del<br />

Derecho, Alicante, n. 6, p. 223-263, 1989.<br />

50<br />

A crise <strong>do</strong> feudalismo surgiu nos século XI e se estende até o século XIV, perío<strong>do</strong> caracteriza<strong>do</strong> como a Baixa<br />

Idade Média, em que surgiram os elementos desencadea<strong>do</strong>res da decadência <strong>do</strong> feudalismo: crescimento<br />

demográfico, produtividade insuficiente <strong>do</strong>s feu<strong>do</strong>s e a marginalização social <strong>do</strong> excedente populacional. A crise<br />

33


acompanhadas de uma nova postura epistemológica acerca <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>do</strong> Direito e da<br />

própria natureza humana. Segun<strong>do</strong> Darcísio Corrêa 51 , o Esta<strong>do</strong> passa a ser visto pelos<br />

pensa<strong>do</strong>res da época como uma necessidade radical de sobrevivência humana, cria<strong>do</strong><br />

com base nos princípios <strong>do</strong> voluntarismo e <strong>do</strong> individualismo. O Direito Positivo,<br />

assinala o autor, surge como um produto cultural, resulta<strong>do</strong> de convenções humanas,<br />

marcan<strong>do</strong> a passagem <strong>do</strong> “universo natural”, esta<strong>do</strong> natural, pre<strong>do</strong>minante, até então,<br />

para o “universo cultural”, o esta<strong>do</strong> civil ou político.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, assinala Michel Foucault, o Século das Luzes significou “o<br />

desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada, enfim, da<br />

natureza na ordem científica” 52 . Significaria a recusa de um sujeito submeti<strong>do</strong> à lógica<br />

divina. Nascia o ideal de autonomia, da emancipação individual, um <strong>do</strong>s valores da<br />

cultura ocidental que privilegia a responsabilidade subjetiva <strong>do</strong>s indivíduos. Era o<br />

homem como projeto e produto de um novo saber, implican<strong>do</strong> novas convicções,<br />

configuran<strong>do</strong> novas relações de poder, formas de organização e regulação da vida<br />

social.<br />

Na mesma esteira, encontra-se o pensamento de Richard Sennett 53 , segun<strong>do</strong> o<br />

qual, na medida em que a ordem capitalista se afasta da ordem feudal, ocorre a<br />

final <strong>do</strong> feudalismo ocorreu nos séculos XIV e XV, caracterizada pela fome, peste negra e a Guerra <strong>do</strong>s Cem Anos.<br />

In: SILVA, Joaquim; DAMASCO PENNA, J. B. História geral. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970, p.<br />

166-195.<br />

51 CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico políticas. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2002.<br />

52 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus<br />

Muchaill. 8.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.75.<br />

53 SENNETT, Richard. O declínio <strong>do</strong> homem público. Tradução de Lyigia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1988, p. 191-192.<br />

34


passagem de uma natureza transcendental para uma natureza fenomenológica. O que<br />

não significa o fim <strong>do</strong>s cre<strong>do</strong>s religiosos, mas o fim de uma era onde a perfeição divina<br />

explicava a ordem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. “Não somos uma era especial quanto a nossas<br />

inclinações científicas e racionalistas; nossa peculiaridade está apenas no fato de que<br />

nossa ciência é usada como inimiga da i<strong>do</strong>latria” 54 , afirma e lembran<strong>do</strong> que, a partir <strong>do</strong><br />

século XIX, as crenças se tornaram cada vez mais concentradas na vida imediata <strong>do</strong><br />

próp<strong>rio</strong> homem e nas suas experiências como uma definição de tu<strong>do</strong> aquilo que se<br />

pode crer. “Como os deuses estão desmistifica<strong>do</strong>s, o homem mistifica a sua própria<br />

condição [...]”. 55<br />

É nesse campo que a personalidade (impressões imediatas que as pessoas<br />

produzem sobre si) ganha relevância. “Uma pessoa é o que parece”, observa Richard<br />

Sennett. Uma vez desaparecida uma humanidade comum, a variação nas aparências<br />

pessoais passa a ser imputada à instabilidade da própria personalidade.<br />

A personalidade, fundada no mun<strong>do</strong> das aparências e no caráter natural, laço<br />

que perpassa toda a espécie humana, são as duas categorias que melhor simbolizam a<br />

estrutura <strong>do</strong> sujeito moderno, afirma Maria Rita Kehl. “Assim, o sujeito é responsável<br />

por tu<strong>do</strong> que aparenta, pois é daí que uma verdade sobre ele vai se revelar” 56 . Ou,<br />

ainda, como sustenta Richard Sennett, a personalidade, ao contrá<strong>rio</strong> <strong>do</strong> caráter<br />

individual (natural), é controlada pela autoconsciência. Assim, a única forma de controle<br />

54 Idem, p. 192.<br />

55 Idem, Ibidem.<br />

56 KEHL, Maria Rita. Deslocamentos <strong>do</strong> feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de<br />

Janeiro: Imago, 1998, p. 51.<br />

35


estaria na atenção constante dada à formulação daquilo que a pessoa sente ou no<br />

senso de controle <strong>do</strong> eu.<br />

Isso acaba por criar um profun<strong>do</strong> antagonismo entre os imperativos de liberdade<br />

e autonomia e as convenções sociais. O indivíduo público deveria mostrar rigoroso<br />

controle de suas emoções. O sentimento espontâneo, isto é, a manifestação de<br />

emoções era facilmente classificada como anormal.<br />

Boaventura de Sousa Santos 57 , referin<strong>do</strong>-se ao projeto da modernidade, fala de<br />

um pretenso equilíb<strong>rio</strong> entre “emancipação humana” e “regulação”. A emancipação<br />

lança os Direitos Humanos como um <strong>do</strong>s pilares da modernidade: indivíduos livres e<br />

iguais perante a lei e com garantia de direitos fundamentais. Já o Esta<strong>do</strong> aparece como<br />

componente fundamental <strong>do</strong> pilar da regulação, constituin<strong>do</strong>-se esse como próp<strong>rio</strong><br />

princípio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Do desenvolvimento harmonioso e da dinâmica das relações entre<br />

emancipação e regulação, é que dependeria a realização das promessas da<br />

modernidade.<br />

Esse é o campo simbólico em que se estrutura o novo saber penal,<br />

sistematiza<strong>do</strong> no inte<strong>rio</strong>r da Escola Clássica, fruto <strong>do</strong> seu tempo e condicionada a uma<br />

influência de fatores históricos e teóricos que imprimiram significa<strong>do</strong> ao seu programa,<br />

determinan<strong>do</strong> os princípios e fundamentos <strong>do</strong> novo Direito Penal.<br />

57 SANTOS. Op. cit., p. 223-263.<br />

36


1.1.3 Escola Clássica: O Crime é uma Ação de Livre Arbít<strong>rio</strong><br />

Reunin<strong>do</strong> as teorias desenvolvidas por diversos autores europeus sobre o Direito<br />

Penal, o crime e a pena, a teoria da Escola Clássica é assinala<strong>do</strong> por uma rigorosa<br />

racionalização <strong>do</strong> poder punitivo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, em nome das liberdades individuais, o que<br />

leva à projeção, segun<strong>do</strong> Vera Regina de Andrade 58 , de uma justiça penal calcada nos<br />

princípios <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal, dentro de uma perspectiva “humanista”, “utilitarista” e<br />

“contratualmente modelada”, elevan<strong>do</strong> o crime à categoria de ente jurídico<br />

rigorosamente codifica<strong>do</strong>, assim como a pena imposta numa promessa de segurança<br />

jurídica individual para a modernidade.<br />

As idéias <strong>do</strong> Direito Penal moderno constituíam, antes de tu<strong>do</strong>, uma reação<br />

contra os vícios da legislação ante<strong>rio</strong>r, obscura, de caráter inquisitivo e tirânico,<br />

“possibilitan<strong>do</strong> a arbitrária e desigual aplicação da lei conforme a condição social <strong>do</strong><br />

acusa<strong>do</strong>” 59 . A justiça <strong>do</strong> Antigo Regime 60 , assinala a autora, “atentava, em to<strong>do</strong>s os<br />

senti<strong>do</strong>s, contra a certeza <strong>do</strong> Direito e a segurança individual” 61 .<br />

58 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: <strong>do</strong> controle da violência à violência <strong>do</strong><br />

controle penal. Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 1997, p. 49- 50.<br />

59 Idem, p.49.<br />

60 O Antigo Regime, nesta dissertação, é visto como o conjunto de características sociais, políticas, econômicas e<br />

culturais <strong>do</strong>minantes nas sociedades européias na Idade Média, ten<strong>do</strong> na França o modelo mais acaba<strong>do</strong> de<br />

centralização <strong>do</strong> poder. Enquanto a nobreza e o clero tinham privilégios fiscais, justiça especial, direito a caçar e a<br />

exigir obrigações feudais <strong>do</strong>s camponeses, o resto da população (baixo clero, artesãos, camponeses) estava sujeito a<br />

longas jornadas de trabalho, opressão <strong>do</strong>s impostos, obrigações feudais, dízimos, corvéia (trabalho gratuito),<br />

intolerância religiosa e toda espécie de injustiças (torturas, pena de morte, expropriação). É um perío<strong>do</strong> (basicamente<br />

de 1620 e 1807) permea<strong>do</strong> por revoluções camponesas e urbanas que obstacularizam o desenvolvimento econômico.<br />

O Iluminismo surge no século XVII pregan<strong>do</strong> a igualdade, tolerância religiosa, liberdade e propriedade, in<strong>do</strong> ao<br />

encontro das aspirações da burguesia. O Esta<strong>do</strong> forte utilizava o conflito para exercer seu <strong>do</strong>mínio. O Antigo Regime<br />

foi iníquo em muitos aspectos, mas também foi uma experiência de sociabilidade em que política e afeto, poder e<br />

prazer, honra e glória caminhavam juntos. Os indivíduos formavam a sociedade, mesmo em seu despreparo político,<br />

o que foi aproveita<strong>do</strong> pelas idéias iluministas, que forneceram o respal<strong>do</strong> ideológico para os que queriam modernizar<br />

37


A nova justiça penal também expressava a necessidade de equilibrar o poder<br />

centraliza<strong>do</strong> (princípio da regulação) com a subjetividade atomizada <strong>do</strong>s indivíduos<br />

livres e iguais perante a lei (princípio da emancipação). Significava uniformização e<br />

previsibilidade das decisões, abstrain<strong>do</strong> toda a arbitrariedade, garantin<strong>do</strong>, além da<br />

segurança jurídica, a justiça nas decisões. Legalidade (nullun crimem nulla poena sine<br />

lege) igualdade, proporcionalidade, utilidade são princípios os quais a Escola Clássica<br />

imprime no Direito Penal, que segun<strong>do</strong> Asúa, torna-se um “sistema <strong>do</strong>gmático basea<strong>do</strong><br />

sobre conceitos essencialmente racionalistas”. 62<br />

Para Vera Regina de Andrade, a teoria penal moderna recebe um “caráter<br />

demonstrativo de um sistema fecha<strong>do</strong>, que deve legitimar-se perante a razão, mediante<br />

a exatidão matemática e a concatenação lógica de suas proposições”. 63 Assentada num<br />

hipotético contrato social, situa<strong>do</strong> acima e fora da história, o Direito Penal moderno<br />

assume uma mentalidade anti-historicista, ou então, o Direito não é visto como um<br />

produto social e sim como uma unidade ideológica.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, o crime seria também uma ação humana, consciente e voluntária,<br />

pois parte <strong>do</strong> livre arbít<strong>rio</strong> <strong>do</strong> seu autor. A responsabilidade penal decorre, pois, da<br />

as instituições, os déspotas esclareci<strong>do</strong>s. A Revolução Francesa (1789), mais que destruir o Antigo Regime, opera<br />

sua continuidade, ao criar uma nova ideologia, submeten<strong>do</strong> o povo à estruturas estranhas. O povo aspirava liberdade<br />

e igualdade, a Revolução acenou-lhe esses direitos, mas subverteu-os, utilizan<strong>do</strong>-os em benefício próp<strong>rio</strong>. A política<br />

volta-se para a administração pública, e os homens para seus interesses mesquinhos, instauran<strong>do</strong>-se uma distância<br />

entre os homens, ricos e pobres, suas esperanças, seus silêncios, teoria e prática. Nesse novo arranjo, na qual a<br />

história é o tribunal, começaram a ser praticadas as idéias de justiça de Beccaria (1764) e de outros filósofos, que<br />

combateram os rigores e injustiças <strong>do</strong> Direito Penal da época. In: BRUNO, Anibal. Op. cit., p. 80-96; BECCARIA,<br />

Cesare. Op. cit.; ELIAS, Norbert. A sociedade <strong>do</strong>s indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1994.<br />

61 ANDRADE. Op. cit., p. 49.<br />

62 Jiminez de Asúa, escritor espanhol, em sua obra clássica Trata<strong>do</strong> de Derecho Penal. In: ANDRADE. Idem, p. 48.<br />

63 Idem, p. 52.<br />

38


violação consciente e voluntária da norma penal. O novo saber penal, pois, defende<br />

que cada indivíduo é capaz de entender o valor ético-social de sua conduta e de<br />

determinar-se para a sua própria ação. Contempla a responsabilidade moral <strong>do</strong> sujeito,<br />

sen<strong>do</strong> o delito um ato de sua livre vontade.<br />

O fundamento da responsabilidade penal (culpabilidade) estava no livre-arbít<strong>rio</strong><br />

de cada indivíduo, na sua responsabilidade moral, na sua capacidade de<br />

autodeterminar-se. É nesse senti<strong>do</strong> que a categoria da “personalidade” referida por<br />

Richard Sennett é incorporada ao fundamento da responsabilidade penal. 64 O Direito<br />

Penal institucionaliza, assim, a máxima <strong>do</strong> princípio iluminista da supremacia da razão e<br />

da concepção mecanicista <strong>do</strong> homem e <strong>do</strong> universo.<br />

Nessa perspectiva, considera Andrade, numa atmosfera política liberal,<br />

preocupada em fixar claramente os limites da intervenção estatal e num ambiente<br />

especulativo com ênfase na supremacia, nas possibilidades e nas exigências da razão<br />

humana, o crime acaba por ser considera<strong>do</strong> como um “ente jurídico” porque “ente da<br />

razão”, dada a fonte racionalista de toda a norma jurídica. 65<br />

Conceber o delito como um ente jurídico, no dizer de Alessandro Baratta 66 ,<br />

significa abstrair o fato <strong>do</strong> delito, ou <strong>do</strong> contexto ontológico que o liga. Ou dito de outra<br />

64 SENNETT. Op. cit., p. 192.<br />

65 Idem, p. 54.<br />

66 BARATTA. Op. cit., p. 35-38.<br />

39


forma, significa abstraí-lo de toda a personalidade <strong>do</strong> delinqüente e de sua história<br />

biológica e, ainda, abstrair a totalidade social em que se insere a sua existência.<br />

A visão rigorosamente jurídica <strong>do</strong> delito está no centro da construção de<br />

Francesco Carrara 67 que em seu trata<strong>do</strong> Programa Del Corso di Diritto Criminale, 68<br />

sintetiza a filosofia <strong>do</strong> Direito Penal italiano, das diversas expressões que nele tomam<br />

corpo desde Cesare Beccaria a Vicenzo Manzinni, dan<strong>do</strong> lógica para uma construção<br />

jurídica coerente <strong>do</strong> sistema penal e marcan<strong>do</strong> um segun<strong>do</strong> momento da Escola<br />

Clássica, de caráter jurídico e prático, que origina a Dogmática Penal.<br />

No dizer de Alessandro Baratta, com Francesco Carrara nasce o <strong>grande</strong> edifício<br />

científico <strong>do</strong> Direito Penal italiano, ainda que o pensamento filosófico estivesse na base<br />

de sua teoria. Segun<strong>do</strong> o autor, a atitude racionalista de Carrara, a distinção por ele<br />

feita entre teoria e prática, determina toda uma orientação de pensamento no âmbito da<br />

Escola Clássica.<br />

É Francesco Carrara quem imprime à pena a marca da defesa social 69 . No seu<br />

entender, o fim da pena não é a retribuição, nem a reeducação <strong>do</strong> condena<strong>do</strong>, mas a<br />

eliminação <strong>do</strong> perigo social. A razão de ser da justiça penal é a defesa social. Nessa<br />

67<br />

CARRARA, Francesco. Programa <strong>do</strong> curso de direito criminal. Tradução brasileira. São Paulo: Saraiva, 1956. v.<br />

1.<br />

68<br />

Obra cuja primeira edição (parte geral) data de 1859.<br />

69<br />

O conceito de defesa social, no entender de Alessandro Baratta, corresponde a uma ideologia caracterizada por uma<br />

concepção abstrata e a-histórica de sociedade, entendida como uma totalidade de valores e interesses. In:<br />

CARRARA. Op. cit., p. 47.<br />

40


concepção, a reeducação <strong>do</strong> condena<strong>do</strong> pode ser um resulta<strong>do</strong> acessó<strong>rio</strong> ou desejável<br />

da pena, mas não sua função principal, nem o crité<strong>rio</strong> para sua medida.<br />

O crime era, assim, um “ente jurídico” porque “ente da razão”, dada a fonte<br />

racionalista de toda a norma jurídica, observa Andrade 70 . O fundamento da<br />

responsabilidade penal (culpabilidade) estava no livre-arbít<strong>rio</strong> de cada indivíduo. De<br />

outra parte, caberia ao Esta<strong>do</strong> fixar claramente os limites da sua intervenção,<br />

apresentan<strong>do</strong>-se a pena como “um mal e como um meio de tutela jurídica” 71 , embora,<br />

em senti<strong>do</strong> meramente especulativo, os clássicos a apresentem com a finalidade de<br />

defesa social. 72<br />

A par disso, observa Alessandro Baratta, “o direito penal e a pena eram<br />

considera<strong>do</strong>s pela Escola Clássica não tanto como meio para intervir sobre o sujeito<br />

delinqüente, modifican<strong>do</strong>-o, mas, sobretu<strong>do</strong>, como instrumento legal para defender a<br />

sociedade <strong>do</strong> crime” 73 . Segun<strong>do</strong> o autor, tratava-se de criar um dissuadivo, ou seja,<br />

uma contramotivação em face <strong>do</strong> crime.<br />

No que se refere ao criminoso, os <strong>grande</strong>s criminalistas clássicos não se<br />

preocupam em conhecer cientificamente a realidade humana e as causas da<br />

delinqüência, pois a sua orientação ideológica (liberal-individualista) e metódica<br />

(racionalista), é centrada visivelmente na dicotomia entre individual x social e razão x<br />

70 ANDRADE. Op. cit.<br />

71 OLIVERA, Odete Maria de. Prisão: um para<strong>do</strong>xo social. Florianópolis: UFSC, 2003, p. 66.<br />

72 BADARÓ, Ramagem. Introdução ao estu<strong>do</strong> das 3 escolas penais. São Paulo: Juriscredi, p. 108.<br />

73 BARATTA. Op. cit., p. 31.<br />

41


ealidade, ou então, racionalismo x empirismo, observa Vera Regina de Andrade 74 . Ou<br />

ainda, como lembra a autora, a rigorosa delimitação entre esfera jurídica <strong>do</strong> delito e a<br />

ética moral <strong>do</strong> indivíduo, estabelecia absoluta prevalência das considerações objetivas<br />

<strong>do</strong> delito sobre as condições subjetivas <strong>do</strong> réu.<br />

1.1.4 Escola Positivista: Da Responsabilidade Moral à Responsabilidade Social<br />

O delito é para a Escola Positivista um fenômeno natural, conforme defini<strong>do</strong> por<br />

Raffaelle Garofalo, como a ofensa aos “sentimentos altruísticos fundamentais de<br />

piedade e probidade”, 75 ou seja, ações noviças à sociedade, mas o direito que as<br />

qualifica como crime não pode isolá-las da totalidade natural e social em que estão<br />

inseridas.<br />

De uma filosofia baseada na individualização metafísica <strong>do</strong>s entes, que imprimiu<br />

ao delito a marca racionalista de um ente abstrato, juridicamente qualifica<strong>do</strong> e resulta<strong>do</strong><br />

de livre vontade <strong>do</strong> sujeito (também abstrato perante a lei), a Escola Positivista, no final<br />

<strong>do</strong> século XIX, parte de uma visão baseada na Filosofia e na Psicologia <strong>do</strong> positivismo<br />

naturalista 76 , considera Alessandro Baratta 77 .<br />

74 ANDRADE. Op. cit., p. 61- 62.<br />

75 BRUNO. Op. cit., p. 103.<br />

76 O positivismo naturalista não é assim caracteriza<strong>do</strong> por aceitar o sistema filosófico mais ou menos comteano, mas<br />

pelo méto<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>. Inicialmente, sofreu a influência de Charles Darwin, Herbert Spencer e Nace Ernest Haeckel,<br />

com as novas concepções da natureza, <strong>do</strong> homem e da sociedade, mormente a <strong>do</strong>utrina da evolução. In: LYRA,<br />

Roberto. Expressão mais simples <strong>do</strong> direito penal. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 28. O que caracteriza o<br />

positivismo naturalista é o culto ao fato. In: ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de<br />

direito penal brasileiro. 3.ed. São Paulo: Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2001.<br />

77 BARATTA. Op. cit., p. 39.<br />

42


Segun<strong>do</strong> o autor, a Criminologia é a visão pre<strong>do</strong>minantemente antropológica de<br />

Cesare Lombroso e sua gênese pode fixar-se em 1875. 78 Sua Antropologia Criminal é<br />

ampliada poste<strong>rio</strong>rmente por Raffaelle Garofalo, mediante a acentuação <strong>do</strong>s fatores<br />

psicológicos e por Enrico Ferri, com a inserção <strong>do</strong>s fatores sociológicos, orientan<strong>do</strong> o<br />

pensamento da Escola Positivista, configuran<strong>do</strong> uma rigorosa reação contra as<br />

concepções gerais de homem e de sociedade orienta<strong>do</strong>ras da ciência jurídica gestada<br />

no inte<strong>rio</strong>r da Escola Clássica, ainda que ambas comungassem da ideologia da defesa<br />

social como elemento legitima<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sistema penal. “À tese propugnada pela Escola<br />

Clássica, da responsabilidade moral, da absoluta imputabilidade <strong>do</strong> delinqüente, Cesare<br />

Lombroso contrapunha, pois, um rigoroso determinismo biológico”, afirma Alessandro<br />

Baratta 79 .<br />

Para Cesare Lombroso, “o delito, tanto pela estatística como pelo exame<br />

antropológico, parece um fenômeno natural; se quisermos usar o linguajar <strong>do</strong>s filósofos<br />

<strong>–</strong> um fenômeno necessá<strong>rio</strong>, como o nascimento, a morte, a concepção, as <strong>do</strong>enças<br />

mentais, <strong>do</strong> qual é normalmente uma triste variante” 80 .<br />

A tese <strong>do</strong> “criminoso nato”, determinismo orgânico e mais tarde psíquico, um <strong>do</strong>s<br />

traços da Escola Positivista, é sustentada por Cesare Lombroso em sua obra 81 .<br />

Valen<strong>do</strong>-se da observação e da experimentação, apresenta estu<strong>do</strong> em que confronta<br />

grupos não-criminosos com <strong>do</strong>entes apena<strong>do</strong>s interna<strong>do</strong>s nos hospitais psiquiátricos no<br />

78<br />

OLIVEIRA, Frederico Abrahão de. Manual de criminologia. Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 1992, p. 23.<br />

79<br />

Idem, p. 39.<br />

80<br />

LOMBROSO, Cesare. O homem criminoso. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983, p. 501.<br />

81<br />

O Homem Delinqüente, publicada em 1876, sob o prisma naturalístico de investigação e análise científica.<br />

43


sul da Itália. Na sua pesquisa 82 , o médico italiano defende que esses criminosos eram<br />

porta<strong>do</strong>res de anomalias anatômicas e fisiológicas (pouca capacidade craniana, frente<br />

fugidia, cabelo crespo e espesso, orelhas de abano, maxilar <strong>grande</strong>, agudeza visual,<br />

etc.), o que os tornava predestina<strong>do</strong>s a cometer crime. Formavam assim um tipo<br />

antropológico delinqüente.<br />

Ao determinismo biológico de Cesare Lombroso, somam-se as causas<br />

psicológicas e sociais de Raffaelle Garofalo e Enrico Ferri, respectivamente,<br />

determinan<strong>do</strong> um deslocamento <strong>do</strong>s fundamentos sobre a ação delituosa, considerada<br />

abstratamente (Escola Clássica), para o autor <strong>do</strong> delito, em sua ação como elemento<br />

sintomático de sua personalidade. A responsabilidade moral é substituída pela<br />

responsabilidade social: o comportamento delituoso está referi<strong>do</strong> a um sujeito<br />

ontologicamente considera<strong>do</strong> e que necessita de medidas curativas. A etiologia <strong>do</strong><br />

crime estava ligada, dessa forma, a uma tríade de causas: individuais (orgânicas e<br />

psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais (ambiente social) 83 .<br />

82 Carlos Valois entende que a função <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> criminoso pela Escola Positiva, devia-se a um desvio de atenção,<br />

pois cumprin<strong>do</strong> uma função política, o positivismo, como <strong>do</strong>utrina, procura encobrir a causa maior da delinqüência<br />

na sociedade capitalista: a injustiça social, própria das sociedades capitalistas. Nesse contexto, situam-se todas as<br />

ramificações <strong>do</strong> positivismo criminológico, teorias e correntes, sejam de cunho estritamente biológico como de<br />

cunho social, porque nenhuma se interessava em questionar a lei e direcionaram suas atenções para o criminoso, ou<br />

como um ser anormal ou como alguém que precisa de uma ressocialização. In: VALOIS, Luis Carlos. Criminologia<br />

radical. Página Jurídica, jun., 1991, p. 1-2. Disponível em: .<br />

Acesso em 28 fev. 2005. Outro ponto de vista, no entanto, é apresenta<strong>do</strong> por Geral<strong>do</strong> Sá. Segun<strong>do</strong> este autor, embora<br />

Cesare Lombroso tenha cometi<strong>do</strong> alguns exageros na definição <strong>do</strong> criminoso nato, a idéia de uma tendência para o<br />

crime não foi sepultada com ele. Estu<strong>do</strong>s feitos por geneticistas têm leva<strong>do</strong> à conclusão de que elementos recebi<strong>do</strong>s<br />

por herança biológica, embora possam não condicionar um modus vivendi no senti<strong>do</strong> de tornar o homem<br />

predestina<strong>do</strong> em qualquer direção, influem no mo<strong>do</strong> de ser <strong>do</strong> indivíduo. In: SÁ, Geral<strong>do</strong> Ribeiro de. A prisão <strong>do</strong>s<br />

excluí<strong>do</strong>s: origens e reflexões sobre a pena privativa de liberdade. Rio de Janeiro: Dia<strong>do</strong>rin, 1996, p. 89.<br />

83 ANDRADE. Op. cit., p. 65.<br />

44


Para a Escola Positivista, o crime não ocorre em decorrência <strong>do</strong> livre arbít<strong>rio</strong><br />

humano, como para os clássicos 84 , mas é um resulta<strong>do</strong> previsível, reflexo da<br />

conjugação de fatores biológicos, psicológicos, físicos e sociais, próp<strong>rio</strong>s da<br />

personalidade de uma minoria de indivíduos, os quais representam grave perigo à<br />

sociedade.<br />

O maniqueísmo aparece no cerne <strong>do</strong> positivismo científico determinan<strong>do</strong> uma<br />

rigorosa divisão entre o bem e o mal, ou o mun<strong>do</strong> da normalidade (o bem),<br />

representa<strong>do</strong> pela maioria da sociedade, e o universo <strong>do</strong>s criminosos (o mal) <strong>–</strong> uma<br />

minoria de sujeitos potencialmente perigosos e anormais. É nesse contexto que nasce<br />

a Sociologia Criminal, ou a Criminologia etiológica, dentro de uma perspectiva<br />

sociológica.<br />

A Escola Positivista imprime à pena o caráter curativo e reeducativo. Embora<br />

continue sen<strong>do</strong> um meio de defesa social, seu alcance vai além da repressão: a pena<br />

toma agora a função de ressocializar o indivíduo. O crité<strong>rio</strong> de medição para a duração<br />

da pena é desloca<strong>do</strong> da violação <strong>do</strong> direito ou <strong>do</strong> dano social produzi<strong>do</strong> para as<br />

condições <strong>do</strong> sujeito delinqüente, seu grau de periculosidade, avalia<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> fatores<br />

bioantropológicos e sociais. No dizer de Vera Regina de Andrade 85 , contra a fórmula <strong>do</strong><br />

crime como ente jurídico, que Francesco Carrara proclamou como “sacramental”, o<br />

positivismo penal opõe a fórmula <strong>do</strong> crime como fato natural e social, pratica<strong>do</strong> pelo<br />

84 BRUNO. Op. cit., p. 90.<br />

85 ANDRADE. Op. cit., p. 63-64.<br />

45


homem e casualmente determina<strong>do</strong>, que expressa a conduta anti-social de uma dada<br />

personalidade perigosa e delinqüente.<br />

Decorre dessa visão o princípio da “individualização” da pena, fundamenta<strong>do</strong> no<br />

grau de periculosidade <strong>do</strong> agente, constituin<strong>do</strong> o crité<strong>rio</strong> e a medida da penalidade<br />

imposta, justifican<strong>do</strong> ainda a introdução no sistema das medidas de segurança por<br />

tempo indetermina<strong>do</strong>. De uma pena fundada na gravidade objetiva e jurídica <strong>do</strong> crime,<br />

a teoria positivista defende uma pena adaptada, sobretu<strong>do</strong>, à personalidade <strong>do</strong><br />

delinqüente, consideran<strong>do</strong> o seu passa<strong>do</strong> de delinqüência, sua periculosidade,<br />

anormalidade e projetan<strong>do</strong> um futuro de tratamento, recuperação ou ressocialização,<br />

idéias transpostas para a legislação penal brasileira 86 .<br />

A ideologia positivista amplia o poder discricioná<strong>rio</strong> <strong>do</strong> juiz, o que, no<br />

pensamento da reforma penal <strong>do</strong> século XVIII, contrastava com os direitos individuais.<br />

A reforma penal no senti<strong>do</strong> positivista, ou o positivismo criminológico <strong>do</strong> século XIX, só<br />

foi possível num contexto histórico que marcou a passagem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito liberal<br />

para o Esta<strong>do</strong> de Direito social na Europa, o que significava maior intervencionismo<br />

estatal na ordem econômica e social. “Neste horizonte histórico e sob novos<br />

pressupostos ideológicos e teóricos, a crítica <strong>do</strong> positivismo ao classicismo é centrada,<br />

visivelmente, em duas <strong>grande</strong>s dicotomias: individual x social e razão x realidade<br />

(racionalismo x empirismo)”, considera Andrade 87 .<br />

86 Cfr. Artigo 59 <strong>do</strong> Código Penal. In: BRASIL. Código penal, Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Org.<br />

Luiz Flávio Gomes. 4.ed. São Paulo: Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2002, p. 269.<br />

87 ANDRADE. Op. cit., p. 61.<br />

46


O que o positivismo criminológico propõe é uma rigorosa mudança no méto<strong>do</strong> de<br />

análise <strong>do</strong> seu objeto, influência da concepção positivista de ciência, cujo universo é<br />

concebi<strong>do</strong> como um conjunto de fenômenos casualmente determina<strong>do</strong>s. A função da<br />

ciência positivista consiste em descobrir na realidade factual as leis gerais através das<br />

quais o determinismo se manifesta, valen<strong>do</strong>-se de um méto<strong>do</strong> experimental, ou<br />

empírico-indutivo para a análise <strong>do</strong> seu objeto.<br />

No dizer de Enrico Ferri, a diferença fundamental entre as duas escolas está no<br />

“méto<strong>do</strong>”, dedutivo e de lógica abstrata para a Escola Clássica e indutivo e de<br />

observação <strong>do</strong>s fatos para a Escola Positiva. “Aquela ten<strong>do</strong> por objeto ‘o crime’ como<br />

entidade jurídica, esta ao contrá<strong>rio</strong> o ‘delinqüente’ como pessoa, revelan<strong>do</strong>-se mais ou<br />

menos socialmente perigosa pelo delito pratica<strong>do</strong>” 88 .<br />

Vera Regina de Andrade observa que por meio de Enrico Ferri o positivismo<br />

assume a tarefa de resgatar o “social” e os direitos da sociedade. “A defesa <strong>do</strong>s direitos<br />

humanos, protagonizada pelo classicismo, era denunciada como individualismo<br />

exacerba<strong>do</strong>, pelo conseqüente esquecimento da defesa da sociedade” 89 , assinala a<br />

autora.<br />

Também lembra que a Escola Positivista assumia a simultânea tarefa de<br />

deslocar a problemática penal <strong>do</strong> plano da razão para o plano da realidade, de uma<br />

88 FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Trad. Luiz Lemos de Oliveira. São Paulo:<br />

Saraiva, 1931, p. 43.<br />

89 ANDRADE. Op. cit., p. 61.<br />

47


orientação filosófica para uma orientação científica, empírico-positiva, numa tentativa de<br />

resgatar o sujeito delinqüente esqueci<strong>do</strong> pelo méto<strong>do</strong> dedutivo e de lógica abstrata <strong>do</strong><br />

Classicismo.<br />

Enquanto a Escola Clássica se ocupara <strong>do</strong> crime, deixan<strong>do</strong> o criminoso a sua<br />

sombra, o positivismo o reconduz para o centro de sua análise, e nessa aparece como<br />

um sujeito rigorosamente distinto <strong>do</strong>s “normais” e <strong>do</strong>s não-criminosos, determina<strong>do</strong> pela<br />

tríade físico, psíquico e social. “Ser criminoso constitui uma propriedade da pessoa que<br />

a distingue por completo <strong>do</strong>s indivíduos normais. Ele apresenta estigmas determinantes<br />

da criminalidade” 90 , observa Andrade.<br />

Do embate entre as duas teorias (clássica e positivista), nasce um Direito Penal<br />

de conciliação. Ainda segun<strong>do</strong> essa autora, “da mesma forma como o Esta<strong>do</strong><br />

intervencionista não implica o aban<strong>do</strong>no da estrutura institucional e discursiva <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong> de Direito (e de uma ‘legitimação pela legalidade’), o Direito Penal<br />

intervencionista não implica o aban<strong>do</strong>no discursivo <strong>do</strong> Direito Penal <strong>do</strong> fato” 91 . Daí,<br />

conseqüentemente, “o espaço para um Direito Penal de conciliação que, não poden<strong>do</strong><br />

aban<strong>do</strong>nar as garantias penais liberais, passa a requerer” 92 , apesar de impasses<br />

gera<strong>do</strong>s em nível legislativo, “uma intervenção sobre ‘a personalidade’ <strong>do</strong> delinqüente,<br />

com medidas curativas em nome da defesa social” 93 .<br />

90 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e<br />

permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. In: Seqüência, Estu<strong>do</strong>s Jurídicos e<br />

Políticos. Santa Catarina: UFSC , ano 16, n. 30, jun., 1995, p. 26.<br />

91 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica, p. 73.<br />

92 Idem, ibidem.<br />

93 Idem, ibidem.<br />

48


1.2 As Legislações Penais <strong>do</strong> Século XX 94<br />

A ideologia penal da defesa social 95 , conforme apresenta<strong>do</strong>, está no centro da<br />

teoria tanto da Escola Clássica quanto da Escola Positivista. Ou, então, segun<strong>do</strong><br />

Alessandro Baratta, “tanto a Escola Clássica quanto as escolas positivistas realizaram<br />

um modelo de ciência penal integrada, ou seja, um modelo no qual ciência jurídica e<br />

concepção geral <strong>do</strong> homem e da sociedade estão estreitamente ligadas”. Ainda<br />

segun<strong>do</strong> o autor, embora partissem de perspectivas profundamente diferentes quanto a<br />

essa concepção, a ideologia da defesa social apresenta-se como “nó teórico e político<br />

fundamental <strong>do</strong> sistema científico” 96 .<br />

Embora a partir <strong>do</strong> século XX a criminologia tenha aponta<strong>do</strong> para uma outra<br />

resposta penal frente ao problema da criminalidade, orientada por um novo paradigma,<br />

o labelling approach 97 , permanece <strong>do</strong>minante na criminologia contemporânea ou na<br />

94 O estu<strong>do</strong> até aqui apresenta<strong>do</strong>, ainda que analisa<strong>do</strong> com brevidade, pois seria por demais extenso e fugiria <strong>do</strong>s fins<br />

propostos por este trabalho, um exame minucioso e aprofunda<strong>do</strong> da ampla trajetória histórica <strong>do</strong> moderno saber<br />

penal, possibilita, contu<strong>do</strong>, vislumbrar os princípios orienta<strong>do</strong>res das legislações penais <strong>do</strong> século XX, como é o caso<br />

<strong>do</strong> Código Penal brasileiro de 1940, ainda em vigor.<br />

95 Difunde a idéia da punição <strong>do</strong> delinqüente não em razão da vindita pública, mas porque é preciso defender a<br />

sociedade da periculosidade observada diante <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> nele feito (biológico, social). A pena deixa de ter o caráter<br />

meramente retributivo para servir de esteio à defesa social, poden<strong>do</strong> ser aplicada mesmo antes da prática delituosa,<br />

como forma de prevenção real. Essa ideologia se desenvolveu com o movimento filosófico positivista, que teve<br />

como precursor Augusto Comte e teve em mente aban<strong>do</strong>nar o formalismo jurídico da Escola Clássica, preocupan<strong>do</strong>se<br />

menos com o fato criminoso <strong>do</strong> que com o homem que o pratica. Na obra Defesa Social e as Transformações <strong>do</strong><br />

Direito Penal (1910), A<strong>do</strong>lphe Prins defendia que a função <strong>do</strong> Direito Penal não seria retribuir o mal produzi<strong>do</strong> pelo<br />

fato ilícito, e sim objetivar a defesa da sociedade, o que só seria possível, no seu pensamento, substituin<strong>do</strong>-se a noção<br />

de responsabilidade moral pelo crité<strong>rio</strong> da periculosidade <strong>do</strong> delinqüente. In: SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. As<br />

correntes filosóficas na formação <strong>do</strong> direito penal. Disponível em:.<br />

Acesso em 19 abr. 2005.<br />

96 BARATTA. Op. cit., p. 41.<br />

97 Essa tendência já fora antecipada por Émile Durkheim. A criminologia contemporânea defende o paradigma da<br />

reação social, opon<strong>do</strong>-se à consideração da criminalidade como um da<strong>do</strong> pré-constituí<strong>do</strong> às definições legais de<br />

49


chamada sociologia criminal e na legislação penal o modelo da “criminologia<br />

antropológica”, sustenta Alessandro Baratta. Ou como observa esse autor, o modelo<br />

positivista da criminologia como estu<strong>do</strong> das causas da criminalidade (paradigma<br />

etiológico), ten<strong>do</strong> em vista a definição das medidas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para recuperação <strong>do</strong><br />

sujeito criminoso, por meio de um processo intervencionista (correcionalismo), continua<br />

<strong>do</strong>minante.<br />

Às considerações de Alessandro Baratta acrescentam-se os postula<strong>do</strong>s de<br />

Eugênio Zaffaroni 98 . Segun<strong>do</strong> este autor, as antropologias filosóficas (ou ontologias<br />

regionais humanas) 99 que ainda <strong>do</strong>minam o discurso jurídico-penal são as positivistas,<br />

dentro da perspectiva já assinalada, ou seja, o homem como um ente determina<strong>do</strong><br />

causalmente; a kantiana, com base retribucionista, sen<strong>do</strong> o homem sempre um ente<br />

livre que escolhe segun<strong>do</strong> a sua consciência; a hegeliana, cujo homem é livre sempre<br />

certos comportamentos e de certos indivíduos. “A consideração <strong>do</strong> crime como um comportamento defini<strong>do</strong> pelo<br />

direito, e o repúdio <strong>do</strong> determinismo e da consideração <strong>do</strong> delinqüente como um indivíduo diferente, são aspectos<br />

essenciais da nova criminologia”. In: BARATTA. Idem, p. 30. O enfoque, ou a teoria <strong>do</strong> interacionismo simbólico,<br />

etiquetamento, rotulação ou o paradigma da reação social surgiu nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América no início da década<br />

de 60 com os trabalhos de autores como H. Garfinkel, E. Gofmann, K. Ericson, H. Becker, E. Schurt, entre outros.<br />

98<br />

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da<br />

Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 15.<br />

99<br />

José M. Carvalho refere que Edmund Husserl entende que os fatos guardam uma distinção entre si e considera<br />

“ontologias regionais” esses espaços diferencia<strong>do</strong>s. Esses espaços seriam a natureza, a sociedade, a moral e a<br />

religião, os quais formam as regiões da realidade e apresentam na sua análise essências parecidas. O autor também<br />

menciona em A Idéia Filosófica em Delfim Santos (1996), que Delfim Santos em Obras Completas (1982) os<br />

nomeou de “matéria, vida, consciência e espírito”. E explica tratar-se de uma <strong>regional</strong>ização da realidade com uma<br />

nomenclatura mais próxima de nossa compreensão luso-brasileira. Edmund Husserl atribui à filosofia uma tarefa<br />

fundamental: descobrir as raízes que corroboram as vivências. Para tanto, ele afirma ser necessá<strong>rio</strong> em Idéias<br />

diretrizes para uma fenomenologia e uma filosofia fenomenológica I (1913) evitar os pré-conceitos, ou préjulgamentos,<br />

deixan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> o que as teorias dizem das coisas e voltan<strong>do</strong>-se ao mo<strong>do</strong> como elas aparecem na<br />

consciência. In: CARVALHO, José Maurício. Raízes fenomenológicas da filosofia clínica. Palestra proferida no VI<br />

Congresso Nacional de Filosofia Clínica, Vitória, 02 maio de 2004. Disponível em:<br />

. Acesso em 19 abr. 2005.<br />

50


que não deva ser considera<strong>do</strong> “diferente” e a gentiliana 100 , a qual oferece a base para a<br />

superposição <strong>do</strong> retribucionismo com a neotralização periculosista. Para esta última, o<br />

homem está sempre em certa medida determina<strong>do</strong> e, em certa medida é livre.<br />

Já no dizer de Vera Regina de Andrade 101 , as legislações <strong>do</strong> século XX serão,<br />

sobretu<strong>do</strong>, legislações sob o impé<strong>rio</strong> da fundamentação preventivo especial e da<br />

necessidade de individualização da pena, mas conviven<strong>do</strong> com as concepções<br />

herdadas <strong>do</strong> classicismo, como a legalidade, o retribucionismo e a responsabilidade<br />

moral.<br />

Ainda segun<strong>do</strong> a referida autora, tais legislações apresentam geralmente uma<br />

característica concilia<strong>do</strong>ra e de compromisso, uma cisão entre as exigências de<br />

objetividade, ou seja, certeza e segurança jurídica por um la<strong>do</strong> e por outro, a<br />

valorização da concreta individualidade perigosa <strong>do</strong> criminoso.<br />

O que se constata até aqui é que a disputa teórica entre o classicismo e o<br />

positivismo, ou que o conflito entre o livre arbít<strong>rio</strong> e o determinismo é resolvi<strong>do</strong> mediante<br />

a convivência no Direito Penal <strong>do</strong> discurso da garantia <strong>do</strong> indivíduo com o discurso da<br />

defesa social, observa Vera Regina de Andrade 102 . Ou ainda, como defende a autora,<br />

“a convivência <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> homem como limite <strong>do</strong> poder punitivo e o discurso <strong>do</strong><br />

100 Giovanni Gemtile foi ministro de Mussoline e é considera<strong>do</strong> o filósofo <strong>do</strong> fascismo.<br />

101 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica, p. 73.<br />

102 Idem, p. 73.<br />

51


homem como objeto de intervenção positiva desse mesmo poder, em nome da<br />

sociedade”. 103<br />

1.3 O Mito <strong>do</strong> Direito Penal Igualitá<strong>rio</strong> e sua Lógica de Exclusão e Seletividade<br />

Se as teorias apresentadas possibilitam identificar os postula<strong>do</strong>s dan<strong>do</strong><br />

sustentabilidade ao sistema penal contemporâneo, é oportuno ainda, dentro <strong>do</strong> quadro<br />

referencial geral <strong>do</strong>s mecanismos de controle social formal (Direito Penal), assinalar,<br />

embora sumariamente, o impacto desse controle no sistema social num senti<strong>do</strong> amplo,<br />

evidencian<strong>do</strong> as falsas promessas <strong>do</strong> discurso jurídico-penal e sua crise de<br />

legitimidade.<br />

Esse enfoque se mostra relevante, uma vez que o objetivo central da pesquisa é<br />

erigir a problemática da mulher em relação ao Direito Penal. Se o Direito Penal está<br />

assenta<strong>do</strong>, primeiramente, num paradigma capitalista 104 cujos mecanismos de controle<br />

103 Idem, ibidem.<br />

104 É representa<strong>do</strong> pela emergência <strong>do</strong> capitalismo enquanto mo<strong>do</strong> de produção <strong>do</strong>minante nos países da Europa,<br />

surgi<strong>do</strong> no contexto <strong>do</strong> paradigma cultural da modernidade. In: SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice.<br />

São Paulo: Cortez, 1996. p. 76. O paradigma capitalista emerge relaciona<strong>do</strong> ao primeiro <strong>grande</strong> paradigma estatal - o<br />

Esta<strong>do</strong> de Direito ou Esta<strong>do</strong> Moderno - que surgiu no séc. XVIII e se caracterizava pela mínima intervenção <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>. In: SILVEIRA, José de Deus Luongo da (org.). A ética e a crise da modernidade. Disponível em:<<br />

http://www.via-rs.com.br/pessoais/joseluongo/etica.htm>. Acesso em 20 jan. 2005. O modelo liberal de Esta<strong>do</strong><br />

encontrou em John Locke, defensor <strong>do</strong> liberalismo político, seu primeiro <strong>grande</strong> teórico. Viven<strong>do</strong> em um perío<strong>do</strong> de<br />

afirmação e ascensão da burguesia, John Locke foi quem apresentou os pressupostos teóricos que fundamentaram a<br />

política <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> limita<strong>do</strong>, não absolutista, agradan<strong>do</strong> a burguesia que, inspirada nos valores iluministas <strong>do</strong> século<br />

XVIII, buscava mais espaço para suas atividades comerciais. Looke condenou o absolutismo monárquico, atribuin<strong>do</strong><br />

ao Esta<strong>do</strong> a função de defender o direito à liberdade individual <strong>do</strong> cidadão e o direito à propriedade. Nesse acor<strong>do</strong>, a<br />

figura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> surge para garantir, fundamentalmente, esses direitos naturais <strong>do</strong>s indivíduos. Os homens que<br />

fundam o Esta<strong>do</strong> são, na <strong>do</strong>utrina lockeana, os proprietá<strong>rio</strong>s, e o Esta<strong>do</strong> passa a existir para a defesa de suas<br />

propriedades. Ainda no século XVIII, com Adam Smith, emergirá o liberalismo econômico. Em seu famoso livro<br />

Ensaio Sobre a Riqueza das Nações (1776), critica a política intervencionista <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na economia. Para esse<br />

autor, a vida econômica deveria ser dirigida pelo "jogo livre da oferta e da procura", isto é, o próp<strong>rio</strong> merca<strong>do</strong> se<br />

encarregaria de gerir (laissez-faire) as relações econômicas através da livre iniciativa <strong>do</strong>s particulares. O "merca<strong>do</strong>",<br />

portanto, ficaria no centro da vida econômica. Essas teorias deram a base necessária para o capitalismo emergente na<br />

Europa se sustentar e se desenvolver, in<strong>do</strong> <strong>do</strong>ravante se caracterizar pela busca incessante <strong>do</strong> lucro, expansão de<br />

52


agem seletivamente revelan<strong>do</strong> a ineficácia de sua função declarada e a eficácia de sua<br />

função latente, em se tratan<strong>do</strong> da questão da mulher 105 , essa realidade assume um<br />

duplo senti<strong>do</strong>, pois, além da matriz capitalista, incide sobre a mulher a concepção<br />

patriarcal que está no centro <strong>do</strong> edifício penal, entendi<strong>do</strong> como um sistema dinâmico de<br />

funções compreenden<strong>do</strong> a produção da norma, sua aplicação e execução. Ou dito de<br />

outra forma, o sistema penal está inscrito no inte<strong>rio</strong>r de um processo mais amplo da<br />

dinâmica <strong>do</strong> poder de produção capitalista 106 , isto é, poder de acumulação e de mais-<br />

valia.<br />

É vasta a literatura enfocan<strong>do</strong> a “crise” <strong>do</strong> atual sistema penal a partir de uma<br />

perspectiva da criminologia contemporânea, assentada no paradigma da “reação<br />

social”, segun<strong>do</strong> o qual, considera-se a criminalidade como “um status atribuí<strong>do</strong> a<br />

certos indivíduos mediante um duplo processo: a ‘definição’ legal de crime e a ‘seleção’<br />

que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre to<strong>do</strong>s aqueles que praticam<br />

merca<strong>do</strong>, relações produtivas assalariadas e um exército de desemprega<strong>do</strong>s. In: ALMEIDA, Jerri Roberto S. As faces<br />

<strong>do</strong> liberalismo. Disponível em:< http://www.litoralnorters.com.br/cafefilosofico/2004/index1907.htm>. Acesso em<br />

19 abr. 2005.<br />

105 Esse ponto será examina<strong>do</strong> no capítulo 3.<br />

106 Um conceito de poder e de poder capitalista pode ser visualiza<strong>do</strong> em Antônio C. Wolkmer, segun<strong>do</strong> o qual, o<br />

conceito de poder tem si<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> para interpretar as mais variadas relações que se espalham pelo corpo social, ou<br />

seja, desde a família e a escola até as relações entre as classes sociais e o poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Na sua caracterização, o<br />

poder pode ser impulsiona<strong>do</strong> pela força física representada pelos aparatos institucionaliza<strong>do</strong>s que fazem valer suas<br />

decisões ou pela legitimidade fundada no consenso, advinda da maior parte de seus integrantes e enquanto coerção<br />

resulta da força e da violência. Nas reflexões de Michel Foucault, o discurso jurídico ocidental tem se projeta<strong>do</strong>,<br />

desde a Idade Média, como espaço de legitimação <strong>do</strong> poder. Defenden<strong>do</strong> uma idéia positiva de poder, ele considera<br />

que o poder deve ser analisa<strong>do</strong> como algo que funciona em cadeia. A eficácia <strong>do</strong> poder está diretamente vinculada a<br />

uma estrutura jurídica que disciplina e consagra o exercício da propriedade, <strong>do</strong> contrato, da herança, asseguran<strong>do</strong> a<br />

reprodução das relações sociais de produção. Admitin<strong>do</strong>-se as proposições de Nicos Poulantzas, a estrutura jurídica<br />

capitalista desempenha as funções de regular e definir os limites de poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O Direito organiza o poder <strong>do</strong><br />

la<strong>do</strong> das classes <strong>do</strong>minantes e também <strong>do</strong> la<strong>do</strong> das classes <strong>do</strong>minadas ao assegurar a impossibilidade <strong>do</strong> seu acesso<br />

ao poder. Assim, processa-se o controle social. A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da<br />

violência exercida por to<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. “O Esta<strong>do</strong> edita a regra, pronuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo de<br />

injunções, de interditos, de censura, assim crian<strong>do</strong> o terreno para a aplicação e o objeto da violência [...]. A lei é,<br />

nesse senti<strong>do</strong>, o código da violência pública organizada”, no entendimento de Poulantzas. In: WOLKMER, Antônio<br />

Carlos. Ideologia, Esta<strong>do</strong> e Direito. 2.ed. São Paulo: Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 1989, p. 73-77.<br />

53


tais condutas” 107 . Essa tese encontra sua maior expressão na obra de Howard Becker,<br />

o qual concebe a criminalidade como um processo de interação entre a ação e reação<br />

social (controle social). O pensamento de Becker contrapõe-se veemente à natureza<br />

ontológica da criminalidade. Sua tese significa o deslocamento da investigação das<br />

causas <strong>do</strong> crime: <strong>do</strong> autor e de seu meio, e <strong>do</strong> fato-crime, para a reação social da<br />

conduta desviada, em especial para o sistema penal, considera Andrade. 108<br />

O objetivo deste estu<strong>do</strong> não é adentrar nesse amplo debate da teoria sociológica<br />

central ou da criminologia da reação social, fontes teóricas que apontam para a<br />

deslegitimação <strong>do</strong>s sistemas penais e <strong>do</strong>s discursos que os sustentam, mas discutir<br />

alguns aspectos que se mostram relevantes no senti<strong>do</strong> de assinalar a lógica de<br />

exclusão e seletividade <strong>do</strong> sistema penal como parte das “engrenagens” <strong>do</strong> processo<br />

de poder. Partir dessa perspectiva <strong>do</strong> funcionamento geral <strong>do</strong> sistema penal, é<br />

fundamental para a compreensão <strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong> Direito Penal, por meio de seu aparato<br />

jurídico e institucional, sobre a condição da mulher, conforme já aludi<strong>do</strong> ante<strong>rio</strong>rmente.<br />

Observa-se que, neste estu<strong>do</strong>, a palavra crise toma a perspectiva, não de um<br />

conflito que enseja a ruptura de uma tradição e a suplantação de modelos e verdades,<br />

o que levaria à superação da contradição entre as funções declaradas no discurso<br />

jurídico-penal e à realidade operacional <strong>do</strong> sistema, abrin<strong>do</strong> espaço para a construção<br />

de novos paradigmas, culminan<strong>do</strong> na instituição e legitimação de uma nova ordem, mas<br />

107 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e<br />

permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum, p. 29.<br />

108 Idem, ibidem.<br />

54


emprega-se a palavra crise no senti<strong>do</strong> de referir-se, como observa Eugênio Raul<br />

Zaffaroni, “a uma brusca aceleração <strong>do</strong> descrédito <strong>do</strong> discurso jurídico-penal e a<br />

realidade operacional <strong>do</strong> sistema penal”. 109 Segun<strong>do</strong> o autor, o atual momento de crise<br />

<strong>do</strong> sistema alcança tal magnitude de evidência, ou então, a falsidade <strong>do</strong> discurso<br />

jurídico-penal torna-se tão evidente a ponto de desconcertar o próp<strong>rio</strong> sistema.<br />

Eugênio Zaffaroni concebe o sistema penal como uma complexa manifestação<br />

<strong>do</strong> poder social. 110 Poder aqui compreendi<strong>do</strong> não como algo que se “tem”, mas como<br />

algo que se exerce, se transmite; perspectiva foucaultiana aludida em outro momento<br />

deste estu<strong>do</strong>. No entender de Zaffaroni, o sistema penal quis mostrar-se como um<br />

exercício de poder planeja<strong>do</strong> racionalmente com base numa utópica legitimidade<br />

explicada pelo seu discurso jurídico-penal. O discurso jurídico-penal seria racional,<br />

segun<strong>do</strong> ele, se fosse coerente e verdadeiro. Seria coerente se não fosse contraditó<strong>rio</strong>,<br />

seria verdadeiro se apresentasse uma adequação mínima conforme sua planificação 111 .<br />

Além de falso, o discurso penal também é perverso, pois exercita um poder que oculta<br />

ou perturba a percepção <strong>do</strong> verdadeiro exercício de poder.<br />

Ainda segun<strong>do</strong> o autor, em regiões periféricas, como as da América Latina, a<br />

racionalidade <strong>do</strong> discurso jurídico-penal torna-se absolutamente insustentável, uma vez<br />

que não cumpre nenhum <strong>do</strong>s requisitos da legitimidade, tornan<strong>do</strong> ilegítimo o exercício<br />

109 ZAFFARONI. Op.cit., p. 15.<br />

110 Idem, p. 16.<br />

111 Zaffaroni fala em <strong>do</strong>is níveis de verdade, um abstrato e outro concreto. O nível abstrato compreende “a adequação<br />

<strong>do</strong> meio ao fim, ao passo que o nível ‘concreto’ poderia denominar-se adequação operativa mínima conforme<br />

planificação”. In: ZAFFARONI. Op. cit., p. 19.<br />

55


de poder <strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong>s sistemas penais. Essa falta de legitimidade, no dizer <strong>do</strong> autor,<br />

não será suprida pela legalidade, tomada tanto na acepção positivista ou formal da<br />

palavra, isso é, a produção de normas mediante processos previamente fixa<strong>do</strong>s e como<br />

a pluralidade semântica da expressão: o exercício <strong>do</strong> sistema de acor<strong>do</strong> com a<br />

programação legislativa. Esse exercício, defende Eugênio Zaffaroni, compreende tanto<br />

a legalidade penal quanto a legalidade processual. Aquela corresponde ao exercício <strong>do</strong><br />

poder punitivo <strong>do</strong> sistema penal segun<strong>do</strong> os seus limites, esta, por sua vez, seria a<br />

exigência de que os órgãos <strong>do</strong> sistema penal exerçam seu poder para tentar<br />

criminalizar “to<strong>do</strong>s os autores de ações típicas, antijurídicas e culpáveis e que o façam<br />

de acor<strong>do</strong> com certas pautas detalhadamente explicitadas” 112 .<br />

No entanto, uma leitura atenta das leis penais permite comprovar que a própria<br />

lei renuncia a legalidade e que o discurso jurídico-penal (saber penal) parece não<br />

perceber tal fato. Para Zaffaroni, através da minimização jurídica, reserva-se ao<br />

discurso jurídico-penal, supostamente, os injustos graves; através da<br />

administrativização, considera-se fora <strong>do</strong> discurso jurídico-penal as institucionalizações<br />

manicomiais, inclusive as dispostas pelo próp<strong>rio</strong> órgão judicial; através da tutela são<br />

excluídas <strong>do</strong> discurso jurídico-penal as institucionalizações <strong>do</strong>s menores; através <strong>do</strong><br />

assistencialismo afasta-se totalmente <strong>do</strong> discurso penal a institucionalização <strong>do</strong>s<br />

anciões. 113<br />

112 Idem, p. 21.<br />

113 Idem, p. 22.<br />

56


É nesta aparente exclusão que reside um <strong>do</strong>s aspectos de maior violência <strong>do</strong><br />

discurso jurídico-penal, pois se trata de indivíduos submeti<strong>do</strong>s à institucionalização,<br />

aprisionamento e marcas estigmatizantes autorizadas e prescritas por leis semelhantes<br />

ou até piores <strong>do</strong> que as normas diretamente abrangidas pelo discurso jurídico-penal,<br />

possibilitan<strong>do</strong>, no dizer de Zaffaroni, enormes esferas de exercício arbitrá<strong>rio</strong> <strong>do</strong> poder.<br />

O verdadeiro e real poder <strong>do</strong> sistema penal não é o poder media<strong>do</strong> pelo órgão<br />

judicial. “O poder não é mera repressão (não é algo negativo); pelo contrá<strong>rio</strong>, seu<br />

exercício mais importante é positivo, configura<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong> a repressão punitiva apenas<br />

um limite ao exercício de poder“. 114<br />

Esse poder configura<strong>do</strong>r da vida social não se limita, portanto, aos órgãos<br />

executivos <strong>do</strong> sistema penal ou à sua discricionariedade legalmente outorgada. Esses<br />

órgãos atuam na execução, recrutamento e reforço de outras agências ou instâncias<br />

institucionais configura<strong>do</strong>ras cujo poder é explica<strong>do</strong> por discursos diferentes, embora<br />

com recursos análogos ao aprisionamento, seqüestro e estigmatização.<br />

Assim, os órgãos penais ocupam-se em selecionar e recrutar ou em reforçar e<br />

garantir o recrutamento de desertores ou candidatos a instituições tais como<br />

manicômios, asilos, quartéis e até hospitais e escolas (em outras épocas conventos).<br />

Esse poder também se exerce seletivamente, de forma idêntica à que, em geral, é<br />

114 Idem, p. 22-23.<br />

57


exerci<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o sistema penal. 115 Ou então, o maior poder <strong>do</strong> sistema penal atua<br />

sobre os setores mais “carentes da população e sobre alguns dissidentes (ou<br />

‘diferentes’) mais incômo<strong>do</strong>s ou significativos” 116 , operan<strong>do</strong> de forma camuflada e<br />

impedin<strong>do</strong> que seja percebi<strong>do</strong>, em nível consciente ou em toda a sua magnitude. Se,<br />

por um la<strong>do</strong>, as pessoas mais vulneráveis ao sistema penal não sentem nenhum temor<br />

quan<strong>do</strong> esse aparece sob a forma de repressão, por outro, também são os setores<br />

carentes e “dissidentes incômo<strong>do</strong>s” que mais sofrem os efeitos <strong>do</strong> seu poder<br />

camufla<strong>do</strong>, por meio <strong>do</strong> controle e da vigilância <strong>do</strong>s espaços e pela inte<strong>rio</strong>rização dessa<br />

vigilância por <strong>grande</strong> parte da população, processo em que os meios de comunicação,<br />

e até mesmo a escola, a família exercem forte influência, defende Eugênio Zaffaroni. 117<br />

Segun<strong>do</strong> Andrade 118 , o sistema penal não realiza o processo de criminalização e<br />

estigmatização à margem ou contra os processos gerais de etiquetamento, os quais<br />

têm lugar no seio <strong>do</strong> controle social informal, como a família (o filho estigmatiza<strong>do</strong> como<br />

ovelha negra), a escola (o aluno rotula<strong>do</strong> como “difícil” pelo professor) e os meios de<br />

comunicação.<br />

Ainda quanto à legalidade <strong>do</strong> sistema penal, Eugênio Zaffaroni observa que essa<br />

não é respeitada nem mesmo no âmbito <strong>do</strong> sistema formal. “A estrutura de qualquer<br />

sistema penal faz com que jamais se possa respeitar a legalidade processual” 119 . Ou<br />

115 Idem, p. 23.<br />

116 Idem, p. 24.<br />

117 Idem, ibidem.<br />

118 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e<br />

permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum, p. 29.<br />

119 ZAFFARONI. Op. cit., p. 26.<br />

58


então, a seletividade estrutural <strong>do</strong> sistema penal só pode exercer seu poder repressivo<br />

em um número insignificante das hipóteses de intervenção planificadas. A disparidade<br />

entre o exercício <strong>do</strong> poder programa<strong>do</strong> e a capacidade operativa <strong>do</strong> sistema é a mais<br />

elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada <strong>do</strong> discurso<br />

jurídico-penal. O sistema penal “está estruturalmente monta<strong>do</strong> para que a legalidade<br />

processual não opere e sim, para que exerça seu poder com alto grau de arbitrariedade<br />

seletiva, dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis” 120 .<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, os órgãos legislativos, com a criação de novos tipos penais, na<br />

pretensão de um maior exercício controla<strong>do</strong>r, nada mais fazem <strong>do</strong> que aumentar o<br />

arbít<strong>rio</strong> <strong>do</strong> sistema penal. Volta-se nesse ponto, ao objeto principal da pesquisa. Se a<br />

tipificação de novas condutas em nada irá contribuir para uma maior eficácia operativa<br />

<strong>do</strong> sistema penal, o que então os movimentos femininos buscam na arena penal<br />

através de suas demandas criminaliza<strong>do</strong>ras? Além da lógica seletiva <strong>do</strong> sistema, os<br />

tipos penais são porta<strong>do</strong>res de elementos valorativos moralistas, os quais atuam<br />

fortemente, no caso da mulher, na (re)criação de estereótipos femininos.<br />

Eugênio Zaffaroni, embora não se referin<strong>do</strong> à questão específica da mulher,<br />

sustenta que o sistema penal atua sempre seletivamente e de acor<strong>do</strong> com os<br />

estereótipos fabrica<strong>do</strong>s pelos meios de comunicação de massa, que não se limitam a<br />

proporcionar uma falsa imagem da realidade, mas fabricam, isto é, produzem a própria<br />

realidade. “Estes estereótipos permitem a catalogação <strong>do</strong>s criminosos que combinam<br />

120 Idem, p. 27.<br />

59


com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixan<strong>do</strong> de fora outros tipos de<br />

delinqüentes (delinqüência de colarinho branco, <strong>do</strong>urada, de trânsito, etc.)”. 121<br />

Volta-se aqui à teoria lombrosiana, ou ao discurso racista-biologista, a qual,<br />

segun<strong>do</strong> o autor, é o verdadeiro modelo ideológico para o controle social nos países<br />

periféricos que, pela falta de um discurso próp<strong>rio</strong>, sempre reproduziram os discursos<br />

centrais, ainda que contraditó<strong>rio</strong>s e confusos. A analogia entre os delinqüentes centrais<br />

(minoria considerada segun<strong>do</strong> sua infe<strong>rio</strong>ridade biológica) e o selvagem (a totalidade<br />

das populações colonizadas), é a que serve de modelo ainda hoje à descrição fabricada<br />

da criminalidade, não excluin<strong>do</strong> nem a criança, nem o ancião e nem a mulher, cuja<br />

analogia tem por base a suposta incapacidade de racionalizar destas categorias.<br />

De outra parte, essa estereotipação também toma forma na pessoa da vítima.<br />

Em se consideran<strong>do</strong> a questão da mulher, uma vítima mulher pobre, negra e “feia”, por<br />

exemplo, de “conceito” duvi<strong>do</strong>so, terá poucas chances de sair vito<strong>rio</strong>sa num processo<br />

cujo perfil <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> corresponda a um sujeito branco, honesto e trabalha<strong>do</strong>r 122 .<br />

E como último aspecto a ser considera<strong>do</strong> acerca da crise de legitimidade em que<br />

se encontra mergulha<strong>do</strong> o discurso jurídico-penal, cabe ainda lembrar os poderes<br />

expressamente ilícitos, fican<strong>do</strong> à margem de qualquer legalidade, fortemente<br />

arraiga<strong>do</strong>s nos órgãos executivos <strong>do</strong> sistema penal. Esse poder ganha maior expressão<br />

nas atividades de extorsão, homicídios, torturas e corrupção cometidas pelas agências<br />

121 Idem, p. 130.<br />

122 Esta questão é aprofundada no capítulo 3.<br />

60


executivas <strong>do</strong> sistema penal ou por seus funcioná<strong>rio</strong>s. Essa ilegalidade, que está além<br />

daquela planificada pelo sistema, viola declaradamente os princípios mais elementares<br />

<strong>do</strong>s direitos humanos.<br />

Longe de se pretender esgotar aqui a análise <strong>do</strong> assunto até agora apresenta<strong>do</strong>,<br />

visto que a explanação <strong>do</strong> quadro teórico apontan<strong>do</strong> para a deslegitimação <strong>do</strong> discurso<br />

jurídico-penal ou para o seu empobrecimento filosófico permitin<strong>do</strong> que sobrevivesse no<br />

seu inte<strong>rio</strong>r a concepções de homem ou de antropologias filosóficas anacrônicas, há<br />

décadas banidas de outras áreas <strong>do</strong> pensamento, tomaria o espaço de um estu<strong>do</strong> à<br />

parte. Também não se analisarão aqui, as correntes teóricas, tanto as <strong>do</strong>s países<br />

centrais quanto às da América Latina, que procuram dar uma resposta ou uma<br />

alternativa à crise de legitimidade <strong>do</strong> atual sistema penal ou <strong>do</strong> discurso jurídico-penal.<br />

Isso estaria fora <strong>do</strong>s propósitos da presente pesquisa.<br />

As linhas gerais sumariamente enfocadas permitem, no entanto, introduzir a<br />

discussão que será apresentada no terceiro capítulo, abordan<strong>do</strong>, na seqüência, isto é,<br />

no capítulo segun<strong>do</strong>, a questão <strong>do</strong> discurso enquanto estratégia cria<strong>do</strong>ra de gênero.<br />

61


2 O DISCURSO ENQUANTO ESTRATÉGIA CRIADORA DE GÊNERO 123<br />

2.1 Discursos, Verdade e Gênero: A Dialética <strong>do</strong> Poder<br />

Pela relevância teórica conferida à categoria <strong>do</strong> discurso no inte<strong>rio</strong>r desta<br />

pesquisa, julga-se necessá<strong>rio</strong> fazer algumas considerações introdutórias sobre esse<br />

tema. Parte-se de conceitos da teoria lingüística de Ferdinand de Saussure, com maior<br />

ênfase aos princípios que possibilitam pensar o lugar ativo <strong>do</strong> sujeito no universo móvel<br />

da língua 124 . Toma-se também por base a perspectiva <strong>do</strong> discurso nas pesquisas de<br />

123 O termo gênero foi produzi<strong>do</strong> basicamente pelos cientistas sociais a partir <strong>do</strong>s anos de 1960 e 1970, com o<br />

objetivo de evidenciar as determinações ou estereótipos <strong>do</strong> masculino e <strong>do</strong> feminino. Significa a idéia de discriminar,<br />

de separar aquilo que é o fato de alguém ser macho ou fêmea, e o trabalho de elaboração que a cultura realiza sobre<br />

essa diferença sexual. Para as teorias feministas, o gênero pode ser entendi<strong>do</strong> como a organização social e<br />

hierárquica <strong>do</strong> sexo, o “arranjo” cultural da sexualidade (e de tu<strong>do</strong> o que isso implica) de homens e mulheres. A<br />

exemplo de inúmeros outros autores que abordam o tema, Elena Larrauri, em seu artigo Control informal: las penass<br />

de las mujeres, também levanta a polêmica questão, bastante debatida no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong>s movimentos feministas, acerca<br />

da diferença entre os termos sexo e gênero: enquanto o sexo é determina<strong>do</strong> biologicamente, o gênero é uma<br />

construção social, ou seja, não é um da<strong>do</strong> pronto, determina<strong>do</strong> pela natureza. Como criação social, o gênero<br />

implica a atribuição de alguns valores e de um espaço próp<strong>rio</strong>, não sen<strong>do</strong>, portanto, conseqüência de uma anatomia.<br />

In: LARRAURI, Elena (Comp). Mujeres, Derecho Penal y Criminología. Madrid: Siglo Veintiuno, 1994, p. 12.<br />

Para esta pesquisa, a categoria gênero apresenta-se como um instrumental de análise que permite avaliar como os<br />

condicionamentos culturais, sociais, políticos, econômicos e religiosos estabelecem os papéis sociais de mulheres e<br />

homens e como esses foram incorpora<strong>do</strong>s ao Direito ou como esse contribui nessa construção.<br />

124 Ferdinand de Saussure, em sua Teoria Linguística, oferece importante contribuição para este estu<strong>do</strong> uma vez que<br />

permite pensar a língua a partir de suas modificações e evoluções impostas pelas práticas falantes. Esta dialética<br />

entre as narrativas (práticas falantes) e a estrutura da língua é possível no campo teórico por conta da distinção<br />

62


Michel Foucualt 125 , enquanto elemento central de sua análise da produção de saberes<br />

(discursos) inseri<strong>do</strong>s nos processos políticos e econômicos e deles emergi<strong>do</strong>s.<br />

Para os efeitos deste trabalho, portanto, transcende-se a noção <strong>do</strong> discurso<br />

como um conjunto de fatos lingüísticos liga<strong>do</strong>s entre si por regras sintáticas de<br />

construção. Acrescenta-se aos fatos lingüísticos regulares, às leis e regularidades da<br />

linguagem, um jogo estratégico e polêmico “de ação e reação, de pergunta e de<br />

resposta, de <strong>do</strong>minação e de esquiva, como também de luta”. 126 É no inte<strong>rio</strong>r dessa<br />

coexistência de forças, nos pressupostos intrínsecos à dialética, que se situará a<br />

discussão acerca <strong>do</strong> discurso como estratégia cria<strong>do</strong>ra de gênero.<br />

apresentada pelo autor entre linguagem, língua e fala, elaborada no capítulo IV <strong>do</strong> Curso de Lingüística Geral. No<br />

seu entendimento, a linguagem é a estrutura genérica, abstrata, que comporta todas as línguas. A língua, escreve<br />

Saussure, é “a parte social da linguagem, exte<strong>rio</strong>r ao indivíduo que, por si só, não pode criá-la nem modificá-la; ela<br />

não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabeleci<strong>do</strong> entre os membros da comunidade”(p.22). Já a<br />

fala “é o que faz evoluir a língua” (p.27). É a parte viva, móvel e relacional da língua. A fala corresponde às<br />

manifestações individuais, à vontade, às necessidades <strong>do</strong> falante, imprimin<strong>do</strong>-se, assim, a marca da história, da<br />

cultura. In: SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Trad. José Paulo Paes. et al. São Paulo: Cultrix,<br />

1975.<br />

125 Pela reiterada referência às obras de Michel Foucault, sente-se a necessidade de esclarecer que não é proposta<br />

deste estu<strong>do</strong> o exame de sua epistemologia. Evocam-se dessa alguns elementos, em especial, a sua análise <strong>do</strong><br />

processo de produção <strong>do</strong>s saberes, toma<strong>do</strong>s a partir de sua inserção na ordem política, econômica e social. A<br />

arqueologia e a genealogia de Foucault configuram um campo epistêmico no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> pensamento contemporâneo<br />

imprescindível para uma compreensão crítica <strong>do</strong> processo de fundação <strong>do</strong> saber ocidental. Possibilita pensá-lo em<br />

sua conexão com as relações de poder, como ele o fez em Vigiar e Punir (1975) e em A História da Sexualidade, a<br />

Vontade de Saber (1976). O pensa<strong>do</strong>r francês não fez uma história das ciências ou das idéias. Sua fase arqueológica,<br />

desenvolvida entre 1961 e 1969, inaugurada com a obra A História da Loucura e conclusa com a Arqueologia <strong>do</strong><br />

Saber, investiga o contexto e a fonte onde as condições e possibilidades das teorias e conhecimentos, filosofias e<br />

racionalidades, idéias e conceitos deixavam-se desenhar, fundan<strong>do</strong> uma noção de “homem”: homem enquanto objeto<br />

e enquanto sujeito <strong>do</strong> pensamento. Ao projeto arqueológico de investigação, segue-se a proposta genealógica, em<br />

que o poder passa a ser o eixo para a compreensão da produção de saberes. É esse o ponto de congruência entre as<br />

ideais <strong>do</strong> autor e o estu<strong>do</strong> a que esta pesquisa se propõe. O discurso jurídico-penal, apresenta<strong>do</strong> no capítulo ante<strong>rio</strong>r,<br />

e o discurso que anuncia o lugar <strong>do</strong> feminino na sociedade burguesa oitocentista, requer, enquanto objeto de análise,<br />

que se considerem as suas relações com o poder. Para Michel Foucualt, o poder tem o senti<strong>do</strong> de uma prática social<br />

a qual se constitui na história, compreenden<strong>do</strong>, além <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e este aparece em sua obra apenas como articula<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> poder, as demais instituições <strong>do</strong> corpo social. Poder que se materializa na escala social por meio de mecanismos<br />

que administram e ordenam o cotidiano <strong>do</strong> indivíduo segun<strong>do</strong> objetivos econômicos e políticos.<br />

126 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Macha<strong>do</strong> e Eduar<strong>do</strong> Jardim<br />

Moraes. Rio de janeiro: Nau, 2001, p. 9.<br />

63


Uma vez que a língua “é a linguagem enquanto conjunto de signos formais,<br />

estratifica<strong>do</strong> em escalões sucessivos que formam sistemas e estruturas” 127 e que se<br />

impõem como uma ordem ao sujeito falante, o discurso, por sua vez, é “o veículo de<br />

uma mensagem única, própria da estrutura particular de um determina<strong>do</strong> sujeito que<br />

imprime sobre a estrutura obrigatória da língua uma marca específica [...]”. 128<br />

No que se opõe à fala, “ato individual de vontade e de inteligência”, 129 o discurso,<br />

ainda que se realize através da fala, vem marca<strong>do</strong> pela intenção, “integran<strong>do</strong> nas suas<br />

estruturas o locutor e o auditor, com o desejo de o primeiro influenciar o segun<strong>do</strong>”. 130<br />

Se a modernidade inaugurou a institucionalização <strong>do</strong>s espaços público e priva<strong>do</strong>,<br />

esses se caracterizam por práticas, valores, significa<strong>do</strong>s, demandas, proibições e<br />

permissões expressos e articula<strong>do</strong>s pela linguagem, a qual, por sua vez, traduz-se em<br />

discurso 131 : discurso da Igreja, da escola, da indústria, da ciência, da política, <strong>do</strong><br />

jurídico, das correntes feministas; discursos institucionais com características próprias,<br />

127<br />

BENVENISTE, Émile, apud KRISTEVA, Julia. História da Linguagem. Lisboa: Edições 7, 1999, p.22<br />

128<br />

KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Lisboa: Edições 7, 1999, p. 22.<br />

129<br />

SAUSSURE. Op. cit., p. 27.<br />

130<br />

KRISTEVA. Op. cit., p. 22.<br />

131<br />

Michelle Perrot observa que o século XIX, marco temporal que melhor serve de referência para a definição da<br />

identidade feminina contemporânea, é uma fase de transitoriedade discursiva e de práticas cotidianas. Além <strong>do</strong><br />

fortalecimento <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s nacionais, implican<strong>do</strong> na passagem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal para o Esta<strong>do</strong> de bem-estar social<br />

na Europa, este é marca<strong>do</strong> pelo avanço acelera<strong>do</strong> da industrialização e da técnica, pela organização <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

e pela redefinição <strong>do</strong>s papéis sociais de mulheres e crianças. Como um <strong>do</strong>s efeitos da Revolução Francesa, o século<br />

XIX acentua a definição das esferas pública e privada, valorizan<strong>do</strong> a família e diferencian<strong>do</strong> os papéis sexuais. Há<br />

uma rigorosa oposição entre homens públicos e mulheres <strong>do</strong>mésticas. Este contexto sugere novas possibilidades<br />

discursivas, ou seja, a modernidade consoli<strong>do</strong>u uma multiplicidade de padrões e discursos que iriam organizar o<br />

campo simbólico de um novo tipo de indivíduo inseri<strong>do</strong> num novo contexto social: urbanização, industrialização,<br />

organização da vida pelos parâmetros da eficácia industrial e da moralidade burguesa, nascimento da família nuclear,<br />

separação nítida entre os espaços público e priva<strong>do</strong>. In: PERROT, Michelle. História da vida privada. Trad. Denise<br />

Bottmann e Bernar<strong>do</strong> Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, v. 4.<br />

64


inscritos num espaço social, numa configuração epocal, constituin<strong>do</strong> redes de<br />

significa<strong>do</strong>s, esferas de poder, das quais emanam as suas verdades.<br />

Consideran<strong>do</strong> as variedades discursivas, observa-se que essas remetem a um<br />

discurso universal, forman<strong>do</strong> uma unidade significativa. É essa unidade de significa<strong>do</strong>s<br />

que institui o discurso da feminilidade 132 no Ocidente moderno e que subsiste enquanto<br />

referencial simbólico no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> sistema penal contemporâneo.<br />

Conforma<strong>do</strong> sob o ponto de vista tanto factual quanto ideológico, o discurso é<br />

elemento organiza<strong>do</strong>r da sociedade, uma vez que elege e determina verdades, dispõe<br />

e legitima lugares sociais, organiza o campo simbólico <strong>do</strong>s indivíduos. Vale dizer, o<br />

discurso fundamenta o homem dentro de suas relações sociais, ainda que ”o gesto<br />

instaura<strong>do</strong>r é sempre solidá<strong>rio</strong> de um gesto de segregação”. 133 A palavra que ordena é<br />

aquela que deve ser silenciada para que outra tome o seu lugar. A onipotência <strong>do</strong><br />

discurso também é a sua fragilidade.<br />

Assim sen<strong>do</strong>, o discurso que anuncia os enuncia<strong>do</strong>s necessá<strong>rio</strong>s também<br />

permite os enuncia<strong>do</strong>s possíveis. Por isso, a possibilidade de discursos periféricos,<br />

132 Este estu<strong>do</strong> concebe as categorias feminilidade e masculinidade enquanto identificações que estruturam o eu<br />

segun<strong>do</strong> os mo<strong>do</strong>s como cada cultura organiza os ideais para os gêneros. Esses ideais configuram o campo simbólico<br />

a partir <strong>do</strong> qual cada um, valen<strong>do</strong>-se de estratégias particulares, <strong>do</strong> seu desejo, das suas necessidades, se organiza<br />

enquanto sujeito. Assim, para compreender o que é específico da mulher, em sua posição tanto subjetiva quanto<br />

social, o discurso será toma<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> que lhe é atribuí<strong>do</strong> por Michel Foucault, como produção de saberes,<br />

tanto <strong>do</strong>minantes quanto passa<strong>do</strong>s (recalca<strong>do</strong>s), conforme já aludi<strong>do</strong> em espaço ante<strong>rio</strong>r deste trabalho, com a<br />

contribuição <strong>do</strong> paradigma lacaniano, esse como uma forma de melhor compreensão de como a produção discursiva<br />

dispõe de lugares, estabelece senti<strong>do</strong>s e ideais para a vida <strong>do</strong>s sujeitos. Observa-se ainda que, quanto ao marco<br />

temporal, tem-se como referência o século XIX, por entender ser essa a tradição que impera no Direito Penal<br />

contemporâneo enquanto referencial de feminilidade.<br />

133 FOUCAUTL, Michel. O homem e o discurso. A arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Tempo<br />

Brasileiro, 1971, p. 14.<br />

65


alternativos, antagônicos, patológicos, que, embora bani<strong>do</strong>s <strong>do</strong> discurso hegemônico,<br />

com ele se intercomunicam livremente. É a partir dessa perspectiva que se pode pensar<br />

a coexistência de discursos alternativos ao discurso hegemônico, ao discurso da<br />

tradição, que institui um conjunto de funções socialmente essências à mulher, ao qual,<br />

porém, se opõe a personalidade individual, os discursos antagônicos.<br />

Cabem aqui os argumentos de Júlia Kristeva, que em sua teoria sobre a relação<br />

<strong>do</strong> sujeito falante com a linguagem aponta para a possibilidade de uma prática<br />

discursiva que desagrega e fragmenta as convenções impositivas e a estrutura unitária<br />

de qualquer código social 134 , ou seja, se existe um confinamento <strong>do</strong> eu no gênero, essa<br />

constrição, no entanto, nunca é total. A identidade de gênero é apenas orientada pela<br />

circunstância historicamente contingente.<br />

Kristeva opõe-se, assim, à tradição estruturalista psicanalítica <strong>do</strong> gênero,<br />

segun<strong>do</strong> a qual o sujeito falante não é sujeito das convenções <strong>do</strong> discurso lingüístico,<br />

mas sujeito a elas, ou seja, meninos e meninas recebem sua identidade de gênero em<br />

virtude de convenções sociolinguísticas <strong>do</strong> seu contexto social.<br />

A par disso, observam as autoras Seyla Benhabid e Drucilla Cornell, a epígrafe<br />

de Simone Beauvoir “não se nasce, mas torna-se mulher” 135 encerra a idéia de que o<br />

processo de generização, ou então o projeto de assumir um gênero deve ser<br />

134 Ver mais sobre esse tema em: BENHABID, Seyla; CORNELL, Drucilla (Coord.). Feminismo como crítica da<br />

modernidade. Trad. Nathanael da Costa Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa <strong>do</strong>s Ventos, 1987.<br />

135 BENHABID; CORNELL. Idem.<br />

66


compreendi<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> campo das relações sociais. A questão entre identidade de<br />

gênero como escolha própria ou uma contingência histórico-cultural divide a teoria<br />

psicanalítica feminina. Nesse senti<strong>do</strong> questiona Judith Butler,”como pode o gênero ser<br />

ao mesmo tempo questão de escolha e construção cultural?”. 136 E, ainda, indaga a<br />

autora, qual o limite entre um eu culturalmente construí<strong>do</strong> e uma construção própria?<br />

“Se o gênero é determina<strong>do</strong> na dialética entre cultura e escolha, então, a que papel o<br />

‘sexo’ serve [...]?”. 137<br />

Comparan<strong>do</strong> as teorias de Simone Beavoir, Monique Wittig e Michel Foucault, a<br />

autora observa que, embora essas sejam diferentes em diversos pontos, “sugerem em<br />

comum uma teoria <strong>do</strong> gênero que tenta dar o senti<strong>do</strong> cultural da <strong>do</strong>utrina existencial da<br />

escolha”. 138 Ou então, afirma a autora, “o gênero torna-se o lugar <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s<br />

culturais tanto recebi<strong>do</strong>s como inova<strong>do</strong>s”. 139 A escolha “tem o significa<strong>do</strong> de um<br />

processo corpóreo de interpretação no seio de uma rede de normas culturais<br />

profundamente entranhadas”. 140 Para Beauvoir, uma anatomia sexualmente<br />

diferenciada oferece menos limites à escolha de um gênero <strong>do</strong> que o peso de<br />

instituições culturais que tem interpreta<strong>do</strong> a anatomia de mo<strong>do</strong> convencional. A<br />

existência <strong>do</strong> próp<strong>rio</strong> corpo, no entanto, depende de um mo<strong>do</strong> pessoal de examinar e<br />

interpretar normas de gênero recebidas.<br />

136 BUTLER, Judith. Variações sobre sexo e gênero, Beauvoir, Wittig e Foucault, In: BENHABID; CORNELL.<br />

Idem, p. 139.<br />

137 Idem, ibidem.<br />

138 Idem, p. 140.<br />

139 Idem, ibidem.<br />

140 Idem, ibidem.<br />

67


O gênero seria assim um “projeto incessante”, um ato diá<strong>rio</strong> de construção e<br />

interpretação. Nisso se inscreve a “política <strong>do</strong> sexo” ou a teoria da sexualidade de<br />

Michel Foucault apresentadas em seu primeiro volume de A História da Sexualidade,<br />

em que oferece estratégias para subverter e dissipar a configuração binária de força, o<br />

modelo jurídico de opressor e oprimi<strong>do</strong> e a hierarquia de gênero. Não se trata, como<br />

afirma Judith Butler, de transcender as relações de força, “mas multiplicar suas várias<br />

configurações, de mo<strong>do</strong> que o modelo jurídico de força como opressão e regulação não<br />

seja mais homogêneo”. 141<br />

Não se pretende neste estu<strong>do</strong> esboçar as teorias de gênero e o seu pluralismo<br />

epistêmico, tem-se disponível uma ampla literatura nesse senti<strong>do</strong>, torna-se relevante<br />

elucidar, porém, que para esta pesquisa, a categoria gênero apresenta-se como um<br />

instrumental de análise que permite avaliar como os condicionamentos culturais,<br />

sociais, políticos, econômicos e religiosos estabelecem os papéis sociais de mulheres e<br />

homens e como esses significa<strong>do</strong>s foram incorpora<strong>do</strong>s ao Direito e como o discurso<br />

jurídico tem contribuí<strong>do</strong> nessa construção.<br />

Na mesma perspectiva <strong>do</strong> capítulo ante<strong>rio</strong>r, quan<strong>do</strong> se apresentou a teoria<br />

dan<strong>do</strong> sustentabilidade ao discurso jurídico-penal a partir de suas relações com as<br />

diversas esferas <strong>do</strong> poder, este espaço traz a produção de saberes, ou a verdade que<br />

inscreve os ideais de gênero na cultura e no imaginá<strong>rio</strong> de homens e mulheres no<br />

141 Idem, p. 150.<br />

68


decorrer <strong>do</strong> século XIX: tempo da modernidade, tempo em que a perspectiva das<br />

mulheres se altera, alargan<strong>do</strong>-se o campo das possibilidades.<br />

No dizer de Maria Rita Kehl, “a modernidade proporcionou um campo muito mais<br />

vasto e varia<strong>do</strong> para a constituição <strong>do</strong>s sujeitos <strong>do</strong> que os perío<strong>do</strong>s imediatamente<br />

precedentes; a tarefa de inscrever-se neste campo mobiliza as mulheres [...]”. 142 Ou,<br />

noutras palavras, o século XIX, por um la<strong>do</strong>, marca a extrema codificação da vida<br />

feminina: “uma vasta produção científica e filosófica, tentava, na Europa oitocentista,<br />

explicar a mulher” 143 , sustenta a autora; mas, por outro, acenava às mulheres a<br />

possibilidade de uma nova condição na História.<br />

A ciência <strong>do</strong> século XIX, em proporções maiores que nos perío<strong>do</strong>s ante<strong>rio</strong>res,<br />

dadas às circunstâncias políticas, econômicas e sociais da época, se apropria de um<br />

discurso que confere verdades, “conjunto das regras segun<strong>do</strong> as quais se distingue o<br />

verdadeiro <strong>do</strong> falso e se atribui aos verdadeiros efeitos específicos de poder”. 144<br />

O poder atribuí<strong>do</strong> às verdades <strong>do</strong> discurso científico encontra explicação numa<br />

sociedade caracterizada pelo fenômeno da razão tecnocrata, pela ratio,<br />

institucionalizada, burocratizada, condicionada a centrar suas verdades no discurso<br />

científico e nas instituições que o produzem, pois a razão só pode funcionar<br />

142<br />

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos <strong>do</strong> feminino. A mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de<br />

Janeiro: Imago, 1998, p. 35.<br />

143<br />

Idem, p. 35.<br />

144<br />

FOUCUALT, Michel. Microfísica <strong>do</strong> poder. Trad. Roberto Macha<strong>do</strong>. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 13.<br />

69


“expulsan<strong>do</strong> para os confins da Ordem os discursos que não podem ser assimila<strong>do</strong>s<br />

pela racionalidade vigente”. 145<br />

A organização econômica, a racionalidade <strong>do</strong> modelo político, a ciência<br />

positivista e as decisões militares primam pela supremacia da razão. A dinâmica da<br />

sociedade moderna, no entanto, se define pela diversidade: o <strong>do</strong>mínio público, espaço<br />

das transações políticas, comerciais e sociais nas cidades burguesas era também um<br />

espaço onde convivia uma diversidade de indivíduos, fato jamais visto na História <strong>do</strong><br />

Ocidente, observa Richard Sennett. 146<br />

Enquanto os ideais de autonomia e liberdade, palavras de ordem na Europa<br />

revolucionária, autorizavam a individualidade, as diferenças, a espontaneidade, a<br />

possibilidade de um discurso alternativo, as convenções sociais, fundadas na crença de<br />

um indivíduo que se definia pela racionalidade cartesiana, exigiam uma rígida<br />

adequação à ordem estabelecida. É essa uma das facetas de maior contradição e<br />

conflito <strong>do</strong> indivíduo moderno.<br />

Para Michel Foucault 147 , a verdade está circularmente ligada a sistemas de<br />

poder, que a produzem e apóiam, e a afeitos de poder que ela induz e que a<br />

reproduzem. Dessa forma, postula o pensa<strong>do</strong>r, “as condições econômicas e sociais que<br />

145<br />

FOUCAULT, Michel. O homem e o discurso. A arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Tempo<br />

Brasileiro, 1971, p. 14.<br />

146<br />

SENNETT, Richard. O declínio <strong>do</strong> homem público. Trad. Lyigia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 1988.<br />

147<br />

FOUCUALT, Michel. Microfísica <strong>do</strong> poder. p. 12-13.<br />

70


servem de contexto para o aparecimento de uma ciência, ao seu desenvolvimento ou<br />

ao seu funcionamento, não se traduzem na própria ciência sob a forma de discurso<br />

científico [...]” 148 , questão em que diz opor-se à forma de análise tradicional <strong>do</strong><br />

marxismo universitá<strong>rio</strong> da França e da Europa que, segun<strong>do</strong> o autor, apresenta um<br />

defeito muito grave: “o de supor, no fun<strong>do</strong>, que o sujeito humano, o sujeito de<br />

conhecimento, as próprias formas de conhecimento são de certo mo<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s prévia e<br />

definitivamente, e que as condições econômicas, sociais e políticas da existência não<br />

fazem mais <strong>do</strong> que depositar-se ou imprimir-se neste sujeito definitivamente da<strong>do</strong>”. 149<br />

O vínculo existente entre o conteú<strong>do</strong> das formações não-discursivas e o<br />

conteú<strong>do</strong> das formações discursivas, segun<strong>do</strong> o autor, é mais complexo: os conceitos<br />

científicos não exprimem as condições econômicas e sociais em que surgiram, contu<strong>do</strong><br />

são essas condições que fazem “emergir um certo número de objetos que poderão<br />

tornar-se objetos de ciência”. 150 E, ainda, são as regras pré-discursivas que<br />

determinam não só o objeto possível, mas a posição <strong>do</strong> sujeito em relação aos objetos<br />

e a modalidade de formação <strong>do</strong>s conceitos.<br />

O saber, nessa perspectiva, nasce das práticas sociais “que podem chegar a<br />

engendrar <strong>do</strong>mínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos<br />

148<br />

FOUCAULT, Michel. O homem e o discurso, p. 23.<br />

149<br />

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Macha<strong>do</strong> e Eduar<strong>do</strong><br />

Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999, p. 8.<br />

150<br />

FOUCAULT, Michel. O homem e o discurso, p. 24.<br />

71


conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de<br />

sujeitos e de sujeitos de conhecimento”. 151<br />

Outrossim, se a mulher, como também ocorreu com a criança, torna-se objeto<br />

proeminente da medicina Anátomo-patológica, da Filosofia e da Psicopatologia, campos<br />

em que se elaboram certos conceitos morais, e outros com pretensões científicas em<br />

relação a essas duas categorias, é porque as práticas sociais, as regras das práticas<br />

extradiscursivas tornam possível esse objeto e os conceitos que em relação a ele se<br />

formam.<br />

Cabe observar ainda o lugar especial ocupa<strong>do</strong> pelo intelectual na produção <strong>do</strong><br />

conhecimento, ou na definição de verdades. Suas implicações não são só profissionais<br />

e setoriais, mas também falam de sua posição de classe, de suas condições de vida e<br />

de trabalho, bem como da política de verdades da sociedade em que se insere.<br />

Trata-se, portanto, de um sujeito “autor”, concebi<strong>do</strong> a partir de sua dimensão<br />

histórica e cultural. Esse deve ser percebi<strong>do</strong> como um sujeito transindividual. Isso não<br />

faz das estruturas realidades autônomas, ou de um sujeito de conhecimento substituí<strong>do</strong><br />

pelas estruturas (lingüísticas, mentais, sociais, etc.), ocupan<strong>do</strong> no seu inte<strong>rio</strong>r apenas<br />

151 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, p. 8.<br />

72


um papel, ou uma função, pois as estruturas aparecem como “uma propriedade<br />

universal de toda a ‘práxis’ e de toda realidade humana”. 152<br />

Se não há fatos humanos que não sejam estrutura<strong>do</strong>s, também não há, por sua<br />

vez, estrutura que não seja significativa, “isto é, que enquanto qualidade <strong>do</strong> psiquismo e<br />

<strong>do</strong> comportamento de um sujeito não preencha uma função”. 153<br />

Com essas considerações, tenta-se situar com mais clareza os pressupostos<br />

teóricos que orientam este estu<strong>do</strong>, não olvidan<strong>do</strong> que os discursos conferin<strong>do</strong> à mulher<br />

um lugar no espaço social e familiar na sociedade burguesa oitocentista chegaram aos<br />

sujeitos como parte <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> outro: da educação formal, <strong>do</strong> senso comum, das<br />

expectativas parentais e da produção científica da época, de onde emerge um certo<br />

saber <strong>do</strong> homem, <strong>do</strong> indivíduo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, da<br />

individualidade, da feminilidade e da masculinidade. Saber que, segun<strong>do</strong> Michel<br />

Foucault, nasceu das práticas sociais.<br />

Esse campo, contu<strong>do</strong>, não se apresenta de forma unívoca. A modernidade se<br />

caracteriza pela diversidade de padrões discursivos, outros discursos e outras<br />

expectativas vão de encontro aos ideais de feminilidade. “Assim, aos ideais de<br />

submissão feminina contrapunham-se os ideais de autonomia de to<strong>do</strong> sujeito moderno;<br />

aos ideais de <strong>do</strong>mesticidade contrapunham-se os de liberdade; à idéia de uma vida<br />

predestinada ao casamento e à maternidade contrapunha-se a idéia, também moderna,<br />

152 FOUCUALT, Michel. O que é um autor. Lisboa: Veja, 2001, p. 75.<br />

153 Idem, ibidem.<br />

73


de que cada sujeito deve escrever seu próp<strong>rio</strong> destino, de acor<strong>do</strong> com sua própria<br />

vontade”. 154<br />

Âmago de contradições, porém possibilidade de modificação para a mulher de<br />

suas práticas falantes; é o inscrever-se de mo<strong>do</strong> diferente no discurso <strong>do</strong> outro, de<br />

inventar um outro senti<strong>do</strong> para a sua existência, ou antão, de abrir novas estruturas<br />

narrativas, possibilitan<strong>do</strong>-lhe um lugar ativo na estrutura viva da língua, o que Saussure,<br />

em sua Teoria Lingüística, considera “fala”.<br />

Era fazer o que a psicanálise lacaniana convencionou chamar um “furo” na<br />

língua, enquanto sujeito <strong>do</strong> desejo, em busca de um significante que o realize. Ou, no<br />

entendimento foucaultiano de discurso, era a possibilidade de inscrever algum<br />

significante novo na rede de discursos, na mecânica <strong>do</strong> poder.<br />

Na seqüência deste estu<strong>do</strong>, estar-se-á apresentan<strong>do</strong> o discurso filosófico sobre a<br />

diferença <strong>do</strong>s sexos e o discurso jurídico que cria estratégias de gênero, consideran<strong>do</strong><br />

o campo histórico, cultural, político e econômico em que esses se configuram.<br />

Recuperar o discurso da tradição permite desmascarar a naturalidade de certos<br />

conceitos, valores e instituições que orientam a prática jurídica, armadilha que se<br />

oferece à própria mulher.<br />

154 KEHL. Op. cit., p. 53.<br />

74


É no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> sistema penal que a tradição de um direito patriarcal, embora<br />

revestida de novos artifícios, encontra espaço para se perpetuar, pois das práticas<br />

jurídicas emergem formas de subjetividade, formas de saber e formas de verdade que<br />

produzem discurso e gênero, ou seja, o espaço público também produz subjetividades.<br />

Mais <strong>do</strong> que em qualquer outra seara jurídica, é no campo penal que valem as<br />

considerações de Richard Sennett. 155 Segun<strong>do</strong> o autor, quan<strong>do</strong> se analisa as<br />

transformações sociais, é preciso ter presente que há sempre a permanência de<br />

padrões passa<strong>do</strong>s. Ou então, as referências simbólicas de cada perío<strong>do</strong> histórico são<br />

formadas a partir <strong>do</strong>s traços de uma cultura tradicional e das características de uma<br />

cultura ainda em formação. E, ainda, sustenta o autor, as marcas da cultura em<br />

decadência apresentam-se como uma referência simbólica mais significativa <strong>do</strong> que os<br />

traços da cultura em formação.<br />

Toma também senti<strong>do</strong> aqui o entendimento de Hannah Arendt, segun<strong>do</strong> a qual<br />

“o fim de uma tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais<br />

tenham perdi<strong>do</strong> seu poder sobre a mente <strong>do</strong>s homens”. 156 Pelo contrá<strong>rio</strong>, assinala a<br />

autora, “às vezes, parece que esse poder das noções e categorias cediças e puídas<br />

torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se distancia da<br />

memória de seu início”. 157 No entender da filósofa, a tradição pode mesmo revelar toda<br />

155 SENNETT, Op. cit.<br />

156 ARENDT, Hannah. Entre o passa<strong>do</strong> e o futuro. Trad. Ma<strong>rio</strong> Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1976,<br />

p. 53.<br />

157 Idem, ibidem.<br />

75


a sua força coercitiva somente depois de ter vivi<strong>do</strong> o seu fim, quan<strong>do</strong> os homens nem<br />

mesmo se revelam contra ela.<br />

Os conceitos de Richard Sennett e Hannah Arendt se aplica<strong>do</strong>s à sociedade <strong>do</strong><br />

século XXI possibilitam ver além <strong>do</strong> que pode ser apreendi<strong>do</strong> empiricamente. Levam a<br />

perceber como certos conceitos, pela sua dimensão simbólica, são incorpora<strong>do</strong>s com<br />

naturalidade à vida cotidiana <strong>do</strong>s indivíduos. E quan<strong>do</strong> toma<strong>do</strong>s como objeto de análise<br />

a práxis e o discurso <strong>do</strong> sistema penal, na sua relação com a mulher, o poder das<br />

“categorias cediças”, referidas por Hannah Arendt, “fundam uma matriz discursiva em<br />

<strong>grande</strong> medida imutável, linear, funcional, conserva<strong>do</strong>ra, que serve de sustentáculo e<br />

de horizonte ao conjunto de crenças e representações que tem o poder judiciá<strong>rio</strong> <strong>do</strong><br />

papel da mulher no mun<strong>do</strong>”. 158<br />

Na seqüência deste estu<strong>do</strong>, antes de apresentar os saberes filosóficos e<br />

científicos acerca das diferenças anatômicas que fundam espaços e funções, sobre o<br />

discurso jurídico como uma estratégia cria<strong>do</strong>ra de gênero, mostrar-se-á um pouco <strong>do</strong><br />

lugar ativo das mulheres na história <strong>do</strong> século XIX, mulheres que se insurgem contra o<br />

determinismo de sua condição natural.<br />

158 SILVA, Iara Ilgenfritz da. Direito ou punição? A sexualidade feminina no direito penal. Porto Alegre:<br />

Movimento, 1985, p. 35.<br />

76


2.2 Representações 159 da Mulher na História: Contradições<br />

Logo que a criança nasce, ou até mesmo desde a sua concepção, lhe é dada a<br />

marca da diferenciação sexual, como parte de sua inscrição no discurso da cultura, o<br />

qual se apresenta como um discurso de autoridade, ou um discurso que toma a<br />

posição de verdade. A definição de ser menino ou menina, homem ou mulher, indica<br />

muito mais <strong>do</strong> que uma diferença anatômica ou biológica: a pertinência a um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />

grupos identitá<strong>rio</strong>s vem carregada de significações que dizem das expectativas<br />

parentais, da cultura, das relações de poder e da sua inserção no processo produtivo.<br />

Falar de gênero, conforme já aludi<strong>do</strong>, é falar a partir de um mo<strong>do</strong> particular de<br />

ser no mun<strong>do</strong>: funda<strong>do</strong>, de um la<strong>do</strong>, no caráter biológico de cada ser, e, de outro, no<br />

fato da cultura, da história, da sociedade, da ideologia, da religião desse caráter<br />

biológico. 160 É assim que cada fase da civilização humana constrói suas relações de<br />

gênero.<br />

Durante quase um milhão e meio de anos 161 , a humanidade viveu relações de<br />

harmonia com a natureza. Eram organizações sociais caracterizadas pela produção<br />

159 A representação é um fenômeno social psicossocial fundamentalmente condicionada às circunstâncias globais<br />

onde ela se dá. Ela inclui uma rede de relações que o indivíduo e os grupos estabelecem entre significa<strong>do</strong>s e<br />

situações que lhes interessam para a sua sobrevivência ou sua hegemonia e/ou reprodução da situação. A<br />

representação surge <strong>do</strong> real, porém inclui a postura, os interesses, a situação social e/ou de classe, a perspectiva<br />

histórica de quem a constrói, retocan<strong>do</strong>, modifican<strong>do</strong>. A representação faz com que o mun<strong>do</strong> seja o que se pensa que<br />

seja ou deva ser. In: REDIN, Euclides. Se der tempo a gente brinca. Cadernos Educação Infantil. Porto Alegre:<br />

Mediação, 2000.<br />

160 MURARO, Rose Marie; BOFF, Leonar<strong>do</strong>. Feminino e masculino. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.<br />

161 Segun<strong>do</strong> a pesquisa<strong>do</strong>ra alemã Heide Göttner-Abendroth, Das Matriarchat I e II , a cultura matriarcal teve seu<br />

início cerca de 10.000 a. C. Nessas sociedades, as mulheres, associadas às <strong>grande</strong>s deusas, eram responsáveis pela<br />

77


agrícola, pelo cultivo de plantas e pela <strong>do</strong>mesticação de animais. Nesse tempo histórico<br />

as relações entre homens e mulheres eram de cooperação, sen<strong>do</strong> a mulher<br />

considerada mais próxima <strong>do</strong>s deuses pelo fato de depender dela a reprodução da<br />

espécie. O mun<strong>do</strong> era governa<strong>do</strong> pelos princípios masculino e feminino.<br />

O matriarca<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Rosalind Miles, “fica mais bem compreendi<strong>do</strong> como<br />

forma de organização social centrada na mulher, substancialmente igualitária, onde não<br />

se julga antinatural ou anômalo a mulher ter poder ou engajar-se em todas as<br />

atividades da sociedade ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s homens”. 162<br />

Foi com as sociedades de caça que se instauram as relações de violência: “os<br />

mais fortes começam a <strong>do</strong>minar e a ter privilégios e o masculino passa a ser o gênero<br />

pre<strong>do</strong>minante”. 163 A relação homem/mulher é atravessada pela <strong>do</strong>minação e pela<br />

violência, sen<strong>do</strong> esta também a base das relações entre os grupos e entre a espécie e<br />

a natureza. As razões dessas transformações ainda não são de inteiro <strong>do</strong>mínio da<br />

organização social, median<strong>do</strong> e solucionan<strong>do</strong> os conflitos, caben<strong>do</strong>-lhes uma espécie de hegemonia política.<br />

Destacam-se essas culturas pela cooperação e sua vivência harmônica com a natureza, dentro de um pressuposto de<br />

interdependência <strong>do</strong> ecosistema com a vida humana. Segun<strong>do</strong> alguns historia<strong>do</strong>res, a própria linguagem estaria<br />

associada ao trabalho civiliza<strong>do</strong>r das mulheres. Já o fim <strong>do</strong> matriarca<strong>do</strong> é situa<strong>do</strong> por volta de 2000 a C.,<br />

apresentan<strong>do</strong> variações nas datas conforme o espaço. In: MURARO; BOFF. Op. cit., p. 53-54.<br />

Pesquisas recentes têm contesta<strong>do</strong> a tese <strong>do</strong> matriarca<strong>do</strong> ou a possível existência de sociedades igualitárias dirigidas<br />

por mulheres. Referência nesse senti<strong>do</strong> é a antropóloga americana Cynthia Eller, que causou polêmica ao lançar, em<br />

2000, a obra O Mito da Deusa, na qual disseca a crença num matriarca<strong>do</strong> pré-histórico, sugerida no século XIX por<br />

importantes antropólogos e arqueólogos, quan<strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>res da chamada Era <strong>do</strong> Gelo desencavaram <strong>grande</strong>s<br />

quantidades de estátuas revelan<strong>do</strong> poderosas figuras femininas conhecidas como Vênus, as quais foram identificadas<br />

como representações de deuses, surgin<strong>do</strong>, então, a tese de um matriarca<strong>do</strong> ancestral, sociedades pacíficas, igualitárias<br />

e criativas que teriam ocupa<strong>do</strong> principalmente o territó<strong>rio</strong> europeu e asiático desde o ano 35.000 a. C., e terem si<strong>do</strong><br />

progressivamente extintas a partir de 4000 a. C., quan<strong>do</strong> invasores vin<strong>do</strong>s das estepes teriam toma<strong>do</strong> o continente e<br />

introduzin<strong>do</strong> o machismo, a cultura da guerra e a sociedade patriarcal. Para Cynthia Eller, trata-se de um mito<br />

moderno explican<strong>do</strong> a origem <strong>do</strong> sexismo. In: NOGUEIRA, Pablo. Matriarca<strong>do</strong>, história ou mito. Galileu, Rio de<br />

Janeiro, abr. 2005, p. 70-75.<br />

162 MILES, Rosalind. A história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela mulher. Rio de Janeiro: Casa-Maria Editorial, 1988, p. 50.<br />

163 MURARO; BOFF. Op. cit., p. 11.<br />

78


ciência, porém é certo que estão inscritas num processo mais amplo de relações de<br />

apropriação e poder, de <strong>do</strong>minação da própria natureza, associada à mulher, pela sua<br />

proximidade com os processos naturais, como a perpetuação das espécies.<br />

Valen<strong>do</strong>-se das reflexões de Elizabeth Schüsser-Fiorenza, em sua obra Pero Ella<br />

Dijo, Rose Marie Muraro e Leonar<strong>do</strong> Boff observam que o patriarca<strong>do</strong> não pode ser<br />

entendi<strong>do</strong> apenas como <strong>do</strong>minação binária macho-fêmea. Trata-se, segun<strong>do</strong> estes<br />

autores, “de uma complexa estrutura política piramidal de <strong>do</strong>minação e hierarquização,<br />

estrutura estratificada por gênero, raça, classe, religião e outras formas de <strong>do</strong>minação<br />

de uma parte sobre a outra”. 164<br />

É preciso ter presente, portanto, que essa <strong>do</strong>minação se configura dentro de um<br />

quadro plurifaceta<strong>do</strong> e assume diferentes configurações na história da civilização e que<br />

o patriarca<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> o modelo que ainda hoje subsiste na tradição, insere-se num<br />

movimento dialético articula<strong>do</strong> a diversas esferas de poder.<br />

Essa mecânica compreende o Esta<strong>do</strong> moderno, uma das maiores construções<br />

sociais da humanidade, organiza<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> a lógica masculina; a religião, com sua<br />

<strong>do</strong>utrina fundada na aliança legítima (casamento religioso), referendan<strong>do</strong> um padrão de<br />

feminilidade inspira<strong>do</strong> na virgem santíssima, na rainha <strong>do</strong> lar 165 ; o exército, símbolo da<br />

164<br />

Um enfoque mais amplo sobre esse tema é encontra<strong>do</strong> na obra Pero Ella Dijo, de Elizabeth Schüsser-Fiorenza.<br />

In: MURARO; BOFF. Op. cit., p. 55.<br />

165<br />

Apesar da ruptura entre a Igreja e o Esta<strong>do</strong> (no Renascimento), o catolicismo continuou a influenciar a estrutura<br />

famíliar durante o século XIX, codifican<strong>do</strong> a sexualidade e punin<strong>do</strong> transgressões. Em seu discurso condenava “a<br />

sexualidade autônoma, rebelde, fora <strong>do</strong> casamento, que se recusasse a obedecer ao princípio da procriação; a<br />

sexualidade fora <strong>do</strong> casamento, que pretendia gozar da liberdade sem responsabilidade; a sexualidade que, embora<br />

79


diferença <strong>do</strong>s sexos; os sistemas de educação, reprodutores e legitima<strong>do</strong>res <strong>do</strong> modelo<br />

patriarcal e, ainda, um conjunto de discursos sobre a sexualidade que, entrelaça<strong>do</strong> com<br />

outros <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> conhecimento e com outros poderes, configura técnicas de controle,<br />

de disciplinamento, de <strong>do</strong>minação e normatização da vida <strong>do</strong>s indivíduos.<br />

Ter presente esse campo cultural, político e social é instrumento de<br />

compreensão para a discussão que será erigida no capítulo 3, quan<strong>do</strong> se estará<br />

apresentan<strong>do</strong> a relação da mulher com o Direito Penal, percebi<strong>do</strong> enquanto instituição<br />

de controle social formal. Qual é o bem jurídico protegi<strong>do</strong> pelo Direito Penal? Que tipo<br />

de mulher merece a proteção da lei, uma vez que a sua qualificação gera as categorias:<br />

solteira, virgem ou não, maior ou menor de idade, honesta, prostituta, mulher pública,<br />

emancipada, etc. Que identidade social o Direito Penal prescreve à mulher? Como está<br />

inscrita no direito Penal a sexualidade feminina?<br />

Encontrar respostas acerca da posição feminina no sistema penal<br />

contemporâneo, lugar que os movimentos feministas, muitas vezes, reafirmam através<br />

de suas demandas no âmbito penal, requer, por um la<strong>do</strong>, considerar as proibições que<br />

eram impostas à mulher com o advento da modernidade, porém por outro, exige um<br />

legal, fosse excessiva, ou seja, o prazer gratuito sem reprodução ou excesso de devoção amorosa ao cônjuge.<br />

Considerava essa última como forma de usurpar o amor destina<strong>do</strong> a Deus e entregue à ‘i<strong>do</strong>latria <strong>do</strong> corpo’ ”. O<br />

discurso filosófico cristão, que exercia forte influência sobre a família e os valores decorrentes, encontra uma de suas<br />

maiores expressões nos escritos de Santo Tomás de Aquino que, na mesma perspectiva <strong>do</strong> discurso filosófico em<br />

geral, defende a natural supe<strong>rio</strong>ridade masculina pelo fato de o homem desfrutar <strong>do</strong> discernimento da razão. A<br />

regulação da sexualidade, as “regras” e “recomendações” ao sexo <strong>do</strong>s cônjuges, tema amplamente aborda<strong>do</strong> por<br />

Michel Foucault em seu primeiro volume de A História da Sexualidade, além de creditadas aos costumes, estavam<br />

prescritas na pastoral cristã e no Código de Napoleão que fortemente influenciou o Direito brasileiro. Com a<br />

evolução <strong>do</strong> capitalismo surge um saber sobre o sexo articula<strong>do</strong> com o poder, com os mo<strong>do</strong>s de produção. Uma<br />

prática discursiva de incitação ao sexo, uma repressão, não no senti<strong>do</strong> negativo, mas que produz comportamentos,<br />

gestos, prazeres e discursos. In: SILVA, Iara Ilgenfritz da. Direito ou punição? Representação da sexualidade<br />

feminina no Direito Penal. Porto Alegre: Movimento, 1985, p. 22-24.<br />

80


olhar sobre a força das resistências e a maneira de contorná-las ou de subvertê-las.<br />

Como assinala Michelle Perrot, “as frentes de lutas das mulheres, suas tentativas de<br />

atravessar os limiares muitas vezes provocam a violenta reação <strong>do</strong>s homens”. 166<br />

2.2.1 O Poder das Mulheres no Século XIX<br />

A natureza e a extensão <strong>do</strong> poder das mulheres na civilização Ocidental tem<br />

dividi<strong>do</strong> antropólogos e historia<strong>do</strong>res nas últimas décadas: se, por um la<strong>do</strong>, a mulher<br />

aparece como sexo frágil, num discurso que a toma <strong>do</strong> lugar da opressão e da<br />

submissão ao poder masculino, como uma simples <strong>do</strong>na de casa, insignificante,<br />

humilhada, oprimida, por outro, observa Michele Perrot 167 , as pesquisas feministas,<br />

“em sua vontade de superar o discurso miserabilista da opressão, de subverter o ponto<br />

de vista da <strong>do</strong>minação”, procuram mostrar “a presença, a ação das mulheres, a<br />

plenitude <strong>do</strong>s seus papéis, e mesmo a coerência de sua ‘cultura’ e a existência <strong>do</strong>s<br />

seus poderes” 168 , numa tentativa de inverter as perspectivas histo<strong>rio</strong>gráficas<br />

tradicionais, proceden<strong>do</strong> à inversão e subversão <strong>do</strong>s pólos. Ambos os enfoques se<br />

mostram perigosos, alerta a autora.<br />

Uma das dificuldades que se apresenta para uma investigação sobre o real<br />

poder das mulheres na família, na sociedade, na economia e na política, reside no<br />

166 PERROT, Michelle. Mulheres públicas. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1998, p. 91.<br />

167 PERROT, Michelle. Os excluí<strong>do</strong>s da história. Operá<strong>rio</strong>s, mulheres e prisioneiros. Trad. Denise Bottmann. Rio de<br />

Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 169.<br />

168 Idem, p. 170.<br />

81


aspecto de que é masculina a natureza 169 das fontes disponíveis para contar a história<br />

das mulheres. Ou seja, uma análise <strong>do</strong> discurso 170 sobre as mulheres dá indicações da<br />

representação <strong>do</strong> feminino na História. Não se pode esquecer, contu<strong>do</strong>, que esta<br />

representação provêm <strong>do</strong> olhar masculino.<br />

Por conseguinte, muito <strong>do</strong> que se diz ser a história social das mulheres, é<br />

apenas parte dela, ou então, trata-se mais da história da representação cultural das<br />

mulheres, da qual escapam aspectos relevantes das práticas sociais, <strong>do</strong>s discursos<br />

alternativos e periféricos, enfim detalhes sobre o lugar ocupa<strong>do</strong> pela mulher, <strong>do</strong> seu<br />

papel de sujeito ativo na história da civilização. “O ‘ofício <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r’ é um ofício de<br />

homens que escrevem a história masculina. Os campos que abordam são os da ação e<br />

<strong>do</strong> poder masculinos, mesmo quan<strong>do</strong> anexam novos territó<strong>rio</strong>s”. 171<br />

Para Claude Mossé 172 , é esse olhar masculino que as pesquisas<br />

contemporâneas começam a desconstruir. É preciso observar, entretanto, que não se<br />

trata de fazer uma investigação histórica separan<strong>do</strong> discurso e práticas sociais, pois,<br />

169 Os materiais utiliza<strong>do</strong>s pelos historia<strong>do</strong>res (arquivos diplomáticos ou administrativos, <strong>do</strong>cumentos parlamentares,<br />

biografias, publicações periódicas) são produtos de homens que têm o monopólio <strong>do</strong> texto e da coisa pública. A<br />

história das mulheres, mais ainda quan<strong>do</strong> se trata das mulheres das classes populares, é feita a partir de arquivos<br />

provenientes <strong>do</strong> olhar <strong>do</strong>s senhores (prefeitos, magistra<strong>do</strong>s, policiais, padres). Observa-se também que o texto<br />

feminino, ou outras formas de representar a mulher (desenhos, pinturas, fotografia, etc.) começam a aparecer a partir<br />

<strong>do</strong> século XIX, oportunizan<strong>do</strong> à mulher representar-se a partir de uma perspectiva, diga-se própria (sabe-se que o<br />

ideal de feminilidade representa<strong>do</strong> pela própria mulher, consideran<strong>do</strong> os efeitos próp<strong>rio</strong>s <strong>do</strong> inconsciente, estava<br />

intimamente liga<strong>do</strong> à projeção masculina) ainda que ela teria dificuldade de fazer-se ouvir e ver. Em se tratan<strong>do</strong><br />

mais especificamente das produções escritas, mesmo com aparecimento da literatura feminina, o texto feminino<br />

continua sen<strong>do</strong> estritamente específico: livros de cozinha, manuais de pedagogia, contos recreativos ou morais.<br />

170 Toma-se o discurso aqui no seu senti<strong>do</strong> mais amplo, compreenden<strong>do</strong> desde a produção de saberes como toda a<br />

representação <strong>do</strong> lugar social da mulher presente na arte, na pintura, na literatura e na música.<br />

171 PERROT, Michelle. Os excluí<strong>do</strong>s da história, p. 185.<br />

172 In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Orgs). As mulheres e a história. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:<br />

Dom Quixote, 1995, p. 17.<br />

82


como já aludi<strong>do</strong>, discurso e prática guardam uma profunda relação, é essa articulação<br />

que não pode ser ignorada.<br />

Outra questão a ser considerada é que as representações <strong>do</strong> poder das<br />

mulheres, além de numerosas, assumem um caráter ambíguo desde a Antiguidade.<br />

“Elas modulam a aula inaugural <strong>do</strong> Gênesis, que apresenta a potência sedutora da<br />

eterna Eva”. 173 A mulher, “origem <strong>do</strong> mal e da infelicidade, potência noturna, força das<br />

sombras, rainha da noite, oposta ao homem diurno da ordem e da razão lúcida” 174 , está<br />

na mitologia, na literatura, no teatro, nos arquétipos visuais, é um tema romântico das<br />

óperas de Amadeus Mozart e Richard Wagner.<br />

Na sociedade francesa <strong>do</strong> século XIX, assinala Michele Perrot, “pre<strong>do</strong>minam as<br />

imagens de um poder conjuntivo, circulan<strong>do</strong> no teci<strong>do</strong> social, oculto, escondi<strong>do</strong>, secreto<br />

mecanismo das coisas”. 175 Não são raros os textos literá<strong>rio</strong>s, filosóficos ou científicos<br />

que retratam essa força <strong>do</strong> mal, alertan<strong>do</strong> sobre o perigo <strong>do</strong> “poder que se oculta por<br />

detrás <strong>do</strong> trono [...]” 176 , sobre as temidas decisões políticas tomadas “sobre o<br />

travesseiro”. Para criminologistas como Cesar Lombroso, a mulher é a verdadeira<br />

instiga<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> crime, observa a autora.<br />

Assim como a mulher é representada como uma certa potência <strong>do</strong> mal, o século<br />

XIX restaura o mito da mulher redentora, da figura obcecante da Mãe sobrepon<strong>do</strong>-se<br />

173 PERROT, Michelle. Os excluí<strong>do</strong>s da história, p. 168.<br />

174 Idem, ibidem.<br />

175 Idem, ibidem.<br />

176 Idem, p. 169.<br />

83


sobre todas as outras. As mães possuem “os destinos <strong>do</strong> gênero humano”, escreve<br />

Luis-Aimé em sua obra Da Educação das Mães de Família. 177<br />

A iconografia da época reproduz essa imagem reconfortante da mulher terna,<br />

mãe, sonha<strong>do</strong>ra, sentada à janela. As imagens traduzem o universo da repetição, <strong>do</strong><br />

íntimo, <strong>do</strong> limita<strong>do</strong>. Transposto o territó<strong>rio</strong> romântico, a mulher é excluída <strong>do</strong> relato.<br />

Pode-se até mesmo afirmar que a mulher improdutiva é ignorada pela história da<br />

economia, da política, da história <strong>do</strong> saber, em que ela parece como mera coadjuvante.<br />

Para Michelle Perrot, “as relações das mulheres com o poder 178 inscrevem-se<br />

primeiramente num jogo de palavras. Se elas não têm o poder, as mulheres têm, diz-se,<br />

poderes”. 179 No Ocidente moderno, as mulheres não só reinam no imaginá<strong>rio</strong> <strong>do</strong>s<br />

homens, a força com que tomam espaço em todas as formas de representação ilustra<br />

este fato, elas também investem no priva<strong>do</strong>, no social e na vida civil.<br />

Nessa perspectiva, antes de apresentar-se o discurso masculino sobre as<br />

mulheres, o qual traduz as imposições às mulheres na modernidade, trazem-se neste<br />

espaço, alguns aspectos acerca das possibilidades <strong>do</strong> lugar social da mulher na Europa<br />

ocidental burguesa.<br />

177 Cita<strong>do</strong> por Michele Perrot em Os excluí<strong>do</strong>s da história, p. 169.<br />

178 A autora toma o termo no seu senti<strong>do</strong> polissêmico, ou seja, como fragmentos múltiplos; equivalente a influências<br />

difusas e periféricas, onde, segun<strong>do</strong> ela, as mulheres têm sua <strong>grande</strong> parcela. Observa-se, neste senti<strong>do</strong>, que o<br />

conceito da autora, mesmo apresentan<strong>do</strong> uma diferença entre poder (no singular) de conotação política, designan<strong>do</strong> a<br />

figura central <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, comumente masculina; está na mesma linha em que o termo foi toma<strong>do</strong> no primeiro<br />

capítulo deste estu<strong>do</strong>, em que se optou conceituá-lo a partir da perspectiva que lhe é atribuída por Michel Foucault.<br />

In: PERROT, Michelle. Os excluí<strong>do</strong>s da história, p. 167.<br />

179 Idem, ibidem.<br />

84


O século XIX foi marca<strong>do</strong> por novas demandas em relação à mulher. Se<br />

reafirma-se o seu lugar aparentemente complementar à posição masculina, os ideais de<br />

liberdade <strong>do</strong> indivíduo e autonomia <strong>do</strong> sujeito, gesta<strong>do</strong>s na esteira <strong>do</strong> pensamento<br />

Iluminismo, também acenam para o deslocamento da tradicional posição feminina na<br />

ordem social e familiar.<br />

Esse deslocamento foi deflagra<strong>do</strong> pela Revolução Francesa. Segun<strong>do</strong> Elisabeth<br />

Sledziewski 180 , o movimento deve ser considera<strong>do</strong> como momento decisivo na história<br />

das mulheres. “A Revolução foi o único regime que ousou, por uma decisão política, pôr<br />

em causa a hierarquia <strong>do</strong>s sexos” 181 , ainda que assim apenas o fizesse como<br />

“estratagema” para desorganizar o corpo social.<br />

Não que antes nunca tivesse havi<strong>do</strong> uma preocupação com relação aos sexos: o<br />

Cristianismo nascente, a Reforma e o racionalismo de Esta<strong>do</strong> são exemplos. A<br />

diferença em relação à Revolução Francesa está no fato de que essa põe na ordem <strong>do</strong><br />

dia, ainda que se recusasse a enfrentá-las depois, questões inéditas até então, como a<br />

<strong>do</strong> lugar das mulheres na cidade e não apenas na ordem <strong>do</strong>méstica.<br />

Consoante Maria Rita Kehl, “a participação das mulheres na Revolução Francesa<br />

tem sua origem nos ideais de emancipação feminina <strong>do</strong> Antigo Regime, fomenta<strong>do</strong>s<br />

indiretamente pelas idéias filosóficas <strong>do</strong> Iluminismo <strong>–</strong> cuja valorização da autonomia <strong>do</strong><br />

180 SLEDZIEWSKI, Elisabeth G. A revolução francesa. A viragem. In: DUBY; PERROT. História das mulheres no<br />

ocidente. v. 4: o século XIX. Trad. Cláudio Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto: Edições Afrontamento, 1991, p.41.<br />

181 Idem, p.44.<br />

85


sujeito, liberto <strong>do</strong>s grilhões da religião, atingira também as mulheres [...]”. 182 No<br />

entender da autora, o repúdio à submissão, ao casamento, à prisão da maternidade era<br />

comum também na Inglaterra e na Alemanha, onde as mulheres tentavam cultivar o<br />

intelecto e conquistar espaço na vida pública.<br />

Referin<strong>do</strong>-se à participação das mulheres na Revolução Francesa, Rosalind<br />

Miles 183 afirma que o movimento nunca teria alcança<strong>do</strong> tamanha força revolucionária<br />

sem a presença das mulheres que saíram às ruas feito “monstros fu<strong>rio</strong>sos”,<br />

independentemente de sua classe social, a exemplo <strong>do</strong> que já havia ocorri<strong>do</strong> na Guerra<br />

Civil Inglesa, no século ante<strong>rio</strong>r, e na Revolução Americana. As guerras, européias e<br />

americanas, simbolizaram novas oportunidades às mulheres.<br />

As revolucionárias francesas não estavam apenas servin<strong>do</strong> a uma causa <strong>do</strong>s<br />

homens: eram as idéias <strong>do</strong> feminismo que começavam a lançar raízes e a florescer.<br />

Revolucionárias, sanguinárias, enfurecidas, ou com sarcásticas reflexões,<br />

denunciavam suas precárias condições de trabalho nas fábricas, seus baixos salá<strong>rio</strong>s, a<br />

falta de perspectivas de emprego, sua submissão ao lar. Os manifestos atribuíam as<br />

causas dessa situação à falta de uma educação adequada.<br />

A pouca escolaridade das mulheres era pretexto para que os homens lhes<br />

negassem os direitos políticos, e a falta de direitos políticos tornava impossível à mulher<br />

182 KEHL. Op. cit., p. 63.<br />

183 MILES. Op. cit., p. 200.<br />

86


legislar em favor de qualquer reforma, ou para obter o direito à educação, à paridade<br />

salarial ou à igualdade diante da lei.<br />

Para Michelle Perrot, a exclusão da mulher <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> público é, em princípio,<br />

uma exclusão da palavra pública, caracterizada pela retórica masculina: voz forte,<br />

gestos declarató<strong>rio</strong>s, toda uma dramaturgia recusada às mulheres, às quais, ainda no<br />

século XIX, proibia-se a tribuna, quer se trate de cátedra, de pretó<strong>rio</strong>, de Parlamento ou<br />

de parti<strong>do</strong>s. 184<br />

Ainda assim a existência cultural das mulheres se fazia presente no espaço<br />

público da França revolucionária. Mesmo mudas, as mulheres percorriam as<br />

assembléias, ávidas pelos debates públicos, e constituíam auditó<strong>rio</strong>s atentos nas<br />

Igrejas.<br />

Entenden<strong>do</strong>-se por esfera pública mais <strong>do</strong> que o espaço material, toman<strong>do</strong>-a<br />

também a partir da palavra e sua circulação, as mulheres nela se inseriram, ganhan<strong>do</strong><br />

influência nas redes de poder durante muito tempo <strong>do</strong>minadas pelos homens, antes<br />

mesmo de lhes ser autoriza<strong>do</strong> subir à tribuna ou de terem algum direito reconheci<strong>do</strong> em<br />

lei.<br />

A palavra das mulheres, ou a opinião feminina, afirma Michelle Perrot, revelava-<br />

se cada vez mais decisiva na constituição e no funcionamento da democracia. Um <strong>do</strong>s<br />

184 PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: UNESP, 1998.<br />

87


seus lugares de maior circulação foram os salões mundanos que, a partir <strong>do</strong> século<br />

XVIII, ganham uma forte conotação política. Ainda que não fossem filósofas ou<br />

escritoras, atributos reserva<strong>do</strong>s exclusivamente aos homens, as mulheres, como <strong>do</strong>nas<br />

de casa informadas, ouvintes atentas e cu<strong>rio</strong>sas, discutiam tu<strong>do</strong>. Pela conversação,<br />

escreve a autora, “circula a informação e se elabora a crítica da monarquia”. 185<br />

Entre as conquistas da Revolução Francesa está o sufrágio universal para os<br />

homens, anuncia<strong>do</strong> em 1793. O movimento das Mulheres Republicanas<br />

Revolucionárias elaborou petição reivindican<strong>do</strong> o direito de voto à mulher. Além de não<br />

terem atendidas as suas reivindicações, foram expulsas da vida política da França e<br />

mandadas de volta ao lar. As pioneiras <strong>do</strong> feminismo que insistissem com suas idéias<br />

emancipatórias subiam ao cadafalso, esse foi o único direito de igualdade conquista<strong>do</strong><br />

pelas primeiras feministas que, na sua <strong>grande</strong> maioria, morreram na guilhotina.<br />

Os efeitos simbólicos da Revolução, entretanto, haviam defini<strong>do</strong> um novo espaço<br />

para o indivíduo e seus direitos, mesmo em se tratan<strong>do</strong> das mulheres. A antiga ordem<br />

social, familiar e política se redefiniram. No entender de Maria Rita Kehl, “a insistência<br />

com que pensa<strong>do</strong>res e cientistas afirmavam que o único lugar digno para a mulher é o<br />

lar e a sua tarefa mais valiosa é aquela para a qual sua natureza a preparou <strong>–</strong> a<br />

maternidade <strong>–</strong> pode ser vista como uma reação a um início de desordem social” 186 , que<br />

segun<strong>do</strong> a autora, começa a se esboçar no século XVII e se torna alarmante no final<br />

185 PERROT, Michelle. Mulheres públicas, p. 60.<br />

186 KEHL. Op. cit., p. 60.<br />

88


<strong>do</strong> século XVIII, quan<strong>do</strong> a Revolução Francesa destrói as fronteiras que no Antigo<br />

Regime separavam a esfera pública da vida privada.<br />

E foi a politização da esfera privada, ou a violenta agressão à vida privada, fatos<br />

jamais vistos na história <strong>do</strong> Ocidente, que redefiniram o espaço da família. O mesmo<br />

fato que durante a Revolução abrira as portas às mulheres, fazen<strong>do</strong> com que saíssem<br />

às ruas, organizadas ou não, sedentas por desobediência, contribuiu para que durante<br />

o século XIX imergissem numa aparente obscuridade e no anonimato de seus lares.<br />

A história de submissão das mulheres é, ao mesmo tempo, uma história de luta,<br />

resistência e subversão. Durante o século XIX, após terem si<strong>do</strong> expulsas pelo poder<br />

revolucioná<strong>rio</strong> das tribunas, fecha<strong>do</strong>s seus clubes e proibidas de falar em política, as<br />

mulheres continuaram sua influência nas redes de poder, ainda que permanecessem<br />

estritas a tarefas subalternas.<br />

Segun<strong>do</strong> Michelle Perrot, elas se inserem em todas as formas <strong>do</strong> escrito 187 :<br />

primeiro pela correspondência, depois pela literatura e, por fim, pela imprensa. Outro<br />

187 Maria-Claire Hoock-Demarle, em seu texto Ler e escrever na Alemanha, assinala que falar da “mulher autor”, ou<br />

analisar a mulher enquanto sujeito de um discurso no século XIX, não constitui uma empresa fácil. O sujeito, em si,<br />

escapa à investigação, visto que a escrita feminina se reveste de “vergonha”, é uma competência deslocada da qual a<br />

mulher tenta se esquivar em seu próp<strong>rio</strong> discurso. Isso só mudaria com a crescente participação das mulheres no<br />

processo de alfabetização que não cessa de crescer em toda a Europa durante o século XIX. No caso da Alemanha,<br />

especialmente nas regiões <strong>do</strong> Norte, como na Prússia, esse fenômeno tivera início já no Século das Luzes. Da<strong>do</strong>s<br />

estatísticos acusam a partir de 1750 uma taxa de escolarização das raparigas de 86,5%. Ao passo que nos esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

Norte a escolarização obrigatória para as crianças de seis aos quatorze anos (o Esta<strong>do</strong> dispunha de legislação para<br />

tanto) fora introduzida em 1717; nos esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Sul, como na Baviera, foi decretada apenas em 1802. O fator<br />

religioso estava na origem dessa diferença. Nos esta<strong>do</strong>s católicos <strong>do</strong> Sul, a educação é, sobretu<strong>do</strong>, ainda no século<br />

XIII, reservada aos rapazes.Os anos passa<strong>do</strong>s no convento não ofereciam mais às “raparigas” <strong>do</strong> que a aprendizagem<br />

das orações e das ditas tarefas meninas. Se a Alemanha vivera no século XIX um verdadeiro fenômeno da leitura,<br />

também teria uma passagem para o ato de escrever. Não que não existisse até então o texto escrito por mulheres, mas<br />

89


campo de atuação das mulheres foi das congregações religiosas, em que<br />

desempenharam importante papel missioná<strong>rio</strong>, inclusive como dissemina<strong>do</strong>ras da<br />

cultura européia e da educação, ocupan<strong>do</strong>, muitas vezes, o vazio deixa<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>.<br />

Se, pela escrita, pela caridade, filantropia, educação, ou trabalho assalaria<strong>do</strong>, no<br />

papel de operárias, educa<strong>do</strong>ras, médiuns, missionárias, ainda que com idéias bastante<br />

estreitas e moralizantes, a mulher desafiava a fronteira entre o público e o priva<strong>do</strong>,<br />

embora pelo Código de Napoleão não passasse de uma menor, ou de um membro<br />

subordina<strong>do</strong> da família, sem cidadania “a legitimidade republicana afirmou-se forçan<strong>do</strong><br />

ainda mais a exclusão da mulher”. 188<br />

A resistência e os discursos antagônicos eram vistos como uma grave ameaça<br />

ou risco à segurança da família e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> o bastante para que durante o<br />

século XIX proliferassem os discursos reafirman<strong>do</strong> a natureza perigosa das mulheres, e<br />

que tentavam devolver-lhes a sua verdadeira identidade e funções.<br />

esse era estritamente de cunho moral, pedagógico e sentimental. Durante a Revolução Francesa, nasce uma literatura<br />

feminina que, mesmo estan<strong>do</strong> interdita a manifestação política ou o caráter reivindicató<strong>rio</strong>, é uma referência ao<br />

tempo presente. Os romances femininos são uma expressão pública <strong>do</strong> peso social, das realidades concretas que<br />

dizem respeito ao conjunto de mulheres. Inicia-se, assim, o acesso das mulheres ao <strong>do</strong>mínio público, embora não<br />

reconheci<strong>do</strong> socialmente e não normatiza<strong>do</strong> na legislação da época. Trata-se de uma inserção indireta nas “zonas”<br />

reconhecidamente masculinas. As mulheres se inserem na política e na história recorren<strong>do</strong> ao instrumento falsamente<br />

neutro <strong>do</strong> literá<strong>rio</strong>. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente, p. 171-197.<br />

188 PERROT, Michelle. Mulheres públicas, p. 117.<br />

90


2.3 Filosofia e Ciência: O Sistema Biná<strong>rio</strong> <strong>do</strong> Sexo<br />

Partin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s pressupostos teóricos apresenta<strong>do</strong>s no início deste capítulo em<br />

relação ao discurso, traz-se um pouco da produção discursiva, isto é, os saberes<br />

filosóficos e científicos (ou pretensamente científicos) que, alia<strong>do</strong>s a outros discursos<br />

institucionais, como os da Igreja e os da política, originaram um certo saber universal<br />

sobre o que é ser mulher e como ser mulher na sociedade burguesa <strong>do</strong> século XIX. 189<br />

Além <strong>do</strong> lugar simbólico dito às mulheres, esses discursos, ou certas idéias que<br />

deles se originaram, deixaram traços <strong>do</strong>cumentais, traduzin<strong>do</strong>-se em disposições<br />

legais. Como sublinha Christiane Klapisch-Zuber, “Onde as representações e as<br />

práticas sociais se cruzam, o direito traduz, pelo conjunto das suas regras e das suas<br />

proibições, pela proteção que concebe às mulheres ou os limites que impõe à sua<br />

acção, a cobertura de ideais e representações que as encerra”. 190 Sob essa perspectiva,<br />

torna-se relevante no inte<strong>rio</strong>r deste trabalho um enfoque da produção de saberes sobre<br />

a mulher. Para não tornar a perspectiva ilimitada, centra-se o foco no discurso acerca<br />

das diferenças entre os sexos a partir <strong>do</strong>s textos de alguns <strong>do</strong>s mais destaca<strong>do</strong>s<br />

filósofos <strong>do</strong> saber ocidental.<br />

189 O século XIX representa um marco temporal significativo para análise da categoria de gênero no Direito Penal<br />

contemporâneo, uma vez que, por um la<strong>do</strong>, configura o campo cultural que melhor exprime a modernidade, sen<strong>do</strong><br />

um momento de particular significa<strong>do</strong> na fixação das identidades (masculino e feminino) e, por outro, representa no<br />

inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> Direito um momento de crescimento de um maior refinamento e concretude de categorias relevantes e<br />

sujeitos jurídicos. A incapacidade legal da mulher é inscrita no Direito com detalhes mais sutis e de forma mais<br />

polarizada. Ou então, no Direito <strong>do</strong> século XIX, o gênero foi crescente e rigorosamente fixa<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> os atributos<br />

naturais correspondentes ao homem e à mulher. Também o Direito, assim como a disciplina, estimula as mulheres<br />

para que assumam essas identidades ou subjetividades. Não se trata de um Direito que tem gênero ou que é sexista,<br />

mas sim de um Direito que cria gênero. Esse ponto será desenvolvi<strong>do</strong> em outro espaço deste estu<strong>do</strong>.<br />

190 DUBY, Georges; PERROT, Michelle. As mulheres e a história, p. 173.<br />

91


A reflexão filosófica sobre o sistema biná<strong>rio</strong> da sexualidade, da dualidade sexual,<br />

da igualdade ou complementaridade <strong>do</strong>s sexos, é a representação de um ideal de<br />

feminilidade que atravessa os gêneros. Os discursos nomeiam e controlam a mulher<br />

uma vez que lhe conferem lugares, deveres, posições e traços identificató<strong>rio</strong>s.<br />

Consoante Carol Smart 191 , é possível argumentar que o discurso científico,<br />

médico e mais tarde psicanalítico, opera para criar as diferenças de gênero, as quais<br />

serão tomadas como diferenças naturais, “porém, o que é mais importante, estes<br />

discursos têm interpreta<strong>do</strong> como natural a idéia das diferenças naturais”. 192<br />

Ainda segun<strong>do</strong> a pesquisa<strong>do</strong>ra espanhola, não se pode ignorar que,<br />

paralelamente, o feminismo construía um outro discurso, em que a mulher aparece de<br />

forma muito diferente, “[...] uma mulher que não era semi-inválida (se era da classe<br />

média), não era desviada sexualmente e viciada (se era da classe trabalha<strong>do</strong>ra)”. 193<br />

Este discurso feminista, porém, alerta a autora, também fixava as diferenças “no reino<br />

<strong>do</strong> natural”. 194<br />

Uma enorme produção de saberes, cuja circulação teve início no final <strong>do</strong> século<br />

XVIII e que se expandiu durante to<strong>do</strong> o século XIX, reforça as causas naturais das<br />

mulheres para sua eterna fragilidade física e sua reduzida capacidade intelectual. As<br />

191<br />

LARRAURI, Elena (Comp). Mujeres, Derecho Penal y Criminología. Madrid: Siglo Veintiuno de España<br />

Editores, 1994, p. 182.<br />

192<br />

“pero, lo que es más importante, estos discursos han interpreta<strong>do</strong> como natural el ideal de las diferencias<br />

naturales”. In: LARRAURI. Op. cit., p. 182.<br />

193<br />

“[...] una Mujer no era seminválida (si era de la clase media), no era desviada sexualmente y viciosa (si era de la<br />

clase trabaja<strong>do</strong>ra)”. In: LARRAURI. Idem, ibidem.<br />

194<br />

“en el reino de lo natural”. In: LARRAURI. Idem, ibidem.<br />

92


mulheres aparecem nesses discursos como um conjunto de sujeitos defini<strong>do</strong>s pela sua<br />

natureza (o corpo). O senti<strong>do</strong> geral desses discursos, sublinha Maria Rita Kehl, “é<br />

promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções,<br />

predica<strong>do</strong>s e restrições denomina<strong>do</strong> feminilidade“. 195 Por conseguinte, “a feminilidade<br />

era um conjunto de atributos próp<strong>rio</strong>s a todas as mulheres, em função das<br />

particularidades de seus corpos e de sua natureza procria<strong>do</strong>ra [...]” 196 , reservan<strong>do</strong> à<br />

mulher um único lugar, destino e função: o espaço <strong>do</strong>méstico, o casamento e a<br />

maternidade.<br />

Volta-se aqui aos conceitos referi<strong>do</strong>s no início deste capítulo. Se a mulher se<br />

tornou objeto <strong>do</strong> discurso da ciência, da Filosofia e da Medicina é porque as condições<br />

sociais, políticas e econômicas não só indicaram para esse objeto, como também<br />

definiram o valor de verdade que seria conferi<strong>do</strong> a esses discursos e os seus efeitos de<br />

poder. Dentro dessa perspectiva, os discursos sobre o “lugar”, ou as possibilidades da<br />

mulher, podem ser vistos ainda como uma espécie de reação a outros discursos que,<br />

conforme exposto ante<strong>rio</strong>rmente, tomaram espaço na Europa revolucionária.<br />

As formações sociais da sociedade capitalista, com mais rigor <strong>do</strong> que no Velho<br />

Regime, fundaram-se na diferença das funções reprodutivas masculina e feminina. Não<br />

que essa diferença não estivesse presente nas sociedades ante<strong>rio</strong>res, ou em outros<br />

perío<strong>do</strong>s da História, porém a organização burguesa lhe confere características<br />

próprias.<br />

195 KEHL. Op. cit., p. 58.<br />

196 Idem, ibidem.<br />

93


Era essa estrutura que estava em questão. O que havia era uma certa<br />

desestabilização entre as mulheres e as funções que lhes eram ditas, pouco<br />

condizentes com a Declaração Universal <strong>do</strong>s Direitos <strong>do</strong> Homem que proclama a<br />

igualdade entre to<strong>do</strong>s os indivíduos. Essa situação era no mínimo embaraçosa, por isso<br />

que o velho discurso retoma com to<strong>do</strong> o vigor no século XIX, apoia<strong>do</strong> agora nas<br />

descobertas da Medicina e da Biologia. 197<br />

Geneviève Fraisse assegura que “o discurso filosófico sobre as mulheres e sobre<br />

a diferença entre os sexos está necessariamente no cruzamento da história”. 198 Em<br />

contraponto à ruptura política e à mutação econômica da época moderna, “a eternidade<br />

das questões filosóficas sobre a dualidade <strong>do</strong> corpo e <strong>do</strong> espírito, a partilha entre<br />

natureza e civilização, o equilíb<strong>rio</strong> entre o priva<strong>do</strong> e o público”. 199<br />

Segun<strong>do</strong> a autora, os postula<strong>do</strong>s da nova era reconheciam homens e mulheres<br />

como seres <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de razão, logo, seriam sujeitos autônomos e individuais. A<br />

novidade, portanto, das produções discursivas sobre a mulher, ou sobre a diferença<br />

197 O discurso sobre a diferença <strong>do</strong>s sexos, ou a análise da conflituosa história <strong>do</strong>s sexos, é retoma<strong>do</strong> no século XIX<br />

sob uma forte influência das novas descobertas da Biologia e da Medicina, sen<strong>do</strong> atravessa<strong>do</strong> pela teoria <strong>do</strong><br />

evolucionismo de Herbert Spencer e pela teoria da origem das espécies de Darwim. Mesmo sen<strong>do</strong> caracteriza<strong>do</strong><br />

pela diversidade e pela mutação, o discurso traz como eixo central a impossibilidade da igualdade entre os <strong>do</strong>is<br />

sexos, justificada, agora, nas novas descobertas científicas. Embora as teorias de Spencer e Darwin, aparentemente,<br />

não dedicassem uma <strong>grande</strong> importância à questão <strong>do</strong>s sexos, seus postula<strong>do</strong>s constituem fortes argumentos para<br />

conferir à mulher o seu lugar na espécie, o que era impedimento para desenvolver o seu eu e o seu cérebro. Na tese<br />

de Darwin, a seleção natural, acompanhada pela seleção sexual, tornou o homem supe<strong>rio</strong>r à mulher, diferença<br />

instransponível segun<strong>do</strong> a sua teoria da hereditariedade, na qual afirma que os progressos feitos na idade adulta se<br />

transferem apenas de sexo para sexo. Os postula<strong>do</strong>s de Darwin e Spencer tomam espaço, principalmente, no inte<strong>rio</strong>r<br />

da Filosofia Positivista de Auguste Comte, e no pensamento crítico <strong>do</strong> Cristianismo de Ludwig Feuerbach, num<br />

movimento de oposição à Metafísica.<br />

198 FRAISSE, Geneviève. Da destinação ao destino. História filosófica da diferença entre os sexos. In: DUBY,<br />

Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente, p. 59.<br />

199 Idem, ibidem.<br />

94


entre os sexos, residia no fato de que representava a relação entre <strong>do</strong>is sujeitos:<br />

homens e mulheres. A emergência de um sujeito individual refletiu a promessa de<br />

emancipação das mulheres e essa perspectiva estava posta nos textos sobre as<br />

mulheres, ou seja, mulheres e homens eram concebi<strong>do</strong>s como seres livres e <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />

de razão, ainda que as diferenças inscritas em seus corpos lhes conferissem destinos<br />

distintos.<br />

Essa aparente contradição pode ser melhor compreendida nos pensamentos de<br />

Kant, Fichte e Hegel sobre a natureza jurídica <strong>do</strong> casamento. Esses filósofos defendem<br />

“a igual liberdade da mulher e <strong>do</strong> homem, a igual razão entre os <strong>do</strong>is sexos” 200 , embora<br />

diferissem quanto ao status jurídico <strong>do</strong> casamento.<br />

Para Fichte, observa Geneviève Fraisse, o casamento “é uma ‘união perfeita’,<br />

que repousa no instinto sexual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sexos, e não tem qualquer finalidade fora de si<br />

mesmo; ele fabrica um ‘laço’ entre as duas pessoas, e é tu<strong>do</strong>”. 201 Este laço é o amor,<br />

ponto em que, segun<strong>do</strong> o filósofo, reúnem-se de mo<strong>do</strong> mais íntimo a natureza e a razão<br />

e é dessa relação que nasce o espaço jurídico. Assim, a submissão da mulher ao<br />

homem dá-se por um ato de livre vontade. E, ainda, a dignidade, da razão impõe que a<br />

mulher se torne o “meio de seu próp<strong>rio</strong> fim”.<br />

Já na posição kantiana, sustenta a autora, o casamento aparece como um<br />

“contrato”, símbolo de uma posse jurídica e essa posse está fundada no consentimento<br />

200 Idem, p. 62.<br />

201 Idem, p. 61.<br />

95


ecíproco, visto como prova de uma livre escolha. O fato de a lei submeter a mulher ao<br />

homem, ou o fato de aquela dever obediência a este, é trata<strong>do</strong> como questão<br />

secundária. Sen<strong>do</strong> um ser livre, a mulher era também um ser de razão.<br />

Como um ser de razão, estava submetida à reprodução da espécie. A<br />

dependência conjugal que, segun<strong>do</strong> Kant, privava a mulher de uma personalidade civil,<br />

bem como a submissão à vida da espécie, eram entendidas como perfeitamente<br />

compatíveis com a sua liberdade e a igualdade entre homens e mulheres.<br />

O estatuto jurídico da mulher nos postula<strong>do</strong>s de Kant assume um conteú<strong>do</strong><br />

contraditó<strong>rio</strong>, observa Michelle Perrot, “como indivíduo a mulher pertence ao direito<br />

pessoal; como membro da família está submetida ao direito conjugal, de essência<br />

monárquica”. 202 Kant deixa claro que, no papel de reprodutora da vida, os interesses<br />

particulares da mulher estavam submeti<strong>do</strong>s aos da espécie, representada na família, é<br />

ali que se encontra o verdadeiro triunfo da razão.<br />

Hegel opõe-se radicalmente ao “contrato positivo” de Kant. No seu entendimento,<br />

o casamento se funda num “ser-particular”, cuja peculiaridade é estabelecida pela<br />

natureza, não pelo arbít<strong>rio</strong> de uma abstração (referin<strong>do</strong>-se ao contrato de Kant). Para o<br />

filósofo, a “personalidade”, ou o “ser-sujeito”, no casamento se aniquila. A liberdade, no<br />

seu entendimento, consiste na “indiferença das determinidades”. 203 Ou então, uma vez<br />

202 PERROT, Michele. História da vida privada. Da revolução francesa à primeira guerra. Trad. Denise Bottmann e<br />

Bernar<strong>do</strong> Joffily. São Paulo: Companhia das letras, 1991, v. 4, p. 93.<br />

203 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. O sistema da vida ética. Lisboa: 1991, p. 38.<br />

96


fundada a “família”, “nela se unifica a totalidade da natureza e tu<strong>do</strong> o que precede, toda<br />

a particularidade ante<strong>rio</strong>r se transpõe nela para o universal. Ela é a identidade [...]”. 204<br />

As diferentes funções, ou lugares no inte<strong>rio</strong>r da família, entendida como uma<br />

garantia da moralidade natural, são explicadas pelo filósofo “como uma diferença<br />

superficial da <strong>do</strong>minação”. 205 Assim, o homem é o “senhor” e “intendente”; não<br />

proprietá<strong>rio</strong> por oposição aos outros membros da família, é apenas o administra<strong>do</strong>r; a<br />

repartição <strong>do</strong> trabalho é segun<strong>do</strong> a natureza de cada membro, sen<strong>do</strong> o seu produto<br />

comum; a relação <strong>do</strong>s sexos, da mulher com o homem, assume também a sua maneira<br />

um caráter de indiferença.<br />

Michelle Perrot, falan<strong>do</strong> sobre o “triunfo” da família na nova ordem burguesa <strong>do</strong><br />

século XIX, assinala que, enquanto o laisser faire, o ideal da “mão invisível”, pre<strong>do</strong>mina<br />

num pensamento econômico estagna<strong>do</strong>, o pensamento político mostra uma<br />

preocupação em “organizar a vida privada”. “O <strong>do</strong>méstico constitui uma instância<br />

regula<strong>do</strong>ra fundamental e desempenha o papel <strong>do</strong> deus oculto”. 206<br />

Para Hegel, a família é a garantia da moralidade natural. A divisão de papéis na<br />

família e na sociedade é estabelecida a partir de seus “caracteres naturais”: “O homem<br />

possui sua vida substancial real no Esta<strong>do</strong>, na ciência, enquanto a mulher encontra seu<br />

204 Idem, p. 37.<br />

205 Idem, ibidem.<br />

206 PERROT, Michelle. História da vida privada, p. 93.<br />

97


destino substancial na moralidade objetiva da família”. 207 Kant, referin<strong>do</strong>-se à “casa”,<br />

ressalta que é o fundamento da moral e da ordem social. “É o cerne <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, mas<br />

um priva<strong>do</strong> submeti<strong>do</strong> ao pai, único capaz de refrear os instintos, de <strong>do</strong>mar a<br />

mulher”. 208<br />

O discurso <strong>do</strong> século XIX acentua a racionalidade harmoniosa dessa divisão<br />

sexual. “Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seus<br />

lugares quase predetermina<strong>do</strong>s [...}”. 209 O discurso <strong>do</strong>s ofícios, o discurso <strong>do</strong>s espaços,<br />

o discurso das funções. A linguagem nunca fora tão sexuada.<br />

Na distinção entre masculino e feminino, a reflexão sobre a partilha <strong>do</strong>s espaços<br />

só pode ser compreendida no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> discurso filosófico a partir de uma perspectiva<br />

metafísica. “A metafísica <strong>do</strong> século XIX nutre-se <strong>do</strong>s conceitos de dualidade, relação e<br />

união de pólos opostos, de que a diferença entre os sexos é uma das representações,<br />

ou mesmo, possivelmente, uma metáfora fundamental”. 210<br />

As filosofias da natureza, observa Geneviève Fraisse, se fundam sobre o<br />

pensamento da dualidade e da sua resolução na unidade. São atravessadas pela<br />

tensão entre o finito e o infinito. “A separação da natureza em <strong>do</strong>is sexos lembra que o<br />

indivíduo (finito) está a serviço da espécie (infinita) [...]”. 211 Se, por um la<strong>do</strong>, esta<br />

207<br />

Idem, p.95.<br />

208<br />

Idem, ibidem.<br />

209<br />

PERROT, Michelle. Os excluí<strong>do</strong>s da história, p. 178.<br />

209<br />

Idem, ibidem.<br />

210<br />

Geniviève Fraisse, In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente, p. 65.<br />

211 Idem, ibidem.<br />

98


separação é reconhecida como necessária à vida da natureza, por outro é percebida<br />

com sérias críticas. Daí o trabalho da dialética, observa a autora.<br />

Enquanto durante a Revolução Francesa a reflexão sobre as mulheres atravessa<br />

o espaço <strong>do</strong> Direito e o espaço da natureza, em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX a história<br />

política e a história filosófica modificam a problemática: passa a apresentar-se um<br />

discurso sobre o amor, o desejo humano e a transcendência, concorren<strong>do</strong> com a<br />

metafísica da diferença. Ou então “[...] a misogenia <strong>do</strong>s filósofos muda de natureza;<br />

sem dúvida porque a emancipação das mulheres se deixa entrever concretamente e<br />

porque o feminismo, como movimento social e político, se torna uma realidade<br />

pública”. 212<br />

Nessa discussão binária sobre o masculino e o feminino, Artur Schopenhauer<br />

“escreve uma metafísica <strong>do</strong> amor” 213 em que a relação entre os <strong>do</strong>is sexos aparece<br />

como uma relação de correspondência, de complementaridade entre o homem e a<br />

mulher, ten<strong>do</strong> cada qual a sua função. Opon<strong>do</strong>-se aos discursos da maioria <strong>do</strong>s outros<br />

filósofos, na sua metafísica, ao pai cabe o caráter e a vontade; à mãe, o intelecto, o<br />

racional.<br />

Entretanto, quan<strong>do</strong> o seu discurso atravessa as fronteiras <strong>do</strong> amor e focaliza a<br />

diferença entre os sexos, ou então a metafísica da sexuação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, o tom muda,<br />

212 Idem, p. 75.<br />

213 Idem, p. 69.<br />

99


considera Geneviève Fraisse, a misogenia vence e a mulher toma a posição <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> sexo, sem qualquer paridade com o homem, fican<strong>do</strong> entre esse e a criança.<br />

Os postula<strong>do</strong>s de Pierre Leroux, Karl Marx, Stuart Mill, Friedrich Engels e Emmile<br />

Durkheim também são atravessa<strong>do</strong>s pelo tema da diferença entre os sexos, articula<strong>do</strong><br />

com uma profunda reflexão sobre a família, compreendida enquanto representação<br />

histórica na qual se inscreve uma relação de forças entre homens e mulheres. Em<br />

oposição à idéia da família como uma entidade abstrata (metafísica), ela é concebida<br />

por estes filósofos como uma realidade social, evoluin<strong>do</strong> conforme as épocas. Cria-se<br />

um novo vínculo entre sociedade e família.<br />

A corrente de pensamento destes autores ganha <strong>grande</strong> expressividade nos<br />

ensinamentos de Karl Marx, consoante o qual o capitalismo moderno, ao colocar as<br />

mulheres no merca<strong>do</strong> de trabalho, retira-as <strong>do</strong> lugar da propriedade privada familiar<br />

dan<strong>do</strong> início a um processo de emancipação da mulher, ainda que na sociedade<br />

capitalista seja reduzida a uma merca<strong>do</strong>ria. Portanto está na economia e no trabalho<br />

assalaria<strong>do</strong>, e não no Direito, a base da emancipação das mulheres e uma nova<br />

estrutura da família, que é sempre uma realidade histórica. Marx é contrá<strong>rio</strong> à abolição<br />

da família, posicionan<strong>do</strong>-se a favor da monogamia e <strong>do</strong> divórcio.<br />

A família é definida em Marx como a “primeira relação social e a mulher como o<br />

ser natural que permite ao homem criar essa primeira relação social; assim se<br />

100


desenvolve uma relação humana para lá da relação de natureza [...]”. 214 O que ele<br />

anuncia é que a mulher (primeiro, instrumento de produção ou reprodução familiar,<br />

depois objeto de produção mercantil) poderia tornar-se uma trabalha<strong>do</strong>ra no sistema de<br />

produção e um ser autônomo na vida privada.<br />

Stuart Mill, por sua vez, oferece <strong>grande</strong> colaboração intelectual ao tema em<br />

questão, quan<strong>do</strong> pensa o indivíduo e o cidadão. Opõe-se radicalmente à submissão da<br />

mulher no casamento. Os interesses <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> não anulam os interesses da mulher e<br />

tanto o homem quanto a mulher têm direitos políticos, civis, direito à vida pública e ao<br />

voto. O casamento não anula esses direitos, deven<strong>do</strong> preservar a liberdade e a<br />

emancipação <strong>do</strong> sujeito. 215<br />

Entre <strong>do</strong>utores, filólogos, biólogos, ginecologistas e charlatões que contribuíram<br />

com a questão das mulheres encontra-se Jean-Jacques Rousseau, o <strong>grande</strong> filósofo<br />

<strong>do</strong>s ideais românticos, da harmonia entre o homem e a natureza, que apresenta o<br />

discurso sobre a feminilidade que <strong>do</strong>minou na Europa no século XIX, sobretu<strong>do</strong> nos<br />

países católicos.<br />

Com Rousseau, retoma com toda força (porém agora sob os ideais <strong>do</strong><br />

casamento romântico) a idéia <strong>do</strong> controle da “desenfreada” sexualidade feminina,<br />

pulsão que deveria ser contida ou sublimada pela educação. A mulher deveria ser<br />

especialmente <strong>do</strong>mesticada para que seus desejos “ilimita<strong>do</strong>s” não destruíssem a<br />

214 Idem, p. 80.<br />

215 Idem, ibidem.<br />

101


ordem social e familiar. Assim, o papel atribuí<strong>do</strong> à mulher em o Contrato Social e<br />

confirma<strong>do</strong> em Emílio ou da Educação: o lugar para Sofia define-se em função <strong>do</strong><br />

homem, em função de satisfazer os desejos de seu esposo e as necessidades de seus<br />

filhos.<br />

Em Emílio ou da Educação 216 , o filósofo reconhece a feminilidade como um<br />

conjunto de atributos naturais da mulher, mas que deveriam ser cultiva<strong>do</strong>s pela<br />

educação. O pu<strong>do</strong>r, a dependência, modéstia, fragilidade, <strong>do</strong>çura e a submissão<br />

estavam em constante tensão com a ociosidade, dissipação, in<strong>do</strong>lência, frivolidade e a<br />

inconstância. Só a educação é que poderia salvar a mulher contra esses excessos,<br />

preservan<strong>do</strong> o casamento e os bons costumes. “A honestidade de uma mulher é um<br />

combate constante contra si mesma”. 217<br />

Jean-Jacques Rousseau reforça a ontológica condição ambígua da mulher: Eva<br />

ou Maria, honrada ou peca<strong>do</strong>ra, das virtudes de uma mulher dependiam a educação<br />

<strong>do</strong>s filhos e a virtuosidade <strong>do</strong>s homens, “da boa constituição das mães depende<br />

inicialmente a <strong>do</strong>s filhos; <strong>do</strong> seio das mulheres depende a primeira educação <strong>do</strong>s<br />

homens; das mulheres dependem ainda os costumes desses, suas paixões, seus<br />

gostos, seus prazeres e até sua felicidade. Assim, toda educação das mulheres deve<br />

ser relativa aos homens”. 218<br />

216 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Difusão Européia <strong>do</strong><br />

Livro, 1968.<br />

217 Idem. p. 438.<br />

218 Idem, p. 433.<br />

102


A importância da mulher como esposa e mãe fez com que os pedagogos <strong>do</strong>s<br />

séculos VXIII e XIX tivessem como principal função educar as mulheres para que<br />

fossem verdadeiras mães. Para Neusa Soliz, “o desenvolvimento da maternidade como<br />

posição espiritual não se referiu apenas à mulher na família, como também se estendeu<br />

à mulher nas profissões assistenciais e educacionais”. 219 Consoante a autora, esse<br />

ideal continua a influenciar até hoje enfermeiras e professoras, especialmente as<br />

especializadas em jardins de infância e em escolas primárias.<br />

2.3.1 A Sexualidade Feminina na Psicanálise<br />

Até a teoria psicanalítica de Sigmund Freud, a sexualidade era entendida pelas<br />

suas características inatas e genéticas. Estava condicionada ao desenvolvimento físico<br />

<strong>do</strong> indivíduo, também visto como natural e gradual. Dependia da prontidão biológica e<br />

essa, por sua vez, garantia o exercício da sexualidade.<br />

Freud rompe com esse pensamento uma vez que entende que a sexualidade se<br />

constitui desde o nascimento por meio das relações simbólicas que o bebê, a criança e<br />

o a<strong>do</strong>lescente estabelecem com as figuras parentais e sociais. Ressalta-se que as<br />

mediações e investimentos não acontecem fora da cultura. Ou então, a inscrição <strong>do</strong><br />

indivíduo no masculino ou feminino depende <strong>do</strong>s costumes, das tradições e,<br />

principalmente, da posição subjetiva daqueles que se encarregam de marcar a criança,<br />

219 SOLIZ, Neusa. A mulher no século XXI. Um estu<strong>do</strong> de caso: a Alemanha. Rio Janeiro: Editora Espaço e Tempo,<br />

1988, p. 19.<br />

103


apresentan<strong>do</strong>-lhe uma identidade sexual mediada pelo seu discurso embuti<strong>do</strong> de<br />

desejos inconscientes e ideais imaginá<strong>rio</strong>s.<br />

Geneviève Fraisse assinala que a psicanálise opera uma dupla ruptura filosófica:<br />

“propõe uma teoria da sexualidade, um conjunto coerente de teses sobre a diferença<br />

entre os sexos e uma nova teoria <strong>do</strong> conhecimento fundada sobre a noção <strong>do</strong><br />

inconsciente”. 220 Essa última, sustenta a autora, revoluciona profundamente o<br />

conhecimento <strong>do</strong> homem sobre si e sobre o universo. Já em relação à “diferença entre<br />

os sexos”, “algumas das suas asserções lembram estranhamente a medicina filosófica<br />

<strong>do</strong> início <strong>do</strong> século e as tentativas de dizer às mulheres qual a sua ‘destinação’”. 221<br />

A autora ressalta, entretanto, que na passagem <strong>do</strong> “sexo” à “sexualidade” a<br />

psicanálise inova o debate sobre a sexualidade <strong>do</strong>s homens, das mulheres (diferin<strong>do</strong>-a<br />

da reprodução), das crianças, sobre a bissexualidade de cada um, sobre uma<br />

“sexualidade não biológica”. “A história da humanidade alarga-se à história individual, a<br />

análise da família des<strong>do</strong>bra-se e deixa ver seres distintos [...]”. 222 Isso possibilita à<br />

mulher uma história, mas também um “destino”, dirá Sigmund Freud.<br />

Isabel Fortes, em seu texto Psicanálise e Mulher, Universos <strong>do</strong> Feminino, 223<br />

sustenta que a mulher na teoria psicanalítica está envolta em um véu de misté<strong>rio</strong>. A<br />

220<br />

Geneviève Fraisse, In: BUBY; PERROT. História das mulheres no ocidente, p. 92.<br />

221<br />

Idem, ibidem.<br />

222<br />

Idem, ibidem.<br />

223<br />

In: KUPERMANN, Daniel; ROLLEMBERG, Denise (Org). Universos psicanalíticos, desafios atuais da pesquisa<br />

psicanalítica. Rio de Janeiro: Dumará, 1995.<br />

104


mulher está fora da linguagem e por isso remete a um enigma, como bem transparece<br />

na pergunta formulada por Freud: “O que deseja a mulher?” Percebe-se que Freud<br />

designou a mulher como o continente negro da psicanálise, mas isso não significa que<br />

hoje, na perspectiva da psicanálise, a mulher não possa se apresentar de uma forma<br />

menos mistificada, diz Isabel Fortes.<br />

Sigmund Freud, até 1920, não via a mulher sem a homologia pênis-clitóris. Ele<br />

só conseguia teorizar sobre a sexualidade da mulher comparan<strong>do</strong>-a à <strong>do</strong>s homens. No<br />

texto Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Freud anuncia que somente a vida<br />

sexual <strong>do</strong>s homens pode ser pesquisada, porque a das mulheres “encontra-se<br />

impenetrável e obscura”. Contu<strong>do</strong>, foi exatamente nesse livro de 1905 que Freud fez<br />

<strong>grande</strong>s descobertas quan<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>u as perversões, dan<strong>do</strong> uma nova dimensão para<br />

as chamadas aberrações sexuais. Considerou que tais manifestações faziam parte da<br />

sexualidade infantil e que correspondiam a etapas <strong>do</strong> desenvolvimento da sexualidade<br />

da criança. Ao tentar compreender as perversões polimorfas manifestadas na infância,<br />

o autor cria e inaugura o conceito da sexualidade humana, negan<strong>do</strong> a primazia genital.<br />

Argumenta que as manifestações perversas da infância são manifestações “naturais” e<br />

que estas vão alimentar a sexualidade <strong>do</strong> adulto.<br />

Foi a partir das perversões, portanto, que ele começou a elaborar a sua teoria<br />

pulsional, encontran<strong>do</strong> aí uma via para explicar a constituição da sexualidade humana,<br />

não mais a partir <strong>do</strong>s instintos como nas demais espécies. No animal, o mecanismo<br />

instinto manifesta-se pelo desencadeamento de alguma função biológica ou em atitude<br />

105


comportamental (etiológica), segun<strong>do</strong> parâmetros rígi<strong>do</strong>s prefixa<strong>do</strong>s pelas leis da<br />

hereditariedade genética.<br />

Freud, deparan<strong>do</strong>-se com o fato da universalidade das chamadas perversões<br />

sexuais em seus pacientes, afirma que a sexualidade humana apresenta uma<br />

verdadeira “constituição sexual”, originada a partir das pulsões que representam o limite<br />

entre a soma e o psiquismo.<br />

A escuta <strong>do</strong>s pacientes neuróticos levou Freud à idéia de uma ocorrência de<br />

sedução e de um trauma sexual infantil. Mais adiante refez esses conceitos quan<strong>do</strong><br />

compreendeu que na verdade as revelações feitas a ele através da fala de seus<br />

pacientes mostravam a existência de fantasias sexuais, resquícios da sexualidade<br />

infantil. Isso o leva a concluir que a sexualidade é sempre traumática enquanto<br />

constituição e identidade para qualquer sujeito.<br />

Antonio Franco Ribeiro Silva em relação ao assunto assim se posiciona: “A<br />

sexualidade é em si mesma enigmática e, se existe recalque, não é meramente, pela<br />

repressão ou por falta de informação. É este caráter enigmático que leva ao recalque,<br />

pois é ele que leva o ser humano no início da vida a ignorar e não querer saber da<br />

diferença entre os sexos. Este caráter enigmático da sexualidade está, pois, na origem<br />

da castração”. 224<br />

224 SILVA, Antonio Franco Ribeiro. O desejo de Freud. São Paulo: Iliminuras, 1994, p. 64.<br />

106


A questão da castração na constituição de sexualidade feminina poderá ser<br />

considerada um capítulo que merece ser examina<strong>do</strong> com mais profundidade, ressalta-<br />

se, porém, que na psicanálise o feminino e masculino não são características dadas<br />

biologicamente. Para a psicanálise, o feminino e o masculino são inscrições que os<br />

investimentos parentais proporcionam à criança. O sexo biológico não determina a<br />

identidade sexual, apenas marca um limite.<br />

A comparação entre o homem e a mulher tem sua origem na ficção infantil<br />

partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> pressuposto de que todas os seres humanos têm pênis: a criança num<br />

primeiro momento supõe que menino e menina têm pênis pequeno, e que um dia o da<br />

menina vai crescer.<br />

Em 1923, Freud inicia uma nova visão sobre a feminilidade e a masculinidade<br />

quan<strong>do</strong> introduz o prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> falo. A idéia que prevalece a partir dessa data é de que<br />

não são mais os genitais que regem a sexualidade feminina e masculina, mas a<br />

supremacia <strong>do</strong> falo. É através <strong>do</strong> entendimento da primazia na função fálica que a<br />

castração recebe um lugar central na questão da sexualidade.<br />

Catherine Millot comenta as saídas que uma menina pode ter a partir <strong>do</strong><br />

complexo da castração devi<strong>do</strong> à confrontação com a realidade de sua falta de pênis. “A<br />

primeira consiste no aban<strong>do</strong>no puro e simples da sexualidade, a segunda corresponde<br />

ao complexo de masculinidade que se constitui pela recusa à renúncia de possuir o<br />

107


órgão fálico; seja sob forma da espera persistente, seja da recusa a ser privada<br />

dele”. 225<br />

Segun<strong>do</strong> a autora, o complexo de masculinidade acabou por designar,<br />

sobretu<strong>do</strong>, a posição de recusa, e ilusão de possuir, de um mo<strong>do</strong> ou de outro, as<br />

insígnias da virilidade. Nesse segun<strong>do</strong> caso, a menina recusa-se veemente aceitar que<br />

é castrada, encarna assim um comportamento de homem.<br />

A terceira saída, conforme Millot, é aquela que conduz em direção à feminilidade,<br />

orientan<strong>do</strong> a menina para o homem de quem recebeu, sob a forma de um filho, o<br />

substituto simbólico <strong>do</strong> pênis que lhe falta.<br />

A passagem acima citada significa a travessia <strong>do</strong> complexo de Édipo que tem<br />

por função constituir uma identidade sexual e instaurar a instância psíquica alicerça<strong>do</strong>ra<br />

<strong>do</strong> superego, ten<strong>do</strong>, por função julgar, censurar e frear os imperativos <strong>do</strong> id e as ações<br />

<strong>do</strong> ego. Nesse aspecto, Freud faz uma ressalva, destacan<strong>do</strong> que a trajetória da<br />

travessia quanto ao complexo de Édipo <strong>do</strong> menino e da menina são distintos e<br />

conseqüentemente, a posição <strong>do</strong> superego também opera de forma diferente no<br />

homem e na mulher.<br />

225 MILLOT,Catherine. Nobodaddy, a histeria <strong>do</strong> século. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p. 37.<br />

108


Essa questão se torna relevante na medida que ela pode lançar uma luz sobre o<br />

comportamento ambivalente da mulher em relação a sua mãe, amigas ou colegas, bem<br />

como com seu companheiro.<br />

No texto Em Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica Entre<br />

os Sexos, cita<strong>do</strong> por Millot, Freud enuncia o seguinte: “Não posso fugir à noção e<br />

embora hesite em lhe dar expressão de que, para as mulheres, o nível daquilo que é<br />

eticamente normal é diferente <strong>do</strong> que é nos homens sem superar nunca é tão<br />

inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens emocionais como<br />

exigimos que seja nos homens”. 226<br />

O conceito acima remete ao estigma carrega<strong>do</strong> pelas mulheres de serem mais<br />

facilmente influenciadas em seus julgamentos por seus sentimentos de afeição e de<br />

honestidade. São indicativos das diferenças entre os sexos e que suscitam indagações<br />

polêmicas, sobretu<strong>do</strong> no inte<strong>rio</strong>r das teorias feministas, como bem considera Elena<br />

Larrauri 227 : qual a relação entre natureza e cultura e entre corpo e mente? Não tem a<br />

anatomia <strong>do</strong> corpo relação com a mente?<br />

No entendimento psicanalítico essas questões remetem à estruturação <strong>do</strong><br />

superego. O superego diz <strong>do</strong> processo da castração de como a criança faz a passagem<br />

de um objeto amoroso para outro. Ou, em outras palavras, leva a pensar como foram<br />

elaboradas simbolicamente suas inevitáveis perdas.<br />

226 FREUD, apud MILLOT. Op. cit., p. 37.<br />

227 LARRAURI. Op. cit., p. 12<br />

109


Isabel Fortes assinala que a substituição da mãe pelo pai, no caso da menina,<br />

não se efetiva completamente, sen<strong>do</strong> a mãe seu primeiro objeto de amor. Como a<br />

criança, a partir da entrada de um terceiro percebe que a mãe não é o falo, nem pode<br />

outorgar-lhe o que falta, a menina dirige-se com as mesmas “tintas coloridas” de amor à<br />

figura paterna. Porém o pai também não pode outorga-lhe o falo em forma de filho.<br />

Esse impasse e frustração e castração leva a menina ficar “presa” ao objeto materno,<br />

mesmo que isso significa o risco de um devoramento ou aniquilamento.<br />

Para a autora, trata-se de uma “ligação viscosa e ambivalente, feita de amor e<br />

ódio. Um amor intenso se transforma em ódio projeta<strong>do</strong> sobre a mãe, o que leva à<br />

formação de um fantasma de assassino”. 228 Assim, o fantasma da mãe devora<strong>do</strong> vem<br />

como projeção <strong>do</strong> ódio a essa dirigi<strong>do</strong>, mas também representa o me<strong>do</strong> de fundir-se e<br />

perder-se com essa em uma união indissolúvel, um gozo total, que seria equivalente à<br />

própria morte.<br />

Trata-se de uma indiferenciação entre o corpo da mãe e da filha, de uma<br />

“ligação simbiótica”, ou seja, não há traço psíquico que as diferencia, isso coloca a filha<br />

numa posição ambivalente, pois, por um la<strong>do</strong> tem o amparo e, por outro, a “oposição”.<br />

O ódio seria a matéria-prima dessa força avassala<strong>do</strong>ra entre a menina e sua mãe, essa<br />

força de <strong>do</strong>is fazerem um. Isso significa loucura, perversão ou psicose. Essa<br />

insuportabilidade ou abismo na qual um sujeito é draga<strong>do</strong> ou devora<strong>do</strong> pela falta de<br />

uma completa separação simbólica cria esse esta<strong>do</strong> de ambivalência.<br />

228 In: KUPERMANN; ROLLEMBERG. Op. cit., p. 58.<br />

110


Esse esta<strong>do</strong> de ambivalência de ódio e amor origina<strong>do</strong>s na relação primária com<br />

objeto materno é estendida para as outras relações, daí uma explicação para as<br />

relações tão estreitas entre as mulheres, mas ao mesmo, tempo vingativas e odiosas.<br />

O ciúme entre as mulheres é distinto da rivalidade que existe entre os homens,<br />

inclui uma forma de amor, de reconhecimento, ou seja, a outra é rival, mas é também<br />

alguém a quem é dirigi<strong>do</strong> o amor. A mulher, segun<strong>do</strong> Isabel Fortes, ama por reconhecer<br />

nela uma marca da sua própria feminilidade. A outra é rival, mas é pelo desejo de uma<br />

mulher que o falo masculino adquire valor, é porque a mãe se dirige ao pai que a<br />

menina se volta para ele para saber o que ela não tem e a mãe tem.<br />

Em relação a rivalidade, o problema maior não é o homem olhar para outra<br />

mulher, mas que ele coloque uma outra mulher num lugar especial, <strong>do</strong> seu desejo, a<br />

mulher não admite que ela não seja o único objeto de amor <strong>do</strong> homem, assim como a<br />

criança pequena em geral fica “<strong>do</strong>ente” quan<strong>do</strong> nasce um irmão pelo fato de ter que<br />

dividir o amor objetal.<br />

Conclui-se que, sob o ponto de vista da psicanálise a questão da feminilidade é<br />

complexa e cheia de “armadilhas”, explican<strong>do</strong> assim que a passividade atribuída à<br />

mulher é um mero engano, pois todas as relações, sejam elas entre homens e<br />

mulheres, entre mulheres, filhos e mães, são atravessadas e inscritas pela lógica<br />

psíquica da mulher. To<strong>do</strong> o discurso masculino, portanto, é “embebi<strong>do</strong>” da alma<br />

feminina ainda que a autoria por longos séculos pertencesse às figuras masculinas.<br />

111


2.4 O Direito e a Proteção ao Modelo Familiar Burguês<br />

Enquanto a Filosofia, a ciência e a religião definem a identidade feminina (com<br />

algumas variantes, conforme visto), o Direito, por sua vez, não se limita a uma mera<br />

reprodução desses valores: o discurso jurídico é uma estratégia cria<strong>do</strong>ra de gênero, ou<br />

então, o discurso jurídico cria a mulher como um sujeito com gênero. Isso permite<br />

pensar o Direito como um processo de produção de identidades, ao invés de analisar<br />

simplesmente a aplicação <strong>do</strong> Direito a sujeitos que têm gênero previamente.<br />

Antes de concluir-se este capítulo, abordar-se-ão alguns aspectos sobre o status<br />

ocupa<strong>do</strong> pela mulher no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> discurso jurídico <strong>do</strong> século XIX.<br />

Pelo seu papel simbólico de regulação, observa Nicole Arnaud-Duc, “o direito fixa<br />

as normas de uma sociedade e determina os papéis sociais” 229 , ou seja, o ordenamento<br />

jurídico tem na origem de sua função regular o comportamento das pessoas, uma vez<br />

que, como sustenta Pierre Legendre, “o Direito não é uma palavra de um sujeito; é uma<br />

avalanche de textos que ordenam as estruturas institucionais, produzin<strong>do</strong> assim um<br />

efeito particular de ficção: é ‘como se’ as instituições falassem”. 230<br />

O discurso jurídico, defende autor, é o discurso <strong>do</strong> poder por excelência, e o<br />

Direito se revela como a mais antiga ciência para <strong>do</strong>minar e fazer marchar a<br />

229<br />

ARNAUD-DUC, Nicole. As contradições <strong>do</strong> direito. In: DUBY; PERROT. História das mulheres no ocidente, p.<br />

97.<br />

230<br />

Cita<strong>do</strong> por Fernanda Otoni de Barros em sua obra Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 17.<br />

112


humanidade. O fundamento e a eficácia de toda lei está em “fazer crer”. Crer na lei é<br />

obedecer a ela. “Fazer crer é a <strong>grande</strong> arte <strong>do</strong> poder”. 231<br />

É na fé ou na crença <strong>do</strong> ordenamento jurídico que consiste o seu papel simbólico<br />

de regulação, e, como técnica de “fazer crer”, o Direito se oferece como uma instância<br />

de proteção, capaz de amparar o indivíduo das mazelas da vida, das injustiças, aplacar<br />

a <strong>do</strong>r da sua existência, garantir-lhe segurança e ordem.<br />

O Direito como um lugar de proteção é instituí<strong>do</strong> pela palavra. “A ordem jurídica<br />

é eficaz em sua função de ordenação social, pois estrutura-se enquanto linguagem, é<br />

na estrutura da linguagem que a transmissão é possível”. 232 É o discurso, por<br />

excelência, que faz obedecer.<br />

Inequívoco é que toda a organização e a base de estrutura <strong>do</strong> Direito, desde os<br />

tempos mais primórdios, estão assentadas numa autoridade, numa instituição fictícia e<br />

“essa autoridade última é uma referência ao pai, ou seja, sua metáfora”. 233 É dessa<br />

autoridade paterna que depende o poder simbólico da norma. Como afirma Fernanda<br />

Otoni de Barros, 234 “[...] o ordenamento oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> poder paterno está na coluna <strong>do</strong>rsal<br />

231 Idem, ibidem.<br />

232 Idem, p. 18.<br />

233 Idem, p. 4.<br />

234 É a partir das discussões de Norberto Bobbio, e da Teoria Pura <strong>do</strong> Direito de Hans Kelsen, que a autora tenta<br />

demonstrar a articulação entre a paternidade e os fundamentos, ou a fonte normativa <strong>do</strong> Direito. No entendimento da<br />

mesma, tanto Kelsen quanto Bobbio valem-se de exemplos que traduzem a realidade familiar, comparan<strong>do</strong> o<br />

ordenamento jurídico à estrutura <strong>do</strong> ordenamento familiar, sempre remeten<strong>do</strong> ao pai o poder normativo constituinte.<br />

Em seu artigo La Función de la Constitutución, cita<strong>do</strong> pela autora, Kelsen defende que junto ao postula<strong>do</strong> de uma<br />

norma fundamental se deve imediatamente supor uma autoridade imaginária, uma autoridade máxima por cima da<br />

qual não pode haver nenhuma outra. Essa autoridade máxima é entendida por Kelsen como uma instância imaginária<br />

113


<strong>do</strong> ordenamento jurídico, seja explicitamente, na ordenação das relações familiares,<br />

como chefe de família, seja num deslocamento simbólico, transferi<strong>do</strong> para a autoridade<br />

papal ou <strong>do</strong> chefe de Esta<strong>do</strong>, Soberano, Deus, enfim substitutos hierárquicos da<br />

autoridade pater “. 235<br />

Pensar a representação da paternidade 236 no campo jurídico possibilita, de uma<br />

parte, compreender o poder de regulamentação <strong>do</strong> Direito, a autoridade simbólica <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ordenamento jurídico, o poder <strong>do</strong> discurso, de outra, dá indicativos <strong>do</strong> status<br />

jurídico da mulher no Direito e como este, conforme já aludi<strong>do</strong>, não apenas tem gênero,<br />

é sexista, como largamente afirmam as teorias feministas no campo da Sociologia<br />

Jurídica, mas serve como estratégia cria<strong>do</strong>ra de gênero, ordenan<strong>do</strong> lugares, definin<strong>do</strong><br />

para além da autoridade da Constituição dan<strong>do</strong> validez à constituição. E esta autoridade imaginária, “com o poder de<br />

ordenar a obrigação da obediência, foi sempre referida à figura paterna, ou seja, a uma metáfora <strong>do</strong> pai, representada<br />

por Deus, o Papa, o Rei ou o próp<strong>rio</strong> pai [...]” In: BARROS, Fernanda Otoni de. Do direito ao pai. Belo Horizonte:<br />

Del Rey, 2001, p. 7. A apelação ao pai de família para justificar a fonte das fontes no ordenamento jurídico também<br />

está posta nos postula<strong>do</strong>s de Bobbio na sua discussão acerca <strong>do</strong> Direito Natural. Recorren<strong>do</strong> a John Locke, Bobbio<br />

afirma que é no direito de criação, na relação entre pais e filhos que se busca o primeiro mo<strong>do</strong> de legitimação <strong>do</strong><br />

poder. “È desse poder que ele deriva a fonte <strong>do</strong> Direto Natural que, segun<strong>do</strong> Locke, é perpétuo, váli<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os<br />

tempos, e universal, váli<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s os homens”. In: BARROS. Op. cit, p. 25.<br />

235 Idem, p. 24.<br />

236 Ainda que a psicanálise toma a representação da paternidade enquanto função paterna, a qual pode ser exercida<br />

por ambos os sexos (pai ou mãe), historicamente no Direito essa função está representada na figura masculina. Já na<br />

Bíblia o pai aparece como legítimo representante de Deus, caben<strong>do</strong>-lhe o poder de vida e morte sobre o filho<br />

(Abraão oferece seu filho em sacrifício a Deus). O panorama da família romana <strong>do</strong>s primeiros séculos também não<br />

difere muito. Ao chefe de família, ao pater, é que caberiam os rumos das relações familiares. Toda a ascensão social<br />

e movimento <strong>do</strong> cidadão romano dentro de uma sociedade eram necessariamente subordina<strong>do</strong>s ao pai de família, que<br />

decidia sobre a vida e morte <strong>do</strong> filho, emancipação, casamento, etc. A lei suprema dentro da família romana era o<br />

pai. O direito canônico, por sua vez, também repousa nessa referência da organização familiar centrada na figura<br />

paterna. É no princípio patriarcal que repousa a autoridade organiza<strong>do</strong>ra da família, cujo princípio, orienta a vida<br />

social durante a Idade Média: o papa<strong>do</strong> enquanto autoridade máxima em termos de justiça; seguin<strong>do</strong>-se a este o<br />

Esta<strong>do</strong>, de característica soberana em sua organização, e, por fim, a família, de inspiração divina, em que o pai é<br />

sucessor natural de Deus. O Direito pouco visa ao cidadão enquanto sujeito individual. Está este posto entre os<br />

interesses <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, da Igreja e da família, inexistin<strong>do</strong> praticamente as noções de direitos e garantias individuais.<br />

114


identidades, crian<strong>do</strong> e re(crian<strong>do</strong>) estereótipos que apontam para a natural<br />

ambigüidade da figura feminina. 237<br />

Como assinala Nicole Arnaud-Duc, “as relações de forças masculino/feminino<br />

fazem parte de um jogo de trocas, de interpretações entre sistema social e sistema<br />

jurídico, no próp<strong>rio</strong> âmago das contradições”. 238 Se a igualdade jurídica coloca-se,<br />

desde Aristóteles, em termos de desigualdades consideradas naturais, porque<br />

derivadas da própria natureza das coisas, o século XIX está funda<strong>do</strong> na liberdade, na<br />

igualdade e na autonomia <strong>do</strong> sujeito.<br />

O Direito deve, portanto, adaptar o seu discurso à evolução <strong>do</strong>s costumes<br />

liga<strong>do</strong>s às alterações econômicas e políticas em vigor. Os juristas irão legitimar a<br />

desigualdade de tratamento segun<strong>do</strong> o sexo no pressuposto de que as mulheres<br />

desejam e necessitam ser protegidas contra si mesmas. Por conseguinte, o mesmo<br />

discurso que se mostra protetor, em face das criaturas voluntariamente fragilizadas,<br />

também denunciava uma vertigem perante a força nelas pressentida.<br />

Haveria legitimidade na reivindicação de direitos cujo objetivo fosse tornar as<br />

mulheres melhores esposas e mães. O Direito emitia, dessa forma, a imagem da<br />

mulher ideal construída sobre o modelo da mãe de família burguesa, o que pode ser<br />

visto como um fator de exclusão social para aquelas mulheres viven<strong>do</strong> à margem da<br />

célula familiar.<br />

237 Esta questão será retomada no capítulo 3, a partir de uma perspectiva <strong>do</strong> Direito Penal.<br />

238 In: DUBY; PERROT. História das mulheres no ocidente, p.97.<br />

115


Superprotegida dentro da relação familiar, ou melhor, no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> modelo da<br />

família burguesa, como esposa ociosa, privada <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>méstico, sob a idéia de<br />

que as mulheres deveriam ser integralmente sustentadas pelos homens. A privação <strong>do</strong>s<br />

direitos políticos, ou o não direito à administração <strong>do</strong>s bens, não representava um<br />

verdadeiro problema para as mulheres mais favorecidas que acabaram por se<br />

emancipar no plano <strong>do</strong>s costumes.<br />

Já a mulher trabalha<strong>do</strong>ra, operária, camponesa, mulher <strong>do</strong> povo, a mulher que<br />

vivia fora <strong>do</strong> núcleo familiar burguês, permanecem à margem de qualquer direito no<br />

centro das transformações sociais e econômicas <strong>do</strong> século XIX: excluídas <strong>do</strong> voto,<br />

impedidas de alcançarem a educação e sujeitas a um direito laboral, se não omisso,<br />

discriminató<strong>rio</strong>, são as mulheres das classes desfavorecidas que mais sofrem os<br />

efeitos de seu status jurídico, uma vez que o Direito foi pensa<strong>do</strong> em função das<br />

mulheres burguesas ou da família modelo, da moral e <strong>do</strong>s valores.<br />

Rosalind Miles 239 , referin<strong>do</strong>-se aos mecanismos de controle e disciplina <strong>do</strong><br />

século XIX, observa que, apesar da educação, a sociedade produz ainda uma enorme<br />

bateria de controles sociais legais que, além de revelar o nível de ansiedade masculina,<br />

mostra a força de resistência da mulher. Havia uma visível recusa de consentimento à<br />

sujeição.<br />

239 MILES, Rosalind. A história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela mulher. Rio de Janeiro: Casa-Maria Editorial, 1988.<br />

116


Cabe observar, entretanto, que os discursos de disciplina e de controle exprimem<br />

mais um projeto ou um programa <strong>do</strong> que propriamente uma operação. Ou, então,<br />

recorren<strong>do</strong> mais uma vez aos princípios de Michel Foucault, os sistemas de controle se<br />

sobrepõem e coexistem com os movimentos de resistência. Isso permite pensar a<br />

mulher além <strong>do</strong> seu lugar de opressão. Possibilita perceber a mulher como um sujeito<br />

ativo no inte<strong>rio</strong>r da família. Se ao homem era reserva<strong>do</strong> o poder <strong>do</strong> coman<strong>do</strong>, à mulher<br />

caberia a capacidade de persuasão. Aponta ainda para permeabilidade das fronteiras<br />

entre o público e o priva<strong>do</strong>.<br />

As regras, normas, instruções e punições revelariam quais as áreas precisas da<br />

ansiedade masculina “e não há uma parte <strong>do</strong> corpo feminino que de alguma forma não<br />

seja alvo de alguma espécie de pânico, raiva ou profun<strong>do</strong> temor” 240 , sublinha Rosalind<br />

Miles. Segun<strong>do</strong> a autora, “juntamente com a revolução <strong>do</strong> industrialismo, e a vitória da<br />

ciência sobre a sensatez e a razão, as leis <strong>do</strong> século XIX tornaram-se o terceiro e a<br />

mais abertamente opressivo <strong>do</strong>s inimigos da emancipação feminina”. 241<br />

O Código Civil de Napoleão, que vigorou na França a partir de 1804 e que<br />

exerceu forte influência sobre a legislação <strong>do</strong>s países ocidentais, deixava as mulheres<br />

em piores condições <strong>do</strong> que durante toda a Idade Média, <strong>do</strong>tan<strong>do</strong> os mari<strong>do</strong>s de<br />

poderes extraordiná<strong>rio</strong>s, sem precedentes na História. Estabelecia a autoridade<br />

absoluta <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> no lar e <strong>do</strong> pai na família. De forte inspiração romana e germânica,<br />

a autoridade <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> era justificada pelo dever de proteção, ten<strong>do</strong> em vista não mais<br />

240 Idem, p. 121.<br />

241 Idem, p. 266.<br />

117


a infe<strong>rio</strong>ridade, mas a fragilidade <strong>do</strong> sexo feminino. Por conta dessa proteção, a mulher<br />

devia total obediência ao mari<strong>do</strong>.<br />

Na medida em que ascende a sociedade burguesa européia no século XIX e<br />

com a crescente urbanização, a mulher casada deixa de ser um indivíduo responsável<br />

e to<strong>do</strong>s os atos que pratica, sem autorização <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> ou da justiça eram passíveis de<br />

nulidade. A mulher não podia ser tutora nem membro de um conselho de família, se<br />

aban<strong>do</strong>nasse o lar, era reconduzida por força pública. A adúltera sofria pesadas penas<br />

por representar uma ameaça à sucessão legítima, o mari<strong>do</strong> que mantivesse uma<br />

concubina, sob o mesmo teto, pagava apenas uma pequena multa. Ao mari<strong>do</strong>, era<br />

delega<strong>do</strong> ainda o poder soberano de conceder o perdão, fazen<strong>do</strong> cessar os efeitos da<br />

condenação.<br />

O Código Civil proibia a investigação de paternidade, ao passo que o direito<br />

consuetudiná<strong>rio</strong> exigia que o homem que engravidasse uma moça deveria casar-se<br />

com ela. A mulher não podia dispor <strong>do</strong>s seus bens e <strong>do</strong> seu salá<strong>rio</strong>, e a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

mari<strong>do</strong>, pai ou patrão, poderia ser internada nas casas para tratamento da loucura. Os<br />

mari<strong>do</strong>s também teriam assegura<strong>do</strong> o direito de vigiar as visitas, os passeios, as idas e<br />

vindas e a correspondência da mulher.<br />

Em caso de divórcio, se à mãe é confiada a guarda <strong>do</strong>s filhos, a lei francesa<br />

autorizava ao pai a vigilância na educação e poder de tomada de decisões; na<br />

Alemanha o pai culpa<strong>do</strong> pelo divórcio não perdia o direito de administrar os bens <strong>do</strong><br />

118


menor, enquanto na Inglaterra, em caso de uma separação, o pai gozava de absolutos<br />

poderes sobre os filhos poden<strong>do</strong> levá-los para onde bem entendesse. 242<br />

2.4.1 A Mulher no Direto Penal <strong>do</strong> Século XIX 243<br />

Se, não há dúvidas quanto à incapacidade da mulher no Código Civil, o mesmo<br />

não se estende ao campo penal, no que diz respeito à responsabilidade penal, ainda<br />

que na Inglaterra, até 1870, era o mari<strong>do</strong> responsável pelos delitos cometi<strong>do</strong>s pela sua<br />

mulher, responden<strong>do</strong> por ela perante a justiça. Já na França, de uma forma geral, as<br />

mulheres, como os menores e os septuagená<strong>rio</strong>s, são dispensadas da ordem de prisão,<br />

não sen<strong>do</strong> presas para a execução das condenações. 244<br />

Com a intervenção e um controle cada vez maior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> sobre a família, o<br />

Direito Penal passa a punir com mais rigor o aborto e o infanticídio, delitos largamente<br />

pratica<strong>do</strong>s até então e que ficavam à margem da punição. O Código Penal francês de<br />

1810 pune com a pena de morte o infanticídio, porém essa pena dificilmente é aplicada<br />

pelos tribunais criminais que, normalmente, decidem pela absolvição ou pela aplicação<br />

de atenuantes.<br />

242 Nicole Arnaud-Duc. In: DUBY; PERROT. História das mulheres no ocidente, p. 111.<br />

243 Não é objeto deste estu<strong>do</strong> analisar exaustivamente institutos jurídicos, penais ou civis, comprovan<strong>do</strong> a supremacia<br />

masculina no Direito europeu <strong>do</strong> século XIX, seja sob a concessão de direitos, seja na diferença de tratamento no que<br />

diz respeito aos meios de provas, à desigualdade das penas incorridas pelo autor, entre outros. Os casos aludi<strong>do</strong>s e os<br />

que seguem têm o intuito apenas de exemplificar e possibilitar uma melhor compreensão de como o Direito é<br />

atravessa<strong>do</strong> pela idéia de gênero mediante a atribuição de alguns valores e espaço próp<strong>rio</strong>, dan<strong>do</strong> origem a categorias<br />

no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> próp<strong>rio</strong> gênero feminino, o que é relevante para o estu<strong>do</strong> que será apresenta<strong>do</strong> no capítulo 3.<br />

244 Idem, p. 112.<br />

119


Por essa razão, o infanticídio passa, em 1910, à categoria de delito, julga<strong>do</strong><br />

pelos magistra<strong>do</strong>s profissionais, o que garante a aplicação de penas mais severas.O<br />

Código Francês não prevê pena atenuada quan<strong>do</strong> o infanticídio foi causa<strong>do</strong> pelo desejo<br />

de salvar a honra da mãe, o que era comum na legislação de outros países<br />

europeus. 245<br />

Cabe lembrar ainda a legetimidade outorgada pela maioria <strong>do</strong>s códigos europeus<br />

ao mari<strong>do</strong> defensor de sua honra: “o assassínio cometi<strong>do</strong> pelo mari<strong>do</strong> na pessoa da<br />

esposa ou <strong>do</strong> cúmplice surpreendi<strong>do</strong> em flagrante no <strong>do</strong>micílio conjugal (entendi<strong>do</strong><br />

pelos tribunais como o <strong>do</strong>micílio de facto) é desculpável, diz o ‘artigo vermelho’ <strong>do</strong><br />

Código Penal francês (art.324)”. 246<br />

Já em se tratan<strong>do</strong> de violência sexual, o dever conjugal autoriza o mari<strong>do</strong> a usar<br />

de violência, desde que respeita<strong>do</strong>s os limites da natureza, <strong>do</strong>s bons costumes e das<br />

leis. Ou seja, o Direito apenas punia os exageros, ou os atos contrá<strong>rio</strong>s aos legítimos<br />

fins <strong>do</strong> casamento. Por outro la<strong>do</strong>, a violação, expressão que aparece no Código<br />

Francês como “atenta<strong>do</strong> aos costumes”, é a “prova que é mais a ordem pública que é<br />

visada <strong>do</strong> que a vítima”. 247<br />

245 Idem, ibidem.<br />

246 Idem, ibidem.<br />

247 Idem, p. 114.<br />

120


A literatura dá conta de um vasto elenco de normas jurídicas que atestam a<br />

forte proteção à moral sexual. Segun<strong>do</strong> afirma Odete Maria de Oliveira, 248 até o final <strong>do</strong><br />

século XIX, os estu<strong>do</strong>s acerca da problemática da mulher com o Direito Penal<br />

concentraram-se quase que exclusivamente no “aspecto ético-moral”. A delinqüência<br />

da mulher, segun<strong>do</strong> a autora, era associada a sua moral, a sua reputação, dan<strong>do</strong> a<br />

origem a categorias como “moralmente corrupta”, “vagabunda”, “diabólica”.<br />

O discurso jurídico, se não cria, pelo menos reforça o conceito de “mulher<br />

honesta”: frágil criatura, circunscrita aos limites <strong>do</strong> lar, com sua vocação natural à<br />

maternidade, ao pu<strong>do</strong>r, à inocência e à castidade. Em oposição à rainha <strong>do</strong> lar, à mãe<br />

virtuosa, está Eva, mulher sedutora e peca<strong>do</strong>ra que, pelo seu desejo ilimita<strong>do</strong>, expulsou<br />

o homem <strong>do</strong> paraíso. Essa deve ser fortemente reprimida e punida pelo sistema penal,<br />

pois a este cabe a função <strong>do</strong> controle social. O Direito Penal assume, dessa forma, a<br />

condição de um forte instrumento de defesa e controle da moral sexual imposta às<br />

mulheres.<br />

O estereótipo representa<strong>do</strong> na figura de Eva e que sobrevive na ideologia <strong>do</strong><br />

moderno Direito Penal encontra a sua maior expressão na figura da prostituta, “nascida<br />

da luxúria masculina, depois punida por atendê-la” 249 , considera Rosalind Miles,<br />

segun<strong>do</strong> a qual, a prostituta expressava por intermédio de seu corpo a eterna tensão<br />

248 OLIVEIRA, Odete Maria. A mulher e o fenômeno da criminalidade. In: ANDRADE, Vera Regina (Org). Verso e<br />

reverso <strong>do</strong> controle penal:(des)aprisionan<strong>do</strong> a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux,<br />

2002, p. 167.<br />

249 MILES, Op .cit., p. 138.<br />

121


sexual entre o prazer e o perigo. Seu ofício se tornava o campo de batalha onde o<br />

desejo <strong>do</strong> macho e seu desprezo pela mulher colidiam frontalmente.<br />

Quanto mais fecha<strong>do</strong> se mostrava o círculo em torno das esposas e virtuosas<br />

mães, graças à maior sujeição e controles opressivos, mais tornavam-se pesadas as<br />

penas por qualquer desvio. “Isto torna-se muito claro pelo agravamento da severidade<br />

das punições das ‘rameiras e prostitutas’ através <strong>do</strong>s séculos [...] “. 250<br />

Os primeiros tipos penais femininos de que se tem notícia, estavam diretamente<br />

liga<strong>do</strong>s à sexualidade feminina. A lei <strong>do</strong>s Visigo<strong>do</strong>s, por exemplo, rezava que as<br />

prostitutas deveriam ser publicamente açoitadas e seus narizes corta<strong>do</strong>s como marca<br />

de sua vergonha. Pelo estatuto <strong>do</strong> rei Henrique II na Inglaterra <strong>do</strong> século XII, a<br />

prostituta sofria, além das penas acima referidas, a privação de ter amantes, três<br />

semanas na prisão, uma visita ao banco <strong>do</strong> adulté<strong>rio</strong> e o banimento da cidade.<br />

Duzentos anos mais tarde, no reina<strong>do</strong> de Eduar<strong>do</strong> III, a prostituta era obrigada a usar<br />

um escu<strong>do</strong> ou um capuz especial para impor uma marca deforma<strong>do</strong>ra à imundície. 251<br />

Com o aumento <strong>do</strong> puritanismo, no final no século XVIII e início <strong>do</strong> século XIX,<br />

observa Rosalind Miles, as penas impostas às mulheres, cujo comportamento não<br />

correspondesse aos ideais masculinos de feminilidade, atingiriam o nível mais alto <strong>do</strong><br />

sadismo e da selvageria sem precedentes. Eram comuns as mortes por enforcamento e<br />

apedrejamento de mulheres numa época em que os suplícios perdiam sua legitimidade.<br />

250 Idem, ibidem.<br />

251 Idem, ibidem.<br />

122


Nicole Arnaud-Duc 252 lembra que na França <strong>do</strong> século XIX a prostituição, além<br />

de não ser proibida, era considerada indispensável aos homens, sen<strong>do</strong> fortemente<br />

regulamentada pelo Esta<strong>do</strong>, deven<strong>do</strong> ser vivida em “dissimulação” e “vergonha”. Por<br />

conta dessa regulamentação, “minunciosa” e “humilhante”, as mulheres sofrem as<br />

medidas mais vexatórias, reinan<strong>do</strong> o arbít<strong>rio</strong> policial, médico e religioso.<br />

A partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX, devi<strong>do</strong> ao número de prostitutas vítimas da<br />

miséria e a proliferação das <strong>do</strong>enças sexualmente transmissíveis, inicia-se um<br />

movimento de compaixão pelas prostitutas na Europa e nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que<br />

reivindicava por políticas sociais. Tais discursos, sustenta a autora, eram carrega<strong>do</strong>s<br />

de cunho moralista num movimento de controle da sexualidade extraconjugal. De outra<br />

parte, os movimentos feministas lutavam, em nome da liberdade, contra as políticas de<br />

costumes e a prisão das prostitutas.<br />

Tem-se, assim, ao final deste capítulo um panorama das representações<br />

(discursos) que fundamentaram e pronunciaram os papéis e lugares da mulher na<br />

ordem social e familiar da Europa oitocentista.<br />

Cabe ressalvar, entretanto, de que em oposição, ou na coexistência a um<br />

aparente consentimento a essas representações, o século XIX configura uma época de<br />

transição para as mulheres, que abre espaço para uma identidade mais autônoma e<br />

uma nova concepção de feminilidade.<br />

252 In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente, p. 113-14.<br />

123


Ou, noutras palavras, se pelo desvio ou pela inversão, as mulheres criam<br />

subterfúgios ínfimos, possibilitan<strong>do</strong>-lhes a apropriação das palavras, inserin<strong>do</strong>-se no<br />

mun<strong>do</strong> moderno pela via indireta da cultura, o que lhes possibilita dizer além <strong>do</strong><br />

discurso masculino. É essa reinvenção que possibilitou a existência de uma nova<br />

mulher no século XXI, ainda que o peso de um modelo tradicional de feminilidade<br />

continue a imperar no imaginá<strong>rio</strong> coletivo e latente, tanto nos conceitos quanto nas<br />

instituições.<br />

Ten<strong>do</strong> como campo teórico o discurso jurídico-penal apresenta<strong>do</strong> no capítulo 1<br />

deste estu<strong>do</strong> e os discursos que instituem o referencial de feminilidade é que se<br />

discute no espaço a seguir a relação da mulher com o Direito Penal contemporâneo.<br />

Trata-se de procurar entender ou compreender a situação das mulheres perante a Lei<br />

Penal. Compreender, assinala Tove Stang Dahl, “é descobrir relações, ter uma visão de<br />

conjunto”. 253<br />

Essa visão de conjunto consiste em refletir sobre as relações, descobrir várias<br />

conexões entre os fenômenos. É ir além da simples descrição e da explicação. É, no<br />

caso deste estu<strong>do</strong>, procurar novas conexões entre o Direito Penal, a sociedade e a<br />

condição da mulher. É entender como o Direito Penal encara as mulheres e como<br />

responde as suas realidades e necessidades.<br />

253 DAHL, Tove Stang. O direito das mulheres: uma introdução à teoria <strong>do</strong> direito feminista. Lisboa: Fundação<br />

Calouste Guilbenkian, 1993, p. 21.<br />

124


3 O DIREITO PENAL SOB A PERPECTIVA DE GÊNERO<br />

3.1 O Sistema Penal e a sua Própria Versão de Gênero<br />

A relação da mulher com o sistema penal deve ser analisada numa dimensão<br />

mais ampla das relações e práticas sociais, buscan<strong>do</strong> no plano material, histórico,<br />

cultural e epistemológico a compreensão de suas especificidades, sem cair, todavia, no<br />

reducionismo estruturalista em que as categorias assumem autonomia face ao realismo<br />

histórico, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>, assim, o plano discursivo.<br />

O campo de partida desta análise, portanto, são as constatações já evidenciadas<br />

nos <strong>do</strong>is capítulos ante<strong>rio</strong>res que possibilitam perceber o Direito a partir de sua<br />

realidade social colocada no plano histórico. Isso faz <strong>do</strong> contexto político um fator<br />

determinante para a feitura <strong>do</strong>s meios de sanção, e para a determinação de quais bens<br />

serão juridicamente tutela<strong>do</strong>s pelo Direito Penal e a intensidade dessa proteção. Ou,<br />

então, a lei escrita é o resulta<strong>do</strong> de um processo político emana<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo social, e<br />

125


ainda que não lhe seja cabida uma interpretação livre, a sua operação implica uma<br />

série de convenções incorporadas à hermenêutica jurídica.<br />

Incorporar a categoria de gênero na análise <strong>do</strong> Direito Penal importa, pois, numa<br />

valoração crítica <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> material da norma, bem como, da meto<strong>do</strong>logia legal com<br />

que juristas, advoga<strong>do</strong>s e a própria polícia interpretam o Direito na sua prática diária.<br />

Essa ótica remete a um contexto mais amplo da relação da mulher com o Esta<strong>do</strong><br />

Democrático de Direito, o qual pode ser considera<strong>do</strong>, em <strong>grande</strong> medida, enquanto um<br />

instrumento de regulação sob o discurso da proteção 254 , visto que as mulheres<br />

continuam sujeitas, muito mais <strong>do</strong> que os homens, a leis paternalistas e à uma rede de<br />

serviços institucionaliza que se traduz em formas de controle e normatização, além de<br />

pronunciar lugares e funções, visto que o espaço público, por meio <strong>do</strong> seu discurso,<br />

também produz verdades e subjetividades.<br />

Cabe ressaltar que, se existe a escolha de um gênero, essa se dá a partir de<br />

uma rede de normas culturais profundamente entranhadas. 255 Nesse senti<strong>do</strong>, sublinha<br />

254 Iara Ilgenfritz da Silva, falan<strong>do</strong> sobre a representação da sexualidade feminina no Direito penal, sustenta que a lei<br />

protege não a liberdade sexual e sim a sexualidade social feminina “reconhecida, utilitária e fecunda, praticada pelo<br />

casal legítimo e procria<strong>do</strong>r. Essa proteção considera a figura <strong>do</strong> delinqüente das práticas sociais de transgressão<br />

deliberada, em relação à postura da mulher que ele atacou. Isso significa que considera em que medida essa mulher é<br />

‘honesta’, em que medida esta mulher exerceu a provocação para ser seduzida ou estuprada, em que grau ela reagiu<br />

ao ser atacada e a que classe social ela pertence, ou que profissão exerce, etc”. In: SILVA, Iara Ilgengritz da. Direito<br />

ou punição: representação da sexualidade feminina no Direito Penal. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985, p. 34.<br />

255 No capítulo 2, evidenciou-se que a identidade feminina ou o papel social da mulher ao longo da história, com<br />

mais veemência a partir da sociedade moderna, esteve enraiza<strong>do</strong> na diferença sexual, de onde se acreditava provir a<br />

sua infe<strong>rio</strong>ridade intelectual, privan<strong>do</strong> a mulher <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das ciências e da política. Seu papel na família e na<br />

sociedade era o de reprodutora da espécie, de mulher esposa, mãe, organiza<strong>do</strong>ra e guardiã <strong>do</strong> lar, lugar que também<br />

ditava a sua sexualidade e a moral sexual defendida socialmente. Consideran<strong>do</strong> que o Direito Penal brasileiro tem a<br />

sua construção calcada nos princípios <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX, o seu corpo normativo vem fortemente marca<strong>do</strong> pelo<br />

126


Elena Larrauri, enquanto o sexo é determina<strong>do</strong> biologicamente, o gênero é sempre uma<br />

construção social. Segun<strong>do</strong> a autora, um <strong>do</strong>s <strong>grande</strong>s avanços <strong>do</strong>s movimentos<br />

feministas nas últimas décadas é mostrar que o gênero não pode ser entendi<strong>do</strong> como<br />

um fato natural. 256<br />

O entendimento de que o gênero não é defini<strong>do</strong> pela anatomia <strong>do</strong> corpo, o que<br />

permitiria chegar a uma categoria homogênea de mulheres, possibilita afirmar que há<br />

estratégias, varian<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> a cultura e a história, a partir das quais a mulher ou as<br />

mulheres são criadas, observa Carol Smart 257 , assinalan<strong>do</strong> que dentre essas<br />

estratégias se encontra o Direito.<br />

As estratégias <strong>do</strong> Direito para criar gênero inscrevem-se num duplo movimento.<br />

Segun<strong>do</strong> a autora, há uma distinção entre a produção discursiva de um tipo de mulher e<br />

a construção discursiva de mulher. Esses <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s trabalham simbioticamente.<br />

A construção discursiva de um tipo de mulher, sublinha a autora, é subtraída da prévia<br />

categoria de mulher (esta sempre oposta ao homem, representan<strong>do</strong> a diferença natural<br />

entre homem e mulher). Demonstrar como o sistema penal age na construção desses<br />

<strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s, sua complexa articulação com os sistemas de controle instituí<strong>do</strong>s pelo<br />

ideal de feminilidade assim representa<strong>do</strong>, visto que o Direito valora, ordena e orienta a realidade segun<strong>do</strong> crité<strong>rio</strong>s<br />

axiológicos. Ou, então, a tipificação penal apresenta uma gênese masculina refletin<strong>do</strong> a expectativa social <strong>do</strong> devi<strong>do</strong><br />

comportamento da mulher. Esses aspectos ganham maior relevância nos chama<strong>do</strong>s “Crimes Contra os Costumes”,<br />

cujo objeto jurídico é a tutela da liberdade sexual da mulher. No decorrer deste trabalho demonstrar-se-á que se trata<br />

de uma proteção discriminatória e segregante, não só <strong>do</strong>s sexos, mas de uma discriminação que opera na<br />

(re)produção discursiva de um tipo de mulher.<br />

256<br />

LARRAURI, Helena (Comp). Mujeres, Derecho Penal y Criminologia. Madrid: Siglo Veintiuno de España<br />

Editores, 1994, p. 12.<br />

257<br />

SMART, Carol. La Mujer del Discurso Jurídico. In: Larrauri, Helena (Comp). Mujeres, Derecho Penal y<br />

Criminologia. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1994, p. 180.<br />

127


Esta<strong>do</strong> e a sociedade, sua relação com a vida individual e coletiva, é a discussão que<br />

se apresenta a seguir.<br />

Cabe observar antes que o entendimento teórico assim situa<strong>do</strong> implica<br />

desconstruir a idéia de que o Direito Penal é sexista e masculino, conforme têm<br />

demonstra<strong>do</strong> as teorias jurídicas feministas que há muito evocam esses conceitos.<br />

Esse enfoque restringe as possibilidades de entendimento da questão, uma vez que<br />

perpetua a idéia de que o Direito é uma unidade, crian<strong>do</strong> ainda uma categoria unitária,<br />

homogênea, de homens e mulheres.<br />

Carol Smart 258 em seu artigo La Mujer Del Discurso Jurídico faz uma profunda<br />

análise da compreensão desses conceitos, demonstran<strong>do</strong> de como seus pressupostos<br />

implicam a fixação de uma categoria empírica de homem e de mulher a partir <strong>do</strong> valor<br />

biológico, psicológico ou social a respeito <strong>do</strong> sexo. Ainda segun<strong>do</strong> a autora, qualquer<br />

argumento que parte da divisão binária de homem/mulher, ou masculino/feminino<br />

obscurece outras formas de diferenciação, isto é, ao estabelecer essas dicotomias, o<br />

pluralismo existente no inte<strong>rio</strong>r de cada uma dessas categorias converte-se em meras<br />

junções.<br />

O conceito de sexismo, afirma a autora, pressupõe pensar que o Direito na<br />

prática coloca as mulheres em desvantagem em relação aos homens porque são<br />

tratadas diferentes destes. Isso implica que as diferenças podem ser superadas como<br />

258 In: LARRAURI. Op. cit., p. 167-189.<br />

128


se fossem uma questão de fenômeno e não como uma questão fundamental pela qual<br />

se entende e se negocia a ordem social. Ver o problema nessa perspectiva é entender<br />

que o significa<strong>do</strong> da diferença sobrepõe-se à idéia da discriminação 259 , pondera Carol<br />

Smart, e que o superar seria erradicar as diferenças.<br />

Isso seria supor uma sociedade sem gênero. “Se erradicar a discriminação<br />

depende da erradicação das diferenças, temos que ser capazes de pensar em uma<br />

cultura sem gênero”. 260 E as diferenças sexuais, considera a autora, vistas ou não como<br />

algo construí<strong>do</strong>, formam parte de uma estrutura binária da linguagem e <strong>do</strong>s<br />

significa<strong>do</strong>s.<br />

O argumento feminista de um Direito sexista quan<strong>do</strong> aplica<strong>do</strong> ao sistema penal<br />

faz presumir de que esse, mesmo atuan<strong>do</strong> com imparcialidade, igualdade e<br />

objetividade, fala de um lugar masculino, pois são os valores masculinos que foram<br />

toma<strong>do</strong>s como universais e que esses sempre defendem o interesse <strong>do</strong>s homens<br />

enquanto categoria homogênea. Toman<strong>do</strong>-se por referência o estu<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> no<br />

capítulo 1, pode-se afirmar que o sistema penal não protege os interesses <strong>do</strong>s homens<br />

nem os interesses das mulheres, enquanto categorias.<br />

259 O conceito “discriminação”, considera Tove Stang Dahl, é em si mesmo neutro, implican<strong>do</strong> tratar diferentemente<br />

duas qualidades ou <strong>do</strong>is fenômenos, desde que sejam diferentes e haja razões boas ou aceitáveis para um tratamento<br />

diferencia<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> a autora, em certas situações, é até mesmo um instrumento necessá<strong>rio</strong> para criar maior<br />

igualdade. Sabe-se, porém, que no uso corrente o termo “discriminação” tomou uma conotação negativa,<br />

especialmente quan<strong>do</strong> associa<strong>do</strong> a sexo, raça ou certas características sociais de pessoas ou grupos. Ao que se<br />

percebe, foi nesse senti<strong>do</strong> que o termo foi emprega<strong>do</strong> no texto de Carol Smart.<br />

260 “Si erradicar la discriminación depende de la erradicación de la diferenciación, tenemos que ser capaces de pensar<br />

en una cultura sin género”. In: LARRAURI. Op. cit., p. 180.<br />

129


Tove Stang Dahl, dentro de uma perspectiva mais feminista, afirma que o Direito<br />

(considera<strong>do</strong> no seu senti<strong>do</strong> geral), “enquanto instituição, contribui em <strong>grande</strong> medida<br />

para a manutenção da tradicional hegemonia masculina na sociedade”. 261 Segun<strong>do</strong> a<br />

autora, são quase sempre as opiniões, as necessidades e os conflitos <strong>do</strong>s homens que<br />

estão codifica<strong>do</strong>s no texto normativo, prescreven<strong>do</strong> o que as mulheres são ou deveriam<br />

ser.<br />

O fato de o direito refletir a realidade <strong>do</strong>s homens e das mulheres sempre numa<br />

perspectiva masculina, “não significa que haja uma conspiração masculina conducente<br />

a este propósito”, sustenta a autora. 262 A evolução <strong>do</strong> estatuto legal das mulheres em<br />

quase to<strong>do</strong>s os países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> nega esta proposição, porém o Direito contribui para a<br />

manutenção <strong>do</strong> grupo <strong>do</strong>minante, uma vez que constitui uma enorme parcela da<br />

hegemonia cultural <strong>do</strong>s homens, e isso significa aceitar uma visão específica da<br />

realidade como sen<strong>do</strong> normal no enquadramento da ordem natural das coisas, mesmo<br />

que essa hierarquize as diferenças. 263<br />

261<br />

DAHL, Tove Stang. O direito das mulheres. Uma introdução à teoria <strong>do</strong> direito. Lisboa: Fundação Calouste<br />

Gulbenkian, 1987, p. 6.<br />

262<br />

Idem, Ibidem.<br />

263<br />

Tove Stang Dahl, em consonância com outros autores, observa que o problema não está nas diferenças, até porque<br />

isto implicaria uma sociedade sem gênero. As diferenças, defende a autora, estão em to<strong>do</strong>s os aspectos da vida diária:<br />

homens e mulheres vestem-se de forma diferente, têm ocupações diferentes na família, no trabalho, na vida pública,<br />

distraem-se de maneira diferente, têm formas diferenciadas de viver a sua sexualidade. “ ‘A questão está no mo<strong>do</strong><br />

como elas são mutuamente hierarquizadas e no facto de, na avaliação que a sociedade faz <strong>do</strong>s sexos, as qualidades,<br />

as características, os valores e as actividades das mulheres estarem sistematicamente subordinadas às <strong>do</strong>s homens’<br />

(Jaggar, 1983:35)”. In: DAHL. Op. cit., p. 6. Fruto dessa hierarquização, continua a autora, as mulheres<br />

freqüentemente surgem como algo diferente <strong>do</strong>s homens ou ‘infe<strong>rio</strong>r’ a eles. Evocan<strong>do</strong> uma resenha de Helga<br />

Hermes, observa como as mulheres “são freqüentemente consideradas ‘minipessoas’: ‘Têm pouca i<strong>do</strong>neidade moral,<br />

fraca inteligência, escassos direitos à propriedade e só em certos limites têm direito à igualdade [...]’ (Hermes, 1982<br />

a:17)”. In: DAHL. Op. cit., p. 7. Ainda citan<strong>do</strong> Helga Hermes, em seu artigo sobre filosofia política liberal clássica, a<br />

autora lembra que para Hume, Hobbes, Rousseau e Hegel, o estatuto das mulheres como pessoas foi sempre uma<br />

interrogação, tanto em termos de filosofia moral como de Direito. Hermes considera a escassa participação das<br />

mulheres nas organizações e nos cargos políticos como conseqüência natural dessa antiga política que as excluía<br />

consciente e sistematicamente de cargos da vida pública. Idem, ibidem.<br />

130


Carol Smart observa que mudar o enfoque de um Direito sexista e masculino<br />

para um Direto com gênero, não implica a rejeição às perspectivas ante<strong>rio</strong>res,<br />

possibilita, todavia, pensar o Direito como um processo mais flexível, sem requerer que<br />

se fixe inexoravelmente o gênero a partir de um referente empírico de homem e de<br />

mulher basea<strong>do</strong> apenas nas diferenças. E, o que é mais importante, principalmente<br />

para esse estu<strong>do</strong> que trata da relação da mulher com o sistema penal, possibilita<br />

examinar como esse sistema cria sua versão própria da diferenciação de gênero,<br />

permitin<strong>do</strong> uma valoração <strong>do</strong> patriarca<strong>do</strong> que sustenta, sem uma versão pré-cultural da<br />

mulher.<br />

É a partir desses pressupostos teóricos que se poderá examinar como o discurso<br />

jurídico penal opera enquanto tecnologia de gênero e como ele age na produção<br />

discursiva de mulher (enquanto oposição ao homem, base sobre a qual se edificam as<br />

outras diferenciações) e na construção discursiva de determina<strong>do</strong>s tipos de mulher: a<br />

prostituta, a adúltera, a mãe infanticida, a mulher devassa, a libertina, a mulher honesta,<br />

etc.<br />

Essa perspectiva é reiterada por Tove Stang Dahl quan<strong>do</strong> afirma que é a<br />

diferenciação entre as próprias mulheres que aparece como um problema especial.<br />

Essa discriminação, considera a autora, “não é necessariamente sexual, tal como a<br />

discriminação entre homens não é habitualmente devi<strong>do</strong> ao facto de serem <strong>do</strong> sexo<br />

131


masculino. Contu<strong>do</strong>, a discriminação entre mulheres tem freqüentemente a sua origem<br />

na mais ubíqua discriminação sexual existente na sociedade”. 264<br />

3.1.1 Controle Social: (Re) Produção da Ideologia de Gênero<br />

A versão própria da diferenciação de gênero <strong>do</strong> sistema penal ou a sua ação na<br />

construção e na reprodução de um ideal de mulher podem ser melhor apresentadas e<br />

compreendidas se consideradas no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> sistema de controle formal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

não ignoran<strong>do</strong> seu entrelaçamento com o sistema de controle informal. Ambos<br />

entendi<strong>do</strong>s enquanto controle social que opera em forma de respostas (sanções,<br />

formais ou informais; as primeiras reguladas num corpo normativo e as segundas<br />

fazen<strong>do</strong> parte das convenções sociais) aos comportamentos que violam as normas<br />

segun<strong>do</strong> as expectativas correspondentes a cada gênero.<br />

Importante observar, nesse senti<strong>do</strong> que, ao longo <strong>do</strong> último século, foram<br />

produzidas mudanças significativas nas formas de controle social. Paralelamente a uma<br />

descentralização, houve também uma ampliação das redes de controle social que<br />

aparecem mais diluídas no teci<strong>do</strong> social e bifurcadas segun<strong>do</strong> crité<strong>rio</strong>s de classe e raça.<br />

Essas redes compreendem o Esta<strong>do</strong> e toda uma estrutura institucionalizada incluin<strong>do</strong> a<br />

família, a economia, o Direito, a educação, o sistema de justiça penal, as redes de<br />

assistência social, os serviços médicos, a assistência psiquiátrica, a ideologia da<br />

feminilidade amplamente explorada pelo merca<strong>do</strong> de consumo.<br />

264 DAHL. Op. cit., p. 42.<br />

132


Elena Larrauri em um artigo sobre o sistema de controle social informal sustenta<br />

que pesquisas recentes nessa área têm revela<strong>do</strong> que o “peso” da lei costuma recair<br />

sobre as mulheres menos sujeitas aos mecanismos de controle informal. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />

defende a autora, as mulheres com mais probabilidade de acabar presas são aquelas<br />

fora <strong>do</strong>s padrões tradicionais 265 , ou seja, as não casadas, as jovens sem família, ou<br />

aquelas que no entender <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, carecem de quem as possa cuidar.<br />

Valen<strong>do</strong>-se de estu<strong>do</strong>s de autores como Chesney-Lind, Heidensohn e Beristain,<br />

a autora questiona o tratamento dispensa<strong>do</strong> pelos tribunais à mulher delinqüente. Com<br />

base nas pesquisas <strong>do</strong>s autores cita<strong>do</strong>s, ela sustenta que o Direito Penal não é<br />

aplica<strong>do</strong> com mais benevolência às mulheres que não correspondem ao ideal<br />

tradicional de feminilidade ou às mulheres mais jovens que, nos casos de não se impor<br />

a pena de prisão, as excludentes de ilicitude invocam causas como tensão menstrual,<br />

depressão pós-natal, puerpé<strong>rio</strong>, honra e dignidade, menopausa, transtorno mental<br />

transitó<strong>rio</strong>, recrian<strong>do</strong> estereótipos que em nada beneficiam a imagem da mulher. Ainda<br />

265 Esse aspecto também é destaca<strong>do</strong> por Nives Graça de Tommaso Rocha em seu artigo Um perfil de mulheres<br />

detentas e o regime de semiliberdade em que a partir de uma perspectiva da Psicologia Jurídica apresenta um perfil<br />

das mulheres detentas no Instituto Penal Romeiro Neto, Niterói, RJ. O estu<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> aponta para as motivações da<br />

delinqüência feminina. Além de questões ligadas à problemática social-econômica, a pesquisa revela que a<br />

criminalidade feminina guarda uma forte relação com as “faltas afetivas” vividas pelas carcerárias enquanto sujeitos.<br />

Faltas que, segun<strong>do</strong> a autora, se configuram na ausência freqüente da figura paterna ou materna: “morte, omissão,<br />

aban<strong>do</strong>no e separação”. Ainda em relação ao âmbito familiar (o mais forte mecanismo de controle social informal),<br />

as entrevistadas o descreveram como um espaço de restrições, marca<strong>do</strong> por conflitos pessoais e sociais. Outros<br />

depoimentos revelaram, ainda, a forte influência das relações maritais, observa a autora. In: BRITO, Leila Maria<br />

Torraca de (Org). Temas de Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 197-211.<br />

A pesquisa acima referida mostra que as mulheres sujeitas à violência, maus-tratos, omissão, aban<strong>do</strong>no estão mais<br />

propícias a incorrer na prática delituosa, ao que se poderia acrescentar, conforme estu<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> no capítulo 1,<br />

estão também mais vulneráveis a sofrerem as sanções da lei penal, visto que, em seu processo de persecução, o<br />

sistema penal seleciona os indivíduos segun<strong>do</strong> crité<strong>rio</strong>s econômicos, morais, sociais, raciais, de escolaridade, gênero,<br />

etc., como parte de uma dinâmica de exclusão de um sujeito que aparece como outro, como diferente, como<br />

estrangeiro aos olhos da razão e da moral. Este entendimento é sustenta<strong>do</strong> por Michel Foucault visto que o autor<br />

concebe a delinqüência enquanto um lugar produzi<strong>do</strong> sócio-historicamente. Essa produção se dá uma vez que o<br />

sujeito desaloja<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo social é nomea<strong>do</strong> e fala<strong>do</strong> enquanto delinqüente e, em função disso, excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

reconhecimento enquanto cidadão.<br />

133


segun<strong>do</strong> a autora, os estu<strong>do</strong>s também revelam que a pena de prisão é aplicada com<br />

mais rigor à mulher.<br />

As pesquisa<strong>do</strong>ras americanas Nanette J. Davis e Karlene Faith 266 defendem que<br />

os estu<strong>do</strong>s sociológicos explican<strong>do</strong> o fenômeno da criminalidade reforçam a imagem da<br />

mulher como ser emocional, com pouco brilhantismo, passivo, dependente e governa<strong>do</strong><br />

por sua sexualidade, posições orientadas pelos estereótipos sobre os gêneros<br />

basea<strong>do</strong>s em mitos sobre as diferenças sexuais biológicas e as qualidades psicológicas<br />

“inatas” das mulheres, argumentos de caráter filosófico e teológico que sobreviveram da<br />

suposta desigualdade natural entre os sexos.<br />

Dentro desse modelo, a delinqüência feminina aparece como uma “inadaptação”<br />

ou uma “patologia”. Ela jamais é interpretada como uma reação, uma renúncia à<br />

obediência, ou até mesmo como uma forma de resposta ao processo de controle.<br />

Segun<strong>do</strong> essas autoras, os “desvios de caráter”, as motivações para as práticas<br />

delitivas e os problemas de adaptação aos sistemas de controle ocorrem dentro de um<br />

contexto histórico, e esse contexto raramente é objeto de investigação. 267<br />

Citan<strong>do</strong> como exemplo o infanticídio, amplamente pratica<strong>do</strong> durante a Idade Média e o<br />

266<br />

DAVIS, Nanette; FAITH, Karlene. Las mujeres y el esta<strong>do</strong>: modelos de control social en transformación. In:<br />

LARRAURI. Op. cit., p. 110-111.<br />

267<br />

A relação mulher com o fenômeno da criminalidade não constitui matéria suficientemente demonstrada, sublinha<br />

Odete Maria de Oliveira. Segun<strong>do</strong> essa autora, as pesquisas sobre a criminalidade feminina compreendem vá<strong>rio</strong>s<br />

perío<strong>do</strong>s e só a partir da década de setenta a questão passou a ser vista sob uma perspectiva sóciocultural,<br />

consideran<strong>do</strong> os fatores de socialização e de reação social ao crime. Esses estu<strong>do</strong>s têm revela<strong>do</strong> que as taxas da<br />

criminalidade feminina aumentam na medida em que a mulher tem maior participação na força de trabalho e recaiam<br />

sobre ela maiores responsabilidades sócioeconômicas, participan<strong>do</strong> mais ativamente da luta pela sobrevivência.<br />

Enfim, o que as pesquisas concluem é que o aumento da criminalidade feminina está relaciona<strong>do</strong> com a própria<br />

mudança de papeis e funções da mulher na sociedade contemporânea. OLIVEIRA. Odete Maria de. A mulher e o<br />

fenômeno da criminalidade. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (Org). Verso e reverso <strong>do</strong> controle penal:<br />

des(aprisionan<strong>do</strong>) a sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Boiteux, 2002, p. 159-171.<br />

134


aborto na atualidade, Oakley 268 afirma que esse ocorre em situações em que as<br />

mulheres carecem de reconhecimento e de suporte material.<br />

Já no que tange ao discurso qualifican<strong>do</strong> as sanções aplicadas às mulheres<br />

como “indulgentes”, vale lembrar que esse não considera os mecanismos de coerção<br />

presentes no processo de socialização feminina e adaptação ao gênero, cuja violência<br />

é inerente, conforme evidenciam Nannete J. Daves e Karlene Faith 269 .<br />

O processo de controle formal, segun<strong>do</strong> essas autoras, se caracteriza por uma<br />

prática arbitrária, o mesmo sistema pode atuar com indulgência na sanção de um delito<br />

relativamente grave, mas também pode penalizar com mais severidade infrações<br />

relativamente insignificantes. Certas categorias de mulheres (a<strong>do</strong>lescentes fugitivas,<br />

mulheres sexualmente promíscuas, “lãs madres inadecuadas”), são, portanto, mais<br />

vulneráveis à intervenção estatal, isso se consideradas em relação a todas as mulheres<br />

e também se cotejadas em relação aos homens em situações similares.<br />

Essa discussão se insere num cená<strong>rio</strong> mais amplo, está situada na relação da<br />

mulher com as instituições estatais. Mesmo na contemporaneidade, quan<strong>do</strong> se vive<br />

uma completa redefinição das relações de gênero, a mulher sofre mais intervenção,<br />

regulação e controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

268 OAKLEY, cita<strong>do</strong> por DAVIS; FAITH. Op. cit., p. 112.<br />

269 DAVIS; FAITH. Op. cit.<br />

135


Tanto nos problemas de trabalho e de assistência da vida privada, como nas<br />

questões relativas à sexualidade e à afetividade, as mulheres, muito mais <strong>do</strong> que os<br />

homens, têm esta<strong>do</strong> sujeitas ao paternalismo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no que se refere à legislação<br />

protetora e, por isso mesmo, sujeitas ao controle social que o Esta<strong>do</strong> estabeleceu<br />

nessas áreas, considera Tove Stang Dahl. 270<br />

Quer no Esta<strong>do</strong> de Direito, quer no Esta<strong>do</strong> Providência, a mulher continua<br />

ocupan<strong>do</strong> um papel marginal na gestão e nos órgãos de decisão, conseqüência da<br />

fragilidade de sua situação no merca<strong>do</strong> de trabalho e de seu forte enraizamento na<br />

família, poden<strong>do</strong> acrescentar-se, também aqui, o problema da inserção das mulheres<br />

no espaço público, cuja maior expressão está na restrita participação nos cargos e<br />

decisões políticas 271 . Ainda segun<strong>do</strong> a autora, no que se refere à inserção da mulher no<br />

merca<strong>do</strong> de trabalho, essa continua a ocupar cargos, sobretu<strong>do</strong> na assistência e na<br />

prestação de serviços e não na produção de bens, o que lhe confere um lugar de menor<br />

importância no espaço público.<br />

270 DAHL. Op. cit., p. 9.<br />

271 Segun<strong>do</strong> o Índice de Desenvolvimento Humano <strong>do</strong> PNUD de 1999, o Brasil ocupa o septuagésimo nono lugar<br />

nos indica<strong>do</strong>res de desigualdade entre os sexos na participação política. No poder executivo, as mulheres ocupam 45,<br />

53% <strong>do</strong>s cargos supe<strong>rio</strong>res de nível inicial. Sua participação cai para 13,24% nas 136 funções mais altas. Já no<br />

Judiciá<strong>rio</strong>, em 1998, dentre 451 juízes 152 eram mulheres (25,05%), embora elas somem metade das matrículas em<br />

escolas de Direito e representem 40% <strong>do</strong>s aprova<strong>do</strong>s em concursos da Justiça Comum. Os melhores índices da<br />

participação da mulher no Judiciá<strong>rio</strong> são encontra<strong>do</strong>s na Justiça <strong>do</strong> Trabalho, onde as mulheres ocupam 34% <strong>do</strong>s<br />

cargos de juiz. Ainda com relação à representação feminina nos espaços de decisão política, Ana Garcia e Enrique<br />

Gomaríz, assinalam que o mais preocupante da questão da mulher na política é pensa-la em termos projetivos. “No<br />

ano 2020 se haverá produzi<strong>do</strong> uma dramática mudança socioeconômica que significa que as mulheres latinoamericanas<br />

e centro-americanas serão praticamente a metade da força laboral e, sem dúvida, se se mantiver a<br />

tendência no plano de sua participação nos órgãos legislativos, significaria o ridículo avanço de passar de 12% a 15%<br />

em cifras médias”. PRÁ, Jussara Reis. Espaço público, gênero e políticas feministas. In: TIBURI, Márcia;<br />

MENEZES, Magali de; EGGERT, Edla (Orgs). As mulheres e a filosofia. São Leopol<strong>do</strong>: Editora Unisinos, 2002, p.<br />

206.<br />

136


Uma reflexão nesse senti<strong>do</strong> evoca o processo de implantação da cidadania 272<br />

em cená<strong>rio</strong>s como o da América Latina e <strong>do</strong> Brasil. A cidadania na região “é reflexo de<br />

um tipo de articulação entre o Esta<strong>do</strong> e a sociedade que se sustenta e se reproduz, a<br />

cada nova conjuntura política, desde o perío<strong>do</strong> colonial”. 273<br />

No caso <strong>do</strong> Brasil, a constituição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a cultura política gerada forjaram<br />

um sistema paternalista cuja marca maior é o autoritarismo e a centralização das<br />

decisões e ações, herança da colonização portuguesa transferida <strong>do</strong> modelo familiar<br />

para a esfera pública estatal. Disso resulta uma prática política e uma cidadania<br />

caracterizadas pela distribuição irracional <strong>do</strong> poder e por um clientelismo excluin<strong>do</strong><br />

significativos segmentos populacionais <strong>do</strong>s espaços de poder e decisão, os quais<br />

refletem a configuração de uma sociedade desigual, excludente e elitista em que as<br />

demandas por direitos, eqüidade e cidadania encontram pouca ressonância.<br />

272 “O conceito cidadania está des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> em quatro abordagens heurísticas: (a) A tradição comunitária (Michael<br />

Sandel e Charles Taylor) entende a cidadania como participação social a serviço <strong>do</strong> bem comum. A ênfase está na<br />

comunidade, na cultura e na ética compartilhada [...]; (b) a tradição republicana (Aristóteles, Maquiavel, Hanna<br />

Arendt, Richard Sennet, Benjamin Braber) compreende a cidadania como participação política. A ênfase está na<br />

participação e nas decisões políticas, valorizan<strong>do</strong> a vida e o debate públicos com vistas à formação <strong>do</strong> sujeito<br />

político; (c) na tradição neoliberal (Friedrich Hayek, Robert Nozik), a cidadania é entendida, pre<strong>do</strong>minantemente,<br />

como status legal. Seu objetivo é tornar o mun<strong>do</strong> político tão limita<strong>do</strong> quanto possível, permitin<strong>do</strong> ao indivíduo ter o<br />

máximo de liberdade com o mínimo de intervenção estatal [...];(d) a tradição social-liberal (John Rawls, T.H.<br />

Marchall) privilegia os intitulamentos legais nos quais pre<strong>do</strong>minam os direitos e os deveres <strong>do</strong>s cidadãos (por<br />

exemplo: direito à liberdade de expressão, ao voto, a receber algum tipo de previdência, etc.). Em contrapartida, há<br />

deveres a cumprir (por exemplo: pagar impostos, servir ao exército, trabalhar ao invés de viver às expensas <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>)”. CARVALHO, Maria Jane. Qual cidadania desejamos? In: TIBURI; MENEZES; EGGERT (Orgs). Op.<br />

cit., p. 221-222.<br />

Nenhum <strong>do</strong>s conceitos acima fala de forma explícita sobre a cidadania das mulheres, o que tem si<strong>do</strong> alvo de crítica<br />

das teorias feministas. Mesmo consideran<strong>do</strong> as diferentes abordagens no inte<strong>rio</strong>r dessas teorias, essas apresentam<br />

um certo consenso no que tange à cidadania da mulher, compreenden<strong>do</strong> tratar-se da extensão <strong>do</strong>s direitos políticos,<br />

civis e socias às mulheres de mo<strong>do</strong> concreto.<br />

273 PRÁ, Jussara Reis. Espaço público, gênero e políticas feministas. In: TIBURI; MENEZES; EGGERT. (Orgs). Op.<br />

cit., p. 206.<br />

137


No que se refere à questão de gênero, apesar de uma maior mobilização e<br />

intervenção da mulher no sistema político, e o aumento de sua participação em cargos<br />

governamentais, o Esta<strong>do</strong> pode ser considera<strong>do</strong>, em <strong>grande</strong> medida, como protetor das<br />

mulheres, “Já que só escassamente as têm feito participar da distribuição das<br />

vantagens e das desvantagens”. 274<br />

Percebe-se de outra parte que a lógica subjacente de um paternalismo<br />

generaliza<strong>do</strong>, determina<strong>do</strong> pelo gênero, é um fenômeno estrutural <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-<br />

Providência. Neste senti<strong>do</strong>, permanece em aberto a questão: até que ponto as<br />

mulheres devem recorrer ao Esta<strong>do</strong>, ou recorrer ao Direito como instrumento de<br />

transformação social? Ou então, qual será o preço por transformar problemas de foro<br />

íntimo, priva<strong>do</strong>, em litígios jurídicos, visto que isso poderá acarretar transformações nas<br />

relações entre as partes envolvidas e entre indivíduos e o Esta<strong>do</strong>?<br />

A ampliação das redes de controle sobre as mulheres deve ser analisada dentro<br />

desse complexo panorama <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a da dinâmica da vida contemporânea. Para os<br />

movimentos feministas mais radicais, são as mulheres <strong>do</strong>s estratos sociais mais baixos<br />

e <strong>do</strong>s países menos desenvolvi<strong>do</strong>s as mais atingidas pelas contradições <strong>do</strong><br />

corporativismo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> como forma de controle e regulação, visto que as mulheres<br />

com maior capacidade econômica optam pelos serviços descentraliza<strong>do</strong>s (priva<strong>do</strong>s).<br />

274 DAHL. Op. cit., p. 9.<br />

138


Nesta perspectiva, “as mulheres e pessoas pertencentes ao Terceiro Mun<strong>do</strong>,<br />

sofrem formas de controle de caráter centraliza<strong>do</strong> e repressivo, como a assistência<br />

social, tratamentos mentais e encarceramento”. 275<br />

Insere-se nesse contexto a discussão no Brasil sobre a descrininalização <strong>do</strong><br />

aborto e a profissionalização da prostituição. No caso da legalização <strong>do</strong> aborto, o tema<br />

está na ordem <strong>do</strong> dia por conta da polêmica questão da autorização judicial para a<br />

interrupção da gravidez de feto anencéfalo. Os argumentos contrá<strong>rio</strong>s, assim como<br />

negam o Direito de Decisão da mulher, o que remete ao discurso <strong>do</strong> protecionismo<br />

apresenta<strong>do</strong> no inte<strong>rio</strong>r deste estu<strong>do</strong>, também revelam o apego a um texto de lei<br />

descontextualiza<strong>do</strong> da realidade social, transpassa<strong>do</strong> pelo moralismo e que incide<br />

sobre as mulheres <strong>do</strong>s estratos sociais mais baixos, visto que outros grupos recorrem<br />

aos meios não legais, o que revela parte da função seletiva <strong>do</strong> Direito Penal.<br />

A discussão também evidencia que a luta por um Esta<strong>do</strong> laico é um <strong>grande</strong><br />

desafio para os movimentos feministas e para toda a sociedade brasileira. O<br />

fundamentalismo religioso (católico, neste caso) não só ameaça os avanços <strong>do</strong>s direitos<br />

da mulher sobre a sua sexualidade e reprodução, como aponta para um claro<br />

retrocesso desses direitos.<br />

275 “Lãs mujeres y tercer mundistas sufren formas de control de caráter centraliza<strong>do</strong> y represivo, como al assistência<br />

social, tratamientos mentales coercitivos y encarcelamiento”, conforme, HUTTER y WILLIAMS, apud DAVIS;<br />

FAITH. Las Mujeres y el Esta<strong>do</strong>: Modelos de Control Social en Tranformación. In: LARRAURI. Op. cit., p. 114.<br />

139


3.2 Sistema Penal: Da Proteção à Violência Institucional<br />

Inúmeras pesquisas apontam a violência dirigida às mulheres, ou a violência<br />

intrafamiliar, como parte de uma violência de gênero própria da sociedade patriarcal.<br />

Não se pretende neste estu<strong>do</strong> adentrar na complexidade dessa temática, entende-se,<br />

pois, que esta configura um objeto de pesquisa à parte, bastante explora<strong>do</strong> pelas<br />

ciências sociais (sociologia, antropologia, psicanálise, criminologia, psicologia social),<br />

sen<strong>do</strong> que, como afirma Roberto da Matta 276 , os diferentes campos <strong>do</strong> conhecimento<br />

conseguem, hoje, situá-la num enfoque mais distancia<strong>do</strong> <strong>do</strong> senso comum, menos<br />

moralista, místico e escandaloso, permitin<strong>do</strong> vislumbrar estratégias e alternativas mais<br />

realistas para o seu enfrentamento.<br />

Campos tão distintos e específicos de reflexão resultaram em construções<br />

teóricas diferenciadas e muitas vezes contraditórias. À margem dessa discussão,<br />

percebe-se a violência interpessoal e cotidiana que atinge as mulheres, exercida na<br />

maioria <strong>do</strong>s casos no meio familiar, enquanto um fenômeno complexo, inscrito numa<br />

sociedade de gênese patriarcal e que, embora associada ao exercício <strong>do</strong> poder<br />

masculino, requer, para o seu entendimento, que se ultrapasse esta perspectiva<br />

situan<strong>do</strong>-a nas próprias relações conjugais e amorosas, enquanto expressão <strong>do</strong>s<br />

276 MATTA, Roberto da. As raízes da violência brasileira: reflexões de um antropólogo social. In: MATTA, Roberto<br />

da. (Org). A violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982.<br />

140


conflitos afetivos que se aninham nas relações de gênero, e em imperativos culturais<br />

que lhe outorgam senti<strong>do</strong>. 277<br />

Essa articulação entre violência e gênero requer, pois, que se considere também<br />

as motivações da ordem <strong>do</strong> psiquismo e <strong>do</strong> social enquanto espaço de encontro <strong>do</strong><br />

indivíduo com a sociedade; <strong>do</strong> plano <strong>do</strong> proibi<strong>do</strong> e <strong>do</strong> permiti<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> a hegemonia<br />

cultural e, é claro, das estruturas econômicas e sociais, espaços onde os grupos e os<br />

sujeitos sociais se localizam, atuam. Isso compreende considerar as desigualdades<br />

sociais, a irredutibilidade das diferenças, o exercício abusivo <strong>do</strong> poder, porém sem<br />

distanciá-los <strong>do</strong> plano <strong>do</strong> sujeito-individual, de sua subjetividade e das particularidades<br />

culturais.<br />

Cabe lembrar ainda que a identidade masculina e o poder associa<strong>do</strong> a ela<br />

apóiam-se na ordem <strong>do</strong> imaginá<strong>rio</strong> na qual os homens são protetores e as mulheres<br />

protegidas. Inúmeros estu<strong>do</strong>s sobre as causas da violência contra a mulher têm<br />

revela<strong>do</strong> que uma inversão dessa ordem, seja pelo desempenho de outros papéis pela<br />

mulher, seja porque os homens já não conseguem desempenhar o que deles se<br />

espera, está na origem <strong>do</strong>s conflitos. 278<br />

Os estímulos individuais, portanto, dizem da reprodução de um imaginá<strong>rio</strong> que<br />

fala da relação entre os gêneros e as hierarquizações delas decorrentes. “O<br />

277 SUÁREZ, Mireya; BANDEIRA, Lourdes (Orgs). Violência, gênero e crime no distrito federal. Brasília: Editora<br />

Universidade de Brasília, 1999.<br />

278 SUÁREZ; BANDEIRA (Orgs). Op. cit.<br />

141


deslocamento <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> imaginá<strong>rio</strong> para o ato concreto depende de um rearranjo<br />

particular que possibilite o aniquilamento de um sujeito de carne e osso ao próp<strong>rio</strong><br />

desejo”. 279<br />

A problemática da violência evidencia que convivem no cená<strong>rio</strong> da vida<br />

contemporânea os princípios nortea<strong>do</strong>res de uma identidade de gênero atribuin<strong>do</strong><br />

valores e lugares diferentes às mulheres e aos homens enquanto referenciais<br />

simbólicos que povoam o imaginá<strong>rio</strong> popular, e o referencial da igualdade, emergi<strong>do</strong> da<br />

modernidade. Essa é, certamente, uma questão que também assume relevância no<br />

inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> sistema judiciá<strong>rio</strong>.<br />

Distingue-se, por conseguinte, a opressão pessoal (privada) da opressão<br />

estrutural (social), perpetrada pelo Esta<strong>do</strong>.Portanto o que se tentará elucidar não é a<br />

etiologia da violência física, sexual, psicológica e <strong>do</strong>méstica vitiman<strong>do</strong> a mulher. 280 O<br />

que se objetiva é tentar entender como o Esta<strong>do</strong>, através de suas instâncias de poder,<br />

reage contra essa violência no cumprimento de sua função jurisdicional.<br />

279 BANDEIRA, Lourdes; ALMEIDA, Tânia Mara de. O caso motoboy, a construção <strong>do</strong> estupra<strong>do</strong>r pela mídia. In:<br />

Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto Alegre: a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 19.<br />

280 As cifras da violência: 70% das mulheres vítimas de homicídio no mun<strong>do</strong> foram mortas por seus próp<strong>rio</strong>s<br />

companheiros. Sete milhões de brasileiras acima de 15 anos de idade já foram agredidas pelo menos uma vez. Um<br />

bilhão de mulheres <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ou uma em cada três, já foram estupradas, espancadas ou sofreram algum tipo de<br />

violência. CIRENZA, Fernanda. Violência <strong>do</strong>méstica. Marie Claire, São Paulo, p. 71-78, nov. 2004.<br />

A cada dez homens processa<strong>do</strong>s por agressão física contra a mulher, apenas um é condena<strong>do</strong>. Setenta por cento <strong>do</strong>s<br />

processos de violência <strong>do</strong>méstica em São Paulo são arquiva<strong>do</strong>s: as vítimas retiram as queixas. A violência <strong>do</strong>méstica<br />

é responsável por um em cada cinco dias de falta da mulher no trabalho. CERQUEIRA, Patrícia. Irmãs coragem.<br />

Criativa, São Paulo, p. 32-35, fev. 2002.<br />

142


3.2.1 Moral Pública: Violação <strong>do</strong>s Direitos Individuais<br />

Com a ascensão da sociedade burguesa, proliferam os discursos, cujo objetivo<br />

era a disciplina, o adestramento <strong>do</strong>s corpos. Nessa perspectiva, assinala Wilhelm<br />

Reich: “Na sociedade autoritária aumentam, em conexão com os conflitos econômicos e<br />

ideológicos, as contradições entre a moral vigente, que é imposta a toda sociedade<br />

<strong>do</strong>minante no interesse da preservação e <strong>do</strong> fortalecimento <strong>do</strong> poder”. 281 De outra<br />

parte, argumenta o autor que tais discursos se opõem “à exigência natural da<br />

sexualidade <strong>do</strong>s indivíduos isola<strong>do</strong>s em determinada época, levan<strong>do</strong> a uma crise<br />

insolúvel da forma social existente”. 282<br />

O Direito, enquanto produto político, histórico e cultural constitui a normatização<br />

desses valores. Nesse aspecto, é inquestionável a confusão entre Direito Penal e moral<br />

social, expressa na lei e na <strong>do</strong>utrina, e que recebe novos contornos na prática jurídica.<br />

É sob o discurso da moral pública <strong>do</strong>minante em que a mulher (melhor seria dizer a<br />

função feminina) aparece enquanto objeto de proteção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

Gladys Acosta 283 , no relató<strong>rio</strong> de sua pesquisa sobre as concepções de gênero<br />

que orientam as legislações <strong>do</strong>s países latino-americanos, sublinha que as normas<br />

penais em vigor na região, quase que uniformemente, concebem a mulher como um<br />

281<br />

REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Trad. Ary Blaustein. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988, p. 62.<br />

282<br />

Idem, p. 62.<br />

283<br />

ACOSTA, apud SUÁREZ, Mireya; SILVA, Ana Paula P. M. da; FRANÇA, Danielle Jatobá; WEBER, Renata. A<br />

noção de crime sexual. In: SUÁREZ; BANDEIRA (Orgs). Op. cit., p. 39.<br />

143


sujeito cujas condições fisiológicas, sociais e psicológicas a reduzem à condição de<br />

“vítima” à qual os homens e o Esta<strong>do</strong> devem proteger.<br />

A idéia de proteção, segun<strong>do</strong> David J. Morgan 284 , povoa o imaginá<strong>rio</strong> ocidental e<br />

sustenta ideologicamente as fronteiras de gênero. Suas raízes estariam no papel de<br />

protetores da nação, das mulheres e das categorias ditas “frágeis”; atribuí<strong>do</strong> pelo<br />

Esta<strong>do</strong> ao homem. Para Gladys Acosta, o legislativo é a instância em que essa<br />

percepção é mais visível.<br />

Toman<strong>do</strong> como objeto de exame o Código Penal 285 vigente no Brasil, percebe-se<br />

que essa proteção obedece a diversas delimitações expressas no texto legal ou<br />

implícitas na sua ideologia. Estes aspectos ganham maior relevância nos chama<strong>do</strong>s<br />

“Crimes Contra os Costumes”. Como bem expressa a própria terminologia, trata-se de<br />

proteger não a liberdade individual (sexual) da mulher e sim uma sexualidade feminina<br />

segun<strong>do</strong> os padrões tradicionais.<br />

284 MORGAN, apud SUÁREZ, Mireya; SILVA, Ana Paula P. M. da; FRANÇA, Danielle Jatobá; WEBER, Renata. A<br />

noção de crime sexual. A noção de crime sexual. In: SUÁREZ; BANDEIRA (Orgs). Op. cit., p. 39.<br />

285 O Código Penal vigente no Brasil é, ainda, o estatuto penal de 1940, com importantes modificações na Parte Geral<br />

e quase nenhuma alteração na Parte Especial. Foi implanta<strong>do</strong> em meio à Segunda Guerra Mundial e fortes mudanças<br />

no cená<strong>rio</strong> nacional: além de uma ordem política autoritária e repressiva, o Brasil inicia seu processo de<br />

industrialização, a migração da população <strong>do</strong> campo para os centros urbanos resultan<strong>do</strong> no crescimento e<br />

concentração das populações urbanas em espaços físicos impróp<strong>rio</strong>s, a explosão demográfica, etc. Era um estatuto<br />

de caráter nitidamente repressivo, construí<strong>do</strong> sobre a crença da necessidade e suficiência da privação da liberdade,<br />

por meio da pena ou da medida de segurança, para o controle <strong>do</strong> fenômeno <strong>do</strong> crime. Ver mais em TOLEDO,<br />

Francisco de Assis. A reforma <strong>do</strong> código penal brasileiro. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo,<br />

a. 4, n. 15. jul./set. 1996.<br />

144


Considera<strong>do</strong> por Magalhães Noronha 286 como um Código “eclético”, com<br />

tendências <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> da Escola Clássica e com fortes componentes da<br />

Escola Positivista italiana surgida no final <strong>do</strong> século XIX 287 , o Código Penal de 1940 é<br />

implanta<strong>do</strong> em meio a eclosão de <strong>do</strong>is regimes totalitá<strong>rio</strong>s na Europa: o fascismo na<br />

Itália e o nazismo na Alemanha, “marcan<strong>do</strong> o retorno das idéias mais primitivas a<br />

respeito de castigo e intimidação. É o advento <strong>do</strong> direito penal ultra-autoritá<strong>rio</strong>”. 288<br />

A percepção da mulher no inte<strong>rio</strong>r desses regimes teve importante repercussão<br />

nas legislações totalitárias da época, sen<strong>do</strong> incorporada às práticas ditatoriais da<br />

América latina. “O fascismo utilizou a mulher como base de apoio à <strong>do</strong>minação<br />

capitalista da burguesia industrial e <strong>do</strong>s proprietá<strong>rio</strong>s da terra. Combateu as idéias<br />

sufragistas inglesas <strong>do</strong> século XIX e foi uma contra-ideologia <strong>do</strong>s movimentos de<br />

mulheres organizadas e agrupadas em torno de socialismos emergentes na época”. 289<br />

O nazismo não ficou longe com sua “teoria genética de purificação de raça”,<br />

tornan<strong>do</strong> o controle e disciplinamento da sexualidade feminina parte de um projeto<br />

político e econômico que encontraria sua efetividade através das instituições<br />

interestatais, mais especialmente na família. É por meio da regulação da família que o<br />

Esta<strong>do</strong> terá o “controle sobre o casamento e sua função de reproduzir indivíduos e<br />

286<br />

Ver Edgar Magalhães Noronha in: Direito Penal, 13 ed., São Paulo: Saraiva, 1976, p. 61, v 1.<br />

287<br />

Sobre a tendência das duas escolas ver capítulo 1 deste estu<strong>do</strong>.<br />

288<br />

SILVA, Iara Ilgenfritz da. Direito ou punição? Representação da sexualidade feminina no direito penal. Porto<br />

Alegre: Movimento, 1985, p. 45.<br />

289<br />

Iara Ilgenfritz da Silva cita Ferdinand Lofre<strong>do</strong> que, em sua obra A Política da Família, publicada em 1938, traz<br />

interessante abordagem sobre a “ideologia da infe<strong>rio</strong>ridade feminina” que ressurgiu com to<strong>do</strong> ímpeto no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong><br />

regime fascista. In: SILVA. Op. cit., p. 46.<br />

145


mentalidades [...]”. 290 Essa regulação se estendeu para as questões de patrimônio,<br />

herança, propriedade, nome, etc.<br />

O Código Penal brasileiro não passa à margem dessas concepções, traz em seu<br />

bojo o pensamento jurídico <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século. Embora muitos <strong>do</strong>s seus dispositivos<br />

são considera<strong>do</strong>s anacrônicos ou letra morta, subsiste tanto na lei quanto na <strong>do</strong>utrina e<br />

jurisprudência, a defesa de uma moral pública calcada no contexto social, político e<br />

cultural <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século.<br />

É o discurso da moralidade que mais expressamente evidencia o ideal de<br />

feminilidade subjacente no sistema penal, elemento que, associa<strong>do</strong> à sua lógica<br />

seletiva, torna a arena penal um instrumento não somente ineficaz na defesa <strong>do</strong>s<br />

direitos da mulher, mas também lhe confere um poder de violência institucional,<br />

configuran<strong>do</strong> um forte instrumento na re(produção) de estereótipos e estigmas que dão<br />

lugar à discriminação, etiquetação, marginalização e exclusão da mulher no corpo<br />

social, mesmo sob o discurso da proteção.<br />

Assim, pois, como a <strong>do</strong>gmática jurídico-penal se encontra mergulhada numa<br />

profunda crise de legitimidade, “também o tratamento dispensa<strong>do</strong> à condição feminina<br />

pelo Direito Penal passa por uma espécie de crise paradigmática”, sublinha Lênio<br />

Streck. 291<br />

290 Idem, ibidem.<br />

291 STRECK, Lênio. O ideal normativo da masculinidade. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais.<br />

Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 40.<br />

146


Conforme esse autor, muito embora a discussão sobre a mulher esteja sen<strong>do</strong><br />

elaborada sob o prisma <strong>do</strong> gênero, o tratamento que lhe é dispensa<strong>do</strong> pelo judiciá<strong>rio</strong> é<br />

segun<strong>do</strong> a “égide de um direito de família burguês, individualista, onde o mari<strong>do</strong> era o<br />

chefe da empresa familiar (de patrimônio ‘avança-se’ para matrimônio)”. 292 Toman<strong>do</strong>-se<br />

como exemplo a violência <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> cometida contra a mulher, esta continua sen<strong>do</strong><br />

compreendida como o “exercício regular de um direito”, excludente de criminalidade<br />

prevista no Código Penal.<br />

Não é de se surpreender, observa Lênio Streck, “que até há poucos anos, alguns<br />

Tribunais, avaliza<strong>do</strong>s por renoma<strong>do</strong>s penalistas brasileiros, ainda sustentavam, por<br />

exemplo, que o mari<strong>do</strong> não podia ser sujeito <strong>do</strong> crime de estupro cometi<strong>do</strong> contra a<br />

esposa, por ‘lhe caber o exercício regular de um direito...’”. 293 Eram comuns julga<strong>do</strong>s<br />

declaran<strong>do</strong> a “cópula intra matrimonium” como dever recíproco <strong>do</strong>s cônjuges,<br />

justifican<strong>do</strong>-se o uso da força física caso houvesse recusa injustificada (moléstia grave,<br />

cópula contra a natureza) por parte de um <strong>do</strong>s cônjuges.<br />

Essa ótica é reforçada por Maria Berenice Dias em artigo versan<strong>do</strong> sobre a<br />

feminilização da magistratura. No entender da autora, o Poder Judiciá<strong>rio</strong> ainda é uma<br />

das instituições mais conserva<strong>do</strong>ras, manten<strong>do</strong> uma posição discriminatória nas<br />

292 Idem, p. 41.<br />

293 Idem, p. 42.<br />

147


questões de gênero, “com uma visão estereotipada da mulher, exigin<strong>do</strong>-lhe uma atitude<br />

de recato e impon<strong>do</strong>-lhe uma situação de dependência”. 294<br />

Sobrevive no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> sistema jurídico penal o referencial simbólico de um<br />

padrão familiar patriarcal, heterossexual, matrimonializa<strong>do</strong>, hierarquiza<strong>do</strong>, funda<strong>do</strong> sob<br />

a lei da desigualdade, numa clara contradição às mutações sociais ocorridas no modelo<br />

familiar e na estrutura social nos últimos séculos. Mudanças decorrentes da entrada da<br />

mulher no merca<strong>do</strong> de trabalho; da evolução <strong>do</strong>s costumes no campo da moralidade<br />

sexual, forjada pela invenção <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s contraceptivos, levan<strong>do</strong> à descoberta e à<br />

vivência de uma nova sexualidade pela mulher, e de um novo status jurídico que lhe<br />

conferiu equidade formal perante a lei 295 , sen<strong>do</strong> esse, em <strong>grande</strong> parte, um avanço<br />

decorrente das lutas emancipatórias que emergiram a partir <strong>do</strong> século XIX.<br />

Para Norberto Bobbio, a revolução feminina configura a maior revolução <strong>do</strong><br />

último século. São novos papéis e novos lugares que redefiniram o modelo familiar:<br />

294<br />

DIAS, Maria Berenice. A feminilização da magistratura. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Acesso à<br />

Justiça. Porto Alegre, a. 2, n. 2, set. 2002, p. 79.<br />

295<br />

“A Constituição Federal buscou resgatar a igualdade, cânone da democracia desde a Revolução Francesa e linha<br />

mestra da Declaração <strong>do</strong>s Direitos Humanos. O igualitarismo formal vem decanta<strong>do</strong> enfaticamente na Carta Política<br />

em duas oportunidades <strong>–</strong> arts. 5 o , inc. I, e 226, & 5 o <strong>–</strong> não basta por si só, para se alcançar a absoluta equivalência<br />

social e jurídica de homens e mulheres. O legisla<strong>do</strong>r foi até repetitivo ao consagrar a plena isonomia de direitos e<br />

obrigações entre o homem e a mulher, varren<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema jurídico to<strong>do</strong> e qualquer dispositivo legal que, mesmo<br />

com aparente feição protecionista, acabava por colocar a mulher num plano de subordinação e infe<strong>rio</strong>ridade. Assim,<br />

não é mais o mari<strong>do</strong> o cabeça <strong>do</strong> casal, o representante legal da família, nem o único responsável por prover o seu<br />

sustento. O simples estabelecimento <strong>do</strong> princípio da igualdade não logrou eliminar as diferenças existentes. A<br />

igualdade formal <strong>–</strong> igualdade de to<strong>do</strong>s perante a lei <strong>–</strong> não conflita com o princípio da igualdade material, que é o<br />

direito à equiparação por meio da redução das diferenças sociais. Nítida a intenção <strong>do</strong> novo sistema jurídico de<br />

consagrar a máxima aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e<br />

desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam. A necessidade de obediência ao preceito<br />

constitucional não pode ver como infringência ao princípio da isonomia a a<strong>do</strong>ção de posturas que gerem normas<br />

protetivas que, atentan<strong>do</strong> na realidade, visam a propiciar o equilíb<strong>rio</strong> para assegurar o direito à igualdade”. DIAS.<br />

Idem, p. 79.<br />

148


assim como a mulher participa <strong>do</strong> sustento da família, é exigi<strong>do</strong> também <strong>do</strong> homem que<br />

assuma maior responsabilidade na educação <strong>do</strong>s filhos, nos afazeres <strong>do</strong>mésticos, ao<br />

mesmo tempo que lhe é permiti<strong>do</strong> expressar emoções, revelar sentimentos.<br />

Georges Vigarello, em entrevista a Juremir Macha<strong>do</strong> da Silva 296 , argumenta que,<br />

embora ainda existam mais mulheres desempregadas <strong>do</strong> que homens e estas<br />

continuam ganhan<strong>do</strong> menos que esses, um <strong>grande</strong> número de fronteiras<br />

determinantes foi ultrapassa<strong>do</strong>. “Tu<strong>do</strong> é acessível às mulheres. De resto, a mulher pode<br />

administrar livremente o seu corpo em termos de contracepção e, no caso da França,<br />

de aborto. O casamento não é mais um lugar de <strong>do</strong>minação sistemática da mulher”. 297<br />

Segun<strong>do</strong> o autor, as feministas que negam esses avanços não refletem a realidade das<br />

mudanças.<br />

Para Maria Berenice Dias, hoje, ten<strong>do</strong> em vista os fatores econômicos, tolera-se<br />

com mais facilidade a profissionalização feminina e até mesmo a participação da mulher<br />

nas esferas de poder, porém sobrevive um <strong>grande</strong> preconceito no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> Poder<br />

Judiciá<strong>rio</strong> quan<strong>do</strong> essas modificações põem em risco a moralidade da família.<br />

Segun<strong>do</strong> a autora, “os processos envolven<strong>do</strong> relações familiares são os em que<br />

mais se destaca que a profunda evolução social e legislativa ocorrida nos últimos<br />

296 SILVA, Juremir Macha<strong>do</strong>. O corpo <strong>do</strong> pensamento. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais.<br />

Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 13.<br />

297 Idem, ibidem.<br />

149


tempos não bastou para alterar o discurso <strong>do</strong>s juízes”. 298 Os julga<strong>do</strong>s na área cível,<br />

sublinha a autora, claramente revelam uma tendência perigosamente protecionista à<br />

mulher.<br />

Já no campo penal, os julga<strong>do</strong>s são fortemente influencia<strong>do</strong>s por uma avaliação<br />

comportamental dentro de requisitos de adequação a determina<strong>do</strong>s papéis sociais,<br />

violan<strong>do</strong> o direito à liberdade, à autonomia e à privacidade da mulher, uma vez que “a<br />

vida sexual ou afetiva é área de indevassável intimidade”. 299<br />

Mais <strong>do</strong> que em qualquer outra ceara jurídica, é no campo penal, sobretu<strong>do</strong> no<br />

que se refere aos crimes de natureza sexual, em que sobrevivem argumentos de uma<br />

moral sexual instaurada pelos discursos da era que inaugurou a sociedade moderna,<br />

como uma das <strong>grande</strong>s novidades e técnicas de poder. O discurso da moral sexual<br />

deve ser pensa<strong>do</strong> a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas.<br />

Em sua análise da sexualidade enquanto “dispositivo político”, Michel Foucault 300<br />

defende que o advento <strong>do</strong> capitalismo fez brotar uma verdadeira política <strong>do</strong> sexo<br />

crian<strong>do</strong> dispositivos que devem ser considera<strong>do</strong>s como mecanismos positivos,<br />

produtores de saber, multiplica<strong>do</strong>res de discursos e gera<strong>do</strong>res de poder.<br />

298 DIAS. Op. cit., p. 79.<br />

299 Idem, p. 80.<br />

300 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa<br />

Albuquerque e J. A Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.<br />

150


Ou seja, sobrevive através <strong>do</strong> Direito Criminal contemporâneo uma rede sutil de<br />

discursos, latente em to<strong>do</strong>s os níveis <strong>do</strong> corpo social, que se traduz em técnicas<br />

disciplinares e procedimentos regula<strong>do</strong>res, méto<strong>do</strong>s de poder capazes de majorar ou<br />

sujeitar as forças, as aptidões, a vida em geral para a garantia das relações, não só de<br />

produção 301 , como defende o autor, mas as relações de gênero segun<strong>do</strong> o modelo<br />

tradicional.<br />

O sexo, enquanto acesso à vida <strong>do</strong> corpo e à vida da espécie, insere-se<br />

simultaneamente como matriz das disciplinas e como princípio das regulações, alvo<br />

central de um poder que se organiza em torno da vida 302 . Com o limiar da modernidade,<br />

nasce toda uma tecnologia <strong>do</strong> sexo, dan<strong>do</strong> lugar a “controles constantes, a ordenações<br />

espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos e psicológicos infinitos, a to<strong>do</strong><br />

um micropoder sobre o corpo” 303 por um la<strong>do</strong>, e de outro, também “dá margem a<br />

301 O discurso da sexualidade que emerge a partir <strong>do</strong> século VXIII foi, segun<strong>do</strong> Michel Foucault, elemento<br />

indispensável ao desenvolvimento <strong>do</strong> capitalismo, “que só pôde ser garanti<strong>do</strong> à custa da inserção controlada <strong>do</strong>s<br />

corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento <strong>do</strong>s fenômenos de população aos processos<br />

econômicos”. In: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza<br />

da Costa Albuquerque e J. A Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 132. Este processo foi<br />

dinamiza<strong>do</strong> com o desenvolvimento <strong>do</strong>s <strong>grande</strong>s aparelhos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, das instituições presentes em to<strong>do</strong>s os níveis<br />

<strong>do</strong> corpo social: a família, o exército, a escola, a política, a medicina, a administração das coletividades. Além de<br />

agirem no nível <strong>do</strong>s processos econômicos, no seu desenrolar, forças em ação em tais processos operaram também<br />

enquanto fatores de segregação “e de hierarquização social, agin<strong>do</strong> sobre as forças representativas tanto de uns como<br />

de outros, garantin<strong>do</strong> relações de <strong>do</strong>minação e efeitos de hegemonia [...]”. In: FOUCAULT. Op. cit., p. 133.<br />

302 Consoante Michel Foucault, o sexo, ou a sexualidade enquanto foco de disputa política é parte de uma nova moral,<br />

é a entrada <strong>do</strong>s fenômenos próp<strong>rio</strong>s à vida da espécie humana na ordem <strong>do</strong> saber e <strong>do</strong> poder, no campo das técnicas<br />

políticas. Até então, sublinha o autor, o contato da vida com a história era da<strong>do</strong> sob o signo da morte: epidemias e<br />

fome eram ameaças constantes. Com o desenvolvimento da agricultura e com o aumento da produtividade e <strong>do</strong>s<br />

recursos, as <strong>grande</strong>s devastações deixaram de ser uma ameaça. “O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é<br />

ser uma espécie viva, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva [...].<br />

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político”. In: FOUCAULT. Op. cit., p. 134.<br />

303 Idem, p. 137.<br />

151


medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções que visam to<strong>do</strong> o corpo<br />

social ou grupos toma<strong>do</strong>s globalmente”. 304<br />

Sublinha Michel Foucault que, entre as quatro <strong>grande</strong>s linhas de ataque ao longo<br />

das quais a política <strong>do</strong> sexo avançou nos últimos <strong>do</strong>is séculos está a “histerização das<br />

mulheres, que levou a uma medicalização minuciosa de seus corpos, de seu sexo”. 305<br />

Esta aconteceu em nome da responsabilidade que as mulheres teriam no que diz<br />

respeito à saúde de seus filhos, à solidez da instituição familiar, ao reforço da espécie e<br />

da raça, à salvação da sociedade. A gestão política <strong>do</strong> sexo é uma gestão da vida. É a<br />

articulação entre dispositivos de poder e o corpo, suas funções, os processos<br />

biológicos, sensações e prazeres.<br />

No campo da atividade legislativa ou das instituições de justiça, a lei funciona<br />

cada vez mais como norma, e a instituição judiciária se integra cada vez mais num<br />

contínuo de aparelhos, cujas funções são, sobretu<strong>do</strong>, regula<strong>do</strong>ras. “Uma sociedade<br />

normatizada é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”. 306<br />

É sob esse conjunto de referências culturais, morais e sociais transformadas em<br />

feixe de efeitos convergentes que se deve analisar a moral sexual que atravessa o<br />

discurso jurídico-penal contemporâneo, como esse atua enquanto estratégia cria<strong>do</strong>ra<br />

304 Idem, ibidem.<br />

305 Idem, ibidem.<br />

306 Idem, p. 135.<br />

152


de gênero e como a lógica da moralidade da vítima duplica a violência institucional <strong>do</strong><br />

sistema penal contra a mulher.<br />

Carmem Campos 307 , toman<strong>do</strong> por referência julga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> crime de estupro 308 ,<br />

defende que, embora a conduta sexual da vítima não faça parte <strong>do</strong> tipo penal, ou não é<br />

a sua honestidade que está em questão, a norma não faz nenhuma referência nesse<br />

senti<strong>do</strong>, são esses argumentos que fundamentam as decisões. Trata-se, segun<strong>do</strong><br />

autora, “não de argumentos jurídicos, mas antes, instrumentos políticos visan<strong>do</strong><br />

subjugar a mulher enquanto titular de direito ou, em outras palavras, meios de<br />

reprodução <strong>do</strong> direito penal clássico”. 309<br />

Com base na obra de Georges Vigarello 310 , a autora traça um comparativo entre<br />

a justiça penal da Europa <strong>do</strong> início da Idade Moderna e os julga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> crime de estupro<br />

no Brasil contemporâneo. O que a autora argumenta é que os discursos de defesa e<br />

acusação, bem como as próprias decisões <strong>do</strong>s tribunais, apresentam uma linha comum<br />

307 CAMPOS,Carmem. Da violência real à violência institucional. Do direito penal clássico ao moderno. In:<br />

Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002.<br />

308 O crime de estupro está tipifica<strong>do</strong> no Código Penal brasileiro, no título <strong>do</strong>s “Crimes Contra os Costumes” no<br />

capítulo “Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual”, art. 213, da seguinte forma: “Constranger mulher à conjunção<br />

carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena <strong>–</strong> reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”. Por força da Lei 8.072/90,<br />

o estupro é considera<strong>do</strong> um crime hedion<strong>do</strong> inafiançável.<br />

309 Idem, p. 31.<br />

310 Georges Vigarello em a História <strong>do</strong> Estupro faz uma análise desse gênero de crime na França a partir <strong>do</strong> século<br />

XVI. O autor revela que no Antigo Regime Francês o estupro se insere no contexto geral da banalização da<br />

violência, sen<strong>do</strong> o crime de roubo puni<strong>do</strong> mais severamente <strong>do</strong> que o crime de estupro, visto que aquele colocava em<br />

risco a segurança da comunidade, enquanto a violência sexual é considerada pelo Direito Clássico francês como um<br />

crime contra a moral. Outro aspecto considera<strong>do</strong> pelo autor é que no julgamento <strong>do</strong> crime de estupro as<br />

características de pobreza da vítima ou de posses <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> determinam a proteção jurídica. Ou seja, a qualidade da<br />

vítima, reputação moral, seu grau de pobreza, bem como a condição econômica <strong>do</strong> réu, é que irão determinar a<br />

gravidade <strong>do</strong> crime. Assim, a violência sexual cometida contra uma escrava, ou contra mulheres “difamadas”,<br />

dificilmente seria punida. Em suma, o estupro na França <strong>do</strong> século XVI era um crime “vincula<strong>do</strong> à moral, aos<br />

costumes, menos penaliza<strong>do</strong> que o crime de roubo, um crime pouco investiga<strong>do</strong>, um crime tolera<strong>do</strong>, com poucas<br />

queixas e com <strong>grande</strong>s dúvidas sobre a palavra da vítima”. In: CAMPOS. Op. cit., p. 31-32.<br />

153


de argumentação sempre referenciada na vida pregressa da vítima e <strong>do</strong> réu, julgan<strong>do</strong>-<br />

se, não o crime em si ou a violência cometida contra mulher, mas o comportamento das<br />

partes envolvidas segun<strong>do</strong> os papéis tradicionalmente determina<strong>do</strong>s a homens e a<br />

mulheres.<br />

Consoante a autora, o quê julga<strong>do</strong>, em verdade, é se a conduta da vítima<br />

corresponde ao conceito jurídico de “mulher honesta”, apesar de não haver previsão<br />

legal para tanto. “O Direito Penal Moderno, e sobretu<strong>do</strong> a sua interpretação pelos<br />

tribunais, no que se refere aos crimes sexuais, fundamenta-se, tal como se<br />

fundamentava o direito criminal antigo, na moral sexual” 311 . Essa postura é ratificada<br />

por autores como Pimentel Schritzmeyer e Valéria Pandjiradjian, para os quais, o que<br />

prevalece é o julgamento moral da vítima em detrimento de um exame mais racional e<br />

objetivo <strong>do</strong>s fatos. 312<br />

Tove Stang Dahl 313 observa que pesquisa realizada na Noruega com vítimas de<br />

violência sexual revelou que o encontro com a polícia e o tribunal valia como uma nova<br />

fonte de humilhação ou como uma “dupla violação”. Foram propostas reformas na lei de<br />

Processo Penal, garantin<strong>do</strong> às vitimas assistência jurídica custeada pelo Esta<strong>do</strong>, além<br />

de criarem-se limites ao direito <strong>do</strong> tribunal de ouvir testemunhas sobre a conduta e a<br />

experiência sexual ante<strong>rio</strong>r da vítima.<br />

311 Idem, p. 30.<br />

312 Cita<strong>do</strong>s por CAMPOS, Carmem. Da violência real à violência institucional. Do direito penal clássico ao moderno.<br />

In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 36.<br />

313 DAHL. Op. cit., p. 136.<br />

154


Para a autora, uma vítima de violação corre sempre o risco de que o acusa<strong>do</strong><br />

seja absolvi<strong>do</strong> “pela força de certos pressupostos legais, especialmente quan<strong>do</strong><br />

respeitam a satisfação da exigência subjetiva da condenação, combinada com o<br />

preceito legal que diz que qualquer dúvida deve ser resolvida em favor <strong>do</strong> argüi<strong>do</strong>”. 314<br />

Insere-se nesse contexto o aparato médico-legal introduzi<strong>do</strong> no processo<br />

criminal a partir <strong>do</strong>s séculos XIX e XX, des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>-o em instâncias que pretendem<br />

fornecer instrumentos de prova aos tribunais. Prática que reitera a “crença” <strong>do</strong> sistema<br />

penal no eterno “<strong>do</strong>m de iludir” atribuí<strong>do</strong> às mulheres. A palavra da vítima deve ser<br />

provada através de boletins de ocorrência, exames, perícias, análises clínicas,<br />

avaliações psiquiátricas, testemunhas; to<strong>do</strong> um ritual que se traduz em novos<br />

mecanismos de violência, esses porém, institucionaliza<strong>do</strong>s pela burocracia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

de Direito.<br />

No caso <strong>do</strong> Brasil, referência empírica nesse senti<strong>do</strong> é o cumprimento da Norma<br />

Técnica de Atendimento Humaniza<strong>do</strong> <strong>do</strong> Aborto, expedida pelo Ministé<strong>rio</strong> da Saúde em<br />

março de 2005, a qual autoriza médicos de hospitais públicos ou convenia<strong>do</strong>s ao<br />

Sistema Único de Saúde (SUS) a interromperem a gravidez de mulheres que alegarem<br />

estupro, sem qualquer comprovação <strong>do</strong>cumental.<br />

A norma tenta o cumprimento <strong>do</strong> artigo 128 <strong>do</strong> Código Penal em vigor<br />

autorizan<strong>do</strong> a interrupção da gravidez quan<strong>do</strong> essa resulta de estupro. O Código Penal<br />

314 DAHL. Idem, ibidem.<br />

155


não condiciona à prova <strong>do</strong> estupro ao boletim de ocorrência 315 ou a qualquer outro<br />

<strong>do</strong>cumento, o que deveria prevalecer é a palavra da vítima, sen<strong>do</strong> essa recebida como<br />

presunção de veracidade.<br />

Não obstante, pesquisas publicadas pela imprensa nacional revelam que mais<br />

uma vez a vítima é submetida a uma verdadeira peregrinação nos hospitais públicos na<br />

tentativa de comprovar a veracidade <strong>do</strong>s fatos. A desconfiança <strong>do</strong>s médicos sobre os<br />

falsos depoimentos das mulheres pode ser interpretada enquanto reflexo de uma<br />

cultura machista a qual viola o acesso pela mulher aos seus direitos de liberdade sexual<br />

e de decisão, ainda que formalmente protegi<strong>do</strong>s esses pelo aparato legal.<br />

3.2.2 A Violência Discursiva <strong>do</strong>s Tribunais<br />

A discussão assim referendada coloca em questão os meios de prova nos crimes<br />

de violência contra a mulher. A <strong>do</strong>utrina é uníssona quanto à palavra da vítima constituir<br />

o vértice de todas as provas, resguardadas as proporções <strong>do</strong>s exames periciais<br />

introduzi<strong>do</strong>s no judiciá<strong>rio</strong> com o desenvolvimento da Medicina, fazen<strong>do</strong> parte de to<strong>do</strong><br />

um aparato médico-legal ao qual é submeti<strong>do</strong> o corpo da mulher.<br />

Entra em cena a concepção positivista de individualização da pena, a qual<br />

ampliou os poderes <strong>do</strong> juiz na aplicação da sanção penal, o que pressupõe aferir as<br />

315 A projeção nacional é de que apenas 10% das mulheres registram o estupro.<br />

156


condições biológicas, psicológicas e sociológicas <strong>do</strong> criminoso. A ênfase da punição é<br />

dada segun<strong>do</strong> a periculosidade <strong>do</strong> agente, sua capacidade nata para o crime.<br />

Sob esse aspecto, observa Mariza Corrêa 316 , nas décadas de 20 e 30, a<br />

Medicina investigava se a prostituição e a homossexualidade decorriam de uma<br />

tendência natural para a criminalidade ou se eram parte de uma patologia. Os juristas<br />

optaram pela segunda hipótese, por isso a prostituição e o homossexualismo não foram<br />

enquadra<strong>do</strong>s entre as condutas criminosas no Código Penal.<br />

Para o positivismo de César Lombroso, Eurico Ferri e Rafael Garófalo, o ato<br />

criminoso perde a sua importância mediante a personalidade <strong>do</strong> criminoso. Portanto,<br />

uma a’<br />

nálise crítica <strong>do</strong> discurso jurídico evidencia que o que se julga não é o ato em si,<br />

mas as circunstâncias de sua concreção.<br />

Trata-se, pois, de estratégias lingüísticas que podem transformar o autor de uma<br />

morte em inocente ou culpa<strong>do</strong>, um ato de violência em legítimo ou delitivo, mas isto não<br />

deriva <strong>do</strong> ato em si, mas da posição <strong>do</strong>s sujeitos nele envolvi<strong>do</strong>s. 317 Disso se aduz que<br />

316 CORRÊA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981.<br />

317 A título de ilustração da teoria referenciada, apresenta-se a seguir o resulta<strong>do</strong> de um julgamento sobre o caso de<br />

um homicídio <strong>do</strong>loso ocorri<strong>do</strong> no município de Guarani das Missões (R/S), conheci<strong>do</strong> como a capital polonesa <strong>do</strong><br />

Esta<strong>do</strong>: 80% <strong>do</strong>s seus mora<strong>do</strong>res são descendentes de imigrantes vin<strong>do</strong>s da Polônia. As informações foram colhidas<br />

<strong>do</strong> processo nº. 699427969/, mar. 1999, v. 1, 2, 3; Comarca Guarani das Missões. O fato delituoso foi pratica<strong>do</strong> por<br />

José Eloi Alves <strong>do</strong> Amaral, 45 anos, pedreiro, que no dia 16 de dezembro de 1996, arma<strong>do</strong> de revólver, foi até a casa<br />

de sua ex-esposa, Maria Eli Soares, 42 anos, da qual estava separa<strong>do</strong> havia mais de <strong>do</strong>is anos. O réu encontrou a<br />

vítima sentada na varanda da casa toman<strong>do</strong> chimarrão com uma amiga, quan<strong>do</strong> então se dirigiu a ela e disparou<br />

157


a violência também é gerada no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> discurso jurídico. A violência narrada nos<br />

tribunais é apenas uma representação da realidade; peça polissêmica, resulta<strong>do</strong> de<br />

uma ampla teia discursiva, sob o signo de múltiplas representações sociais ainda<br />

pre<strong>do</strong>minantes em relação às identidades de gênero, permitin<strong>do</strong> construir uma imagem<br />

ambígua <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s sujeitos nele implica<strong>do</strong>s.<br />

Se sob o acusa<strong>do</strong> pesa um conjunto de representações contraditórias<br />

estigmatizan<strong>do</strong>-o ora como marginal, <strong>do</strong>ente, bárbaro, desequilibra<strong>do</strong>, selvagem, ora<br />

como bom moço, trabalha<strong>do</strong>r, honesto, bom amigo, etc., abrin<strong>do</strong>-lhe a possibilidade de<br />

ter si<strong>do</strong> leva<strong>do</strong>, coagi<strong>do</strong> ou provoca<strong>do</strong> a cometer o crime; sobre a vítima incidem<br />

estereótipos próp<strong>rio</strong>s da imagem cultural da subordinação, da ingenuidade, da moça de<br />

família ou da mulher perigosa, ameaça<strong>do</strong>ra, de atrativos lascivos, de conduta livre.<br />

cinco tiros, causan<strong>do</strong>-lhe ferimentos letais. O autor <strong>do</strong>s disparos foi denuncia<strong>do</strong> pelo Ministé<strong>rio</strong> Público pela prática<br />

de crime hedion<strong>do</strong> (art. 121, parte 2 ª , incisos I, III, IV <strong>do</strong> Código Penal, nos termos da Lei 8.930/94): motivo torpe (a<br />

vítima não quis reconstituir a sociedade conjugal); mediante recurso que dificultou a defesa da vítima (na medida que<br />

a matou de surpresa); e por meio cruel (efetuou o disparo com arma de fogo contra o corpo da vítima, e enquanto ela<br />

rastejava em direção a sua casa, totalmente ensangüentada, reiterou os disparos e após, enquanto a vítima defecava,<br />

disparou mais alguns disparos, causan<strong>do</strong> padecimento inútil e demonstran<strong>do</strong> a total ausência de elementar sentimento<br />

de piedade, de moralidade, de sensibilidade humana com a sua ex-esposa). Segun<strong>do</strong> a defesa, o autor <strong>do</strong> crime teria<br />

i<strong>do</strong> até a residência da vítima para tratar da venda <strong>do</strong> único bem <strong>do</strong> casal: uma casa, quan<strong>do</strong> a mulher o teria<br />

chama<strong>do</strong> de “guampu<strong>do</strong>”, motivan<strong>do</strong> os disparos. O réu foi pronuncia<strong>do</strong> pelo juiz da comarca como incurso nas<br />

sanções <strong>do</strong> art. 121, parte 2 o inciso IV, CP, determinan<strong>do</strong> que fosse leva<strong>do</strong> a julgamento pelo tribunal <strong>do</strong> júri, o qual<br />

foi composto por seis homens e uma mulher. A seguir alguns <strong>do</strong>s quesitos apresenta<strong>do</strong>s pelo juiz presidente <strong>do</strong><br />

Tribunal <strong>do</strong> Júri, conforme a ordem da “legítima defesa da honra”, “inexigibilidade de conduta diversa” e “homicídio<br />

privilegia<strong>do</strong>”: o réu agiu em legítima defesa da honra?<br />

O réu usou, moderadamente, os meios necessá<strong>rio</strong>s para repelir a agressão a sua honra? O réu era submeti<strong>do</strong> a<br />

seguidas injúrias, consistentes em chamá-lo de guampu<strong>do</strong>? Essas injúrias criaram para o réu uma situação anormal e<br />

insuportável? Em face à situação anormal e insuportável, foi o réu leva<strong>do</strong> diante de atitudes inju<strong>rio</strong>sas, por não<br />

dispor de outra alternativa, agir como agiu? Por unanimidade, os jura<strong>do</strong>s reconheceram que o acusa<strong>do</strong> agiu sob a<br />

excludente legítima defesa da honra, e por quatro votos a três, disseram que o acusa<strong>do</strong> usou moderadamente <strong>do</strong>s<br />

meios necessá<strong>rio</strong>s para repelir a agressão da vítima. Sob forte comoção da comunidade guaraniense, receben<strong>do</strong> o fato<br />

destaque na imprensa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, o Ministé<strong>rio</strong> Público recorreu da decisão <strong>do</strong> júri, pedin<strong>do</strong> anulação da sentença,<br />

alegan<strong>do</strong> que a absolvição pelos jura<strong>do</strong>s baseou-se apenas na “palavra <strong>do</strong> réu”, contrária às provas nos autos. Em<br />

suas alegações, o MP evocou os ensinamentos <strong>do</strong> jurista Roberto Lyra, segun<strong>do</strong> o qual o adulté<strong>rio</strong> é crime contra a<br />

família e não contra a honra. Afirma o autor que a mulher tem honra própria, e se traiu o mari<strong>do</strong> é desonra própria,<br />

não se poden<strong>do</strong> matar pela honra de quem é desonrada. Após o julgamento, iniciou-se um movimento de revolta<br />

popular lidera<strong>do</strong> pelo pároco da cidade, o qual alegou ter recebi<strong>do</strong> ameaças de morte por “defender uma prostituta”,<br />

prejudican<strong>do</strong> a imagem <strong>do</strong>s católicos <strong>do</strong> município. Em nota à imprensa, o padre manifestou o seu inconformismo<br />

158


Trata-se de recursos argumentativos atuan<strong>do</strong> no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> discurso jurídico,<br />

externa<strong>do</strong> pelas autoridades que lhe dão credibilidade (magistra<strong>do</strong>s, promotores,<br />

polícia, peritos, advoga<strong>do</strong>s), colocan<strong>do</strong> em cena os protagonistas <strong>do</strong> fato e seus<br />

atributos, acentuan<strong>do</strong> ou excluin<strong>do</strong> diferentes aspectos <strong>do</strong> acontecimento,<br />

estabelecen<strong>do</strong> os limites das discussões.<br />

Contrapon<strong>do</strong>-se à teoria da Escola Clássica, a ciência criminal moderna julga o<br />

ato infração não somente segun<strong>do</strong> o crité<strong>rio</strong> objetivo da lei, mas também em função <strong>do</strong>s<br />

elementos subjetivos da personalidade <strong>do</strong> seu agente e ainda, em se tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

crimes de estupro, violência física e homicídio pratica<strong>do</strong>s contra a mulher, “‘inventou’<br />

uma maneira de transverter a tese. Em vez de considerar a periculosidade <strong>do</strong> agente,<br />

projetou-a para a personalidade da vítima [...]”. 318 Essa sempre apreciada segun<strong>do</strong><br />

crité<strong>rio</strong>s da moral pública. “Quem passa a ocupar lugar de relevo no julgamento é a<br />

vítima, como se tratasse de uma questão prejudicial”. 319<br />

com a decisão, observan<strong>do</strong> que alguém precisa reagir diante de uma sociedade que aceita esse tipo de crueldade, que<br />

aprova e acha que o homem tem o direito de tirar a vida. O pároco revelou-se preocupa<strong>do</strong> com os precedentes<br />

abertos pelo julgamento, observan<strong>do</strong> de que estes poderiam aumentar a violência <strong>do</strong>s “mari<strong>do</strong>s” desonra<strong>do</strong>s contra a<br />

mulher. Também em entrevista à imprensa, o autor <strong>do</strong> crime declarou-se “uma pessoa honesta”, que nunca teve<br />

“problemas com a justiça”. Em relação à anulação <strong>do</strong> júri e um novo julgamento, disse estar sen<strong>do</strong> vítima de uma<br />

“minoria” que achou não ter si<strong>do</strong> correta a sua absolvição e mais uma vez reiterou ter mata<strong>do</strong> em legítima “defesa de<br />

sua honra”, visto ter si<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> de “guampu<strong>do</strong>”. Em novo julgamento, o Conselho de Sentença declarou<br />

condena<strong>do</strong> o réu nas penas <strong>do</strong> homicídio simples com o reconhecimento das privilegia<strong>do</strong>ras de motivo de relevante<br />

valor moral e de cometimento <strong>do</strong> crime sob <strong>do</strong>mínio de violente emoção, logo em seguida de injusta provocação da<br />

vítima, fican<strong>do</strong> a sua pena fixada em cinco anos de reclusão. Recurso ministerial resultou na majoração da pena que<br />

foi fixada em sete anos e seis meses de reclusão em regime semi-aberto.<br />

318 SILVA. Op., cit, p. 49.<br />

319 GOMES, Luiz Flávio. A presunção de violência nos crimes sexuais. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais.<br />

São Paulo, a. 4, n. 15, jul./set. 1996, p. 176.<br />

159


A estratégia retórica (acusação, defesa, sentença, recursos), portanto, é fixada a<br />

partir de um sistema de representações simbólicas <strong>do</strong> referente de gênero que remete<br />

o indivíduo a uma categoria previamente constituída. Ou como afirmam Silvia Pimentel<br />

e Valéria Pandjiarjian, citan<strong>do</strong> Lauretis, “o gênero não é apenas uma construção sócio-<br />

cultural, mas também um aparelho semiótico, um sistema de representações que atribui<br />

significa<strong>do</strong> (identidade, valor, prestígio, posição no sistema de parentesco, status na<br />

hierarquia social, etc.) aos indivíduos no inte<strong>rio</strong>r da sociedade”. 320<br />

E, como assinala Friedrich Müller, a violência latente no Esta<strong>do</strong> não é apenas a<br />

violência política no senti<strong>do</strong> mais restrito, fundamentada pela ordem constitucional e<br />

pelo ordenamento jurídico; trata-se, segun<strong>do</strong> a autora, da violência oriunda da<br />

configuração das relações econômicas e sociais. “Essa violência não é instituída pela<br />

constituição e pelo sistema jurídico, mas em <strong>grande</strong> parte apenas assumida por<br />

eles”. 321<br />

A violência institucional, ou a violência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito burguês, é, assim,<br />

uma violência instituída na linguagem, sen<strong>do</strong> por ela legitimada. Trata-se de uma<br />

violência formalizada, controlável, mediada pela linguagem, sem precisar recorrer à<br />

violência pura, à violência efetiva, deslegitimada pela comunicação e pelo consenso.<br />

320 LAURETIS, apud PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria. O estupro como “cortesia”. Direitos humanos e<br />

gênero na justiça brasileira. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar.<br />

2002, p. 51.<br />

321 MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência. Elementos de uma teoria constitucional I. Porto Alegre:<br />

Fabris, 1995, p. 21.<br />

160


3.3 Criminologia e Feminismo: Impasses e Contradições<br />

Apesar da queima de sutiãs em praça pública, <strong>do</strong> direito da mulher ao voto, da<br />

invenção da pílula anticoncepcional e da forte presença feminina em todas áreas de<br />

trabalho <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> contemporâneo, sobrevivem, ainda hoje, no campo simbólico e na<br />

prática social, os imperativos de feminilidade segun<strong>do</strong> o padrão tradicional, conforme já<br />

evidencia<strong>do</strong> por este trabalho.<br />

Esses imperativos ganham voz, muitas vezes, em movimentos opostos aos fins<br />

neles declara<strong>do</strong>s: sobrevive nos próp<strong>rio</strong>s movimentos feministas ao que Hannah Arendt<br />

chama de “poder tirânico” das categorias cediças e que tendem a criar um senti<strong>do</strong> de<br />

permanente “naturalização” (imaginária) quanto às instituições, conceitos e discursos<br />

que presidem a vida. Consideran<strong>do</strong> a relação mulher/Direito Penal, coloca-se esta<br />

questão <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> eixo.<br />

Ou seja, se num extremo se encontra o sistema penal, cuja lógica natural é a da<br />

seletividade, ditan<strong>do</strong> um lugar de exclusão ao indivíduo desaloja<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo social,<br />

tem-se, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da relação, os movimentos feministas que buscam na arena penal<br />

uma via para a afirmação ou para a defesa <strong>do</strong>s direitos da mulher, uma prática<br />

atravessada pela ambigüidade e pela contradição.<br />

161


Antes de se prosseguir na discussão sobre as reivindicações feministas no<br />

campo penal, cabe evidenciar alguns aspectos acerca <strong>do</strong>s movimentos emancipató<strong>rio</strong>s,<br />

cuja ênfase se deu a partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1960 nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, 322 embora a<br />

“palavra feminismo tivesse sua origem no contexto político francês <strong>do</strong> século XIX, para<br />

designar os diferentes grupos que, de uma maneira ou de outra, tentaram melhorar a<br />

situação das mulheres”. 323<br />

Já no século XX, o movimento foi associa<strong>do</strong> às mulheres que, na política,<br />

salientaram as diferenças entre o homem e a mulher, “ou seja, as características<br />

específicas da mulher, a sua natureza ímpar, a experiência mística da maternidade e a<br />

sua pureza intrínseca”. 324 Essas correntes <strong>do</strong> feminismo foram consideradas<br />

“românticas”, sen<strong>do</strong> substituídas por movimentos políticos mais racionalistas, como os<br />

da corrente liberal e marxista, que passaram a sublinhar, não as diferenças, mas as<br />

semelhanças entre os sexos.<br />

As ativistas feministas foram “identificadas como lésbicas ou como mulheres<br />

feias e mal-amadas, que odiavam os homens e queriam o seu lugar” 325 , observa Maria<br />

Berenice Dias, e, ainda, “o me<strong>do</strong> da identificação com esse estereótipo gerou tal carga<br />

de aversão a essa expressão, que foi repudiada pelas próprias mulheres e acabou por<br />

marginalizar o movimento até os dias de hoje”. 326<br />

322 DAHL. Op. cit., p. 13.<br />

323 Idem, ibidem.<br />

324 Idem, ibidem.<br />

325 DIAS. Op.cit., p. 77.<br />

326 Idem, ibidem.<br />

162


Mireya Suárez e Lourdez Bandeira destacam o aspecto contraditó<strong>rio</strong> e ambíguo<br />

das demandas feministas, sublinhan<strong>do</strong> que a “abordagem de gênero trouxe à tona<br />

várias constatações incômodas e provocativas para a enunciação feminista <strong>do</strong>s anos<br />

1970”. 327 Segun<strong>do</strong> essas autoras, “as abordagens de gênero evidenciaram que o<br />

feminismo reafirma as diferenças das mulheres perante os homens, mas,<br />

para<strong>do</strong>xalmente, reivindica igualitarismo de direitos”. 328<br />

Ou então, sustentam as autoras, citan<strong>do</strong> Rinfret-Raynor e Cantin, “o feminismo<br />

propõe como possível a construção de uma diferença indiferenciada, ou seja, uma<br />

razão simbólica, na qual a diferença anatômica entre as pessoas não determine suas<br />

possibilidades, suas personalidades, suas parcerias sexuais-afetivas, entre outros<br />

comportamentos [...]”. 329 E, ainda, o feminismo sugere a visibilidade e o reconhecimento<br />

das diferenças entre as próprias mulheres e entre os próp<strong>rio</strong>s homens como forma de<br />

extinguir a imagem da mulher e <strong>do</strong> homem universais.<br />

Já no Brasil, um novo feminismo começa aparecer a partir de mea<strong>do</strong>s da década<br />

de setenta, em plena Ditadura Militar, o que contribuiu para que o movimento não<br />

apresentasse a força e o radicalismo com que operou na Europa e na América <strong>do</strong><br />

Norte. Contu<strong>do</strong> foram esses grupos de ação que suscitaram debates em torno de<br />

temas relevantes para as mulheres como a descriminalização <strong>do</strong> aborto, a violência<br />

327 SUÁREZ; BANDEIRA (Orgs). Op. cit., p. 23.<br />

328 Idem, ibidem.<br />

329 Idem, ibidem.<br />

163


<strong>do</strong>méstica, a violência sexual, a impunidade <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s ou companheiros pelo<br />

assassinato de mulheres, a discriminação de gênero no âmbito <strong>do</strong> trabalho (salá<strong>rio</strong>s<br />

mais baixos, dificuldades de promoção, exigência de atesta<strong>do</strong> de esterilização para<br />

admissão, o assédio sexual, etc).<br />

Muitos <strong>do</strong>s problemas que até então permaneciam ocultos, e eram considera<strong>do</strong>s<br />

de âmbito priva<strong>do</strong>, converteram-se em denúncias públicas demandan<strong>do</strong> a ação <strong>do</strong><br />

sistema penal e de outra parte, passaram a figurar entre os principais temas das<br />

agendas políticas. A criação, em 1984, da Delegacia das Mulheres faz parte desse<br />

contexto.<br />

3.3.1 Demandas Feministas na Arena Penal<br />

O quadro de profunda e grave crise de legitimidade 330 em que se encontra<br />

mergulha<strong>do</strong> o sistema penal no Brasil, evidencia<strong>do</strong> teoricamente pela Criminologia<br />

Crítica e empiracamente pelo sentimento generaliza<strong>do</strong> de insegurança, impunição e<br />

330 Para as correntes jurídico-críticas, a crise <strong>do</strong> Direito Penal deve ser vista como uma das dimensões de uma crise<br />

mais ampla, que é a crise <strong>do</strong> próp<strong>rio</strong> paradigma <strong>do</strong> Direito instaura<strong>do</strong> na modernidade, ou com o Direito positivo<br />

estatal, cuja promessa é de que to<strong>do</strong> problema social passa por uma solução legal. No caso <strong>do</strong> Brasil, essa crise<br />

ensejou reações ambíguas e contraditórias em matéria de políticas criminais: de um la<strong>do</strong>, encontra-se a corrente <strong>do</strong><br />

“Direito Penal Mínimo”, a qual defende uma redução <strong>do</strong> sistema da Justiça Penal através de um processo de<br />

“descriminalização”, “despenalização” e a “descarcerização”. Na sua contraposição, está o movimento propon<strong>do</strong> o<br />

fortalecimento, expansão e relegitimação <strong>do</strong> sistema, através da criminalização de novas condutas, agravamento de<br />

penas, defesa da pena perpétua e da pena de morte. Essa corrente tem si<strong>do</strong> largamente difundida pela mídia. As<br />

normas penais em vigor são parte dessas duas acepções. Já no que se refere à reforma da parte especial <strong>do</strong> Código<br />

Penal em vigor, recebeu esta, igualmente, contribuições <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is movimentos, visto que existe a proposta de<br />

descriminalizar algumas condutas, bem como a tipificação de outras.<br />

164


descrédito nos órgãos estatais, coexiste “com uma forte e contraditória demanda<br />

relegitima<strong>do</strong>ra de sua atuação”. 331<br />

É nessa demanda que se inscreve a política criminal feminista no Brasil. Para<br />

Vera Regina de Andrade 332 , há no país um profun<strong>do</strong> déficit de recepção da Criminologia<br />

Crítica e o que é ainda mais grave, observa a autora, há um profun<strong>do</strong> déficit de<br />

produção criminológica crítica e feminista. Ou seja, os movimentos das mulheres e a<br />

política criminal feminista defendida no parlamento mantêm-se à margem das<br />

discussões teóricas críticas da academia, ainda que essas se dêem de forma<br />

insuficiente no Brasil ou não transponham os limites da <strong>universidade</strong>.<br />

Por conseguinte, cabe argumentar que o déficit de “diálogo” entre os movimentos<br />

feministas e as teorias acadêmicas resultam em políticas não apenas criminais, mas<br />

também em políticas de gênero em seu senti<strong>do</strong> mais amplo, inócuas e utópicas, além<br />

de contraditórias aos objetivos nelas propostas.<br />

A criminologia feminista alerta para o excessivo recurso que o feminismo vem<br />

fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema penal: a criminalização de novas condutas pela insuficiência de<br />

tipos penais que protejam a mulher (no caso <strong>do</strong> Brasil, tipificou-se o assédio sexual e a<br />

violência <strong>do</strong>méstica), a redefinição <strong>do</strong>s tipos penais a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> uma redação de gênero<br />

neutra (esta questão está contemplada no projeto de reforma da parte especial <strong>do</strong><br />

331 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de<br />

construção da cidadania. In: Seqüência, Estu<strong>do</strong>s Jurídicos e Políticos. Santa Catarina: UFSC, a. 19, n. 35, dez.<br />

1997, p. 43.<br />

332 Idem.<br />

165


Código Penal). Reivindica-se ainda, no caso <strong>do</strong> Brasil, o agravamento de penas e a<br />

descriminalização <strong>do</strong> aborto e o reconhecimento profissional da prostituição.<br />

Para Helena Larrauri, a aliança das mulheres com o sistema penal é mais<br />

complexa. Alterações na legislação espanhola e canadense, por exemplo, não<br />

resultaram numa melhora <strong>do</strong> sistema. Segun<strong>do</strong> a autora, há uma excessiva “confiança”<br />

no Esta<strong>do</strong> num senti<strong>do</strong> de que esse saberá sempre o que é melhor para as mulheres.<br />

O que subsiste por parte das próprias mulheres é a idéia de proteção, o que implica<br />

delegar a tomada de decisões para o Esta<strong>do</strong>, eximin<strong>do</strong>-se de responsabilidades sobre<br />

a sua própria pessoa, perpetuan<strong>do</strong> o seu papel de cidadã de segunda categoria que<br />

necessita de defesa e proteção. 333<br />

Tove Stang Dahl sublinha que nos últimos anos tem se amplia<strong>do</strong> o debate em<br />

torno da questão de saber que as medidas de legislação criminal podem efetivamente<br />

deter as ofensas <strong>do</strong>s crimes sexuais. Nesse enfoque, afirma a autora, “o agravamento<br />

das penas raramente conduz a uma mudança de comportamento em áreas deste<br />

tipo” 334 , observan<strong>do</strong> que essa mudança deve ser, apesar de tu<strong>do</strong>, o principal objetivo<br />

da sanção.<br />

333 LARRAURI. Op. cit.<br />

334 DAHL. Op. cit., p. 137.<br />

166


3.3.2 Perspectivas para um Novo Paradigma no Direito Penal.<br />

Em face da teoria exposta e às evidências empíricas apresentadas, indaga-se: O<br />

sistema penal, pela sua estrutura, função e operacionalidade, pela teoria que orienta a<br />

sua práxis e por to<strong>do</strong>s os demais elementos que entram em convergência quan<strong>do</strong> esse<br />

é chama<strong>do</strong> a prestar a sua função jurisdicional, configura uma ordem institucional capaz<br />

de assegurar à mulher a proteção e a defesa <strong>do</strong>s bens jurídicos tutela<strong>do</strong>s pelo Direito<br />

Penal?<br />

Esse questionamento remete à problemática central deste estu<strong>do</strong> e traz à tona<br />

outros questionamentos. Poder-se-ia perguntar, também, qual a concepção<br />

simbólico/ideológica reproduzida pelas demandas feministas na arena penal? E ainda,<br />

quais as perspectivas para o rompimento da matriz patriarcal em que se assenta o<br />

Direito Penal, condição para a sua transformação num instrumento de luta em prol de<br />

um modelo cultural, no qual os atributos <strong>do</strong> masculino e <strong>do</strong> feminino sejam mais <strong>do</strong> que<br />

meras emanações de uma relação de poder?<br />

Conforme se evidenciou por meio <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> bibliográfico empreendi<strong>do</strong>, a<br />

natureza jurídica <strong>do</strong> Direito Penal é por excelência da negatividadade e da<br />

repressividade. O poder nele inscrito, contu<strong>do</strong>, não é somente repressivo, pois, produz<br />

discurso, o qual, de uma parte, legitima a lógica seletiva com que opera o sistema<br />

penal, e, de outra, dá sustentabilidade a um paradigma patriarcal que, de sua manifesta<br />

função de proteção à sua função latente e efetiva de subordinação e infe<strong>rio</strong>rização da<br />

167


mulher, funciona como um suporte e dispositivo institucional agin<strong>do</strong> na (re)produção<br />

discursiva de gênero (masculino/feminino), operan<strong>do</strong>, ainda, na construção discursiva<br />

de categorias (tipos de mulheres). O que buscam as mulheres, então, através de suas<br />

demandas na arena penal?<br />

A questão de saber até que ponto as mulheres querem e devem recorrer ao<br />

Direito Penal remete ao paradigma emergi<strong>do</strong> da modernidade, atribuin<strong>do</strong> ao Direito o<br />

status de instrumento de transformação social.<br />

Transformar problemas priva<strong>do</strong>s em questões jurídicas e mais ainda em<br />

demandas penais, têm um preço. Até aonde vão as vantagens de uma crescente<br />

intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nas relações de família ou nas relações de âmbito priva<strong>do</strong>, é<br />

uma questão que desafia a meto<strong>do</strong>logia e a própria teoria <strong>do</strong> Direito.<br />

As relações entre o Direito e a sociedade, sublinha Tove Stang Dahl, são<br />

freqüentemente mais complicadas e cheias de contradições <strong>do</strong> que supõem os<br />

promotores das legislações sobre discriminação sexual. Segun<strong>do</strong> a autora, o “Direito<br />

não tem um papel claro, nem como reflexo automático das normas na sociedade, nem<br />

como construção social útil”. 335 Disso se infere que o Direito pode reproduzir os padrões<br />

já existentes em relação aos gêneros, como pode também os preceder.<br />

335 DAHL. Op. cit., p. 64.<br />

168


Perceber o Direito enquanto panacéia de to<strong>do</strong>s os problemas, diz, como já<br />

aludi<strong>do</strong>, de suas promessas de justiça. Ou como alerta Vera Regina de Andrade, trata-<br />

se de um paradigma imperial, acreditan<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os problemas podem ser<br />

resolvi<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> Direito, e, no caso mais específico, <strong>do</strong> Direito Penal, de uma<br />

ideologia “extremamente sedutora”, constituída a partir de suas promessas de<br />

racionalidade, legalidade processual e legitimidade (prevenção e retribuição), através<br />

das quais o “sistema penal promete que o paraíso passa por sua mediação”. 336<br />

No entender da autora, “o homem moderno continua preso ao mito de ‘Adão e<br />

Eva’ que nos furtou o paraíso”. 337 As sociedades eternizaram essa perda e<br />

permanecem reivindican<strong>do</strong> incessantemente a necessidade de recuperar o paraíso<br />

através das instituições nas quais ele é simboliza<strong>do</strong>. As mulheres “continuam cain<strong>do</strong> na<br />

sedutora tentação <strong>do</strong> sistema penal [...] e neste senti<strong>do</strong> continuam peca<strong>do</strong>ras. O<br />

sistema promete, mas o paraíso não passa pela sua mediação”. 338<br />

A pesquisa apresentada, embora isso possa revelar-se altamente frustrante ao<br />

término deste estu<strong>do</strong>, leva a comungar com a idéia de que sem uma completa reforma<br />

<strong>do</strong> sistema penal “nenhuma conquista, nenhuma libertação, nenhum caminho para o<br />

paraíso pode simbolizar o sistema penal ou realizar-se através dele”. 339<br />

336 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de<br />

construção da cidadania. In: Seqüência, Estu<strong>do</strong>s Jurídicos e Políticos. Santa Catarina: UFSC, a. 19, n. 35, dez.<br />

1997, p. 43.<br />

337 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação<br />

feminina. In: Seqüência, Estu<strong>do</strong>s Jurídicos e Políticos. Santa Catarina: UFSC, a. 17, n. 33, dez. 1996, p. 110.<br />

338 Idem, ibidem.<br />

339 Idem, ibidem.<br />

169


E não se trata apenas de mudanças na ordem <strong>do</strong> direito material, processual e<br />

de toda uma ciência jurídica dan<strong>do</strong> suporte técnico aos opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito. Salta à<br />

vista no âmbito dessa investigação que o problema apresenta uma complexitude maior,<br />

ultrapassan<strong>do</strong> o realismo pragmático-jurídico sustenta<strong>do</strong> por um positivismo legal e<br />

utilitarista instituí<strong>do</strong> no Direito sob a influência <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s das ciências naturais e <strong>do</strong><br />

aparecimento das ciências sociais empíricas no século XIX. A crença na objetividade e<br />

na neutralidade científica aplicada ao Direito não implicou uma maior distribuição da<br />

justiça, pelo contrá<strong>rio</strong>, afastou o interesse por um juízo ético e uma moral crítica<br />

inerentes ao Direito. 340<br />

O problema da mulher com o Direito Penal, resguardadas suas proporções e<br />

características próprias, inscreve-se nesse contexto mais amplo da crise moral <strong>do</strong><br />

próp<strong>rio</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito burguês. A ênfase na utilidade, objetividade sempre implica<br />

uma opção moral. Ou então, respeitan<strong>do</strong> as opiniões contrárias, os pontos de encontro,<br />

as conexões e linhas de convergência entre Direito e moral ultrapassam os limiares <strong>do</strong><br />

conteú<strong>do</strong> codifica<strong>do</strong> pelas normas e da meto<strong>do</strong>logia jurídica.<br />

Por conseguinte, como explicar a estratificação dicotômica na órbita <strong>do</strong> judiciá<strong>rio</strong><br />

evidenciada teórica e empiricamente por esta pesquisa? Sabe-se que esta dicotomia<br />

decorre de percepções inconscientes manifestas, não somente na postura majoritária<br />

de juristas e magistra<strong>do</strong>s, mas também está nos discurso das próprias vítimas e de<br />

seus defensores que, por sua vez, reforçam as estereotipias, “reproduzin<strong>do</strong> em suas<br />

340 DAHL. Op. cit., p. 110.<br />

170


alegações modelos tradicionais patriarcais, apresentan<strong>do</strong>-se e apresentan<strong>do</strong>-as,<br />

respectivamente, como pessoas discretas, recatadas e virtuosas”. 341<br />

Nem mesmo as mulheres magistradas, advogadas ou promotoras de justiça<br />

escapam desse imperativo, como alega Maria Berenice Dias. Falta-lhes, muitas vezes,<br />

uma visão mais crítica <strong>do</strong> Direito e, por outras vezes, não estão dispostas a romper com<br />

as expectativas patriarcais. Ou então, poderia acrescentar-se ainda aqui que elas<br />

assumem uma postura ideológica e utópica nas questões relativas a gênero.<br />

É nessa perspectiva que se insere o discurso feminista da neocriminalização na<br />

luta contra a violência sexual, exprimin<strong>do</strong> ainda a contradição e a ambigüidade<br />

presentes nos próp<strong>rio</strong>s movimentos feministas, visto que esses não falam numa só voz.<br />

Esta óptica também fornece elementos para refletir sobre o ideal simbólico que está no<br />

conteú<strong>do</strong> destas reivindicações.<br />

Apesar das muitas leituras que se poderia fazer desta questão, concorda-se mais<br />

uma vez com a posição de Vera Regina de Andrade, segun<strong>do</strong> a qual, trata-se de<br />

reproduzir a dependência masculina na busca da autonomia e emancipação feminina,<br />

“ou seja, as mulheres buscam libertar-se da opressão masculina recorren<strong>do</strong> à proteção<br />

de um sistema demonstradamente classista e sexista e crêem encontrar nele o ‘Grande<br />

Pai’ capaz de reverter sua orfandade social e jurídica”. 342<br />

341 PIMENTEL; VALÉRIA. Op. cit., p. 53-54.<br />

342 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação<br />

feminina. Op. cit., p. 108.<br />

171


O rompimento <strong>do</strong> paradigma patriarcal inscrito no Direito Penal parece contrapor-<br />

se profundamente às lutas feministas que buscam a proteção <strong>do</strong> Sistema Penal. O<br />

conteú<strong>do</strong> dessas demandas acaba por assumir o senti<strong>do</strong> da reprodução da imagem<br />

social da mulher como vítima, eternamente merece<strong>do</strong>ra de proteção masculina.<br />

Não é preciso dizer-se, ao término desta pesquisa, pois todas as evidências<br />

indicam para isto, que a esfera penal configura um campo por demais complexo e<br />

problemático para as lutas femininas. Deve-se falar, como bem argumenta Lênio Streck,<br />

“da construção de um espaço público politiza<strong>do</strong> pelas mulheres como sujeitos pela via<br />

da positividade <strong>do</strong>s Direitos, conduzente a uma construção positiva (não defensiva) da<br />

cidadania”. 343<br />

E o que é ponto central da questão por uma verdadeira condição de liberdade e<br />

autonomia da mulher é “enfrentar-se como sujeito, implica preliminarmente, se<br />

autopsicanalizar e decodificar os signos de uma violência relacional, deslocan<strong>do</strong> a auto-<br />

imagem de mulheres sempre violentadas, para construir por dentro <strong>do</strong>s universos<br />

feminino/masculino e <strong>do</strong> cotidiano de sua conflituosidade, o cotidiano da<br />

emancipação”. 344<br />

343 STRECK, Lênio. O ideal normativo da masculinidade. In: Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais.<br />

Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 47.<br />

344 Idem, ibidem.<br />

172


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O estu<strong>do</strong> bibliográfico empreendi<strong>do</strong> para esta pesquisa e as evidências<br />

empíricas apresentadas possibilitam assinalar algumas considerações relevantes para<br />

a compreensão e caracterização da relação mulher/Direito Penal. Trata-se, muito mais,<br />

de evidenciar alguns indícios de conclusão ou algumas constatações acerca <strong>do</strong><br />

tratamento jurídico ofereci<strong>do</strong> à mulher pelo sistema penal, ten<strong>do</strong> em vista que a<br />

complexidade da problemática erigida dificulta posicionamentos definitivos. São, antes,<br />

pontos de reflexão estimulan<strong>do</strong> novas pesquisas.<br />

Assinala-se que a noção de gênero com o qual opera o sistema penal<br />

corresponde ao referencial sociológico de um sistema de representação que remete os<br />

indivíduos a uma categoria previamente constituída. Disso se apreende que o Direito<br />

Penal não atua com neutralidade, imparcialidade e equidade no que tange à categoria<br />

de gênero (mulher oposição homem).<br />

173


De outra parte, o discurso jurídico-penal não se limita a reproduzir esse conceito<br />

sócio-cultural de gênero. Enquanto instrumento de operacionalização da norma, o<br />

sistema penal cria a sua própria versão de gênero, uma vez que funciona como um<br />

aparelho semiótico, um sistema de representação que atribui significa<strong>do</strong>s, status social<br />

e moral, valora comportamentos, prescreve identidades, re(produz) padrões de<br />

feminilidade traça<strong>do</strong>s em nível teórico de representação, transforman<strong>do</strong>-os em redes<br />

de disciplinamento e regulação, segun<strong>do</strong> a conveniência <strong>do</strong>s modelos políticos e<br />

econômicos. É nesse senti<strong>do</strong> que o discurso penal é um dispositivo institucional que<br />

age na construção discursiva de gênero. No caso brasileiro, há um discurso de lei (se<br />

não expresso, pelo menos latente nas lacunas ou possível pela imprecisão e<br />

ambigüidade <strong>do</strong> texto legal), de <strong>do</strong>utrina e de jurisprudência eiva<strong>do</strong> de estereótipos e<br />

preconceitos que orientam as decisões judiciais.<br />

Disso se infere que a violência também é gerada no inte<strong>rio</strong>r <strong>do</strong> discurso jurídico.<br />

A violência narrada, confessada ou negada nos tribunais é apenas uma representação<br />

da realidade. Peça polissêmica, resulta<strong>do</strong> de uma ampla teia discursiva (acusação,<br />

defesa, peritos, magistra<strong>do</strong>s, etc.), sob o signo de múltiplas representações sociais<br />

ainda pre<strong>do</strong>minantes em relação às identidades de gênero, permitin<strong>do</strong> construir uma<br />

imagem ambígua e contraditória <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s sujeitos nele implica<strong>do</strong>s. Trata-se da<br />

violência formalizada, controlada, prevista na metódica científica, mediada pela<br />

linguagem, própria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Direito: da sua regulação, função, justificação,<br />

fundamentação e legitimação.<br />

174


Como qualquer Esta<strong>do</strong>, ou qualquer organização de grupos humanos, o Esta<strong>do</strong><br />

de Direito é uma forma de violência (poder) praticada nos âmbitos da instrumentalidade<br />

oferecida pela metódica jurídica, a qual, se por um la<strong>do</strong> representa a calculabilidade,<br />

transparência, limitação e regularidade efetivamente necessárias para a sua<br />

legitimação, por outro, pode ser colocada a serviço de conteú<strong>do</strong>s políticos distintos.<br />

Com vistas a essa perspectiva, a inserção nas análises históricas da questão <strong>do</strong><br />

poder como instrumento de análise capaz de explicar a produção de saberes possibilita<br />

afirmar que <strong>do</strong> Marquês de Beccaria (1764), cuja crítica filosófica e política ao Direito<br />

vigente deu origem ao princípio da legalidade, passan<strong>do</strong> por Francesco Carrara<br />

(inicia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> da Escola Clássica), Césare Lombroso (com sua tese <strong>do</strong><br />

criminoso nato), Enrico Ferri e Raffaelle Garófalo, ao atual Esta<strong>do</strong> Democrático de<br />

Direito, o sistema penal está estruturalmente monta<strong>do</strong> para o exercício de um poder<br />

que atua seletivamente no corpo social, além de reforçar e garantir o poder de outras<br />

agências <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

A teoria analisada dá indicativos de que o ideal de emancipação e cidadania da<br />

mulher não comunga com a lógica <strong>do</strong> sistema penal aqui demonstrada e que a<br />

crescente intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no âmbito priva<strong>do</strong>, o agravamento de penas e a<br />

criação de novos tipos penais não correspondem às necessidades femininas. Ou seja,<br />

o sistema penal configura uma ordem institucional incapaz de assegurar à mulher a<br />

proteção e os bens jurídicos tutela<strong>do</strong>s pelo Direito Penal.<br />

175


Cabe argumentar, também, que a relação da mulher com o Direito Penal se<br />

inscreve numa crise mais ampla, não só <strong>do</strong> sistema penal, mas <strong>do</strong> próp<strong>rio</strong> Esta<strong>do</strong>-<br />

Providência. Parece claro, pela análise empreendida, que o déficit de realização <strong>do</strong><br />

Direito está a exigir um juízo ético e moral sobre o seu papel enquanto instrumento de<br />

transformação social e de distribuição da justiça. No caso <strong>do</strong> Direito Penal, significa<br />

questionar toda uma complexa estrutura institucional sustentada pelo seu paradigma<br />

imperial, conforme evidencia<strong>do</strong> por este estu<strong>do</strong>.<br />

De outra parte, valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> mesmo instrumento de análise, pode-se dizer que<br />

os discursos sobre a diferença entre os sexos se inscrevem num contexto mais amplo<br />

das representações da infe<strong>rio</strong>ridade feminina, exaustivamente repetidas e mostradas<br />

por todas as formas de representação próprias <strong>do</strong> século XIX.<br />

Podem ser vistos enquanto dispositivos que asseguram a eficácia de uma<br />

violência simbólica que só triunfa na medida em que aqueles que a sofrem contribuem<br />

para a sua eficácia e só coage uma vez que há por estes uma aprendizagem preliminar<br />

para reconhecê-la. A divisão de tarefas, os lugares sociais, a infe<strong>rio</strong>ridade jurídica, a<br />

exclusão da esfera pública só poderiam operar-se mediante o consentimento da mulher<br />

o que diz da identidade feminina ou <strong>do</strong> modelo de feminilidade inscrito no pensamento<br />

e nos corpos de homens e mulheres.<br />

Deve-se ter presente, todavia, que a subjetividade humana enquanto um<br />

processo de auto-apropriação e criação se constitui em diferença com relação às<br />

176


identidades fáticas ou promulgadas, transcenden<strong>do</strong>, assim, a mera reprodução de<br />

papéis, abrin<strong>do</strong> espaço para a criação e a fixação de outros discursos e<br />

representações.<br />

Não obstante, os discursos sobre a mulher já não podem ser considera<strong>do</strong>s<br />

expressão hegemônica da concepção masculina. Isso é váli<strong>do</strong> também no campo <strong>do</strong><br />

Direito: pelas mobilizações feministas que, por meio de suas demandas, influenciam os<br />

conteú<strong>do</strong>s legislativos, pelas teorias jurídicas feministas, pelas vozes das magistradas,<br />

defensoras, vítimas e rés e por outros pensamentos que conquistaram expressão.<br />

Assim sen<strong>do</strong>, o patriarca<strong>do</strong> que atravessa o Direito Penal não se sustenta unicamente<br />

pela lógica masculina, ele é reflexo, também, <strong>do</strong> discurso feminino.<br />

Face ao exposto, sugere-se a construção positiva da cidadania da mulher, pela<br />

via da positividade <strong>do</strong>s direitos, como alternativa para romper com o paradigma<br />

masculino inscrito no sistema penal. Isso requer, entretanto, outras vias de ação. Exige,<br />

por exemplo, uma maior conexão entre o público e o priva<strong>do</strong>, uma participação mais<br />

efetiva da mulher nos espaços democráticos de decisão, além de ampliar a sua<br />

inserção na produção intelectual, como meios de desarticular formas seculares de ser<br />

representada e de se perceber enquanto mulher.<br />

Um novo estatuto jurídico da mulher no campo penal significa, pois, romper com<br />

velhos paradigmas arraiga<strong>do</strong>s não apenas no Direito, mas no imaginá<strong>rio</strong> de homens e<br />

mulheres. Esse rompimento depende de novas formas de relação <strong>do</strong><br />

177


masculino/feminino possibilitan<strong>do</strong> que homens e mulheres sejam sujeitos da sua<br />

existência e que as diferenças de gênero não sejam princípios constituintes de<br />

discriminação, hierarquizan<strong>do</strong> papéis e funções, mas que possam ser percebidas<br />

enquanto parte de um universo em que homens e mulheres se completam nas<br />

diferenças.<br />

178


REFERÊNCIAS<br />

ALMEIDA, Jerri Roberto S. As faces <strong>do</strong> liberalismo. Disponível em:<<br />

http://www.litoralnorters.com.br/cafefilosofico/2004/index1907.htm>. Acesso em 19 abr.<br />

2005.<br />

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. Trad. Walter José Evangelista<br />

e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal Editora, 2001.<br />

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação<br />

social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso<br />

comum. Seqüência, Estu<strong>do</strong>s Jurídicos e Políticos. Santa Catarina: UFSC, a. 16, n.<br />

30, jun. 1995, p. 26.<br />

_______. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimacão<br />

feminina? Seqüência, Estu<strong>do</strong>s Jurídicos e Políticos, a. 17, n. 33, Santa Catarina:<br />

UFSC, 1996, p. 87-113.<br />

_______. A ilusão de segurança jurídica: <strong>do</strong> controle da violência à violência <strong>do</strong><br />

controle penal. Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 1997.<br />

_______. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de<br />

construção da cidadania. Seqüência, Estu<strong>do</strong>s Jurídicos e Políticos, a. 19, n. 35,<br />

Santa Catarina: UFSC, 1997, p. 42- 51.<br />

ARENDT, Hannah. A condição humana.Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro:<br />

Forense Universitária, 1987.<br />

_______. Entre o passa<strong>do</strong> e futuro. Tradução de Ma<strong>rio</strong> Barbosa de Almeida. São<br />

Paulo: Perspectiva,1976.<br />

179


ARNAUD-DUC, Nicole. As contradições <strong>do</strong> direito. In: DUBY, Georges; PERROT,<br />

Michelle (Orgs). História das mulheres no ocidente: O século XIX. Tradução de<br />

Cláudia Gonçalves, Egito Gonçalves. Porto: Edições Afrontamento, 1991. v. 4.<br />

BADARÓ, Ramagem. Introdução ao estu<strong>do</strong> das 3 escolas penais. São Paulo:<br />

Juriscredi, 1965.<br />

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquista<strong>do</strong>. O mito <strong>do</strong> amor materno.Tradução de<br />

Waltemir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />

BANDEIRA, Lourdes; ALMEIDA, Tânia Mara de. O caso motoboy, a construção <strong>do</strong><br />

estupra<strong>do</strong>r pela mídia. Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes Sexuais. Porto<br />

Alegre, a. 1, n. 1 mar. 2002, p.14-29.<br />

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica <strong>do</strong> direito penal: Introdução à<br />

sociologia <strong>do</strong> direito penal. Tradução de Juarez Cirino <strong>do</strong>s Santos. 2.ed. Rio de Janeiro:<br />

Freitas Bastos/ Instituto Ca<strong>rio</strong>ca de Criminologia, 1999.<br />

BARROS, Fernanda Otoni. Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.<br />

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São<br />

Paulo: Martin Claret, 2003.<br />

BEDIM, Gilmar Antônio. Os direitos <strong>do</strong> homem e o neoliberalismo. Ijuí: Editora<br />

UNIJUÍ, 1998.<br />

BENHABID, Seyla; CORNELL, Drucilla. Feminismo como crítica da modenidade.<br />

Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa <strong>do</strong>s Ventos, 1987.<br />

BRASIL. Código penal. Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Org. Luiz Flávio<br />

Gomes. 4.ed. São Paulo: Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2002.<br />

BRITO, Leila Maria Torraca de (Org). Temas de psicologia jurídica. Rio de Janeiro:<br />

Relume Dumará, 1999.<br />

BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967. t. 1.<br />

BRUNO, Denise Duarte. Mulher e família no processo constituinte de 1988.<br />

Dissertação de mestra<strong>do</strong> em Sociologia apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências<br />

Humanas da UFRGS, Porto Alegre, 1995.<br />

BUTLER, Judith. Variações sobre sexo e gênero, Beavoir, Wittig e Foucalt, In:<br />

BENHABID, Seyla; CORNELL, Drucilla. Feminismo como crítica da modenidade.<br />

Tradução de Nathanael da Costa Caixeiro. Rio de Janeiro: Rosa <strong>do</strong>s Ventos, 1987.<br />

180


Cadernos Themis, gênero e Direito: Acesso à justiça. Porto Alegre, a. 2, n. 2, set.<br />

2002.<br />

Cadernos Themis, gênero e Direito: Crimes sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar.<br />

2002.<br />

CAMPOS, Carmem. Da violência real à violência institucional. Do direito penal clássico<br />

ao moderno. Cadernos Themis, gênero e Direito: Crimes sexuais. Porto Alegre, a. 1,<br />

n. 1, mar. 2002, p. 30-39.<br />

CARRARA, Francesco. Programa <strong>do</strong> curso de direito criminal. Tradução brasileira.<br />

São Paulo: Saraiva, 1956. v. 1.<br />

CARVALHO, Maria Jane. Qual cidadania desejamos? In: TIBURI, Márcia; MENEZES,<br />

Magale M. de; EGGERT, Edla (Orgs). As mulheres e a filosofia. São Leopol<strong>do</strong>:<br />

UNISINOS, 2002, p. 221-236.<br />

CARVALHO, José Maurício. Raízes fenomenológicas da filosofia clínica. Palestra<br />

proferida no VI Congresso Nacional de Filosofia Clínica, Vitória, 02 maio de 2004.<br />

Disponível em: . Acesso em 19 abr. 2005.<br />

CERQUEIRA, Patrícia. Irmãs coragem. Criativa, São Paulo, p. 32-35, fev. 2002.<br />

CHANGEUX, J-P. O homem neuronal. Tradução de Artur J. P. Monteiro. Lisboa: Dom<br />

Quixote, 1991.<br />

CIRENZA, Fernanda. Violência <strong>do</strong>méstica. Marie Claire, São Paulo, p. 71-78, nov.<br />

2004.<br />

CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania: Reflexões histórico-políticas. 3.ed.<br />

Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2002.<br />

DAHL, Tove Stang. O direito das mulheres. Uma introdução à teoria <strong>do</strong> direito<br />

feminista. Lisboa: Calouste, 1993.<br />

DAVIS, Nanette J.; FAITH, Karlene. Las mujeres y el esta<strong>do</strong>: modelos de control social<br />

en transformación. In: LARRAURI, Elena. Mujeres, derecho penal y criminologia.<br />

Madrid: Siglo Veintiuno, 1994, p. 100-139.<br />

DIAS, Maria Berenice. A feminilização da magistratura. Cadernos Themis, Gênero e<br />

Direito: Acesso à Justiça. Porto Alegre, a. 2, n. 2, set. 2002, p. 76-83.<br />

181


DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Orgs). História das mulheres no ocidente. O<br />

século XIX. Tradução de Cláudia Gonçalves, Egito Gonçalves. Porto: Edições<br />

Afrontamento, 1991. v. 4.<br />

DUBY, Georges; PERROT, Michele (Orgs). As mulheres e a história. Tradução de<br />

Miguel Serras Pereira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.<br />

ELIAS, Norbert. A sociedade <strong>do</strong>s indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1994.<br />

FERRAJOLLI, Luigi. Derecho e Razón: Teoria del garantismo penal. Tradução de<br />

Perfecto Ibáñez (et al.). Madri: Trotta, 1995.<br />

FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Trad. Luiz Lemos<br />

de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1931.<br />

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Tradução de M. Thereza da Costa<br />

Albuquerque e J. A Guilhon de Albuquerque. 10 e 11.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.<br />

v.1, 2, 3.<br />

_______. O homem e o discurso. A arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro:<br />

Tempo Brasileiro, 1971.<br />

_______. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo<br />

Macha<strong>do</strong> e Eduar<strong>do</strong> Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999.<br />

_______. A ordem <strong>do</strong> discurso. Tradução de Laura de Almeida Sampaio. São Paulo:<br />

Edições Loyola, 1996.<br />

_______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.Tradução<br />

de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

_______. Microfísica <strong>do</strong> poder. Tradução de Roberto Macha<strong>do</strong>. 16.ed. Rio de Janeiro:<br />

Edições Graal, 1979.<br />

_______. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.<br />

26.ed. Petrópolis: Vozes, 1987.<br />

_______._______. 2002.<br />

_______. O que é um autor. Lisboa: Veja, 2001.<br />

FRAISSE,Geneviève. Da destinação ao destino. História filosófica da diferença entre os<br />

sexos. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (Orgs). História das mulheres no<br />

ocidente: O século XIX. Tradução de Cláudia Gonçalves, Egito Gonçalves. Porto:<br />

Edições Afrontamento, 1991. v. 4.<br />

182


GOLDENBERG, Miriam; TOSCANO, Moema. A revolução das mulheres. Um balanço<br />

<strong>do</strong> feminismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1992.<br />

GOMES, Luiz Flávio. A presunção de violência nos crimes sexuais. Revista Brasileira<br />

de Ciências Criminais. São Paulo, a. 4, n.15, jul./ set., 1996, p. ?.<br />

GUSMÃO, Chrysolito de. Dos crimes sexuais. 3 e 4.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,<br />

1945-1954.<br />

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. O sistema da vida ética. Lisboa: 1991.<br />

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos <strong>do</strong> feminino. A mulher freudiana na passagem para<br />

a modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 1998.<br />

KHUN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna<br />

Boeira e Nelson Boeira. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.<br />

KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Lisboa: Edições, 1999.<br />

KUPERMANN, Daniel; ROLLEMBERG, Denise (Orgs). Universos psicanalíticos,<br />

desafios atuais da pesquisa psicanalítica. Rio de Janeiro: Dumará, 1995.<br />

LARRAURI, Elena. Mujeres, Derecho Penal y Criminologia. Madrid: Siglo Veintiuno,<br />

1994.<br />

LYRA, Roberto. Expressão mais simples <strong>do</strong> direito penal. Rio de Janeiro: Editora<br />

Rio, 1976.<br />

LOMBROSO, Cesare. O homem criminoso. Tradução de Maria Carlota Carvalho<br />

Gomes. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1983.<br />

MACHADO NETO, Antônio Luís. Sociologia jurídica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1973.<br />

MANNHEIN, Hermann. Criminologia comparada. Lisboa: Fundação Caloustre<br />

Gulbenkian, 1985. v. 1.<br />

MATTA, Roberto da (Org). A violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982.<br />

MEDEIROS, Cristina C. S. Filosofia ou teoria <strong>do</strong> direito. Recife: UFPE, 200?, p. 1.<br />

Disponível em:. Acesso em 11 fev.<br />

2005.<br />

MILES, Rosalind. A história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pela mulher. Tradução de Bárbara Helio<strong>do</strong>ra.<br />

Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial, 1989.<br />

183


MILLOT, Catherine. Nobodaddy, a histeria <strong>do</strong> século. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />

Editor, 1989.<br />

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 1990. v. 1.<br />

MITCHEL, Juliet. Psicanálise e feminismo; Freud, Reich, Laing e a mulher. Belo<br />

Horizonte: Interlivros, 1979.<br />

MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem e violência. Porto Alegre: Sérgio Antonio<br />

Fabris, 1995.<br />

MURARO, Rose Marie; BOFF, Leonard. Feminino e masculino: Uma nova<br />

consciência para o encontro das diferenças. 4.ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.<br />

NOGUEIRA, Pablo. Matriarca<strong>do</strong>, história ou mito. Galileu, Rio de Janeiro, p. 70-75, abr.<br />

2005.<br />

NICOLAZZI, Fernan<strong>do</strong> F. As histórias de Michel Foucault. [texto], Curitiba, 2001.<br />

Disponível em: < http://klepsidra.net/ klepsidra12/foucault.html>. Acesso em: 28 jan.<br />

2005.<br />

NISBET, Robert. Os filósofos sociais. Trad. Yvette Vieira Pinto de Almeida. Brasília:<br />

UnB, 1982.<br />

OLIVEIRA, Frederico Abrahão de. Manual de criminologia. Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong><br />

Advoga<strong>do</strong>, 1992.<br />

OLIVEIRA, Odete Maria. A mulher e o fenômeno da criminalidade. In: ANDRADE, Vera<br />

Regina Pereira de (Org.). Verso e reverso <strong>do</strong> controle penal: (des) aprisionan<strong>do</strong> a<br />

sociedade da cultura punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002.<br />

_______. Prisão: Um para<strong>do</strong>xo social. 3.ed. Florianópolis: UFSC, 2003.<br />

PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA, Luís. História da filosofia. 6.ed. São Paulo:<br />

Melhoramentos, 1964.<br />

PERROT, Michelle. História da vida privada. Da revolução francesa à primeira guerra.<br />

Tradução de Denise Bottmann e Bernar<strong>do</strong> Joffily. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

1991. v. 4.<br />

_______. Os excluí<strong>do</strong>s da história: Operá<strong>rio</strong>s, mulheres e prisioneiros. Tradução de<br />

Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.<br />

_______. Mulheres públicas. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP,<br />

1998.<br />

184


PIERRE, Bourdieu. O poder simbólico. Tradução de Fernan<strong>do</strong> Tomaz. 3.ed. Rio de<br />

Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.<br />

PIMENTEL, Sílvia. A mulher e a constituinte. Uma contribuição ao debate. São<br />

Paulo:Cortez, 1985.<br />

PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria. O estupro como “cortesia”. Direitos<br />

humanos e gênero na justiça brasileira. Cadernos Themis, Gênero e Direito: Crimes<br />

Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 48-57.<br />

PRÁ, Jussara Reis. Espaço público, gênero e políticas feministas. In: TIBURI, Márcia;<br />

MENEZES, Magale M. de; EGGERT, Edla (Orgs). As mulheres e a filosofia. São<br />

Leopol<strong>do</strong>: UNISINOS, 2002, p. 203-220.<br />

Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais,<br />

a. 4, n. 15, jul./set. 1996.<br />

REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Tradução de Ary Blaustein. Rio de Janeiro:<br />

Guanabara, 1988.<br />

ROCHA, Demerval Florêncio da. A corporeidade no processo de educação em<br />

saúde: um ensaio bibliográfico. [2003]. Disponível em: . Acesso em 10 de fev. 2005.<br />

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Tradução de Roberto Leal<br />

Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.<br />

SÁ, Geral<strong>do</strong> Ribeiro de. A prisão <strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s: origens e reflexões sobre a pena<br />

privativa de liberdade. Rio de Janeiro: Dia<strong>do</strong>rin, 1996.<br />

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de<br />

Janeiro: Graal, 1989.<br />

_______. La Transición Postmoderna: Derecho y Política. Cuadernos de Filosofia del<br />

Derecho, Alicante, n. 6, p. 223-263, 1989.<br />

_______. Pela mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1996.<br />

SAUSSURE. Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1975.<br />

Tradução de José Paulo Paes et. al. São Paulo: Cultrix, 1995.<br />

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialism, and democracy. Nova<br />

Iorque/Londres: Harper & Brothers, 1942.<br />

SENNETT, Richard. O declínio <strong>do</strong> homem público. Tradução de Lyigia Araújo<br />

Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.<br />

185


SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa <strong>–</strong> Q’est-ce que lê tiers état?<br />

Trad. Norma Azere<strong>do</strong>. Rio de Janeiro: Líber, 1986.<br />

SILVA, Joaquim; DAMASCO PENNA, J. B. História geral. São Paulo: Companhia<br />

Editora Nacional, 1970.<br />

SILVA, Antonio Franco Ribeiro. O desejo de Freud. São Paulo: Iliminuras, 1994.<br />

SILVA, Iara Ligenfritz da. Direito ou punição? Representação da sexualidade feminina<br />

no Direito Penal. Porto Alegre: Movimento, 1985.<br />

SILVA, Ana Maria. Elementos para compreender a modernidade <strong>do</strong> corpo numa<br />

sociedade racional. Cadernos Codes, Florianópolis, ano 19, n. 4 S, ago. 1999, p. 12.<br />

SILVA, Juremir Macha<strong>do</strong>. O corpo <strong>do</strong> pensamento. Cadernos Themis, Gênero e<br />

Dirieto: Crimes Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 6-13.<br />

SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. As correntes filosóficas na formação <strong>do</strong> direito<br />

penal. Disponível em: . Acesso em 19<br />

abr. 2005.<br />

SILVEIRA, José de Deus Luongo da (Org.). A ética e a crise da modernidade.<br />

Disponível em: < http://www.via-rs.com.br/pessoais/joseluongo/etica.htm>. Acesso em<br />

20 jan. 2005.<br />

SLEDZIEWSKI, Elisabeth G. A revolução francesa. A viragem. In: DUBY, Georges;<br />

PERROT, Michelle. História das mulheres no ocidente: O século XIX. Tradução de<br />

Cláudio Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto: Edições Afrontamento, 1991. v. 4.<br />

SMART, Carol. La mujer del discurso jurídico. In: Larrauri, Helena (Comp). Mujeres,<br />

derecho penal y criminologia. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1994, p.<br />

167-89.<br />

SOLIZ, Neusa (Coord). A mulher no século XXI. Um estu<strong>do</strong> de caso: a Alemanha. Rio<br />

de Janeiro: Espaço e Tempo, 1998.<br />

SOUSA, Daniel B. R. Diretrizes axiológicas e políticas para a pena criminal. Revista da<br />

Escola de Direito, Universidade Católica de Pelotas, v. 2, n. 1, jan./dez. 2001, p. 37.<br />

Disponível em: . Acesso em 3<br />

fev. 2005.<br />

STRECK, Lênio. O ideal normativo da masculinidade. Cadernos Themis, Gênero e<br />

Dirieto: Crimes Sexuais. Porto Alegre, a. 1, n. 1, mar. 2002, p. 40-47.<br />

SUÁREZ, Mireya; BANDEIRA, Lourdes (Orgs). Violência, gênero e crime no Distrito<br />

Federal. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999.<br />

186


SUÁREZ, Mireya; SILVA, Ana Paula P. M. da; FRANÇA, Danielle Jatobá; WEBER,<br />

Renata. A noção de crime sexual. In: SUÁREZ, Mireya; BANDEIRA, Lourdes (Orgs).<br />

Violência, gênero e crime no Distrito Federal. Brasília: Ed. Universidade de Brasília,<br />

1999, p. 29-55.<br />

TIBURI, Márcia; MENEZES, Magale M. de; EGGERT, Edla (Orgs). As mulheres e a<br />

filosofia. São Leopol<strong>do</strong>: UNISINOS, 2002.<br />

VALOIS, Luis Carlos. Criminologia radical. Página Jurídica, jun., 1991, p. 1-2.<br />

Disponível em: . Acesso em 28 fev.<br />

2005.<br />

VERUCCI, Flonisa. O Direito da mulher em mutação: os desafios da igualdade. Belo<br />

Horizonte: Del Rey, 1999.<br />

WEIS, Carlos. Aumentar as penas inibe a criminalidade? Folha de S. Paulo,<br />

11.11.2000. Disponível em:. Acesso<br />

em 13 fev 2005.<br />

WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Esta<strong>do</strong> e Direito. 2.ed. São Paulo: Editora<br />

Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 1989.<br />

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade<br />

<strong>do</strong> sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição.<br />

5.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991.<br />

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal<br />

brasileiro. 3.ed. São Paulo: Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2001.<br />

187


188

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!