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PERDIDOS E ACHADOS<br />
O regresso<br />
de Agnès Varda<br />
VASCO PRAZERES<br />
Médico e sexólogo<br />
No longínquo ano de 1956, durante uma<br />
passagem por Portugal, a cineasta Agnès Varda<br />
fez uma fotografia que ainda hoje aparece<br />
publicada, de vez em quando. “Sophia Loren<br />
em Portugal” é o nome que lhe foi atribuído.<br />
Porém, ao contrário do que o título parece<br />
sugerir, o objecto principal da imagem é uma<br />
lavadeira poveira, de seu nome Maria do Alívio,<br />
que, descalça, vestida de negro, caminha,<br />
em passada larga, junto a um muro, olhando<br />
a objectiva de soslaio. Ao que se sabe,<br />
a situação terá sido ensaiada, após a cineasta<br />
(neste caso, fotógrafa) lhe ter pedido para<br />
se deslocar com ela para um local bem<br />
iluminado e sem outros transeuntes.<br />
Por cima de Maria do Alívio, surge um cartaz,<br />
meio rasgado, a publicitar os sabonetes Lux.<br />
Provavelmente, na parte em falta no cartaz,<br />
estaria a célebre frase “nove em cada dez<br />
estrelas…” Naquele caso, quem dava a cara<br />
pela campanha era a Sophia Loren, com sorriso<br />
de orelha a orelha, o que, no caso dela, significa<br />
largos centímetros de lábios escancarados…<br />
O contraste com a figura central era flagrante.<br />
Aquilo que, na parede, surgia como a imagem<br />
da felicidade (se bem que se notasse<br />
artificialidade na expressão da diva), tornava-se,<br />
na bela transeunte, o testemunho mais evidente<br />
da dureza da existência na vida real.<br />
Chegados ao final deste inesquecível 2011,<br />
pelas razões que todos conhecemos, não seria<br />
difícil produzir-se, em qualquer das nossas<br />
ruas, uma fotografia com o mesmo tipo de<br />
contraste. Fotografias das (novas) divas não<br />
faltam pelas paredes cá da terra! Mulheres<br />
de expressão duramente bela, vestidas de<br />
preto, de passo decidido e cenho carregado,<br />
mirando-nos de soslaio, também não!<br />
Já não estarão descalças, certamente, mas<br />
os sapatos, pela primeira vez em muitos anos,<br />
terão transitado da saison anterior, após breve<br />
passagem pelo sapateiro, agora revisitado.<br />
Agnès Varda quis, certamente, acentuar<br />
o contraste esmagador entre um mundo<br />
imaginado e a realidade comezinha de uma<br />
população inteira de Marias do Alívio. Hoje,<br />
poderia regressar à Póvoa do Varzim, ou<br />
a qualquer outro local do nosso cantinho, e<br />
documentar, sem grande dificuldade, uma outra<br />
geração de Marias do Alívio, sonhando com o<br />
tal mundo prometido, o qual, de forma leviana,<br />
nos convencemos, e fomos convencidos,<br />
Agnès Varda quis,<br />
certamente, acentuar<br />
o contraste esmagador<br />
entre um mundo<br />
imaginado e a<br />
realidade comezinha de<br />
uma população inteira.<br />
de que estava ali à mão de semear.<br />
Contudo, terá de fotografar num plano mais<br />
aproximado a expressão de quem for<br />
protagonista nessa nova fotografia. Vai ter<br />
de levar em maior consideração a frase que<br />
Maria do Alívio terá proferido, ao ser-lhe<br />
mostrado o resultado da sua colaboração:<br />
“Eu estou muito bonita nesta fotografia.”<br />
Caso contrário, continuaremos a olhar<br />
primeiro para o cartaz da parede e a não<br />
sabermos valorizar a determinação do olhar<br />
de quem caminha por baixo dele.<br />
20 Caixa Woman