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SEÇÃO TEMÁTICA<br />
TREVISAN, E. Schreber (não) é um livro.<br />
Ele apresentou sua grande crise logo após ter passado no vestibular e começado<br />
a cursar duas universidades. Até o momento da crise, ele trabalhava.<br />
De origem alemã, é proveniente do interior do estado em região de típica<br />
colonização. O pai, alcoolista, era um homem que se tornava violento quando<br />
alcoolizado. Sua crise parece também conter elementos de sua tentativa<br />
de defender a mãe da agressividade paterna. Digo parece, porque ele fala<br />
muito pouco de sua história. Percebo que ele tem muito cuidado em não<br />
mostrar os seus sintomas para a mãe, não quer “preocupá-la”, sente que a<br />
decepcionou.<br />
No início do tratamento, ele era completamente impermeável a qualquer<br />
colocação que eu pudesse fazer acerca do que dizia. Nos primeiros<br />
tempos do atendimento, ele vinha com uma agressividade enorme, gritava a<br />
qualquer interpelação que eu fizesse, cada palavra proferida por mim era<br />
tomada como absurdo, ele ficava furioso, levando-me a encerrar a sessão.<br />
Nestas ocasiões, eu dizia a ele que gostaria de continuar a recebê-lo, porém<br />
não daquele modo, eu não estava ali para ser agredida, que o esperava em<br />
seu próximo horário. Confesso que ele me causava medo.<br />
Aos poucos, parece que minha presença não lhe era mais tão ameaçadora,<br />
ele fazia algumas questões sobre as coisas das quais eu gostava e,<br />
percebendo que eu me interessava por literatura, passou a trazer cadernos<br />
que escrevera ao longo de muitos anos e lia seus poemas para mim. Lembro-me<br />
que me impressionava a forma como descrevia a mulher: idealizada,<br />
inatingível. Ele queria que eu fizesse “crítica literária”, e se eu ousasse colocar<br />
qualquer questão de ordem pessoal, que pudesse levá-lo a falar de sua<br />
história, ele novamente ficava furioso. Era-me extremamente difícil suportar<br />
estas sessões, eu me sentia literalmente pregada à cadeira, qualquer gesto<br />
meu era tomado dentro de seu sistema interpretativo, enfim eu me perguntava<br />
sempre até que ponto o que eu fazia – ou melhor, o que conseguia fazer –<br />
teria alguma função.<br />
Ele é Deus, tem mais de 2000 anos, múltiplas vidas, ele é vários. Dizse<br />
um erudito, que começou a ler aos três meses de idade, sabe todas as<br />
línguas, inclusive as mortas. Queixa-se de ter que se contentar com o seu<br />
trabalho simples, ele que tem um destino grandioso: foi treinado e trabalhou<br />
com a KGB e a CIA, escreveu milhares de poemas – que estão com os<br />
escribas (ele pode prová-lo), traduziu a bíblia em todas as línguas, já nasceu<br />
inúmeras vezes, é um grande cineasta (Steven Spielberg deve seus filmes a<br />
ele), é um eminente cientista, enfim, eu poderia citar vários temas do seu<br />
“gigantismo” que é como nomeia este ilimitado do delírio que falamos acima.<br />
A sua grande questão sempre foi com a psiquiatria e, dado seu<br />
acúmulo de conhecimento, os psiquiatras obviamente não sabem tanto quanto<br />
ele. Houve um momento em que ele chegou a sair do serviço por não suportar<br />
a psiquiatra que o atendia: ela o recebia com a mãe e ele se sentia<br />
extremamente ameaçado. Naquele momento, ele passou por uma internação<br />
e, quando saiu, pediu para retornar ao serviço porque queria continuar se<br />
tratando comigo, porém não com ela. Ele passou a ser assistido, então, por<br />
um outro médico, mas no momento em que este fez um gesto de conduzi-lo<br />
até a porta do consultório, ele interpretou como assédio e os problemas com<br />
o psiquiatra novamente recomeçaram. Ele, atualmente, vem sendo acompanhado<br />
por um psiquiatra mais experiente, mas não são poucas as críticas<br />
que escuto: ele o chama de “filosofozinho barato”, “psiquiatra de manual”,<br />
“homicida químico” pelos medicamentos que lhe prescreve. Porém, algo se<br />
modificou: ele tem restringido os seus momentos de briga com o psiquiatra<br />
à sessão que antecede sua avaliação mensal e passou a reivindicar uma<br />
psiquiatra que ele encontrou em uma de suas internações. Queixa-se do<br />
conselho de medicina e do Estado, que “absurdamente” não o escutam em<br />
sua reivindicação. Esta psiquiatra o avaliou em uma de suas internações e<br />
ele diz que ela teria conversado com ele como nenhum outro psiquiatra o fez.<br />
Ultimamente, ele vem falando da possibilidade de passar “de caso<br />
ambulatorial para caso clínico”. Isto quer dizer: ser atendido por ela e por<br />
mim. Por que A psicanálise para ele é para que possa falar de seu futuro,<br />
dos seus projetos, porque desde seu encontro comigo ele passou novamente<br />
a “ter esperanças de vir a ter uma vida normal”. Com essa psiquiatra ele<br />
falaria dos seus traumas, pois para ele “a verdadeira psiquiatria é a que trata<br />
dos traumas, não é esta que tenta intoxicá-lo”. Falar do futuro é porque, o<br />
22 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.<br />
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 181, jul., 2009.<br />
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