Oficina de Canto e Iniciação Musical, coordenada pela cantora Ligiana Costa Araujo (ao centro), auxilia os participantesna modulação da voz, além de propiciar relaxamento; a atividade também permite que o CRD tenha um coraldos. “Oh, anjo celeste, que um dia trouxeste,em teu meigo olhar, um azul maisprofundo, de algum outro mundo, oazul lá do fundo, das ondas do mar...”Denise repete o verso, vai baixandoe subindo o tom de voz, até “encontrarum tom de conforto”. “Elaspróprias percebem esse tom, sentemque seu falar está mais delicado, maissuave, retornam nas sessões seguintesdizendo que estiveram mais tranqüilase seguras nas suas conversas.”O que elas se queixam muito é dafala ao telefone. É quando mais se senteminseguras e sofrem com os resultados.“O aparelho chega a modificarum pouco a modulação da voz, paragrave”, diz Denise. “Mas o que maistem impacto é o fato de a outra pessoa,do outro lado, não estar vendoque se trata de uma mulher bonita eelegante.” Então é comum, do outrolado da linha alguém dizer, “como émesmo seu nome, meu senhor?”.“Quando se vêem denunciadas pelavoz, elas se sentem muito chateadas.Mas com a modulação, estou conseguindobons resultados.”O segredo, além da técnica, é a repetiçãodos exercícios. “Todas fazemisso com a maior dedicação. Algumastrazem gravador para depois compararema minha modulação com a delas.Fazem um esforço enorme para se ajustarem,porque assim se sentem aceitas,se sentem bem.”Entre as cerca de 30 pacientes acompanhadas,está a travesti Mila Alves dosSantos, 30 anos, que diz ter passado osúltimos onze anos entre drogas, assaltos,cadeia e prostituição. Em setembrode 2009 descobriu o CRD, que a recebeue encaminhou para cuidados noAmbulatório de Saúde Integral paraTransexuais e Travestis do CRT DST/Aids-SP. Já passou por proctologista,endócrino, clínico geral e é uma das quenão perdem as sessões de fonoaudiologia.“Tá ouvindo minha voz? ela não eramacia assim não, eu falava grosso. É adoutora Denise que está me ajudando.”Denise começou atendendo um diapor semana e três meses atrás passoupara dois. Acha que haverá cada vezmais procura, especialmente por partedas travestis, que ainda são poucas.“Elas são mais agitadas, impacientes,precisam relaxar; as transexuais sãomais calmas. Essa é uma sensação minha,porque o grupo ainda é pequeno,e só temos onze meses de trabalho.”Muitas pacientes não precisariammais das sessões, mas continuam vindo.“Nós não damos alta, são elas quedecidem. E quando deixarem de vir, assumemo compromisso de retornaremduas vezes por ano, para que o otorrinopossa vê-las e eu possa avaliar amodulação da voz”, diz Denise.Até agora, ninguém pediu alta.“Muitas já poderiam ter feito isso. Masessa é uma população sozinha, sem referências,sem ninguém para acompanhá-las”.Encontram ali uma outraforma de terapia. O que se compreendequando Denise recita alguns dosversos que usa nos seus exercícios. “Abrisa fagueira, da beira da praia, passavaligeira, sob sombra altaneira, e alegreensaiava, o ruidoso bailado, com oleque das palmas”, declama Denise. “Éum convite a uma voz mais serena, maisrelaxada, mais suave, mais romântica.Essa é a proposta”, afirma. 65A DIVERSIDADE REVELADA
Bernadete Vicente de Souza, 58 anosA DIVERSIDADE REVELADA66BERNADETE é uma das poucas prostitutasque frequentam o Centro de Referênciada <strong>Diversidade</strong>. Faz a ponte entreas mulheres profissionais do sexoque trabalham na região do Parque daLuz e o CRD. Quando consegue, trazuma amiga, mas poucas continuam aparecendo.No ano passado, 2009, distribuíaenxovais de bebê para as mulheresda Luz que estavam grávidas, enxovaisrecebidos pelo CRD. Depoismontou o que ela chama de “brechóambulante”, aparecia no Centro comsacolas de roupa que oferecia aosfrequentadores e aos funcionários.Diferentemente das travestis etransexuais, as prostitutas dizem quesofrem menos preconceito nos serviçosde saúde, quando procuram o ginecologistaou fazem exames de “papanicolau”.São prostitutas, mas são mulherescomo as outras. Sempre que passapelo CRD, conversa com a assistentesocial ou a psicóloga, um desabafo, eladiz. Conta que já fez quase todos os cursosdo Centro, como bijuteria, teatro,costura, adereços de carnaval, inglês.“Na night a gente precisa ter umpouquinho de ‘embromation’, e o cursode inglês me ajudou com a gramática.Conversar mesmo depende do álcool,quando tomo uma, falo até russo.”Com seu casaco de couro marron jágasto e o cabelo avermelhado, Bernadeteé uma figura conhecida no CRD,embora destoe das travestis e michês quefrequentam o local, alegres, falantes, desfilandosuas poucas roupas coloridas. Dascoisas que ela conta, nunca se sabe quantode verdade e fantasia tem. Diz queainda mantém alguns clientes “especiais”,mas que não faz mais programa pornecessidade, por conta das cenas semanaisde filme pornô que lhe rendemmais de R$ 2 mil por mês. Agora estariamontando uma pequena empresa paraexportar vestido de noiva para Angola.“Ficar sozinhanesta vidaé perigoso”Bernardete Vicente de Souza, 58anos, diz que começou a frequentarboates ainda com 17 anos, trabalhandoao mesmo tempo em salão de cabeleireiro.“A primeira foi a La Licorne, lindaaquela boate, clientela de respeito.A gente também deixava o telefonecom alguns porteiros de hotéis, quandoum turista perguntava por companhia,davam nosso número. Minha mãenunca soube, minha irmã desconfiava,cuspia e batia na minha cara. Eu eramuito feliz, essa coisa feita escondida,saindo com gente bonita, em lugaresbonitos. Eu adorava. Graças a Deusnunca entrei na droga, nem peguei aids.Minha droga era bebida e cama.”Sua vivência como prostituta e cabeleireiraentre a Luz e a rua Augustafez dela uma observadora especialdesses dois mundos e das misérias deseus frequentadores. “Falta aqui um lavatório,um chuveiro – diz referindoseàs instalações do CRD –, porque apessoa quando está sofrendo quertomar um banho, levanta a moral, mudaa vida.” Nos salões onde atende na “baixa”Augusta, ela lamenta a miséria das“meninas” que passaram a noite semfazer um programa, e que se sentampara fazer o cabelo sem ter tomado umbanho. “Quando se levantam, elas cheirammal. Uma judiação. Os funcionáriossem educação ainda falam alto, ‘vocêestá podre, está fedendo’. Quando fazemum programa, ainda têm um chuveirono hotel, horrível, mas tem.”Na Luz, Bernadete é jovem perto dassenhoras de mais de 80 anos que fazemprograma no parque. “São procuradaspor clientes antigos, cobram R$ 20 aR$ 30, o hotel sai por R$ 5, é um horrorde sujo. Quando aparecem jovens procurandopor elas, pode ver que sãomaníacos, com fixação na mãe ou naavó”, ela interpreta. Os clientes idosos,“com os cabelos branquinhos”, sãotão sozinhos quanto elas. “Uns usamtrês cuecas, não por higiene, mas porquesão imundos, quando sujam uma,colocam outra por cima, depois outra.”O Viagra ela considera descabimento.“Tens uns velhinhos que já entram compau duro e saem de pau duro, é horrível,triste, deprimente, porque Viagraé assim, levantou, um abraço.”Mesmo durante o dia e com o policiamentodo parque, as mulheres são assaltadas,“mas de um outro jeito”, contaBernadete. “O bandido fica passeandopelo parque, olhando aquela que faz maisprogramas. No final da noite, sai com elae assalta.” Outro “perigo” é a aids, “aprostituta carrega camisinha, no hoteleles oferecem camisinha, mas o homem,se puder, faz de conta que esqueceu.”Bernadete virou uma espécie demensageira dessas notícias. E ainda nãodesistiu de insistir com as amigas paraque venham conhecer o CRD. “É umjeito de não ficar sozinha nesse mundoda rua. Porque ficar sozinha nestavida é perigoso.”
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