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ANAIS DO 10º ENCONTRO DE LETRAS DA UNIVERSIDADE ...

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<strong>ANAIS</strong> <strong>DO</strong>10º <strong>ENCONTRO</strong> <strong>DE</strong> <strong>LETRAS</strong><strong>DA</strong> UNIVERSI<strong>DA</strong><strong>DE</strong>CATÓLICA <strong>DE</strong> BRASÍLIAISSN: 2175-6686


UNIVERSI<strong>DA</strong><strong>DE</strong> CATÓLICA <strong>DE</strong> BRASÍLIAREITORProf. Dr. Cícero Ivan Ferreira GontijoPRÓ-REITOR <strong>DE</strong> GRADUAÇÃOProf. Dr. Ricardo Spindola MarizPRÓ-REITOR <strong>DE</strong> EXTENSÃOProf. Dr. Jorge Hamilton SampaioPRÓ-REITOR <strong>DE</strong> PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAProf. Dr. Ruy de Araujo CaldasDIRETORProf. Esp. Rogério da Silva Sales PereiraASSESSORAProfa. MSc. Déborah Christina de Mendonça OliveiraCOMISSÃO ORGANIZA<strong>DO</strong>RA <strong>DO</strong> 10º <strong>ENCONTRO</strong> <strong>DE</strong> <strong>LETRAS</strong>Prof. Esp. Rogério da Silva Sales Pereira – Presidente da ComissãoProfa MSc. Déborah Christina de Mendonça OliveiraProfa Esp. Synthia Patrícia LemesProfa MSc. Vera Lúcia Cordeiro da ConceiçãoProf. Dr. Wiliam Alves BiserraChelon Cristina Viana VeríssimoOUTUBRO <strong>DE</strong> 2012


PROGRAMAÇÃODia 23 de outubro8:30 Credenciamento9:00 AberturaProf. Esp. Rogério da Silva Sales Pereira – Diretor do Curso deLetras (UCB)9:10 Palestra: O português brasileiro: sua história, formação epeculiaridadesProf. Dr. Renato Miguel Basso (UFSCar)Coordenação: Profa. MSc. Vera Lúcia da Conceição (UCB)10:30 Coquetel16:00 Cine-Debate: Documentário O grande silêncio (2005)Direção: Philip GröningDebatedor: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)19:50 Palestra: O ‘eu’ e seu tratamento semântico: um exercício deanálise gramaticalProf. Dr. Renato Miguel Basso (UFSCar)Coordenação: Profa. Dra. Christine Maria Soares de Carvalho (UCB)21:10 CoquetelDia 24 de outubro8:30 Mesa-Redonda: Vozes Femininas – Literatura e questões de gêneroProf. MSc. Marcos de Jesus Oliveira (UnB)Profa. MSc. Polliana Cristina de Oliveira (IPJUS)Profa. PhD. Cristina Maria Teixeira Stevens (UnB)Coordenação: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)10:00 Lançamento do livro: Santas (im)possíveis: religião e gênero naliteratura contemporânea de Wiliam Alves Biserra e Cristina MariaTeixeira Stevens.10:15 Sessões de Comunicação_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.3


16:00 Cine-Debate: Filme Teresa: o corpo de Cristo (2007)Direção: Ray LorigaDebatedor: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)19:30 Mesa-Redonda: Literatura e sagradoProfa. Dra. Alessandra Matias Querido (UFSC)Prof. Dr. Piero Luis Zanetti Eyben (UnB)Coordenação: Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan (UCB)21:00 Lançamento do livro: Santas (im)possíveis: religião e gênero naliteratura contemporânea de Wiliam Alves Biserra e Cristina MariaTeixeira Stevens.21:15 Sessões de comunicaçãoDia 25 de outubro8:30 Palestra: The Role of memory in language learningProfa. MSc. Sara Walker (Ministério das Relações Exteriores)Coordenação – Prof. Esp. Rogério da Silva Sales Pereira (UCB)10:00 Palestra: Princípios da neurociência para o ensino de línguasProfa. MSc. Olga Cristina Rocha de Freitas (EAPE-DF)Coordenação – Profa. Dra. Virginia Andrea Garrido Meirelles (UCB)11:30 Apresentação Artístico-Cultural: Acústico: Beatles e outros artistasMúsicos: George Lucas e Elias Zulu16:00 Cine-Debate: Minissérie Mãe de Santo (1990)Direção: Henrique MartinsDebatedor: Prof. Dr. Wiliam Alves Biserra (UCB)19:00 Apresentação Artístico-Cultural: Acústico: Beatles e outros artistasMúsicos: George Lucas e Elias Zulu19:30 Palestra: Reimaginando o cânone: tendências contemporâneasnas literaturas de expressão inglesaProf. Dr. Cláudio Roberto Vieira Braga (UnB)Coordenação: Profa. MSc. Lívila Pereira Maciel (UCB)21:00 Encerramento_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.4


SUMÁRIORESUMOSPronomes de tratamento e suas diferenças culturais no ensino de PLEpara falantes de Inglês ..................................................................................Adriana Campos de Sousa (UCB)08Projeto de Extensão – O Cinema como insumo no ensino e aprendizagemde LE- inglês .................................................................................................Ana Carolina Nunes de Araújo (UCB)Cléria Maria da Costa (UCB)09Os verbos SER e ESTAR na aquisição do português por estrangeiros .......Beatriz Rodrigues Carvalho de Lima (UCB)Suzanne de Souza Soares (UCB)10Formações adjetivas em -vel e -able ............................................................Bruna Elisa da Costa Moreira (UnB)11Educação de surdos: algumas possibilidades de atuação docente .............Chelon Cristina Viana Veríssimo (UCB)12Fazendo sentido na ausência de sentido do poema "Jabberwocky" ............Clarice Melo Ferreira (UCB)13Reimaginando o cânone: tendências contemporâneas nas literaturas deexpressão inglesa .........................................................................................Cláudio Roberto Vieira Braga (UnB)14_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.5


Estudo linguístico na cultura popular maranhense: léxico e cultura noBumba meu boi e no Tambor de Crioula do Maranhão ................................Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)15As toadas de bumba-meu-boi: sociabilidades, conflitos e associações .......Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)Denise Maria Soares Lima (UCB)16A área da esquerda em Sintagmas Nominais – Um estudo de sintaxecomparada do português do Brasil e do Inglês ............................................Marco Tulio Orelli Bittencourt (Cooplem Idiomas)17Princípios da neurociência para o ensino de línguas ...................................Olga Cristina Rocha de Freitas (EAPE-DF)18A nuvem e a noite, poros e aporias ..............................................................Paulo Guilherme Borges Chaves (UCB)19O português brasileiro: sua história, formação e peculiaridades ..................Renato Miguel Basso (UFSCar)20O ‘eu’ e seu tratamento semântico: um exercício de análise gramatical ......Renato Miguel Basso (UFSCar)21_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.6


TEXTOS COMPLETOSPronomes de tratamento e suas diferenças culturais no ensino de PLEpara falantes de Inglês ................................................................................Adriana Campos de Sousa (UCB)22Formações adjetivas em -vel e –able ..........................................................Bruna Elisa da Costa Moreira (UnB)33Fazendo sentido na ausência de sentido do poema "Jabberwocky" ...........Clarice Melo Ferreira (UCB)54As toadas de bumba-meu-boi: sociabilidades, conflitos e associações ......Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)Denise Maria Soares Lima (UCB)70A senhora Noé: uma arca guiada por mulheres ..........................................Polliana Cristina de Oliveira (IPJUS)82O ‘eu’ e seu tratamento semântico: um exercício de análise gramatical .....Renato Miguel Basso (UFSCar)106_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.7


PRONOMES <strong>DE</strong> TRATAMENTO E SUAS DIFERENÇAS CULTURAIS NOENSINO <strong>DE</strong> PLE PARA FALANTES <strong>DE</strong> INGLÊSAdriana Campos de Sousa (UCB)Este é um trabalho de pesquisa feito para a disciplina 'O ensino de Portuguêscomo Língua Estrangeira' sobre as dificuldades dos aprendizes de línguainglesa em compreender o uso dos pronomes de tratamento no dia-a-dia. Otrabalho apresenta os pontos contrastivos entre o português e o inglês, levandoem consideração o que as gramáticas tradicionais de ambas as línguas falam arespeito dos pronomes de tratamento. A pesquisa foi baseada nas dúvidas dosestrangeiros levantadas pelas autoras, Rodrigues, El-Dash e Lombello, do livro'Brazilian Portuguese: your questions answered', bem como em algumassituações do cotidiano e questões de formalidade que divergem quanto ao usodos pronomes nas respectivas línguas.Palavras-chave: Pronome de tratamento. Cotidiano. Formalidade._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.8


PROJETO <strong>DE</strong> EXTENSÃO – O CINEMA COMO INSUMO NO ENSINO EAPRENDIZAGEM <strong>DE</strong> LE- INGLÊSAna Carolina Nunes de Araújo (UCB)Cléria Maria da Costa (UCB)Será feita a apresentação do projeto de extensão em andamento no curso deLetras da UCB em 2012. Este projeto consiste em apresentar o uso de filmescomo insumo no ensino e aprendizagem de LE contextualizados. Os alunosdas escolas participantes são estimulados a desenvolver a CompetênciaComunicativa por meio do contato com a língua inglesa através do cinema,bem como sua autonomia. Para gerar a aquisição, a língua é apresentadacomo gênero, construída na interação social (PAIVA, 2006). O recurso a filmesapresenta também o viés crítico e pode ensejar a mudança de uma abordagemestruturalista para uma abordagem mais adequada às necessidades epossibilidades do contexto escolar específico (vide KUMARAVADIVELU 1994;LARSEN-FREEMAN, 2003; BROWN, 2002). são realizadas rodas de cinemaquinzenais nas escolas, com permanente coleta de dados e elaboração derelatórios por parte das professoras. As alunas bolsistas da UCB, por sua vez,assistidas por suas professoras, atuam como mediadoras, auxiliando osprofessores em serviço e desenvolvem habilidades necessárias para sua futuraprática e têm o inestimável contato com a realidade das salas de aula de LE._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.9


OS VERBOS SER E ESTAR NA AQUISIÇÃO <strong>DO</strong> PORTUGUÊS PORESTRANGEIROSBeatriz Rodrigues Carvalho de Lima (UCB)Suzanne de Souza Soares (UCB)Na língua portuguesa há dois verbos diferentes, ser e estar, para expressar osdiversos significados do verbo to be. Esse é, sem dúvida, um dos maiorespontos críticos no processo de aquisição/aprendizagem do português porfalantes de inglês. Uma explicação simples pode ajudar o aprendiz a superartal dificuldade. Tendo isso em mente, esse trabalho foi elaborado paraproporcionar ao aluno a possibilidade de estudar e refletir sobre asparticularidades do novo idioma, sem perder de vista a necessidade que oestudante tem de interagir na língua-alvo. Visto que o profissional do ensino deportuguês para estrangeiros é, antes de tudo, um especialista em línguaportuguesa, consciente das diferenças entre gramática tradicional e o usoefetivo/real do idioma, num primeiro momento, analisaremos as ocorrênciasdos verbos ser e estar nos principais manuais do português, tanto de cunhonormativo quanto científico. Após, faremos uma análise contrastiva tendo comobase os pressupostos de Grannier et alii (1992) em seu livro BrazilianPortuguese: Your Questions Answered. Ao cabo, um exercício desistematização gramatical com foco na forma-significado-uso é proposto.Perceber essa influência da língua materna sobre o falante de inglês é deprimordial importância, pois, irá proporcionar um percurso tranquilo durante oprocesso de ensino/aprendizagem da língua portuguesa.Palavras-chave: Ser. Estar. Aquisição. Português. Estrangeiros._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.10


FORMAÇÕES ADJETIVAS EM -VEL E -ABLEBruna Elisa da Costa Moreira (UnB)Tradicionalmente, a morfologia derivacional é vista como uma forma derelacionar palavras a outras palavras, em oposição à morfologia flexional,concebida como aquela que determina diferentes formas de uma mesmapalavra, sem envolver mudanças de categoria. Essa divisão implica uma outraseparação: o que é produzido na sintaxe e o que é produzido no léxico. Teoriasmorfológicas contemporâneas desafiam essa separação, postulando um únicomecanismo responsável pelos fenômenos derivacionais e flexionais, bem comopela construção de palavras e sentenças. Neste trabalho, desenvolvido naperspectiva da gramática gerativa, apresentamos uma discussão sobre asteorias lexicalistas (DI SCIULLO & WILLIAMS, 1987; ARONOFF, 1976;WASOW, 1977) e sintáticas (HALLE & MARANTZ, 1993; MARANTZ, 1997,2001) para a formação de palavras, e abordamos o caso específico do sufixo -vel e do sufixo -able, formadores de adjetivos em português e inglês,respectivamente, observando seus aspectos sintáticos, morfológicos esemânticos, bem como suas propriedades distribucionais.Palavras-chave: Morfologia. Formação de palavras. Sufixo –vel. Sufixo –able._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.11


EDUCAÇÃO <strong>DE</strong> SUR<strong>DO</strong>S: ALGUMAS POSSIBILI<strong>DA</strong><strong>DE</strong>S <strong>DE</strong> ATUAÇÃO<strong>DO</strong>CENTEChelon Cristina Viana Veríssimo (UCB)O trabalho faz uma análise da prática docente na educação do surdo. Paraisso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, cujo intuito foi o de localizar aeducação de surdos dentro do contexto educativo nacional, assim comorealizar um levantamento de práticas docentes possíveis, algumas delas poucodifundidas. No trabalho é relatado uma pesquisa de campo, na qual seobservou uma aula em que duas professoras atuavam em conjunto, tendo,contudo, papéis bem delimitados e identificados, seguindo o modelo dabidocência. Assim, o objetivo da presente pesquisa se expressa no relato eanálise de práticas vantajosas ao processo de ensino-aprendizagem de surdos,com destaque para o modelo da bidocência. Na observação, procurou-seatentar para as questões metodológicas aplicadas na prática docente, como ouso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) na ministração da aula;reconhecimento das características da pessoa surda e de sua cultura; oemprego da tecnologia como recurso didático; as peculiaridades desta práticaque a distingue de outras; a formação requerida ao docente para atuar nessemodelo, entre outros.Palavras-chave: Educação de surdos. Formação de professores. Bidocência._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.12


FAZEN<strong>DO</strong> SENTI<strong>DO</strong> NA AUSÊNCIA <strong>DE</strong> SENTI<strong>DO</strong> <strong>DO</strong> POEMA"JABBERWOCKY"Clarice Melo Ferreira (UCB)“Jabberwocky” de Lewis Carroll, presente no livro Através do Espelho e o queAlice encontrou por lá, é considerado um dos maiores poemas nonsense eminglês. O trabalho procura analisar o poema baseado em comentários dopróprio autor e através de uma pesquisa dos significados de suas palavrasincoerentes e neologismos em dicionários da língua inglesa. Ao confrontar aanálise com a teoria da construção de sentido, o artigo leva em consideração ateoria do nonsense e o sentido da palavra poética para desvendar a relevânciado significado das palavras no contexto poético do nonsense, a participação deoutros elementos estruturais inerentes à poesia e a importância do que apalavra não significa na construção do sentido.Palavras-chave: Construção de sentido. Nonsense. Significado das palavras._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.13


REIMAGINAN<strong>DO</strong> O CÂNONE: TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS NASLITERATURAS <strong>DE</strong> EXPRESSÃO INGLESACláudio Roberto Vieira Braga (UnB)Neste trabalho, problematizo o conceito de cânone literário no âmbito dasliteraturas de expressão inglesa, confrontando as tradições literáriaseurocêntricas da Inglaterra e dos Estados Unidos com as literaturas produzidasnas periferias dos centros de poder. Assim, proponho a expansão do cânonepara abranger tradições historicamente ignoradas nos processos de seleção deobras e métodos de ensino em literatura, trazendo como exemplo as literaturasafricanas em inglês._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.14


ESTU<strong>DO</strong> LINGUÍSTICO NA CULTURA POPULAR MARANHENSE: LÉXICOE CULTURA NO BUMBA MEU BOI E NO TAMBOR <strong>DE</strong> CRIOULA <strong>DO</strong>MARANHÃOHeridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)Este trabalho, ainda em fase de desenvolvimento, tem como objetivo identificare analisar as variações linguísticas presentes nos elementos da cultura popularmaranhense e como elas se materializam enquanto elementos de identidadelocal. Para tanto, tomou-se como referencial o Tambor de Crioula e o Bumbameu boi, a partir dos cantos entoados nas duas manifestações. A análisedemonstra que a identidade linguística maranhense sofre influências de taiselementos e que estes devem incorporar o currículo de Língua Portuguesa, emum processo de reflexão sobre a mesma, impingindo significado ao conteúdotrabalhado na sala de aula.Palavras-chave: Variação linguística. Norma culta. Linguagem popular._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.15


AS TOA<strong>DA</strong>S <strong>DE</strong> BUMBA-MEU-BOI: SOCIABILI<strong>DA</strong><strong>DE</strong>S, CONFLITOS EASSOCIAÇÕESMarcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho (UCB)Heridan Guterres Pavão Ferreira (UFMA)Denise Maria Soares Lima (UCB)O bumba-meu-boi, consagrado patrimônio imaterial do Brasil, é composto porum conjunto de toadas, que compõem a cena musical de uma das mais belas etradicionais manifestações do Maranhão. Esse artigo pretende sobrepor alógica de análise clássica do estudo das letras dessas toadas, buscandoefetuar o estudo sobre os discursos presentes revelados no cotidiano dossujeitos retratados nestas narrativas. Neste sentido, as toadas são marcadaspor relações de poder que tanto expressam conflitos como soluções. Odiscurso corrente mostra associações, sociabilidades e outros modos deintegração, assim como a compreensão dessas manifestações protagonizadaspor esses atores envolvidos podem conduzir a entender problemas sociais,bem como apontar possíveis soluções.Palavras-chave: Bumba-meu-boi. Toadas. Discursos. Conflito._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.16


A ÁREA <strong>DA</strong> ESQUER<strong>DA</strong> EM SINTAGMAS NOMINAIS – UM ESTU<strong>DO</strong> <strong>DE</strong>SINTAXE COMPARA<strong>DA</strong> <strong>DO</strong> PORTUGUÊS <strong>DO</strong> BRASIL E <strong>DO</strong> INGLÊSMarco Tulio Orelli Bittencourt (Cooplem Idiomas)O objetivo deste trabalho é, para efeitos pedagógicos, elucidar o entendimentode Sintagma Nominal (NP – Noun Phrases em Inglês), levando emconsideração a área da esquerda e a relação dos constituintes entre si. Alémdisso, o trabalho deseja descrever como e quais constituintes vão juntos paraque os estudantes de Inglês como Língua Estrangeira possam observar aordem ótima desses constituintes. Há uma tabela desenvolvida pelo professorMário Perini com uma amostra dos constituintes no Português do Brasil e suaordem para que os estudantes e professores sejam capazes de entender aformação de NP em língua portuguesa. Este trabalho irá usar as regras eexemplos da descrição dos NP em Português e aplicá-los ao Inglês para ver seexistem parâmetros entre os dois idiomas quanto a esse aspecto. Finalmente,este trabalho deseja apresentar algumas ideias pedagógicas para o ensino deinglês como língua estrangeira a brasileiros no que tange NP em Inglês,mediante a elaboração de uma tabela que esperamos ser um auxílioesclarecedor do assunto para professores e estudantes brasileiros de Inglês.Palavras-chave: Noun phrases. Gerativismo. Universal Grammar._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.17


PRINCÍPIOS <strong>DA</strong> NEUROCIÊNCIA PARA O ENSINO <strong>DE</strong> LÍNGUASOlga Cristina Rocha de Freitas (EAPE-DF)Com o avanço dos exames de neuroimagem, da nanotecnologia, o estudo daespecialização das regiões neuronais tem sinalizado com algumascontribuições importantes para os processos de ensino aprendizagem daslínguas, quer sejam orais, quer sejam de sinais. Algumas dessas contribuições,por sua replicação, apresentam-se como princípios neurocientíficos a seremconsiderados por professoras e professores de línguas._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.18


O PORTUGUÊS BRASILEIRO: SUA HISTÓRIA, FORMAÇÃO EPECULIARI<strong>DA</strong><strong>DE</strong>SRenato Miguel Basso (UFSCar)Nesta apresentação, de caráter expositivo, discutiremos alguns aspectoshistóricos da formação do português brasileiro, com ênfase na junção deperspectivas externas (extralinguísticas) e internas (linguísticas). A discussãoserá feita com base em diversos textos produzidos no Brasil e sua análise.Apresentaremos também algumas das principais teorias sobre a formação doportuguês brasileiro que explicariam suas peculiaridades e diferenças comrelação ao português europeu. Finalmente, falaremos um pouco sobre osmecanismos de mudança linguística, seu funcionamento e quais mudançasparecem estar atualmente ocorrendo no português brasileiro._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.20


O ‘EU’ E SEU TRATAMENTO SEMÂNTICO: UM EXERCÍCIO <strong>DE</strong> ANÁLISEGRAMATICALRenato Miguel Basso (UFSCar)O objetivo desta apresentação é discutir algumas das interpretações possíveispara o item ‘eu’. Geralmente tomado como um dêitico ou um indexical cujareferência é sempre o falante, pretendemos mostrar que essa análise simples edireta de ‘eu’ não dá conta de inúmeros outros usos que fazemos destapalavra. No total, há pelo menos sete usos diferentes de ‘eu’ e as teoriastradicionais dão conta de apenas um desses usos. Depois de apresentar ateoria padrão sobre o ‘eu’ e os usos que a desafiam, passaremos a discutiralgumas propostas de solução. Além disso, outros objetivos da análise sãodiscutir as relações entre forma e uso, o alcance de uma abordagem formal dagramática e de como modo tal abordagem pode ter impacto sobre práticaspedagógicas._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.21


OS PRONOMES <strong>DE</strong> TRATAMENTO E SUAS DIFERENÇAS CULTURAIS NOENSINO <strong>DE</strong> PLE PARA FALANTES <strong>DE</strong> INGLÊS. 1Adriana Campos de Sousa 2Resumo: Este artigo traz alguns pontos relevantes sobre as dúvidas dosaprendizes de Português como segunda língua, especialmente no que dizrespeito ao uso dos pronomes e pronomes de tratamento na língua falada. Apesquisa faz uma relação entre algumas características específicas no uso dospronomes em Português e Inglês, com o intuito de ajudar os estrangeiros aentender o processo de uso da língua.Palavras-chave: Português. Segunda Língua. Língua Estrangeira. Pronomes.Cultura.IntroduçãoEssa é uma pesquisa feita para a disciplina O ensino de Português comoLíngua Estrangeira (PLE), cuja finalidade é entender os caminhos doensino/aprendizagem de uma língua estrangeira, além de comparar asdiferenças gramaticais e culturais entre duas línguas (Português X Inglês) noque diz respeito ao uso dos pronomes de tratamento. A relação gramatical seráfeita com base nos autores das gramáticas tradicionais de língua portuguesaBechara (2009) e Cunha & Cintra (1985) e da gramática da língua inglesa dasautoras Murcia & Larsen-Freeman (1999).A pesquisa está voltada para a explicação de fatores que ocorrem nalíngua em uso, ou seja, para a comunicação do aprendiz e por isso as questõesculturais serão levantadas com intuito de esclarecer as dúvidas dos falantes deInglês aprendizes de Português. O material usado como base para essapesquisa foi o livro Brazilian Portuguese: your questions answered de Grannieret al (1992), além de outras fontes de referência como em Brown (2001) eLyons (1987) para levantar dados sobre o ensino/aprendizagem e as culturasdas línguas.1 Trabalho apresentado na sessão de comunicação durante o 10º Encontro de Letras da UCBem 24 de outubro de 2012.2 Estudante do 5º semestre do curso de Letras Português e Inglês da Universidade Católica deBrasília._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.22


O objetivo do trabalho é entender porque os falantes de Inglês,estudantes de nível intermediário e avançado, que já possuem um bom nívelde conhecimento da língua portuguesa, apresentam dúvidas com relação aouso dos pronomes de tratamento do Português. O foco do trabalho serásomente nas dúvidas relacionadas aos pronomes, porém esse tópico é apenasum dos vários tipos de dúvidas levantadas nas pesquisas feitas por Grannier(1992) após anos no ensino de Português para estrangeiros.O primeiro passo da pesquisa será entender qual a diferença entreaprendizagem e aquisição de uma língua.1 Aquisição x AprendizagemSegundo Krashen (1988 apud Schütz 2011), a aquisição de uma língua éum processo de assimilação natural que envolve um aprendizado intuitivo esubconsciente. É produto de interações reais entre pessoas dentro da cultura edo ambiente da língua alvo, onde o aprendiz é um participante ativo. Oprocesso de aquisição é semelhante ao das crianças aprendendo a primeiralíngua (L1). O foco é a língua falada sem o conhecimento teórico. O aprendizse familiariza com as características fonológicas, estruturais e com ovocabulário. Nesse processo, o estudante se torna capaz de ouvir e secomunicar com boa pronúncia fonológica, mas sem se prender às regras, jáque gastam mais tempo se comunicando. Esse método desenvolve aautoconfiança do aprendiz.No caso da aprendizagem, o autor mostra que o foco da língua alvo é aforma escrita e o objetivo é que os aprendizes entendam a estrutura e asregras da língua. A forma é mais importante que a comunicação. Tanto oensino quanto a aprendizagem são mais técnicos e programados. Procura-setransmitir ao aprendiz o conhecimento sobre a língua, sua função e a estruturagramatical. Os alunos se tornam proficientes na estrutura da língua, porémpobres quanto à pronúncia, além de adquirirem um vocabulário um pouco maislimitado e às vezes apresentam problemas na comunicação. É útil para adultos,pois esses já possuem senso crítico, podendo refletir sobre o aprendizado,além de serem capazes do automonitoramento. No aprendizado de uma língua,as limitações ocorrem a partir do suporte utilizado para ensinar, como osmateriais para estudo, por exemplo.O aprendiz pode aprender ou adquirir uma língua como sendo umalíngua estrangeira ou segunda língua. A diferença entre as duas está nocontexto de ensino e aprendizagem, como será explicado a seguir._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.23


2 Ensino como Língua Estrangeira X Ensino como Segunda LínguaSegundo Brown (2001), o ensino de segunda língua (L2) é aquele cujocontexto da língua alvo está disponível fora de sala da aula, ou seja, o ensinonão está limitado à sala de aula já que os aprendizes estão expostos à línguaalvo no cotidiano, tornando natural a aprendizagem da língua. EnsinarPortuguês a um americano que veio ao Brasil a trabalho é um bom exemplo deensino de L2. Esse americano tem o Inglês como língua nativa (L1) e precisaaprender Português para se comunicar e realizar as tarefas do dia-a-dia, dessaforma, o Português será sua L2, pois o mesmo já tem o Inglês como L1.Grannier (2001) explica que no ensino do português para estrangeiros, oaprendiz se encontra num país cuja língua nacional/oficial é o português,porém, nesse caso, é preciso lembrar que há cidadãos de países de línguaportuguesa que não tem o português como L1, como é o caso dos falantes delínguas indígenas como L1; dos brasileiros que têm LIBRAS como L1 e dealguns africanos e timorenses. Todos que se encontram nessa situaçãoaprenderão o português como L2.A aprendizagem de uma nova língua na categoria de língua estrangeira(LE) ocorre, segundo Brown (2001), em contextos nos quais o aprendiz nãotem um ambiente que propicie a comunicação da língua alvo fora de sala deaula. O contato com a nova língua pode ocorrer em situações específicas comouma viagem, um programa de TV, livros e outras oportunidades que podem sercriadas pelo professor ou aprendiz. Para Grannier (2001), o ensino doportuguês como LE ocorre em países cuja língua nacional/oficial não é oportuguês. Dessa forma, um americano aprendendo Português em Nova York,estaria aprendendo a língua portuguesa como língua estrangeira (LE).Enfim, no ensino do Português como segunda língua (PL2), o aprendiztem a vantagem de estar em contato 24 horas do dia com a língua, assim comoinúmeras oportunidades para aprender a língua de forma mais rápida. Poroutro lado, no ensino do Português como língua estrangeira (PLE) tanto oprofessor quanto o aprendiz tem um grande desafio nas mãos. No ensino deuma língua na categoria de LE, o professor passa a depender de diversosfatores que vão desde a motivação intrínseca por parte do aprendiz, passandopelo pouco tempo de exposição do aprendiz à nova língua em sala de aula, atéos materiais didáticos disponíveis para trabalhar.3 Abordagem InteracionistaA abordagem escolhida para essa pesquisa sobre o ensino de PLE foi a‘interacionista’. Segundo Salles (2004), “a ideia central nessa abordagem é ade que a aprendizagem se dá por meio do exercício comunicativo de interagir,por meio da construção do discurso [...] podendo ser intitulada comunicativainteracionista.”Para Richards & Rodgers,_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.24


A língua é concebida como um meio para a realização de relaçõesinterpessoais e para o desempenho de transações sociais entreindivíduos. Ela é vista como um instrumento para a criação emanutenção das relações sociais (RICHARDS & RODGERS,1986:17 apud Salles 2004:103).Por meio da abordagem interacionista o professor possibilita ao aprendiza utilização da língua alvo em contextos reais de uso da língua, provocando acomunicação entre professor e aluno de forma descontraída.4 Os pronomes de tratamento e suas diferenças culturais no ensino de PLEpara falantes de inglês.No livro Brazilian Portuguese os autores Grannier-Rodrigues, El- Dash &Lombello (1992), apontam as dúvidas dos falantes de língua inglesa comrelação ao Português no que diz respeito ao uso dos pronomes de tratamento,dos pronomes Tu e Você, além das formas específicas da segunda pessoapara o singular e o plural.Essa pesquisa apresenta um contraste entre as explicações sobre o usodos pronomes de tratamento nas gramáticas tradicionais das línguasportuguesa e inglesa, com relação ao que ocorre nas situações reais de usodas línguas.4.1 Os pronomes na língua portuguesaDe acordo com Pereira Júnior (2012), tradicionalmente, os pronomes sãoconsiderados pelas gramáticas como substitutos do substantivo, de termoscom a função de nome, de um adjetivo ou de uma oração. O termo ‘pronome’ éoriginário do Latim ‘pronomen’ (‘pro’: em lugar de e ‘nomen’: nome)Segundo Bechara (2009, p.162), pronome é a classe de palavrascategoremáticas que reúne unidades em número limitado e que se refere a umsignificado léxico pela situação ou por outras palavras do contexto. De modogeral esta referência é feita a um objeto substantivo considerando-o apenascomo pessoa localizada do discurso.Para Cunha e Cintra (1985, p.289), os pronomes desempenham naoração as funções equivalentes às exercidas pelos elementos nominais,servindo para representar um substantivo ou acompanhar um substantivodeterminando-lhe a extensão do significado._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.25


4.1.1 Pronome de tratamento na língua portuguesa.Segundo Cunha & Cintra (1985), os pronomes de tratamento “O senhor, asenhora e a senhorita”, no Brasil, são, formas de respeito ou de cortesia e, seopõem a “você”, na maior parte do Brasil.Existe ainda a forma de tratamento indireta, a de 2° pessoa que leva overbo para a 3° pessoa. São as chamadas formas subs tantivas de tratamentoou formas pronominais de tratamento (BECHARA, 2009).Ex: “Você/Vocês” - no tratamento familiar.“O senhor, a senhora” - tratamento cerimonioso.Segundo Lyons,O significado social e expressivo dos pronomes familiares e polidos éobviamente dependente de cultura; é um caso de conhecimentosocialmente adquirido. [...] e o conhecimento é prático e não baseadoem proposições: situa-se dentro do escopo do conhecimento social.(LYONS, 1987, p.289)Dessa forma, é possível perceber que as questões culturais influenciamfortemente o uso dos pronomes de tratamento revelando particularidades dalíngua falada que serão brevemente comentadas a seguir.4.1.2 Algumas particularidades sobre os pronomes de tratamento doPortuguês: Uso dos pronomes “Tu”, “Você” e “Vós”.O uso de “Tu” restringe-se ao extremo sul do País e a alguns pontos daregião Norte. O uso de “Você” ocorre nas demais regiões do País e estávoltado para um tratamento de igual para igual ou de superior para inferior(BECHARA, 2009). Existem ainda três formas de expressar a segunda pessoa:Tu és/ tu vais; Tu é/tu vai & Você é/você vai. Além disso, o “Vós” é usadosomente nas escrituras antigas, como por exemplo, na Bíblia Sagrada.Além da não inclusão do ‘você/vocês/ a gente’, que são formas amplamenteutilizadas na linguagem coloquial, a Gramática Tradicional concebe “nós” e“vós” como formas plurais de “eu” e “tu”. Cardoso (1996, p.115-123) explicaque a gramática tradicional não apresenta uma posição coerente e única comrelação à forma “a gente”. Ora consideram “a gente” como pronome de 1ªpessoa, ora como pronome de tratamento, ou ainda indefinido.Ainda segundo Cardoso (1996), o uso do “a gente” vai muito além do (eu +você = nós), o falante o escolhe quando quer dizer que tem um grupo maior depessoas. É bom lembrar que o substantivo ‘gente’ está relacionado a povo,multidão e por isso o uso de ‘a gente’ como pronome indica uma quantidademaior de pessoas com relação ao uso do ‘nós’. Outra característicainteressante sobre o uso de ‘a gente’ é que como pronome da primeira pessoa_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.26


do plural deveria ser acompanhado por um verbo também na 3º pessoa doplural, porém o verbo utilizado por muitos falantes é o da 3º pessoa do singular.Os pronomes da língua portuguesa traduzem uma pequena mostra dalíngua como produto da cultura do Brasil. Algumas características do uso dospronomes podem revelar algumas particularidades do falante, como o seu localde origem ou o grupo social a que pertence. A seguir veremos como ospronomes de tratamento são usados na língua inglesa.4.2 Os pronomes na língua inglesaMurcia & Freeman (1999) apresentam os pronomes como “uma classe depalavras que substituem um nome ou fazem referência a ele ou a umasentença nominal.” Essa referência é feita considerando a pessoa do discursoou fazendo uma referência direta a uma situação externa (ex: para responder aum barulho repentino, falamos “O que foi aquilo?”). Os pronomes ocupam amesma posição de um nome ou de uma sentença nominal.4.2.1 Pronomes de tratamento em InglêsOs pronomes de tratamento em Inglês são de modo geral Mr, Mrs, Miss(+ sobrenome), Sir e Madam (nome desconhecido). O uso desses pronomesocorre em situações de trabalho, em ambientes escolares(aluno/professor/diretor), ao falar com pessoas desconhecidas ou mais velhas.O uso mais frequente é do pronome ‘you’ no cotidiano.4.2.2 Algumas particularidades dos pronomes da Língua Inglesa.Uso do pronome ‘you’ na língua inglesa serve tanto para segundapessoa do singular como para segunda pessoa do plural. O pronome ‘it’ daterceira pessoa do singular, usado para representar objetos inanimados, ésubstituído, às vezes, por ‘he’ ou ‘she’, ou seja, pode ser usado ,por exemplo,para fazer referência aos animais de estimação, à navios com nomes depessoas e aos furacões.O uso do gênero masculino na língua inglesa não tem preferência noscasos de generalizações. O falante escolhe o gênero que achar conveniente.Imagine a situação: uma palestrante pode usar o pronome de tratamento ‘Mrs.’para se referir as pessoas que estão assistindo a palestra, mesmo que haja umou dois homens no ambiente. Porém, essa ainda é uma situação muitocontroversa.É interessante notarmos que situações como a mencionada acimaocorrem de maneira diferente na língua portuguesa. Se o palestrante estivesse_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.27


no Brasil apresentando para um grupo 95% feminino e 5% masculino,precisaria optar pelo uso do gênero masculino ao se dirigir ao público.É possível notar que a língua inglesa apresenta poucas mudanças emrelação às normas da gramática tradicional. Talvez, seja esse o motivo dasdúvidas dos falantes de Inglês com relação à língua portuguesa. Para melhorilustrar alguns pontos comentados anteriormente, apresento a seguir umquadro comparativo dos pronomes do Português e do Inglês, com algunspontos relevantes sobre as dúvidas dos falantes de Inglês na aprendizagem doPortuguês.4.3 Os pronomes de tratamento. Análise contrastiva de usos: Português XInglês.O quadro abaixo apresenta as principais dúvidas dos falantes de Inglês,com relação aos usos dos pronomes, levantadas nas pesquisas feitas porGrannier et al (1992) durante os anos de ensino de Português paraestrangeiros. O quadro traz uma análise contrastiva entre o Português e oInglês somente nos tópicos apontados.PortuguêsTu e Você – Variam de acordo com aregiãoSing.: Tu e Você // Plural: VocêsNão faz distinção: Idade/sexoVocê leva o verbo p/ 3ª pessoa (é)Seleção relativa (Escolha para uso de‘você’ ou ‘Sr’, ‘Sra’.).Pronomes de tratamento: Senhor,Senhora, Dona, Tia (relacionados acostumes familiares).Quadro 1InglêsYou – serve para todas as regiões.Sing. E Plural: YOU.Não faz distinção: Idade/sexoVerbo sempre na 2ª pessoa: ‘are’Seleção preferencial (para uso de ‘you’)Pronomes de tratamento: Mr., Mrs. e Miss –seguidos pelo sobrenome, usados em situaçõesespecíficas.Uso do pronome possessivo ‘seu’ comopronome de tratamento. Ex: Seu José.Não ocorre.O quadro 1 mostra que no Português existe uma alternância no uso de ‘tu’e ‘você’ dependendo da procedência do falante, além disso, existe uma formade uso para o singular e outra para o plural. No Inglês, independentemente da_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.28


egião, o falante usa o pronome ‘you’, que serve tanto para o singular comopara o plural.No Português, o pronome ‘você’ leva o verbo para a terceira pessoa e noInglês o verbo que acompanha o pronome ‘you’ é sempre ‘are’, tanto nosingular quanto no plural. O uso dos pronomes de tratamento ‘Você’, ‘Senhor’ou ‘Senhora’ está relacionado com questões culturais e sociais, além doprocesso de criação e educação do falante. Na língua Inglesa o falante tempreferência pelo uso do pronome de tratamento ‘you’, porém alguns casosespecíficos pedem o uso de pronomes como Mr, Mrs. Ou Miss, que servempara se dirigir ao professor (a), diretor (a), presidente e pessoas mais velhascomo forma de respeito, todos seguidos pelo sobrenome da pessoa.Outra particularidade da língua portuguesa é o uso do pronomepossessivo ‘seu’ no lugar do pronome de tratamento ‘Senhor’, como em ‘SeuJosé’. Esse fenômeno não acontece na língua inglesa. Além disso, as formasde tratamento ‘Dona’ e ‘tia’ são muito utilizadas na língua portuguesa, como em‘Dona Maria’ e em ‘Oi, Tia!’. Casos como esses não ocorrem na língua inglesa.Os quadros apresentados a seguir são referentes à situação atual de usodos pronomes sujeito e possessivo em Português e Inglês possibilitando umacomparação referente à complexidade com relação ao ‘uso’ dos pronomes pelofalante. Os pronomes em destaque revelam o que o falante produz em relaçãoao que a gramática tradicional apresenta. É possível entender, ao comparar asduas tabelas, as dúvidas dos falantes de Inglês, já que na língua Inglesa ofalante procura manter os pronomes na devida ordem.Quadro 2. Situação atual dos pronomes do Português.Pessoa Pron. Sujeito Pron. PossessivoP1 Eu Meu,minhaP2 Tu/Você Teu,tua,seu,sua,de vocêP3 Ele/ela Seu, sua, dele, delaP4 Nós/a gente Nosso (a), da genteP5 Vós/ Vocês Vossos(as),Seu(s),sua(s),devocêsP6 Eles/elas Seu(s), sua(s), deles(as)_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.29


Quadro 3. Situação atual dos pronomes do InglêsPessoa Pron. Suj. P. Posses. (adj. /subst)P1 I My// mineP2 You Your//yoursP3 He/She/It His/her/its//his/hersP4 We Our//oursP5 You Your//yoursP6 They Their // theirsOs itens destacados no quadro 2 se referem aos pronomes em ‘uso’ nalíngua portuguesa. Os pronomes na cor preta são os que aparecemnormalmente nas gramáticas normativas. No quadro 3 os pronomes da línguainglesa permanecem sem alterações na gramática normativa.Ao observar os quadros é possível entender porque os falantes de Inglêsapresentam tantas dúvidas com relação ao uso dos pronomes em Português,pois o que a gramática normativa apresenta não está de acordo com que oaprendiz vai encontrar em situações reais de comunicação.ConclusãoA pesquisa mostrou que as dúvidas levantadas pelos falantes de Inglêsna aprendizagem de PLE estão relacionadas com questões culturais no usodos pronomes. Os quadros apresentados na pesquisa revelam a complexidadedos pronomes de Português com relação aos pronomes de Inglês. Nelespodemos observar as várias possibilidades no uso dos pronomes da línguaportuguesa enquanto, na língua inglesa, a simplicidade gramatical é mantidapelo falante. A escolha dos pronomes de tratamento é um reflexo docomportamento sociocultural, por isso é importante conhecer a cultura dalíngua alvo para entender o funcionamento dessa língua.O ensino de uma língua estrangeira deve ir além do que está escrito nasgramáticas tradicionais. É essencial que o professor mostre aos seus alunos asdiversas possibilidades no uso da língua e que, no caso da língua portuguesa,as variações são reflexo de uma região rica em diversidades cultural e social.Enfim, para aprender uma língua é preciso praticá-la em situações reaisde uso, experimentá-la imersa em seu ambiente sociocultural._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.30


The cultural functions in the use of pronouns and personal addressin teaching Portuguese as a foreign language to English speakers.Abstract: This article brings some relevant points about the doubts of studentsof Portuguese as a second language, especially in the use of pronouns inspoken language. The research makes a relation between some specificcharacteristics when using pronouns in Portuguese and in English, helpinglearners to understand the oral language process.Key-words: Portuguese. Second and Foreign Language. Pronouns.BibliografiaBECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 2009.BROWN, H. Douglas. Teaching by Principles. An Interactive approach toLanguage Pedagogy. Second Edition. 2001. Longman.CAR<strong>DO</strong>SO, Suzana Alice Marcelino (org.) Diversidade Linguística e Ensino.Salvador: EDUFBA, 1996. P. 115-123.CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramática do portuguêscomtemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.GRANNIER, Daniele Marcelle. Perspectivas na formação do professor deportuguês como segunda língua. Publicado em Cadernos de Centro deLínguas, Volume 4. USP 2001.LYONS, J. Linguagem e cultura. In: Lingua(gem) e linguística: umaintrodução. Ed. Guanabara S. A., Rio de Janeiro, 1987.MURCIA, Marianne & LARSEN-FREEMAN,Diane. The Grammar Book: anESL/EFL teacher´s course. Second Edition. Heinle Cengage Learning,1999.PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. Classe de palavras: o lugar do outro. RevistaLíngua Portuguesa – Edição Julho/2012. Disponível em:http://revistalingua.uol.com.br/textos/67/artigo249105-1.aspSALLES, Heloisa Maria Moreira de A. (Colab.). Da abordagem audiolingual àinteracionista: em direção à comunicação. In: Ensino de língua portuguesa_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.31


para surdos: caminhos para a prática pedagógica. Brasília: Ministério daEduação, Secretaria de Educação Especial, 2003. Disponível em:HTTP://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lpvoll.pdfSCHÜLTZ, Ricardo. Language Acquisition – Language Learning. Disponívelem: http://www.sk.com.br/sk-laxll.html. Acesso em: 02/10/2011._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.32


FORMAÇÕES ADJETIVAS EM –VEL E –ABLEBruna Elisa da Costa Moreira 3Resumo: Tradicionalmente, a morfologia derivacional é vista como uma formade relacionar palavras a outras palavras, em oposição à morfologia flexional,concebida como aquela que determina diferentes formas de uma mesmapalavra, sem envolver mudanças de categoria. Essa divisão implica uma outraseparação: o que é produzido na sintaxe e o que é produzido no léxico. Teoriasmorfológicas contemporâneas desafiam essa separação, postulando um únicomecanismo responsável pelos fenômenos derivacionais e flexionais, bem comopela construção de palavras e sentenças. Neste trabalho, desenvolvido naperspectiva da gramática gerativa, apresentamos uma discussão sobre asteorias lexicalistas (DI SCIULLO & WILLIAMS, 1987; ARONOFF, 1976;WASOW, 1977) e sintáticas (HALLE & MARANTZ, 1993; MARANTZ, 1997,2001) para a formação de palavras, e abordamos o caso específico do sufixo –vel e do sufixo –able, formadores de adjetivos em português e inglês,respectivamente, observando seus aspectos sintáticos, morfológicos esemânticos, bem como suas propriedades distribucionais.Palavras-chave: Categorias Lexicais; Adjetivos em –vel/–able; MorfologiaDerivacional.Abstract: Traditionally, derivational morphology is viewed as relating words towords, while inflectional morphology is viewed as determining different forms ofthe same word, without involving category change. This distinction impliesanother one (the lexicon-syntax distinction): what is constructed in the syntax orin the lexicon. Current morphological theories defy this notion, postulating asingle mechanism responsible for both derivational and inflectional processesand both word and sentence formation. The present article, developed withinthe generative Grammar framework, discusses lexicalist theories (DI SCIULLO& WILLIAMS, 1987; ARONOFF, 1976; WASOW, 1977) and syntactic theories(HALLE & MARANTZ, 1993; MARANTZ, 1997, 2001) of word formation. We3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília(PPGL/UnB) sob a orientação da Professora Doutora Heloisa Salles. Bolsista CAPES._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.33


discuss adjectives formed by the suffixes –vel and –able, focusing on itssyntactic, morphological and semantic aspects, as well as its distributionalproperties in the sentence.Keywords: Lexical Categories; Adjectives formed by –vel –able; DerivationalMorphology.1 IntroduçãoEste artigo investiga as propriedades do sufixo –vel –, que, noportuguês, forma adjetivos como lavável, quebrável e amável – quanto àescolha da base para a sufixação e à interpretação semântica do adjetivoformado. A discussão será orientada por trabalhos sobre esse sufixo noportuguês, e também sobre o sufixo correspondente, –able, no inglês.Processos típicos da morfologia derivacional envolvem: (i) a determinação dacategoria lexical, a partir do acréscimo de um sufixo derivacional a uma base; e(ii) a sensibilidade à categoria lexical: um sufixo derivacional usualmente elegeuma base de determinada categoria. O sufixo –vel, por exemplo, usualmenteliga-se a bases verbais para formar adjetivos, já um sufixo como –oso elegebases nominais para formar adjetivos etc. No entanto, observa-se que,enquanto (i) é invariável, ou seja, sufixos derivacionais definidores de categorialexical apresentam um comportamento esperado (–vel e –oso, por exemplo,sempre formarão adjetivos), (ii) não apresenta o mesmo caráter, ou seja, umsufixo derivacional pode ora ligar-se a uma base de determinada categorialexical, ora de outra, ou ainda ligar-se a uma raiz mais abstrata nãocategorizada. É o que atestam os exemplos a seguir em (1), para o sufixo –vel 4 , e (2), para o sufixo –ous, formador de adjetivos no inglês (sufixo análogoao sufixo –oso no português):(1) a. base verbal: lavável (lavar), quebrável (quebrar), amável(amar)b. base nominal: carroçável (carroça), colunável (colunasocial)4A menos que seja indicada outra fonte de referência, todos os exemplos do português citadosneste artigo foram retirados do Dicionário Houaiss, versão eletrônica (2009)._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.34


c. base não categorizada: flexível (*flexi), solúvel (*solu) 5(2) a. base nominal: glorious (glory), dangerous (danger) 6b. base não categorizada: curious (*cury)Raízes não ocorrem em uma sentença sem serem categorizadas. *Cury,por exemplo, não ocorre livremente, mas ligado sufixos derivacionais, curious,curiosity, curiousness etc. Todos os elementos que formam uma sentençadevem ser categorizados. Dessa constatação aparentemente óbvia surgemduas questões. Uma diz respeito à identidade categorial que as palavraspodem compartilhar: como caracterizar nomes, verbos e adjetivostranslinguisticamente? Outra diz respeito a como se realiza a categoria. Ambasas questões são abordadas por Baker (2004), para quem a distinção entre ascategorias lexicais nome, verbo e adjetivo 7 é captada conforme o sistemarepresentado em (3), com adaptações:(3) Nome é +N = ‘tem índice referencial’Verbo é +V = ‘tem especificador’Adjetivo é −N, −VNesse sistema, os nomes têm critério de identidade, o que se traduz nonível sintático como a capacidade de se realizar como um índice referencial; osverbos são “predicados por excelência” e sempre têm um especificador; osadjetivos são elementos “sem essência”, caracterizados por não serem nomesnem verbos, uma categoria default, para a qual a propriedade de denotarqualidades e de ser comparável é apenas derivada, não prototípica. SegundoBaker (2004, p. 2-11), propostas anteriores para a distinção entre categorias,como a combinação de traços valorados, +/– N e +/– V, de Chomsky (1970), oua valoração de posições argumentais, +/ – suj, +/ – obj, de Jackendoff (1977),não são robustas o bastante para fazer previsões e generalizaçõestranslinguísticas acerca das categorias lexicais.Quanto à segunda questão, Baker (2003, p. 264) pergunta: o queexatamente carrega a marca de categoria? O que pode ser caracterizado comonome, verbo ou adjetivo? Para quais dessas unidades a categoria é inerente e5 Nesse caso, as palavras em questão já entraram na língua com o sufixo latino –bilis, flexibilise solubilis.6 Exemplos de glorious e curious extraídos de Marantz (2001, p. 13).7As adposições (preposições e posposições) são consideradas elementos funcionais,conforme Baker (2003, p. 303)._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.35


para quais é derivada ou mesmo indefinida? Baker observa que,tradicionalmente, a morfologia derivacional é vista como uma forma derelacionar palavras a outras palavras, em oposição à morfologia flexional,concebida como aquela que determina diferentes formas de uma mesmapalavra, sem envolver mudanças de categoria. Essa divisão implica outraseparação: o que é produzido na sintaxe e o que é produzido no léxico. Aexistência de dois lugares diferentes para a formação de palavras, no entanto,é pressuposto de teorias de orientação lexicalista, que assumem determinadadivisão do trabalho entre os componentes da gramática. Essas teorias já foramdesafiadas por teorias sintáticas para a formação de palavras, como serádiscutido na próxima sessão.O estudo da formação dos adjetivos em –vel vincula-se, assim, adiversas questões, entre elas, a categorização das bases para a sufixação e acontribuição da base e do sufixo para a interpretação semântica do adjetivoformado. Esses temas são discutidos ao longo deste artigo, que apresenta aseguinte estrutura: após esta breve introdução, a seção 2 apresenta diferentesteorias, de orientação lexicalista e sintática, para a formação de palavras; aseção 3, apresenta uma discussão sobre os adjetivos em –able e –vel,enfocando as diferentes propostas de análise para esse tipo de formação, emtermos de uma estrutura passiva e causativa perifrástica; a seção 4 apresentaas considerações finais; por fim, seguem as referências bibliográficas.2 Diferentes orientações teóricas para a formação de palavrasTradicionalmente tido como o berço do Lexicalismo, o clássico artigoRemarks on nominalization, de Chomsky (1970), aborda as nominalizações doinglês. O autor observa que, tanto os nominais gerundivos, em (4), quanto osnominais derivados, em (5), são relacionados à sentença John has refused theoffer (“João recusou a oferta”), mas cada uma dessas nominalizaçõesapresenta peculiaridades.(4) John’s refusing the offer(5) John’s refusal of the offerChomsky (1970, p. 187) destaca que a relação de sentido entre onominal gerundivo e a proposição que lhe dá origem é regular, e o nominalgerundivo não apresenta a estrutura interna de um NP (Noun Phrase); já os_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.36


nominais derivados apresentam produtividade restrita e a estrutura interna deum NP. Por essa razão, as nominalizações gerundivas estariam associadas auma transformação gramatical, ao contrário dos nominais derivados.Apesar de ser considerado o berço do Lexicalismo, o artigo de Chomsky(1970) é interpretado por Marantz (1997, p. 9) como o precursor de teoriassintáticas para a formação de palavras. O autor chama a atenção para o fatode que Chomsky (1970) não propõe regras lexicais especiais, mas umaextensão das regras de base para acomodar os nominais derivadosdiretamente. Segundo Marantz (1997, p. 9), essa ideia é compatível com ainterpretação de que os nominais derivados não são verbos em nenhumestágio da derivação, por isso não são transformações relacionadas a umasentença, estando antes relacionados a um ambiente nominal. Como serádiscutido mais adiante, essa é uma das ideias desenvolvidas pelo Modelo daMorfologia Distribuída sobre a realização das categorias, que não seriaminerentes aos itens lexicais, mas criadas em ambientes verbais, nominais ouadjetivais.Na literatura, estão presentes teorias que postulam a existência de umcomponente lexical na estrutura da gramática, responsável pelos fenômenosno nível da palavra, e teorias que assumem mecanismos sintáticos para aformação de palavras. O Quadro 1, a seguir, apresenta um panorama dessasteorias. 8Quadro 1. Tendências TéoricasHipótese LexicalistaForteAs palavras são criadasno léxico por meio deregras diferentes dasregras da sintaxe –palavras são unidadesatômicas que a sintaxenão pode penetrar.Di Sciullo e Williams(1987).Hipótese LexicalistaFracaA Derivação ocorre noléxico por meio de regrasde derivação, e a Flexãoocorre na sintaxe pormeio de regras dasintaxe.Aronoff (1976), Wasow(1977).Hipótese SintáticaForteToda a formação depalavras, incluindo aflexão e a derivação,ocorre na sintaxe pormeio de regras dasintaxe.Halle e Marantz (1993),Marantz (1997, 2001).8Adaptado de Marvin (2003, p. 11)._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.37


Di Sciullo e Williams propõem a separação do componente responsávelpela formação de palavras e de sentenças. Para os casos em que parecehaver uma interação entre esses dois componentes, os autores postulam quetraços categoriais e noções como tempo e número podem estar presentes emambos. Quanto à realização das categorias, Di Sciullo e Williams (1987, p. 25)consideram que os próprios sufixos pertençam às categorias N, V e A, assimcomo as palavras. Um sufixo nominalizador do inglês como –ion, que formatransmission, é um nome, mas, como é também um morfema preso, não podeocorrer independentemente de uma base à qual deve ser ligado – esse sufixocorresponde ao sufixo –ão no português, que forma nomes, transmitir—transmissão. Um conceito importante nessa teoria é o conceito de núcleo.Assim, os sufixos são considerados núcleos de palavra e determinam categoriadesta, ao contrário dos prefixos não são considerados núcleo de palavra; logo,não têm o mesmo poder. Para ilustrar essa propriedade, os autores citam osufixo –ion, que determina categoria e sempre deriva nomes (transmission,admission), e o prefixo counter-, que não determina categoria e pode derivarverbos (counterscrew), nomes (counterspy) ou adjetivos (counterrevolutionary)(DI SCIULLO e WILLIAMS, 1987, p. 24).A teoria de Aronoff (1976, p. 21) pode ser definida como a morfologiabaseada na palavra (word-based morphology), segundo a qual: “Todos osprocessos regulares de formação de palavras tomam por base palavras. Umanova palavra é formada a partir da aplicação de uma regra regular a umapalavra já existente. Ambas as palavras, a nova e a que serviu de base paraesta, fazem parte de categorias lexicais”. Aronoff (1976, p. 2) reconhece adistinção entre flexão e derivação, porém a considera “relativamente delicada”.Segundo o autor, fenômenos flexionais são de natureza “puramente gramatical”(marcação de tempo, aspecto, pessoa, número, gênero, caso etc.), efenômenos derivacionais têm caráter restrito ao domínio das categoriaslexicais.No modelo da Morfologia Distribuída, de Halle e Marantz (1993) eMarantz (1997, 2001), assume-se que há um único mecanismo responsávelpela formação de palavras e de sentenças. Assim, as palavras, que pertencemàs categorias lexicais N, V e A, são criadas por meio de mecanismos sintáticospela combinação de raízes a núcleos funcionais n, v e a. A identidadecategorial é determinada pelo ambiente sintático em que as raízes sãoinseridas; logo, as raízes são acategoriais. Na Morfologia Distribuída, a sintaxenão manipula itens lexicais propriamente ditos, mas gera estruturas a partir da_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.38


combinação de traços morfossintáticos, fonológicos e semânticos ao longo daderivação (HARLEY e NOYER, 1999).Nessa teoria, não se postula a tradicional distinção entre processosflexionais e processos derivacionais. A esse respeito, Marantz (2001, p. 10)considera que as diferenças tradicionalmente assumidas entre flexão ederivação não se sustentam, sendo a derivação, no geral, tão paradigmática,produtiva e transparente quanto a flexão. Nesse sentido, o autor questiona oque significa associar a flexão a uma maneira de determinar “formas da mesmapalavra”: por que o sufixo agentivo do inglês –er, que forma driver, não estariatambém determinando outra forma do verbo drive?Observa-se que o ponto fundamental das teorias anteriores ao modelo daMorfologia Distribuída é a distinção entre o que é da alçada do léxico (irregular)e o que é da alçada da sintaxe (regular). Nessas teorias, a existência de doislugares para a formação de palavras é o que explica a distinção entreprocessos regulares e irregulares. De forma explícita, Fabb (1984, p. 38-39)distingue os processos lexicais e os sintáticos de formação de palavras, a partirdos seguintes critérios: o processo sintático de formação de palavras éprodutivo e tem propriedades previsíveis, ao contrário dos processos lexicais.Segundo Fabb (1984, p. 33-34), palavras podem ser formadas de trêsmaneiras: (a) uma palavra se combina a outra palavra, formando um composto:trigger-happy, love-boat; (b) um afixo (sufixo ou prefixo) combina-se a umapalavra para formar outra palavra; e (c) um sufixo ou um prefixo combina-sediretamente a uma raiz para formar uma palavra. Para Fabb (1984, p. 34), aspalavras do tipo (a) e (b) são formadas na sintaxe.No modelo da Morfologia Distribuída não se assume a existência de doislugares. Em vez disso, as diferenças observadas quanto à regularidade/irregularidade dos processos de formação de palavras emergem de operaçõesda sintaxe, e referem-se fundamentalmente a uma diferença entre raízes epalavras. Basicamente, esta é a intuição subjacente à proposta de Fabb (1984)para os processos de formação de palavras: (a) e (b) são regulares, (c) não éregular. Os processos (a) e (b) referem-se a processos com base em palavrasjá existentes; o processo (c) refere-se a processos com base em raízes. Éjustamente a diferença entre palavras e raízes que capta a diferença entre oque é regular e o que idiossincrático. Segundo Marantz (2001, p. 7), aconstrução de palavras pode ocorrer no domínio das raízes; nesse caso, aspalavras terão de ter seu significado negociado; ou fora do domínio do núcleofuncional (no domínio das palavras); nesse caso, a palavra categorizada já tem_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.39


o seu significado determinado, e a nova palavra formada tem caráter previsívele regular.3 Sobre os adjetivos em –able e –velConforme mencionado, Aronoff (1976) propõe uma morfologia baseadana palavra. Nesse modelo, os processos de formação de palavras ocorrem pormeio de regras, que o autor denomina RFP (regra de formação de palavras).Uma RFP especifica um grupo de palavras às quais determinada regra podeser aplicada. Esse grupo é chamado de base para a regra. Cada RFPespecifica um rótulo sintático e uma subcategorização para a palavraresultante, bem como uma representação semântica, que é uma função dabase. A partir dessas ideias, Aronoff (1976, p. 32-47) desenvolve a Hipótese daBase Única (Unitary Base Hypothesis), segundo a qual um sufixo deve “eleger”uma base de determinada categoria, aplicando-se unicamente a ela.Assumindo-se a Hipótese da Base Única, uma pergunta que surge écomo Aronoff explica contra-exemplos, como os apresentados em (1a) e (1b).Para o caso de sufixos que aparentemente selecionam mais de uma categoriacomo base, Aronoff (1976, p. 48) postula que se está diante de casos dehomofonia. Para ilustrar essa proposta, Aronoff (1976) discute o sufixo –able noinglês, que pode se ligar tanto a nomes (fashionable, sizable) como a verbos(acceptable, doable). Para não violar a Hipótese da Base Única, o autor propõeque há dois sufixos –able no inglês. Uma das evidências apresentadas é a deque as contrapartes nominais de nomes e verbos formados em –able sãoformadas a partir de regras distintas. Os adjetivos denominais sempre aceitamo nominalizador –ness e nunca o nominalizador –ity (cf. (6)), enquanto osadjetivos deverbais não têm nenhuma restrição do tipo (cf. (7)).(6) sizableness *sizability(7) acceptability acceptablenessOutra evidência, segundo Aronoff (1976, p. 48), diz respeito à“semântica muito distinta” desses sufixos. O sufixo deverbal significa “capaz deser Xado”, sendo X a base, enquanto o sufixo denominal significa“caracterizado por X”, sendo X a base. O autor compara pares homófonos denome/verbo, como fashion, que tanto pode ser nome quanto verbo no inglês._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.40


Nesse caso, fashionable, que pode ser tanto denominal quanto deverbal, temambos os significados previstos: “in fashion” e “capable of being fashionable”.Wasow (1977, p. 331) também aborda as formações de adjetivos em –able, a partir de uma discussão sobre que tipos de estruturas são formadascom base em regras lexicais e que tipos de estruturas são formadas com baseem transformações. Para tanto, Wasow (1977, p. 331) propõe um série decritérios que distinguem ambos os processos, apresentados a seguir noQuadro 2.Quadro 2. Regras Lexicais vs. TransformaçõesRegras LexicaisTransformaçõesCritério 1 Não afetam a estrutura Não necessariamentepreservam a estruturaCritério 2 Podem relacionar itens de Não mudam rótulos dediferentes categoriascategoriaCritério 3 “Locais”; envolvem apenas NPs que Não necessariamente “locais”;mantêm relação gramatical com os formuladas em termos deitens em questãopropriedades estruturais dosmarcadores frasaisCritério 4 Aplicam-se antes de Podem ser alimentada portransformaçõestransformaçõesCritério 5 Apresentam exceçõesApresentam poucas exceçõesWasow (1977, p. 334) baseia-se na argumentação de Lakoff (1970, apudWASOW, 1977) sobre as formações em –able. Segundo Lakoff (1970), a regrado sufixo –able deve ser uma transformação que opera no output de umatransformação da passiva, como representado em (8) a seguir:(8) a. His handwriting can be read His handwriting is readableb. He can be depended on He is dependableWasow (1977, p. 334) apresenta um contra-exemplo em (9), em que aforma passiva do verbo “soa muito pior” do que a sua contraparte adjetiva.(9) ?? Your unfortunate remarks can be regretted Your unfortunateremarks are regrettable._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.41


O argumento definitivo de Wasow (1977, p. 336) para dispensar aproposta de Lakoff (1970) é o de que “transformações não podem alimentarregras de mudança de categoria, logo a formação desses adjetivos deve seguirregras lexicais”. A argumentação de Wasow (1977, p. 336) desenvolve-se apartir das seguintes observações acerca dos critérios propostos no Quadro 2: oCritério 1 prevê que adjetivos devem aparecer somente em posições “usuais”de adjetivos, o que de fato é atestado pelos exemplos; o Critério 3 prevê que osujeito a que se refere o adjetivo deve corresponder ao objeto direto associadoao verbo; o Critério 4 prevê que nenhuma transformação pode “alimentar” aregra; e o Critério 5 permite que haja exceções.Wasow (1977, p. 336) não prevê nenhuma correlação entre osambientes que permitem as passivas e os ambientes que permitem osadjetivos em –able. Para o autor, o fato de que esses adjetivos podem serparafraseados como as passivas deve-se a duas razões: o conteúdo semânticodo sufixo aproxima-se do significado de can; e a regra lexical que relacionaverbos aos adjetivos em –able correspondentes identifica o sujeito do últimocom o objeto direto do primeiro, assim como fazem as passivas. Para o autor,no entanto, isso não constitui evidência suficiente que justifique a aplicação deconstruções passivas na derivação desses adjetivos.Outro autor que também correlaciona as formações adjetivas em –ableàs formações passivas é Kayne (1984), discutido por Baker (2004). SegundoBaker (2003, p. 285), o sufixo –able é tido como um sufixo que envolve umaderivação sintática, apresentando a produtividade e a regularidade semânticaque se espera de uma derivação. Baker (2004) aborda o sufixo –able com baseem uma discussão prévia de Kayne (1984), segundo a qual essas formaçõestêm uma derivação sintática que inclui um vestígio de NP, similar à passiva,como mostrado em (10), em que é permitida a introdução de uma by-phrase,indicando o agente:(10) This book is readable by a 10-year oldCom base em (10), Baker (2004) desenvolve a hipótese de que –ableseja gerado como um núcleo adjetival que toma um verbo na passiva como seucomplemento. O núcleo desse verbo então incorpora no adjetivo. A by-phrase élicenciada dentro do VP, como representado em (11):(11) This book i is [ AP read k -able [ VP t i t k by a 10-year old]]_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.42


A estrutura em (11), segundo Baker (2004, p. 285), está de acordo como fato de que o sufixo em questão é categorialmente restrito a se ligar apenas averbos. A sensibilidade à categoria seria uma maneira de distinguir entreprocessos puramente sintáticos e processos puramente morfológicos. ParaBaker (2004, p. 282), os primeiros seriam sensíveis à categoria, os segundosnão. O autor destaca que há poucos exemplos de adjetivos em –able formadoscom base em nomes, e que esses casos não apresentam evidência deestrutura sintática. É o caso de marriageable e companionable, para os quaisnão se pode prever a introdução da by-phrase, como em (12) (contrastar com(10)):(12) *This girl is marriageable only by a boy with a good jobPara Kayne (1981 apud FABB, 1984, p. 219) há dois tipos de adjetivosem –able: aqueles que estão associados a um vestígio e aqueles que nãoestão. Nos termos de Fabb (1984), os primeiros estão associados a um afixosintático e os segundos a um afixo lexical. As evidências para –able comosufixo sintático são as seguintes: o sufixo pode se ligar livremente a qualquerverbo transitivo (returnable, wearable, hearable etc.); e os adjetivos em –ablerecebem predicados resultativos, indicando que existe um vestígio que agecomo o sujeito do predicado resultante (beef is eatable raw). As evidênciaspara –able como sufixo lexical são as seguintes: o prefixo in– é razoavelmenteprodutivo com palavras em –able, e o output da prefixação in– éfrequentemente lexical, ou seja, apresenta propriedades idiossincráticas; e nãohá correspondência entre o tipo de complemento que a forma prefixada e a nãoprefixada pode receber, como mostrado em (13) a seguir:(13) a. reversable by the judge/ *irreversable by the judgeb. curable with penicillin/ *incurable with penicillinAlém disso, Fabb (p. 223) observa que apesar de –able ser altamenteprodutivo com verbos transitivos, também pode se ligar a verbos intransitivos(em casos muito raros) ou a nomes e raízes (ambos os casos relativamentenumerosos), como atestam os exemplos em (14) abaixo:(14) a. verbos intransitivos + –able : perishable, variableb. nomes + –able: palatable, comfortable, seasonable_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.43


c. raízes + –able: viable, soluble, durable, culpableAdjetivos em –able, segundo Fabb (1984, p. 223) não requerempreposição, que seria necessária pela passiva adjetiva, conforme (15) a seguir:(15) a. profit from – profitableb. listen to – listenablec. live in – liveabled. depend on – dependablee. rely on – reliableFabb (p. 224) sugere que os adjetivos em –able apresentados em (13),(14) e (15) são formados no léxico, uma vez que não fazem parte de gruposprodutivos. Nesses casos, as propriedades argumentais do verbo não sãolevadas adiante no adjetivo em –able.De fato, uma análise proposta para os adjetivos em –able a partir de suacontraparte verbal não é totalmente livre de problemas. Chomsky (1970, p.212), propõe que readable seja derivado de uma estrutura como (16) a seguir:(16) the book is able [ S for the book to be read] SNo entanto, o autor reconhece que readable tem sentido mais restrito doque able to be read e, no caso de outros adjetivos, o sentido é restrito oubaseado em uma subregularidade bastante diferente, como nos casos deabominable, irreplaceable, incomparable, decidable, detestable etc. Há ainda,segundo Chomsky (1970, p. 220), muitos casos em que não é possíveldeterminar uma forma de base, como nos casos de probable, formidable,peaceable, sociable, miserable etc. 9A impossibilidade de se determinar o significado de uma forma derivadaa partir da sua contraparte verbal é um dos aspectos discutidos por Barker(1998) 10 em artigo sobre outro sufixo do inglês, o nominalizador –ee, que formanomes como employee, escapee, refugee. Segundo Barker (1998), a análiseda formação desses nomes baseada na estrutura argumental do verbo que lhedá origem é insatisfatória. Portanto, não haveria critérios sintáticos paradeterminar a derivação de nomes formados com o sufixo –ee no inglês. Os9 Observa-se que muitos dos exemplos citados referem-se a operações mentais / cognitivas /psicológicas.10 Para uma discussão desse artigo, ver Marantz (2001, p. 17)._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.44


critérios assumidos por Barker (1998) dizem respeito ao que o autor chamou de“interpretação episódica” da base que dá origem à nominalização em –ee. Nocaso de presentee, por exemplo, Barker (1998) propõe que o evento denotadopelo verbo to present envolve três entidades, como mostrado em (17):(17) 1. A pessoa que apresenta2. A entidade apresentada3. A pessoa a quem a entidade é apresentadaPara determinar qual dessas três entidades pode ser referida usando-seo nome presentee, Barker (1998) argumenta que são necessários três fatoresessencialmente semânticos:(18) 1. O referente do nome deve ser senciente/sensível.2. A denotação do nome deve estar ligada à denotaçãoindicada pela base verbal (gazee deve participar do “gazingevent”).3. Falta de controle volitivo por parte do referente (amputee).A entidade que está em conformidade com os três fatores acima é aentidade 2 em (17), “a entidade apresentada” (presentee).Parte-se agora para os dados do português referentes às formaçõesadjetivas em –vel, sufixo que tem origem no latim, –abilis, ‘passível de’. Emgeral, esse sufixo liga-se a verbos, mas há várias exceções quanto à escolhada base para a sufixação. 11 Basilio (2002, p. 57) aborda o que chamou de“fenômeno de extensão de base” das formações em –vel, ao reconhecer que abase para a sufixação pode ser tanto verbal quanto nominal. A esse respeito,Lobato (2010, p. 54) assume que, para a formação adjetiva em –vel, não énecessária “certa base verbal com argumento externo e interno, mas sim ainterpretação da relação semântica em questão”. Abre-se, assim, apossibilidade de que a base seja nominal, desde que esta seja capaz deestabelecer uma relação semântica com o sufixo análoga à relaçãoestabelecida pela base verbal.11Um dos aspectos relevantes na interpretação das formações em –able e –vel é o damodalidade. A forma payable (pagável) do inglês, por exemplo, recebe duas interpretações: 1.required to be payed; due e 2. able to be paid (New Oxford American Dictionary). Na primeiraacepção, a ideia é de ‘dever/necessidade’; na segunda, de ‘possibilidade’._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.45


Quanto ao fenômeno da extensão de base das formações em –vel paraas formas nominais, Basilio (2002) trata especificamente dos casospresidenciável, ministeriável, prefeitável e reitorável. A autora conclui que,apesar de a base não ser verbal, a formação com os nomes tem funçãoidêntica à de base verbal, caracterizando “algo ou alguém como pacientepotencial”. Para Basilio (2002, p. 58), não são quaisquer nomes que podemservir de base para a sufixação, “mas apenas aqueles correspondentes acargos ou funções 12 . Este particular nos indica que a disponibilidade paraformações em –vel vem de um fator semântico, em oposição a fatoresmorfológicos ou sintáticos”.Salles e Mello (2004, p. 3) propõem a formulação de critérios semânticosem termos sintáticos para analisar os adjetivos em –vel atestados emportuguês, ainda que suas bases verbais não estejam dicionarizadas. Asautoras abordam as mesmas formas propostas por Basilio (2002)(presidenciável, prefeitável, reitorável); no entanto, propõem que essesadjetivos sejam formados a partir de estrutura causativa analítica, constituídado auxiliar causativo e do nome que designa a função ou cargo (presidente,prefeito, reitor). Salles e Mello (2004, p. 12) propõem que o adjetivopresidenciável seja derivado a partir da estrutura representada abaixo em (19):(19) O povo fez Lula presidenteAs autoras argumentam que o critério semântico não dá conta dadiferença entre nomes como ‘presidenciável’ e ‘gerenciável’, ambos formados apartir de nomes de cargos/ funções, respectivamente ‘presidente’ e ‘gerente’,mas somente o primeiro é derivado na estrutura causativa perifrástica. Emparticular, notam que, diferentemente do ‘presidenciável’, o argumento internode que nomes como ‘gerenciável’ predicam não é o argumento interpretadocomo ocupante do cargo, pois este não é o paciente, mas coisa gerenciada: obanco é gerenciável/ o gerente gerencia o banco. Nesse sentido, no caso de‘presidenciável’, a estrutura perifrástica capta a interpretação de ‘paciente/tema’ associada ao argumento ocupante do cargo, o que permite compararessa formação à de verbos denominais, como ‘petrificar’, que denotam uma12 Enquanto presidenciável, reitorável e prefeitável claramente fazem referência a um cargo oufunção, (presidente, reitor e prefeito), ministeriável é transparente o bastante para serassociada ao lugar, ministério, não ao cargo ou função de ministro (*ministrável). Ainda que ainterpretação de ministeriável seja claramente ligada ao cargo de ministro, a formulação quantoao critério de cargo ou função, se considerada com rigor, não se aplicaria a essa formação._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.46


mudança de estado, e que geram o adjetivo em –vel ‘petrificável’. As autorasacrescentam que um requisito para a formação de adjetivos em –vel a partir debases nominais como ‘pedra’ e ‘presidente’ é que tais nomes descrevampropriedades da estrutura do objeto de que predica, no sentido material ouabstrato – o que autoriza a interpretação de mudança de estado.Assumindo-se que presidenciável predica do argumento interno daestrutura causativa, outro aspecto relevante é que a imposição sugerida porBasilio (2002) de que os nomes que servem de base à sufixação em –vel serefiram a cargos ou funções não se aplica aos exemplos já mencionados em(1b), em que carroçável (que se pode atravessar com uma carroça) e colunável(que pode figurar nas colunas sociais) apresentam bases nominais que não sereferem a cargo ou função, carroça e coluna social.Esses dois casos seguramente representam contra-exemplos para osquais podem ser feitas ressalvas, uma vez que são marginais e pouco usuaisna língua, fruto antes de pesquisa lexicográfica do que de vocabulário de uso.Outro exemplo é o de confortável, para o qual se pode propor como hipóteseinicial que também seja gerado com base nominal (conforto). As evidênciasque levam a considerar essa hipótese são as seguintes: tomando-se comocorreta a afirmação de Basilio (2002) de que o sufixo –vel caracteriza algo oualguém “paciente potencial em relação à base (ou ao verbo base)”, se oadjetivo tivesse como base o verbo confortar, não seria possível formular umasentença como (20) a seguir:(20) O sofá é confortávelEm (20), sofá não é interpretado como o paciente do verbo confortar,mas como algo que “proporciona conforto físico, comodidade”. A hipótese deque confortável é formado com base nominal, no entanto, não explica asentença (21) a seguir:(21) O menino está confortávelEm (21), menino não possui a qualidade de “proporcionar conforto”, masé “paciente potencial em relação à base”. Observa-se, assim, que o adjetivoconfortável parece se relacionar tanto à forma verbal confortar quanto à formanominal conforto. Observação que está de acordo com o que o dicionárioregistra para o adjetivo: “1. passível de ser confortado; consolável; e 2. que_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.47


proporciona conforto físico, comodidade”, ainda que a intuição quanto àacepção 1 não seja muito clara, sendo a acepção 2 a mais comum.Similarmente, a interpretação de um adjetivo como durável parece serelacionar tanto a um tipo de “intensificação” do evento denotado pelo verboquanto à contraparte nominal durabilidade, como mostram os dados (22) 13 :(22) a. A pilha é durável (A pilha dura muito tempo / temdurabilidade)b. O material é durável (O material dura muito tempo /tem durabilidade)c. *O filme é durável (O filme dura três horas)Os dados logo acima mostram que a interpretação do adjetivo relacionaseao aspecto do evento que é expresso pelo verbo, assim como à modalidade.Em (a) e (b), a interpretação de durável refere-se ao aspecto do eventoexpresso pelo verbo durar. Em (a) e (b), pode-se forçar a interpretação de que‘pilha’ e ‘material’ têm duração estimada, o que implica uma leitura atélica; jáem (c), ‘filme’ tem uma duração medida com exatidão, sugerindo que ainterpretação télica é incompatível com as propriedades do adjetivo. A hipóteseé a de que a não aceitabilidade de (c) refira-se à interação entre o sufixo e aspropriedades aspectuais do predicado.Como atestado nos dados discutidos do inglês, os casos menosproblemáticos são aqueles em que –vel se liga a verbos que admitemapassivação. Estes estão de acordo com a intuição dos autores queassociaram essas formações à passiva:(23) a. quebrável: pode ser quebradob. lavável: pode ser lavadoc. dispensável: pode ser dispensadoA partir das considerações feitas para o sufixo –able, pode-se dizer queas formações em –vel envolvem uma derivação sintática similar à passiva?Elas apresentam a produtividade e a regularidade semântica que se espera deuma derivação sintática? Conforme Kayne (1984 apud Baker, 2003) mostra13Em (22), observa-se que ‘filme’ pode ter duração previsível, enquanto ‘pilha’ e ‘material’ nãonecessariamente. Nesse caso, parece haver algo entre o sufixo e aspecto ou modalidade doevento. Agradeço à Rozana Naves por essa observação._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.48


para o inglês, essas formações admitem a introdução de uma by-phrase, comoem (10), reproduzido a seguir em (24a)? Os exemplos encontram-se a seguirem (24b-e): 14(24) a. This book is readable by a 10-year oldb. ?O carro é lavável por um menino/pelo meninoc. ?A falta/multa é justificável por um aluno/pelo alunod. ?O vaso é quebrável pelo menino/por um menino/peloventoe. ?A prova é dispensável por um aluno/pelo alunoAlém de confortável, há outros adjetivos em –vel formados com base emverbos psicológicos, que apresentam peculiaridades, como agradável; amável;apaixonável; aterrorizável; desprezível; detestável; espantável etc. Essesadjetivos recebem interpretação diferente do grupo apresentado em (23), comomostram os dados seguintes em (25):(25) agradável: que agrada, satisfazamável: 1. que merece afeto/amor; digno de ser amado; 2. quedemonstra delicadezaapaixonável: suscetível de se apaixonaraterrorizável: passível de aterrorizaçãodesprezível: que merece desprezodetestável: digno de ser detestado, que inspira aversãoespantável: que causa espanto; espantosoOs dados em (25) 15 instigam a busca pela determinação dos traços dabase que são levados adiante na derivação desses adjetivos. Especificamente14 Os julgamentos refletem a minha intuição. Outros julgamentos me foram indicados: no casode ‘d.’, por exemplo, o indefinido parece favorecer a leitura, combinando com a ideia de‘possibilidade’; o exemplo ‘c.’ também parece admitir a leitura de que a multa é tão ‘simples’que poderia ser justificada por qualquer pessoa, um menino, um aluno.15Independentemente de o verbo ser Experienciador Sujeito ou Experienciador Objeto naversão transitiva, o sufixo –vel parece se ligar ao argumento interno (como observado porRozana Naves). Uma exceção é o caso de espantável, que se liga ao argumento externo e tema interpretação de espantoso (João espanta Maria: João é espantável/*Maria é espantável) –de acordo com o dicionário. Esse dado tem de ser futuramente testado, pois não parece seresta a leitura disponível para alguns falantes, para os quais, ao contrário, a interpretação seriaa de que Maria é espantável, incluindo-se nessa interpretação um caráter modal: “se espantacom facilidade”._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.49


porque há casos em que, de forma clara, se perde a noção de paciente, comoé o caso de agradável e espantável. Nesses casos, os adjetivos referem-se aosujeito, não ao objeto. Em (26) observa-se, ainda, que a distribuição dosadjetivos em –vel na sentença com os verbos ser/estar varia:(26) a. O tecido é lavável / *O tecido está lavávelb. O material é quebrável / * O material está quebrávelc. João é agradável/ João está agradáveld. O sofá é confortável/ O sofá está confortávelA respeito da distribuição de adjetivos em –vel formados a partir debases verbais psicológicas, considere-se ainda os dados em (27), quepredicam de eventos (realizados como orações):(27) a. Caminhar no parque é agradávelb. Fazer a prova é dispensávelc. Dormir na rede é confortávelNão é possível construir sentenças desse tipo com os adjetivosapresentados em (23a-b), formas consideradas mais regulares. Ageneralização parece ser que formações regulares não predicam de eventos,mas tão-somente de argumentos que descrevem entidades.Na comparação com os dados do inglês, há também o caso dos verbosque recebem complemento introduzido por preposição, e que geram adjetivosem –vel, como (28a-c), exemplos também fogem à regra que presume apreferência por bases verbais que permitem apassivação. Noentanto,diferentemente do inglês, nem todos os verbos preposicionados emportuguês permitem a contraparte adjetiva (28e-g) (exemplos extraídos deSALLES e MELLO: 2004, p.10):(28) a. acreditar em: acreditávelb. gostar de: gostávelc. confiar em: confiávele. depender de: *dependívelf. desistir de: *desistívelg. insistir em: *insistível_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.50


4 Considerações finaisNeste artigo, abordamos questões da morfologia derivacional queenvolvem mudança de categoria lexical e sensibilidade à categoria lexical naformação de palavras por derivação. A discussão concentrou-seprimordialmente nas formações adjetivas em –able e –vel, do inglês e doportuguês, respectivamente, mostrando que, para ambos os sufixos, não épossível determinar uma única base para a sufixação. Os dados investigados,bem como as análises já propostas na teoria, apontam para aspectos queainda precisam ser investigados a respeito dessas formações. É consenso queas raízes não podem ser interpretadas livremente, estando submetidas àimposição de que devem se ligar a um núcleo funcional que definirá suaidentidade categorial. No entanto, não há consenso a respeito de qual é opapel das raízes e da estrutura funcional na construção do significado dapalavra formada. Como os dados mostraram ao longo do trabalho, há casosem que a base que serve de sufixação apresenta comportamento regular eprevisível, e casos em que, ainda que a base seja uma palavra categorizada nalíngua, observa-se um comportamento imprevisível. Fica clara, assim, anecessidade de se estabelecer qual é o papel da base e do sufixo nainterpretação das formações adjetivas geradas. O estudo aprofundado dessasformações poderá trazer fundamentação para o debate quanto à natureza dosprocessos morfológicos e ao lugar da morfologia na gramática.ReferênciasARONOFF, M. Morphology by Itself: Stems and Inflectional Classes.Cambridge, Massachusetts, London, England: The MIT Press, 1994.ARONOFF, M. Word Formation in Generative Grammar. The MIT Press, 1976.BAKER, M. C. Lexical Categories – Verbs, Nouns, and Adjectives. CambridgeUniversity Press, 2003.BARKER, C. Episodic –ee in English: a thematic role constraint on new wordformation. Language, 1998. Disponível em:.Acesso em: 10 jun. 2012._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.51


BASÍLIO, M. Teoria Lexical. São Paulo: Ática, 1987.CAMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. 20. ed. Editora Vozes: Riode Janeiro, 1991.CHAPIN, P. G. On the syntax of word-derivation in English. Massachusetts:MIT, 1967. 198f. Tese (Doutorado em Linguística). Departamento deLinguística e Filosofia, MIT, Massachusetts, 1967.CHOMSKY, N. Studies on Semantics in Generative Grammar. MoutonPublishers, The Hague, The Netherlands, 1970.DI SCIULLO, A. M.; WILLIAMS, E. On the Definition of Word. The MIT Press,1987.FABB, N. A. J. Syntactic affixation. Massachusetts: MIT, 1984. 264f. Tese(Doutorado em Linguística). Departamento de Linguística e Filosofia, MIT,Massachusetts, 1984. Disponível em: .Acesso em: 10 jun. 2012.HALLE, M.; MARANTZ, A. Distributed Morphology and the Pieces of Inflection.In: HALE, K.; KEYSER, S. (Eds.). The View From Building 20. CambridgeMass: MIT Press, 1993. p. 116-176.HARLEY, H.; NOYER, R. State-of-the-article: Distributed Morphology. 1999.Disponível em: . Acesso em: 1 jul. 2012.ed.HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versãomonousuário 3.0. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, Ltda., 2009.LOBATO, L. A construção de palavras e a arquitetura da faculdade dalinguagem. Coleção Lucia Lobato, volume 1. Brasília: Link Comunicação eDesign, 2010.MARANTZ, A. No escape from syntax: don’t try morphological analysis in theprivacy of your own lexicon. 1997. Disponível em: .Acesso em: 10 jun. 2012._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.52


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FAZEN<strong>DO</strong> SENTI<strong>DO</strong> NA AUSÊNCIA <strong>DE</strong> SENTI<strong>DO</strong> <strong>DO</strong> POEMA“JABBERWOCKY”Clarice Melo FerreiraResumo: “Jabberwocky” de Lewis Carroll, presente no livro Através do Espelhoe o que Alice encontrou por lá, é considerado um dos maiores poemasnonsense em inglês. Este trabalho analisa o poema baseado em comentáriosdo próprio autor e através de uma pesquisa dos significados de suas palavrasincoerentes e neologismos em dicionários da língua inglesa. Ao confrontar aanálise com a teoria da construção de sentido, o artigo leva em consideração ateoria do nonsense e o sentido da palavra poética para desvendar a relevânciado significado das palavras no contexto poético do nonsense. Aborda ainda aparticipação de outros elementos estruturais inerentes à poesia e a importânciado que a palavra não significa na construção do sentido.Palavras-chave: Construção do sentido. Nonsense. Significado das palavras.Abstract: “Jabberwocky” by Lewis Carroll, from Through the Looking Glass andWhat Alice Found There, is considered one of the greatest nonsense poems inEnglish. This paper analyses the poem based on the author’s own commentsand through dictionary search for the meaning of its incoherent words andneologisms. When it confronts the analysis to the theory of construction ofsense, this work takes into consideration the theory of nonsense and the senseof the poetic word in order to reveal word meaning relevance in the poeticcontext of nonsense. It also approaches the role of other structural elementsinherent to poetry and the importance of what the word does not mean.Keywords: Construction of sense. Meaning of words. Nonsense.1 INTRODUÇÃONa literatura nonsense, Lewis Carroll é um nome de destaque. Ele criouum mundo fantástico onde situações aparentemente sem sentido, nunca antes_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.54


imaginadas, desenvolvem-se no desenrolar de belas e envolventes histórias. Aconfusa Alice aos poucos aprende que as regras de lógica e coerênciaaprendidas no lugar de onde ela veio são as verdadeiras coisas sem sentido noPaís das Maravilhas. Quando uma nova aventura a leva para um mundoatravés de um espelho, mais uma vez Alice tem que desvendar as leis queregem o local.É nesse contexto que encontramos “Jabberwocky”, importante poemanonsense da língua inglesa, que se encontra completo no Anexo A destetrabalho. Inicialmente parecia uma língua desconhecida, mas logo a meninaentende que os versos estão ao contrário. “Ora, este é um livro do Espelho,claro! E se eu o segurar diante de um espelho as palavras vão aparecer todasna direção certa de novo” (CARROLL, 2002, p. 143). Porém não foi o bastantepara tornar o poema inteligível. Recheado de palavras incoerentes eneologismos, “Jabberwocky” deixa Alice atônita, mas encantada: “Parece muitobonito, mas é um pouco difícil de entender!” (CARROLL, 2002). É interessantenotar aqui que o poema escrito por Carroll obedece à sintaxe inglesa, segue overso pentâmetro iâmbico, típico inglês, e talvez por isso tenha soado tão beloa Alice, apesar da menina não conseguir apreender o significado dos versos.Será essa a reação que Carroll esperava causar no seu leitor?Figura 1: A primeira estrofe do poema como apareceu para AliceFonte: Carroll (2000)O foco deste trabalho na análise do poema “Jabberwocky” sãoexatamente as palavras nonsense presentes no texto. Tomando como ponto departida noções da teoria da construção do sentido e sua relação com o mundononsense, esta análise se utiliza de pesquisa feita em diversos dicionários a fimde investigar se é possível fazer senso dos neologismos do autor inglês a partirde outros itens do léxico inglês. São extremamente valiosos os comentários dopróprio Carroll acerca dos significados de suas palavras, mas sua relutância_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.55


em esclarecer certos termos levanta a dúvida sobre até que ponto suasexplicações seriam exatas.Outras características do poema são abordadas, como seus elementostipicamente poéticos e os inegavelmente narrativos. “Jabberwocky” não sedestaca apenas por suas palavras incoerentes, mas também pela mistura deaspectos tradicionais e inovadores. Diante das idiossincrasias do poema,busca-se desvendar a importância do significado dessas palavras nacompreensão textual.2 CONSTRUÇÃO <strong>DE</strong> SENTI<strong>DO</strong>A construção de sentido é um processo dinâmico, uma vez que “osentido não está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de umainteração” (KOCH, 2005). Em contato com um texto, o leitor precisa recorrer aseu conhecimento de mundo assim como a seu conhecimento linguístico a fimde que o sentido seja estabelecido. A barreira mais evidente que podeencontrar nesse processo é no campo léxico, por isso a busca pelo significadodas palavras parece ser uma estratégia importante da compreensão textual.Eduardo Guimarães destaca dois aspectos da obra de Bréal (1883 apudGUIMARÃES, 2005, p. 13) que colocam em xeque essa estratégia: “1)questões de significação não podem ser tratadas pela via etimológica, maspela consideração de seu emprego; 2) é preciso considerar a palavra nas suasrelações com outras palavras, no conjunto do léxico, nas frases em queaparecem.” O significado das palavras é construído primeiro pela relação deuma palavra com as outras da sentença e em seguida pelo contexto no qual apalavra é empregada. Guimarães aponta ainda o problema do cortesaussuriano. Ao estabelecer que o que interessa é o valor do signo, constituídopor uma relação interna ao sistema, significante e significado, Saussure excluio referente, o mundo, o sujeito e a história da construção do sentido.Entender que a linguagem pode ir além dos aspectos linguísticos,porém, não é necessariamente libertá-la de certas regras e padrões. Acoerência textual, elemento fulcral da construção do sentido e do próprio texto,existe diante da possibilidade de se estabelecer a relação existente entre seuselementos. Koch e Travaglia (2003) argumentam que, apesar de não sebastarem para a compreensão, a importância dos elementos linguísticos e dosignificado, particularmente, nesse ponto é indiscutível. São elementos quepodem servir de gatilho para reavivar os conhecimentos armazenados na_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.56


memória ou para elaboração de inferências (KOCH; TRAVAGLIA, 2003).Talvez por isso Carroll tenha mantido em seus textos, como aponta Deleuze(2011), certo rigor sintático e gramatical, deixando suas invenções para ovocabulário.No caso do significado das palavras, pode-se imaginar que quanto maioro conhecimento linguístico do leitor, maior sua capacidade de decodificar aspalavras e deixá-las agir como gatilho. Contudo, pode-se perceber que Carrollentendia o sentido como algo mais abrangente que a mera significação nopoema “Jabberwocky”, que aparece em Através do Espelho, onde a construçãode sentido se mostra inegavelmente de vanguarda.2.1 O NÃO-SENTI<strong>DO</strong> <strong>DO</strong> NONSENSE“Vamos fazer de conta que o espelho ficou todo macio, como gaze, parapodermos atravessá-lo” (CARROLL, 2002, p. 138). É assim, fazendo de conta,que Alice embarca em uma nova aventura. Da mesma maneira, fazendo deconta, encaramos o mundo do nonsense. Defini-lo ainda é um desafio. GillesDeleuze (1990) estabelece que a relação entre sentido e nonsense não écomparada àquela entre verdadeiro e falso, ou seja, não pode ser entendidaem uma relação de exclusão. Por isso não é possível conceber o nonsensecomo a ausência de sentido. Ele é a negação do sentido. Uma negação remetesempre a uma afirmação. Assim, o nonsense afirma o sentido paradoxalmente.(<strong>DE</strong>LEUZE, 1990).Assim, é possível entender melhor a afirmação de Michael Holquist(1992, p. 390) de que nonsense “não é o caos, mas o oposto do caos”. Mais àfrente o professor estabelece uma importante distinção entre nonsense eabsurdo. Para ele, o absurdo joga com a ordem e a desordem, apontandodiscrepâncias entre valores puramente humanos e valores puramente lógicos.O nonsense, por sua vez, trata apenas da ordem, apontando contrastes entreum sistema de ordem e outro sistema de ordem (HOLQUIST, 1992). Holquistdefende que, por ser sistemático, o sentido do nonsense pode ser apreendido.Quando o Lírio-tigre explica a Alice que as flores de outros jardins nãofalam porque os canteiros são fofos demais e elas estão sempre dormindopercebe-se que há lógica naquele mundo, há leis que o regem e que sãoentendidas pelas criaturas que o habitam. Apesar do estranhamento doprimeiro contato, Alice logo percebeu que o livro do Espelho estava invertido eque precisaria de um espelho para ver as palavras na direção certa. O leitor_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.57


mais atento também logo entende o conselho que a Rosa dá a Alice: nessemundo invertido, através do espelho, é preciso ir à direção contrária paraencontrar alguém. Como em um jogo, precisamos estar dispostos aestabelecer as mais diversas associações e estar receptivos às diferentesrelações que se apresentam diante de nós.2.2 A PALAVRA POÉTICA E A POESIA NONSENSE“Seja como for, parece encher minha cabeça de ideias... só não seiexatamente que ideias são” (CARROLL, 2002, p. 145). Segundo MartinGardner (2002), é nessa fala de Alice que se encontra o segredo doencantamento do poema “Jabberwocky”, pois “embora não tenham nenhumsentido, as palavras estranhas se harmonizam com sugestões sutis”(GARDNER, 2002, p. 146).A linguagem poética traz em si uma liberdade que desafia os limites dosentido e re-significa o signo. Qual seria então o sentido da palavra poética?Não é possível atribuir à palavra poética apenas um papel significativo ou umsignificado preciso. No poema a palavra deixa de ser uma unidade da categorialexical e se destaca através de outros fatores como seu ritmo, sua sonoridade,e principalmente pela forma como se relaciona com as outras palavras. Aharmonização observada por Gardner em “Jabberwocky”.É possível inferir que a rigidez com que Lewis Carroll trabalhou a formade seu poema é a grande responsável pela sensação de sentido que os versospassam ao leitor. Não há desafios à norma culta da língua inglesa, as rimassão bem amarradas e o tamanho dos versos, consistentes. As provocaçõespropostas por Carroll estão todas em suas palavras.Assim, enquanto a linguagem poética desafia os limites do sentido, alinguagem poética nonsense os extrapola, superando o próprio sentido. Opoeta nonsense é comparado ao pintor abstrato ao sugerir significados vagossem reproduzir as cores e formas agradáveis da realidade (GARDNER, 2002).Como defende Novalis (apud TINIANOV, 1975), “pode-se imaginar poemascheios de belas palavras, mas sem nenhum sentido ou nexo, e somente estaou aquela estrofe serão compreendidas como partes independentes”. IuriTinianov (1975) nos chama a atenção para a exigência de “belas palavras”,indicando a importância do som sobre o sentido. Em uma passagem doprimeiro livro escrito por Lewis Carroll, o rei pergunta ao príncipe o significado_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.58


de uma palavra e o príncipe responde: “Não sei dizer, meu senhor, senão quese encaixa mais adequadamente na métrica” (GARDNER, 2002, p. 148).3 O NOVO VOCABULÁRIO <strong>DE</strong> CARROLL“Posso explicar todos os poemas que foram inventados – e muitos queainda não o foram” (CARROLL, 2002, p. 205). Humpty Dumpty não chega aexplicar “Jabberwocky” a Alice, mas oferece significado para todas as palavrasintricadas da primeira estrofe e a menina parece ficar satisfeita com isso.Sabemos, assim, que bryllig (briluz) 16 é derivado do verbo to broil e se refere às4 da tarde – quando começa-se a cozinhar (broil) o jantar; slythy (lesmolisas) écomposto de slimy e lithe e significa liso e ativo; tove (touvas) é uma espéciede texugo; gyre (roldavam) é um verbo que quer dizer girar e girar como umgiroscópio; gymble (relviam) vem de gimblet e significa furar buracos em tudo;wabe (gramilvos) são os canteiros de grama em volta de um relógio de sol;mimsy (mimsicais) vem de flimsy e miserable e significa infeliz; borogove(pintalouvas) é um tipo de pássaro magrelo com aparência surrada; mome 17 éabreviação para from home, fala de alguém que perdeu seu caminho; rath 18 ,uma espécie de porco verde; e outgrabe (grilvos) é o passado do verbooutgribe e é “algo entre estridular, guinchar, cricrilar, estrilar, estrilar e assobiarcom uma espécie de espirro no meio” (CARROLL, 2002).A primeira e última estrofe de “Jabberwocky” se repetem. Os versosenigmáticos são:'Twas brillig, and the slithy tovesDid gyre and gimble in the wabe;All mimsy were the borogoves,And the mome raths outgrabe(CARROLL, 2000, p. 148)Ela pode então ser traduzida como: Era 4 da tarde, e os texugos lisos eativos estavam girando e girando e furando buracos na grama em volta dorelógio de sol; muito infelizes estavam os pássaros magrelos; e os porcos16 As traduções do poema “Jabberwocky” apresentadas são de Augusto de Campos por suapreocupação em manter a mesma atmosfera do poema original. Mantivemos a forma comoaparecem no poema, por isso pode haver mudança de classe gramatical ou tempo verbal. Atradução completa encontra-se no Anexo B deste trabalho.17 Augusto de Campos traduz os termos mome e rath como uma única palavra: momirratos.18 Idem._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.59


verdes perdidos guinchavam. Já havia uma indicação que os versos parecemestabelecer o cenário da ação narrada no poema; falar de texugos lisos eativos, pássaros infelizes e porcos verdes que guinchavam, porém, nãoadiciona muito significado à compreensão geral.As outras estrofes do poema diferem dessa primeira no uso maismoderado das palavras nonsense. Podemos não conhecer o significado devorpal, mas sabemos que se refere a uma espada. Como uma criança adescobrir as palavras, a interrogação nos leva ao dicionário. A busca nos deixasem resposta entre os verbetes voracious e vortex (PENGUIN, 2006), contudo.Voltamos ao texto de Carroll (2000, p. 149): “He took his vorpal sword inhand” 19 e percebemos a aproximação entre vorpal e mortal. Por que não usar asegunda opção, com o mesmo número de sílabas, mesma sonoridade? Porqueuma vorpal sword não é simplesmente uma espada mortal – é mais que isso. Oquê? Não importa realmente. É um novo conceito apresentado.Na segunda estrofe, o personagem é avisado a evitar (shun) oBandersnatch e o chama de frumious. Se é preciso evitá-lo, entendemos quefrumious não pode ser uma qualidade positiva e somos remetidos a furious.Novamente não se pode considerar uma mera relação de sinonímia entre aspalavras. No prefácio de outro poema nonsense, Carroll (2004) explica queoutro significado está contido em frumious: fuming, aquele que emite um tipode gás venenoso ou irritante. Esse novo tipo de palavra, que abarca o conceitode duas ou mais outras palavras, mas não cria um novo significado, foi criadapor Carroll e é chamada de palavra-valise (em inglês portmanteau word). Daprimeira estrofe de “Jabberwocky”, slythy e mimsy são outros exemplos depalavra-valise.Seguindo o mesmo caminho, suspeitamos de uma conotação negativapara manxome, uma vez que caracteriza o inimigo (foe): “Long time themanxome foe he sought”(CARROLL, 2000, p. 149) 20 . À primeira vistaprocuramos nela uma palavra-valise. Primeiramente identificamos man, oumanly, alusivo ao que tem qualidades consideradas masculinas. A busca porpalavras terminadas em –xome foi mais difícil. William Long (2007) sugere quea segunda palavra seja buxom, que na Idade Média significava despreocupado,animado (hoje em dia refere-se a uma mulher corpulenta) (PENGUIN, 2006). Oadjetivo nonsense parece, assim, caracterizar a criatura Jabberwock comoconfiante de que não corre perigo. O significado, porém, não condiz com apostura do Jabberwock na terceira estrofe – a criatura vai ao encontro de seu19 “Ele arrancou sua espada vorpal” (CAMPOS, 1980)20 “E foi atrás do inimigo do Homundo.” (CAMPOS, 1980)_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.60


adversário, pronta para a batalha – nem tampouco representa uma palavravalise,pois as duas palavras originais unidas estariam criando um novosignificado. Como esta foi uma das palavras para as quais Carroll não ofereceuexplicações, pode-se adotar a conotação negativa para manxome indicada pelocontexto semântico das palavras próximas a ela e prescindir de seu significado.Uffish thought, que aparece na quarta estrofe – “And, as in uffish thoughthe stood” (CARROLL, 2000, p. 149) 21 – foi um tipo de pensamento (thought)impossível de ser desvendado. O dicionário não nos ofereceu muitas pistasalém do sufixo -ish que forma adjetivos a partir de substantivos ou de outrosadjetivos. Contudo não foi possível encontrar o verbete uff nos dicionários nemqualquer palavra que se aproximasse. Apenas o próprio Carroll poderiaesclarecer esse caso e a explicação para uffish está no som das outraspalavras da qual se origina: “Parece sugerir um estado de espírito em que avoz está um pouco rouca, a maneira um pouco bruta e o temperamento umpouco raivoso” 22 (CARROLL, 1877 apud GARDNER, 2000, p. 153).No mesmo trecho em que explica uffish, Carroll diz que não podeoferecer uma explicação para tulgey wood. Mais uma vez é possível pensar emuma palavra-valise. Ao buscar na Internet palavras terminadas em -gey foiencontrada a palavra fogey que refere-se ao que está fora de moda ou aotradicional e, por dar uma característica a uma floresta, é possível pensar emtradicional como antigo e pensar em uma floresta antiga, com árvores bemdesenvolvidas. A busca por palavras iniciadas em tul- ou similares mostrou-seinfrutífera, mas tendo aprendido com Carroll, através da definição de uffish, aimportância dos sons, pode-se tul- ao advérbio de intensidade too e visualizaruma floresta antiquíssima, densa, escura e assustadora. Obviamente a palavranão se caracteriza como uma palavra-valise, mas a estratégia mostrou-seválida.A palavra composta snicker-snack parece ser usada para descrever omovimento da espada vorpal: “The vorpal blade went snicker-snack!”(CARROLL, 2000, p. 149) 23 . Seria simples de atribuir um significado a ela se ossignificados de cada palavra que a compõe fizessem sentido no contexto – mastambém nesse caso ela não seria uma palavra nonsense. Snicker é umamaneira específica de rir (frequentemente ridícula) e snack é uma pequenarefeição, um lanche, ou o ato de consumi-la. Ou seja, o significado das21 “E enquanto estava em sussustada sesta” (CAMPOS, 1980)22 “It seemed to suggest a state of mind when the voice is gruffish, the manner roughish, andthe temper huffish”. As traduções que não envolvem os textos poéticos são nossas.23 “Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!” (CAMPOS, 1980)_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.61


palavras nada tem a acrescentar. Uma rápida pesquisa na Internet, contudo,mostra que ao invés de aludir ao movimento da espada, snicker-snack podeser o som que a lâmina produz durante o movimento, como uma onomatopeianonsense. Essa teoria é amplamente aceita entre os falantes de língua inglesae a definição correspondente já consta nos dicionários informais online.A tentativa de descobrir o significado de galumphing, presente no últimoverso da quinta estrofe, trouxe um resultado inesperado: lá estava, entre galoshe galvanic (PENGUIN, 2006), devidamente creditada a Lewis Carroll. A palavradescreve a maneira triunfante que o herói galopa depois de matar a fera:galumph /gə’lumf/ verb intrans informal to stride along or boundaround with exuberant din: He left it dead, and with its head he wentgalumphing back. – Lewis Carroll. >> galumphing adj. [prob fromGALLOP + TRIUMPHANT; coined by Lewis Carroll d. 1898, English writer]Entretanto galumphing não foi a única palavra encontrada no dicionário.Segundo Long (2007), o Oxford English Dictionary, aparentemente o únicodicionário que contém este verbete, diz que frabjous, no terceiro verso da sextaestrofe, significa fair (em português, justo) ou joyous (em português, alegre).Em sua versão online, os dicionários da Oxford (2012) oferecem as palavrasdelightful e joyous como definição de frabjous e explicam sua origem: “criadapor Lewis Carroll em Através do Espelho, aparentemente para sugerir justo ealegre” 24 . Se ficarmos apenas com a definição do dicionário o significado de fairse perde, portanto, frabjous é uma palavra-valise e precisamos dos doissignificados, justo e alegre, para defini-la.Assim como galumphing e frabjous, chortled, do último verso da sextaestrofe, também encontrou seu caminho para os dicionários, no modo infinitivo.A edição da Penguin (2006) define como “rir ou dar risada, especialmente comsatisfação ou júbilo” 25 . A versão online da Oxford (2012) diz que chortle é “rirde maneira barulhenta, alegre” 26 . Ambas creditam a criação da palavra aCarroll e dizem que é uma mistura de chuckle (dar risada) e snort (bufar).24 “coined by Lewis Carroll in Through the Looking Glass, apparently to suggest fair andjoyous”.25 “to laugh or chuckle, especially in satisfaction or exultation”.26 “laugh in a noisy, gleeful way”._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.62


3.1 SERES E MONSTROSÉ pertinente ressaltar que na construção de sentido em “Jabberwocky” oconhecimento prévio do leitor acerca de monstros e heróis representa umimportante papel. Encontramos, no poema, o próprio Jabberwock, o pássaroJubjub e uma criatura chamada Bandersnatch. Nenhuma descrição é dadasobre a aparência física dos seres, mas apreende-se a periculosidade deles apartir dos versos “Beware the Jabberwock, my son! / The jaws that Obite, theclaws that catch! / Beware the Jubjub bird, and shun / The frumiousBandersnatch!” (CARROLL, 2000, p. 148) 27 nos quais o herói é avisado paratomar cuidado (beware) com essas criaturas.Na ilustração original de John Tenniel, o Jabberwock é retratado comouma besta horrível com asas gigantes similares às de um morcego. O pássaroJubjub reaparece em The hunting of the snark, onde é descrito muito de seucomportamento, mas pouco de sua aparência. Deduz-se que se trata de umpássaro gigante e assombroso. O Bandersnatch também reaparece em Thehunting of the snark. Novamente não há uma descrição detalhada de suaaparência, mas a partir dessa obra é possível saber que o Bandersnatch temum longo pescoço e presas muito fortes (CARROLL, 2004).Figura 2: Ilustração do JabberwockFonte: Tenniel (2000)27 ““Foge do Jaguadarte, o que não morre! / Garra que agarra, bocarra que urra! / Foge da aveFelfel, meu filho, e corre / Do frumioso Babassurra!” (CAMPOS, 1980)_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.63


Outra questão relacionada aos seres que aparecem no poema de Carrollé a diferença entre o nome do monstro, Jabberwock, e o nome do poema,Jabberwocky. O sufixo –y em inglês é usualmente adicionado a substantivos everbos para formar adjetivos (PENGUIN, 2006). No poema de Lewis Carroll,podemos inferir que adjetivo formado indica que o herói precisou agir tãoferozmente quanto o monstro para enfim derrotá-lo.4 A LÍRICA NARRATIVANuma profusão de palavras nonsense, o leitor tende a se apegar àspalavras conhecidas em busca da total compreensão do poema. As palavrassword (espada), eyes of flame (olhos de fogo), dead (morto) e joy (alegria), porexemplo, dão a ideia de uma luta (sword), com um ser perigoso (eyes of flame),derrotado no final (dead e joy). Porém o sentido que as palavras ajudam aconstruir não se limita a seus significados.A construção em versos e, especialmente, a musicalidade de“Jabberwocky” não nos deixa dúvida de que se trata de uma composição lírica.Porém, como Helena Parente Cunha (1975) coloca, na essência lírica hásempre um eu que se expressa, tornando íntima a relação entre o eu e omundo. O que encontramos em “Jabberwocky”, contudo, é o distanciamentoentre o narrador e o mundo narrado, típico do gênero narrativo (CUNHA, 1975).O primeiro fenômeno estilístico (CUNHA, 1975) que podemos observarem “Jabberwocky” é o uso do tempo pretérito – e é interessante ressaltar aquique Carroll criou formas no passado inclusive para os verbos inventados porele, como outgrabe que é o passado de outgribe, e chortled que se apresentacomo passado de chortle. Além disso, pode-se observar que o poeta é umnarrador, narra ações das personagens, narra a luta em que o monstroJabberwock foi derrotado. A apresentação dos fatos obedece a um caráterprogressivo: identificamos facilmente a passagem do início para o clímax eentão o desfecho.Todas essas características mostram que os gêneros lírico e narrativo semisturam no poema de Lewis Carroll. Desta forma, é possível entender melhoros versos como uma sequência de acontecimentos._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.64


5 CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAISA teoria da construção de sentido e da coerência textual mostra que osignificado das palavras tem o seu papel na compreensão do texto, pois podemreavivar a memória ou servir de ponto de partida para construir deduções(KOCH; TRAVAGLIA, 2003). O significado sozinho, porém, não se basta paradesvendar o texto. Outros elementos como contexto e experiências do leitortambém devem ser levados em consideração.Mesmo sendo um elemento importante para a construção do sentido, asignificação é prescindível na teoria nonsense, que estabelece sua próprialógica. Essa lógica é difícil de ser apreendida, pois apesar de negar o sentido, ononsense não se opõe a ele (<strong>DE</strong>LEUZE, 1990). Percebe-se, inclusive, atravésdo estudo da poesia nonsense, que se trata de uma literatura carregada desentido. Porém, esse sentido está no som, no ritmo, na relação entre aspalavras, numa conjugação verbal, muito mais do que em um significado. Ospróprios comentários de Carroll mais confundem do que esclarecem – e não hádúvidas de que isso foi proposital. As explicações de Humpty Dumpty para aprimeira estrofe do poema, por exemplo, não a tornam nem um pouco maisacessível.Diversos estudiosos se dedicaram à busca pelo significado das palavrasnonsense de “Jabberwocky” (GARDNER, 2000). E ela se mostra, de fato, umbelo exercício etimológico que nos permite brincar com as possibilidadessemânticas apresentadas pelo texto. Diante do apresentado, porém,percebemos que o significado em si pouco tem a acrescentar à construção dosentido. O distanciamento entre o narrador e o mundo narrado, característicado gênero narrativo (CUNHA, 1975), revela mais sobre o poema do que osignificado de outgrabe. Muitas vezes é o não-significado das palavras quemuito tem a dizer – como saber que manxome não é uma qualidade positiva.Por fim, a questão da construção de sentido em “Jabberwocky” não se esgotaneste trabalho. Novas pesquisas podem ser feitas a fim de aprofundar eexplorar o assunto a partir de outras óticas.REFERÊNCIASCAMPOS, A. de. Tradução dos poemas. In: CARROLL, Lewis. Aventuras deAlice no país das maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou lá.Tradução de Sebastião Uchoa Leite. 9. ed. São Paulo: Summus Editorial, 1980._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.65


CARROLL, L. Alice: edição comentada. Tradução de Maria Luiza Borges. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 2002.______. The annotated Alice: The definitive edition. New York: Norton, 2000.______. The Hunting of The Snark. An agony in eight fits. Los Angeles: TigertailAssociates, 2004.CUNHA, H. P.. Os gêneros literários. In: PORTELLA, Eduardo et alii. TeoriaLiterária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 93-115.<strong>DE</strong>LEUZE, G.. The logic of sense. Londres: The Athlone Press, 1990.GARDNER, M. (Notas) In: CARROLL, Lewis. Alice. Edição Comentada.Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002______. (Introduction and notes). In: CARROL, Lewis. The annotated Alice: Thedefinitive edition. New York: Norton, 2000.GUIMARÃES, Eduardo. Os Limites do Sentido. Um estudo histórico eenunciativo da linguagem. 3 ed. Campinas: Pontes, 2005.HOLQUIST, M. What is a Boojum? Nonsense and Modernism. In: CARROL,Lewis. Alice in Wonderland. Organised by Donald J. Gray. 2. ed. New York:Norton Critical Editions, 1992, p. 388-398.KOCH, I. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. 15 e. São Paulo: Contexto:2003.KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. 8. ed. São Paulo: Contexto,2005.LONG, W. Jabberwocky. Dr Bill Long website, 2007. Disponível em. Acesso em: 20 out. 2012.OXFORD dictionaries. Oxford University Press, 2012. Disponível em:. Acesso em: 20 out. 2012._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.66


PENGUIN Complete English Dictionary. London: Penguin Books, 2006.TENNIEL, J. (Original illustrations). In: CARROL, Lewis. The annotated Alice:The definitive edition. New York: Norton, 2000.TINIANOV, I. O problema da linguagem poética II. O sentido da palavrapoética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1875.JABBERWOCKYLewis Carroll‘Twas brillig, and the slithy tovesDid gyre and gimble in the wabe:All mimsy were the borogoves,And the mome raths outgrabe.“Beware the Jabberwock, my son!The jaws that bite, the claws that catch!Beware the Jubjub bird, and shunThe frumious Bandersnatch!”ANEXO AHe took his vorpal sword in hand:Long time the manxome foe he sought --So rested he by the Tumtum tree,And stood awhile in thought.And, as in uffish thought he stood,The Jabberwock, with eyes of flame,Came whiffling through the tulgey wood,And burbled as it came!One, two! One, two! And through and throughThe vorpal blade went snicker-snack!He left it dead, and with its head_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.67


He went galumphing back.‘And, has thou slain the Jabberwock?Come to my arms, my beamish boy!O frabjous day! Callooh! Callay!’He chortled in his joy.‘Twas brillig, and the slithy tovesDid gyre and gimble in the wabe;All mimsy were the borogoves,And the mome raths outgrabe.’JAGUA<strong>DA</strong>RTETradução de Haroldo de CamposEra briluz. As lesmolisas touvasRoldavam e relviam nos gramilvos.Estavam mimsicais as pintalouvas,E os momirratos davam grilvos.“Foge do Jaguadarte, o que não morre!Garra que agarra, bocarra que urra!Foge da ave Felfel, meu filho, e correDo frumioso Babassurra!”Êle arrancou sua espada vorpalE foi atrás do inimigo do Homundo.Na árvora Tamtam êle afinalParou, um dia, sonilundo.ANEXO BE enquanto estava em sussustada sesta,Chegou o Jaguadarte, ôlho de fogo,Sorrelfiflando através da floresta,E borbulia um riso louco!_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.68


Um, dois! Um, dois! Sua espada mavortaVai-vem, vem-vai, para trás, para diante!Cabeça fere, corta, e, fera morta,Ei-lo que volta galunfante.“Pois então tu mataste o Jaguadarte!Vem aos meus braços, homenino meu!Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”Êle se ria jubileu.Era briluz. As lesmolisas touvasRoldavam e relviam nos gramilvos.Estavam mimsicais as pintalouvas,E os momirratos davam grilvos._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.69


AS TOA<strong>DA</strong>S <strong>DE</strong> BUMBA-MEU-BOI: SOCIABILI<strong>DA</strong><strong>DE</strong>S, CONFLITOS EASSOCIAÇÕESMarcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho 28Heridan Guterres Pavão Ferreira 29Denise Maria Soares Lima 30Resumo: O bumba-meu-boi, consagrado patrimônio imaterial do Brasil, écomposto por um conjunto de toadas, que compõem a cena musical de umadas mais belas e tradicionais manifestações do Maranhão. Esse artigopretende sobrepor a lógica de análise clássica do estudo das letras dessastoadas, buscando efetuar o estudo sobre os discursos presentes revelados nocotidiano dos sujeitos retratados nestas narrativas. Neste sentido, as toadassão marcadas por relações de poder que tanto expressam conflitos comosoluções. O discurso corrente mostra associações, sociabilidades e outrosmodos de integração, assim como a compreensão dessas manifestaçõesprotagonizadas por esses atores envolvidos podem conduzir a entenderproblemas sociais, bem como apontar possíveis soluções.IntroduçãoReligião e festas são temas importantes no cotidiano das camadaspopulares e denotam quais valores são considerados na formação de umaidentidade étnica e cultural. De modo especial no estado do Maranhão e emtodo o nordeste, religião e festas constituem tema de grande relevância na vidade muitas pessoas, as quais vêem suas rotinas modificadas no percurso doano, pela organização ou participação em festas e atividades como o bumbameu-boi.28 Professor da rede pública municipal e estadual do Maranhão, mestrando em Educaçãoda Universidade Católica de Brasília/DF e pesquisador da Cátedra UNESCO da mesmaUniversidade e do Grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA.29 Professora mestra, graduada em Letras e professora Assistente da Universidade Federal doMaranhão e pesquisadora do Grupo de Linguagens, Cultura e Identidades da UFMA.30 Professora, advogada, mestre em Educação da Universidade Católica de Brasília/DF epesquisadora da Cátedra UNESCO da mesma Universidade._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.70


As festas não representam somente momentos de lazer. Constituem-setrabalho árduo, porém prazeroso para aqueles que delas fazem parte e, no queconcerne ao bumba-meu-boi, isto não é diferente.Brincar bumba-boi não somente atrai como envolve as pessoas que deleparticipam, no Maranhão, esse envolvimento se dá por conta do ciclo juninoque começa logo após o carnaval e segue até meados de setembro. Esse é obumba-boi em seu plano ritual, que começa com o batizado que ocorre noinício de mês de junho; logo em seguida, se tem o período das brincadas, quevai do mês do começo do mês de junho, logo após o batizado do boi, até o finaldo mês de junho. Embora essa seja a configuração original das brincadas, nomês de julho tem-se a extensão desse período por mais um mês com o projeto“Vale Festejar”. Logo após as brincadas vem a morte do boi, também chamadada matança, palhaçada ou doidiceEsta brincadeira afrodescendente se tornou a mais expressivamanifestação cultural do estado, e sua diversidade é tão grande que ela édividida em categorias, que são chamadas de sotaque (AZEVE<strong>DO</strong> NETO,1997, REIS, 2000). O sotaque tenta organizar as brincadeiras, tentando assimclassificar os tipos de bumba-boi pelas suas características, os sotaques maisconhecidos são: Matraca ou Ilha, Zabumba ou Guimarães, Pindaré ou Baixada,Orquestra e Costa de mão. Esses sotaques, por sua vez, são caracterizadospela composição de múltiplas expressões artísticas, entre essas o teatro, amúsica, a dança, a poesia e a literatura, sendo as toadas um elementoimportante neste vasto repertório cultural regional.Nesse contexto, este trabalho se propõe a analisar os valores afrobrasileiros,presentes nas toadas de pique, entoadas no bumba-meu-boisotaque de matraca, tomando como base para tal análise, a poesiatrovadoresca, haja vista a mesma, especialmente no que diz respeito àscantigas de escárnio e às de maldizer, apresentarem semelhanças com astoadas de pique.Contextualizando as toadas: literatura e cultura oralEncontram-se na literatura da antropologia e da sociologia publicaçõesque abordam a temática das manifestações culturais, inclusive o bumba-meuboi,considerando-o sobre vários aspectos. No Maranhão, mais precisamentena cidade de São Luís, muitos são os grupos de bumba-meu-boi. No passado,havia uma maior predominância dos grupos do sotaque Matraca ou Ilha, com o_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.71


passar do tempo os grupos de Orquestra foram se multiplicando e hojerepresentam maioria.Tais grupos de bumba-meu-boi, a cada ano, apresentam novas toadasque levam sempre em consideração ou mesmo inspiração, como dizem oscantadores a lua, a natureza, Jesus, os reis da encantaria, entre outros. Osbois em geral dividem as apresentações da seguinte forma: a) guarnicê, que éo reunir da brincadeira; b) chegada, que representa a entrada da brincadeira noterreiro; c) lá vai, que representa o momento em que o boi já está no terreiro ecomeça a evoluir; d) o urro, que representa o momento em que o boi entra nabrincadeira e e) a despedida, que é a última, ou últimas toadas cantadas antesde o boi encerrar sua apresentação.As toadas, porém, não são somente para render louvor a São João, aSão Pedro e a São Marçal. Elas também servem para manter vivas tradições,exaltando características peculiares das comunidades de origem. Nos bois deMatraca entre o urro e a despedida, geralmente se cantam algumas toadaschamadas de toadas de pique, que são toadas feitas para desafiar e, muitasvezes, para ridicularizar o cantador do outro grupo ou o grupo inteiro. Essastoadas são carregadas de ironia e irreverência e fazem lembrar as cantigas deescárnio e maldizer que eram muito usadas em antigos festivais na Europa naIdade Média.Nas últimas décadas, tem se intensificado os estudos a respeito deidentidade multicultural, focando-se, principalmente, a questão dos valoresidentitários afro-brasileiros, que permeiam os sujeitos e suas relações no país,onde se considera principalmente a contribuição do negro na formação do povobrasileiro. Considera-se, ainda, que no contexto dos valores identitários afrobrasileirosse fazem presentes a oralidade, a ancestralidade, a circularidade,entre outros, que se manifestam nos usos e nos costumes do brasileiro,inclusive, na cultura popular, por exemplo, as danças circulares como o tamborde crioula e o bumba-meu-boi.No que diz respeito à contribuição do branco, destaca-se a poesiatrovadoresca portuguesa. Segundo Moisés (1981), duas se destacam pelairreverência: as cantigas de escárnio e de maldizer, que no Brasil semanifestam nos repentes e também nas toadas de pique, objeto do estudoproposto.As toadas de pique, tais como as cantigas de escárnio e de maldizer, secaracterizam por dizer mal de alguém, sendo que ambas se diferem pelamaneira como o fazem. Segundo Moisés (1981), a cantiga de escárnio éindireta e apresenta traços de ironia e sarcasmo, enquanto que a cantiga de_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.72


maldizer faz uma sátira direta, emprega palavras maldosas e, muitas vezes, debaixo calão; na maioria das vezes, nomeia a pessoa criticada.As cantigas de escárnio e de maldizer eram propagadas por jograis, queeram espécies de trovadores oriundos das classes marginalizadas e quecantavam em troca de seu trabalho artístico. De acordo com Saraiva (1985),não eram apenas os jograis que compunham as cantigas satíricas. Também osfidalgos trovadores o faziam, havendo disputas entre estes últimos e osprimeiros:Vislumbramos, assim, uma dissensão evidente entre os jograis etrovadores, uma vez que estes queriam corroborar a hierarquiaexistente, na qual ocupavam o patamar mais alto. Aqueles ansiavampor ascender a uma condição mais respeitável no meio em queatuavam. Logo, os trovadores não se dedicavam apenas às cantigaslíricas, pois, pelo menos o que as interpretações teóricas nospermitem dizer, desejavam ser responsáveis pela composição detodas as cantigas. Sendo assim, o caráter marginal era relegado aojogral e não, propriamente, às cantigas satíricas, que, por vezes,eram compostas por ele. (SARAIVA,1985, p. 67).Vale ainda dizer que as cantigas satíricas, não eram, necessariamente,canções de protesto, possuíam um cunho humorístico, haja vista trazerem emseu bojo ironias tanto ao clero quanto às camadas economicamente maisprivilegiadas da sociedade. Para tanto, sua linguagem fugia às convençõesformais, sendo muitas vezes livre e obscena.As toadas, as relações de conflito e associaçãoConsiderando que tanto nas cantigas satíricas quanto nas toadas depique existe uma espécie de embate entre oponentes, observando-se umaespécie de conflito, George Simmel (1988) afirma que o conflito pode modificaros grupos de interesse, uniões, organizações. É paradoxal pensar que ummovimento que tenha essa filosofia possa culminar em um outro fenômenochamado de sociação.Pensar esse fenômeno como um organismo único é quebrar a ideiadaquilo que o gerou. A sociação necessita que haja pelo menos dois indivíduospara que ela aconteça, entendendo-se que o conflito acontece por conta deações dissociativas e que é por meio desse mesmo conflito que o grupo se_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.73


fortalece; o que culmina no desaparecimento da outra parte envolvida comodescreve Simmel (1988):Os fatores de dissociação — ódio, inveja, necessidade, desejo — sãocausas do conflito; este irrompe devido a essas causas o conflito estáassim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo deconseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação deuma das partes conflitantes (SIMMEL, 1988, p. 155).Assim sendo, o bumba-meu-boi encontrou nas toadas de pique umaforma de trazer à tona não apenas antagonismos como também reivindicaçõescom relação às condições em que viviam negros, índios e mestiços, podendoassim exigir direitos que lhes eram negados. Por apresentar tal cunhoreivindicativo o boi é visto como uma manifestação de cunho agressivo comodiz Marques (1999, p.59) que o “boi aparece já em 1820 como um folguedoagressivo, violento baderneiro, insólito, barulhento e atentador da ordemmoral”.Simmel (1988) ressalta que toda sociedade precisa de forças de atraçãoe forças de repulsão e desse modo, o bumba-meu-boi é um movimentomarcado por esse tipo de sentimento, evidenciado pelos escritos que, emborapoucos, refletem exatamente o conflito existente nos encontros de agremiaçõesde bumba-meu-boi nos bairros de Madre Deus e no João Paulo, em São Luísdo Maranhão.Marques (1999) salienta que a repressão policial ou a irmandade queperpassava pelos grupos de boi gerava o que se conhece hoje como “o desafiode um contrário” que, se resumiam a toadas irônicas, satíricas, que sãocompostas na hora da apresentação e cantadas para provocar o outro, mastambém para causar riso, para fazer a platéia participar e escolher de que ladoficaria na disputa.Saber que a disputa nem sempre foi nesse molde atual, é fazer umresgate da cultura do bumba-meu-boi no Maranhão, pois as disputas – quehoje se dão por meio de palavras para se chegar a uma vitória simbólica sobreo outro grupo e que tem linguagem armamentista – eram bem mais violentas,no passado, e chegavam a desfechos fatais como ocorreu no bairro do JoãoPaulo, na capital maranhense, como descreve Marques (1999):Se a violência funciona como elemento catártico e unificador de todosos grupos na luta contra a repressão social, por outro, serve tambémpara legitimar as tentativas de supremacia de um grupo sobre o outro.Uma violência, considerada necessária para acabar com o_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.74


antagonismo que levam até a morte, como ocorreu em 1930 em SãoLuís, numa briga em frente à fábrica de tecidos Cânhamo, entre osbois da Madre Deus e do Centro, no pique de uma apresentação. Opescador da comunidade chamado de Zé-nos-Peito dança no meiodo povo, com a calça arriada, a bunda exposta, à espera da palmadaque iniciaria a briga, [...] Uma violência consagrada no bairro do JoãoPaulo onde os grupos, sob as mangueiras, desafiavam uns aosoutros, originando uma tradição até hoje desenvolvida e estimulada(MARQUES, 1999, p. 63).Nesses encontros no bairro do João Paulo aconteciam os desafios deum grupo ao outro no dia de São Marçal, fato esse descrito por Marques (1999)e que ainda mostra como aconteciam as disputas e como se consagrava ovencedor de tal disputa, todo esse ensejo é relatado da seguinte forma:Todos os anos no dia 30 de junho, dia de São Marçal, os grupos dosotaque matraca se reúnem no bairro do João Paulo para ver quem éo batalhão mais pesado, quem faz o melhor desafio, quem possuimais seguidores, quem consegue mais aplausos, e assim por diante.É um espetáculo que nasceu da violência e que se transformou numritual coletivo, onde todos participam do desfile ao longo da avenida(MARQUES, 1999, p. 63).Mauss (2001) discorre que nas sociedades os inúmeros subgrupos, opoder político, a propriedade, o estatuto político, e o estatuto doméstico achamseintimamente misturados. Pensando dessa forma, o autor demonstra que osgrupos e subgrupos estão, embora organizados internamente, tambémorganizados entre si, ou seja, uns em relação aos outros. A esse fenômeno dáseo nome de “sistema de arranjo”.No caso apresentado do bairro do João Paulo, o festejo é formado porgrupos e essa integração termina sendo um fator de extrema significância paraa manutenção tanto do encontro anual como dos grupos por deixá-los maiscoesos entre si. Mauss (2001) deixa bem claro esse tipo de relação ao dizerque:Esses arranjos entre grupos, muito mais do que entre indivíduoslocalizados nestes grupos, tem um caráter de perpetuidade e desegurança que os contratos individuais de nossos direitos não têm. Aesses arranjos corresponde todo um sistema de expectativas detodos para todos, e para sempre, mesmo para além das gerações(MAUSS, 2001, p. 106)._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.75


Nos encontros dos bois, fica evidente o que o autor comenta arespeito desse tipo de relação, ele diz que essas esferas são animadas demovimentos respectivos e solidários entre si. O Bumba-meu-boi é, de fato, ummovimento que gera o conflito e se fortalece tirando sua existência dele, fatoque é reforçado pelo cuidado que “os amos” dos bois têm em compor todos osanos: toadas que façam o seu grupo sair vencedor de um combate debatalhões. Deste modo, observa-se o respeito entre os líderes dos clãs, fatoesse que serve para fortalecer cada organismo individualmente.As teorias, pois, de Simmel (1988) e Mauss (2001) reforçam a ideia decomo a toada de pique no bumba boi de matraca serve como elemento deconflito entre os grupos, e, além do conflito, pode-se observar, entre os grupos,uma relação de coesão social estabelecida.Toadas de pique: análise dos conflitos e linguagemA cultura popular apresenta características que ajudam a definir ecaracterizar um determinado grupo ou segmento social, como é o caso dobumba-meu-boi, que apresenta, conforme exposto, variados sotaques, comcaracterísticas peculiares, que se mostram na batida e nas músicas entoadas,denominadas toadas.No caso do bumba-meu-boi de matraca, chamam a atenção as toadasde pique, que geralmente são provocações ou respostas a estas provocações,que um grupo lança a outro em forma de canção. Essas toadas, entoadas nobumba-meu-boi sotaque de matraca são importantes elementos para aferir-seem que medida os valores afro-brasileiros se fazem presentes no contexto dacultura popular, possibilitando a construção de uma identidade étnica.A seguir, apresentar-se-ão algumas dessas toadas, buscando relacionálasàs terias anteriormente expostas, tomando-se como base as canções deescárnio e as canções de maldizer. Observem abaixo as toadas Meu compadrementiroso e palhaço:Toada I: Meu compadre mentiroso 31 (CHAGAS AT AL, 2007)Meu compadre mentirosoTá acabando com o bumba boi da madre DeusE aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba31 Compositor João Chiador_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.76


Meu compadre mentirosoTá acabando com o bumba boi da madre DeusE aquele outro esbandalhou com a fortaleza da MaiobaSaí de lá fui contratado pra Ribamar, por lá ele ficou,O que ele fez foi espalhar o povo do lugarAgora quer ser o maioralÉ viola desafinada,Agora quer ser o maioralÉ viola desafinadaO Cantador da Maioba,vou dizer pro povo como ele étá feito mineira velha,quando não tem mais pajé.Toada II: Palhaço 32 (CHAGAS AT AL, 2007)Palhaço, mentiroso é tuJá enrolou a ilha inteira de norte a sulQuem não conhece a tua históriaEm Ribamar enganou IraciNa rodoviária ajudou quebrar VitóriaLá Oiteiro, de ruim tu não passaTá igual um palhaço que não sabe fazer graça.Como já exposto, as cantigas satíricas portuguesas representavamcríticas ao comportamento social de seus pares, difamavam alguns nobres oudenunciavam damas. Do mesmo modo, as toadas de pique também revelamem suas letras condenações ou censuras, como nos exemplos acima. Astoadas citadas demonstram os conflitos entre grupos rivais. Ambas, no título,já expressam essas animosidades: um chama o outro de mentiroso; enquantoo segundo já responde devolvendo a ofensa, chamando o primeiro de palhaço.Vale acrescentar que esses termos “mentiroso” e “palhaço”, assim como nascantigas de escárnio e de maldizer assumem um caráter irônico, reforçados nodecorrer do texto.Do mesmo modo, os códigos sociais entre os grupos também sãodenunciados, quando desrespeitados: O primeiro grupo, em tom de denuncia:“Tá acabando com o bumba boi da madre Deus”, ou seja, descaracterizando-o,32 Compositor Zé Alberto_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.77


cometendo equívocos; o segundo grupo, em réplica: “Já enrolou a ilha inteirade norte a sul”. E assim, a toada resulta em um confronto, um jogo, conforme jáexposto na teoria simmeliana.Além dos conflitos presentes nessas expressões culturais, a linguagemse aproxima da poesia trovadoresca europeia. Nas toadas “Meu compadrementiroso” e “Palhaço” as características presentes nas cantigas de escárnioestão visíveis em algumas passagens analisadas abaixo:a)Presença de ironia e de equívoco:“Agora quer ser o maioral É viola desafinada” (Toada I).“Já enrolou a ilha inteira de norte a sul” (Toada II).b) Palavras de duplo sentido:“tá feito mineira velha, quando não tem mais pajé” (Toada I).“Tá igual um palhaço que não sabe fazer graça”(Toada II).c) Não já identificação direta da pessoa satirizada:“Meu compadre mentiroso” (Toada I).“Palhaço, mentiroso é tu” (Toada II).d) Referências indiretas:“E aquele outro esbandalhou com a fortaleza da Maioba” (Toada I).“Em Ribamar enganou Iraci. Na rodoviária ajudou quebrar Vitória”(Toada II).Nas toadas acima, observaram-se algumas similaridades entre ascomposições cantadas pelo cantador de bumba-meu-boi e o trovador. Note-seque os elementos presentes nas cantigas de maldizer também estão presentesnas toadas, por exemplo: críticas de modo mais direto, linguagem ofensiva,palavras de baixo calão e identificação da pessoa satirizada. Para ilustraressas características, cita-se uma conhecida poesia trovadoresca:Cantiga de maldizer (PORTÃO SÃO FRANCISCO, 2012)Marinha, o teu folgar tenho eu por desacertado,e ando maravilhadode te não ver rebentar;pois tapo com esta minha_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.78


oca, a tua boca, Marinha;e com este nariz meu,tapo eu, Marinha, o teu;com as mãos tapo as orelhas,os olhos e as sobrancelhas,tapo-te ao primeiro sono;com a minha piça o teu cono;e como o não faz nenhum,com os colhões te tapo o cu.E não rebentas, Marinha?Na poesia acima, o trovador utiliza uma linguagem ofensiva carregadade ironia, termos grosseiros e palavrões; além disso, identifica explicitamente apessoa satirizada. Da mesma forma a toada abaixo, utiliza esses elementosexpressos na cantiga de maldizer:Toada III: O vira lata 33Olha cantador chegou a tua vezVou te dar uma grande surra pra pagar pelo que fezTu conhece o peso do meu batalhãoCachorro doido que anda babando a multidãoEu já falei com a saúde pra mandar te examinarEu sou canário novo do amanhã,Dessa vez tu vais passear na carrocinha da SUCAMTu disse que estou com falazar, não sou eu é tuQue já começou a secarJá mandei Zé Alberto te vacinarEle disse: não tem mais jeito pro vira lata do Ribamar.Nos trechos acima, o toador critica direta e explicitamente a pessoa,usando termos claros para reforçar os insultos pretendidos (vira-lata, vacina,carrocinha, examinar, cachorro doido, baba), deixando nítida a intenção dotoador. De maneira que algumas referências presentes na linguagem dascantigas do trovadorescas estão presentes no bumba-meu-boi considerando-seo caráter satírico das toadas de pique, presentes nesta manifestação culturalmaranhense.33 Anônimo_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.79


Considerações finaisEmbora seja um estudo ainda em curso, pode-se entender, que oconflito gerado pelas toadas ditas de pique, são fator preponderante para aunião do grupo. Estes grupos tendem a se fortalecer por uma vitória simbólicaque é conquistada no momento em que o cantador de um grupo diz uma toadamais bela que a do outro, rebaixando-o, causando uma desagregação do seugrupo e consequentemente fortalecendo o outro, bem como pela questão daorganização do grupo como um todo que leva em consideração a animação decada uma de suas indumentárias.Isso fica claro em festivais como o “Encontro de Gigantes” e o “Festejode São Marçal” nos quais a disputa em termos de toada e o desempenho porparte dos grupos ajudam no seu fortalecimento e união, causando assim, umaassociação ou sociação, como dizem Mauss e Simmel.As toadas de pique têm grande semelhança com as cantigastrovadorescas e os repentes tão usados nos grandes festivais na regiãoNordeste, nesses festivais os repentes também são conhecidos como duelos,onde a disputa ocorre verso a verso. Espera-se no decorrer da pesquisaconseguir aferir melhor as questões já levantadas possibilitando futuramenteum trabalho com resultados mais apurados e precisos.ReferênciasAZEVE<strong>DO</strong> NETO, Américo. Bumba-meu-boi no Maranhão. 2 ed. São Luís:Alumar, 1983.CHAGAS at al. Toadas de pique de duelos. [s/l], 2007. CD-ROM. Especial.MARQUES, Francisca Ester de Sá. Mídia e experiência estética na culturapopular: o caso do bumba-meu-boi. São Luís: Imprensa Universitária, 1999.MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001.MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1981._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.80


PORTÃO SÃO FRANCISCO. Trovadorismo, 2012. Disponível em:.Acesso em: 12 maio 2012.REIS, José Ribamar Sousa. dos. Bumba-meu-boi, o maior espetáculopopular do Maranhão. 3 ed. São Luís: LITHOGRAF, 2000.SARAIVA, Antônio. História da Literatura portuguesa. In Luís de Camões. 11.ed. Porto Editora, 1979. p. 223-367.SIMMEL, George. A natureza sociológica do conflito. In: MORAES FILHO,Evaristo (Org.). Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1988. p. 122-164._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.81


A SENHORA NOÉ: UMA ARCA GUIA<strong>DA</strong> POR MULHERESPolliana Cristina de Oliveira 34“Eu já tive o suficiente em ser mulher,confinada em um corpo faltante, definida porhomens.”Senhora NoéIntroduçãoMichèle Roberts, escritora inglesa contemporânea, tem se destacado nocenário literário por seu estilo inovador e, principalmente, pela perspectivafeminista presente em suas obras. Autora de livros polêmicos 35 , Robertsquestiona o poder do sistema patriarcal sobre as mulheres, por meio dorevisionismo de narrativas construídas sob a ótica do falocentrismo. A autorapossui uma vasta produção literária iniciada nos anos setenta, que incluipoesia, ensaios, além de doze romances até o momento. A contribuição deRoberts à literatura contemporânea de autoria feminina e aos esforços dosfeminismos no sentido de repensar a sociedade patriarcal é inegável; em toda34 É pesquisadora no Instituto de Pesquisas Judiciárias e Sociais (IPJUS), assessora jurídicano Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e advogada. Ingressou no Doutorado emPsicologia Clínica e Cultura (PCL/UnB) neste ano de 2012, em que estuda a efetividade daspolíticas de enfrentamento de violência doméstica frente à judicialização das demandas. Esteprojeto de doutorado possui co-orientação no Departamento de Direito da UnB. Além dagraduação em Direito, cursou Letras. No ano de 2010, finalizou o mestrado no Departamentode Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília, no qual pesquisou técnicastextuais e gênero, principalmente com relação às novas formas de representação damaternidade, na obra da escritora Inglesa contemporânea Michèle Roberts. É integrante dediversos grupos de pesquisas cadastrados no CNPq, dentre eles, Direito Fundamentais, noqual o líder é o Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes e o Grupo de Reconstrução Históricada Constituinte de 1987/88. Tem experiência na área de Letras e de Direito, com ênfase emEstudos de gênero, sistema prisional e violência doméstica, lidando principalmente nosseguintes temas: literatura, feminismo, mulher, estereótipos e maternidade.35 Referimo-nos, especialmente, à obra The Wild Girl (1984), que causou enorme polêmicadevido a seu conteúdo considerado subversivo, pois Roberts reescreve a vida de Jesussegundo a perspectiva de Maria Madalena e tomando por base os textos apócrifos gnósticosencontrados em Nag Hammadi (RODRIGUEZ, 2003)._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.82


sua obra percebemos uma intensa preocupação em problematizar asnarrativas patriarcais que moldam o imaginário ocidental.Roberts é Fellow da Royal Society of Literature e detentora do grau deChevalier de l‟Ordre des Arts et des Lettres. Ensina Escrita Criativa naUniversidade de East Anglia, acumulando o ensino com a atividade de críticaliterária e a presidência do painel consultivo de literatura do British Council. Seuprimeiro romance foi publicado em 1978 – A Piece of the Night – e outros oseguiram; The Visitation (1983), The Wild Girl (1984), The Book of Mrs. Noah(1987), In the Red Kitchen (1990), Daughters of the House (1992), Flesh andBlood (1994), Impossible Saints (1997), Fair Exchange (1999), The LookingGlass (2000), The Mistressclass (2002) e Reader, I married him (2005). Apesarde sua intensa produção literária, os estudos acadêmicos baseados em suasobras ainda são escassos.Roberts acredita que “as mulheres, que tiveram acesso à educaçãopública somente nos últimos cem anos, não participavam ativamente datradição literária. As coisas mudaram significamente nos últimos vinte anos.Uma série de batalhas foi travada. Elas podem escrever o que quiserem” 36(1998:118). A autora toma essa última frase como princípio norteador em suaprodução literária, pois problematiza questões ligadas às narrativas bíblicas, àssexualidades, ao processo criativo das mulheres, às dificuldades de escritaligadas, frequentemente, a valores e conceitos patriarcais, dentre outrasreflexões. Sim, elas podem escrever sobre o que quiserem e assim o fazem deforma cada vez mais confiante.Além das reflexões sobre autoria feminina, bem como as experiênciasdo maternar e a submissão das mulheres ao longo da história, Michèle Robertstambém se preocupa com a forma de sua escrita de ficção; segundo elaescrever ficção é, de certo modo, elucidar todos os problemas literários deforma e tentar resolvê-los escrevendo um romance ou contos. Descobrindo,assim, o que se pode fazer com a forma, brincando com ela e reinventando-aem cada lapso de tempo. Parece-me muito útil olhar para essa questão emtermos de perspectiva narrativa (1998:6).Todos seus romances possuem algum traço experimental, todavia, aprópria autora diz que uma de suas narrativas atingiu o amadurecimento: tratasede The Book of Mrs. Noah 37 (RODRIGUEZ, 2007).Este breve estudo priorizará a análise de Noah por ser o romance maisexperimental de Roberts, além de revisitar, em sua temática, a grande narrativa36 Neste trabalho, a tradução dos textos publicados em Língua Inglesa é de minha autoria.37 Em português, O Livro da Senhora Noé. Doravante, será referido neste trabalho como Noah._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.83


do dilúvio, que consta no Antigo Testamento. Em Noah, a escritora trabalhacom uma miríade de narrativas, o que torna extremamente difícil qualquertentativa de resumir o romance. As divisões desse romance que serãorealizadas neste estudo são artificiais, delimitadas apenas com o objetivo deenfatizar aspectos distintos da obra em capítulos separados, tendo em vistaque, neste romance, as fronteiras entre o real e o imaginário – como tambémas estruturas de tempo e espaço – estão propositalmente pouco nítidas.Noah é construído em uma intricada tessitura narrativa, na qual diversasvozes de Sibilas se articulam com inúmeras outras vozes de mulheressilenciadas a partir da metanarrativa fundadora do mundo judaico-cristão – aBíblia, produzindo no romance um efeito pluridimensional bastante complexo.Trata-se ainda de uma obra preciosa que constitui terreno fértil para os estudossobre a pós-modernidade, os feminismos, além de aspectos relacionados aodialogismo, à intertextualidade e à representação. Dessa forma, a obra centraldeste estudo será Noah, a fim de desenvolvermos uma análise de algunsaspectos estruturais da narrativa, bem como das implicações dessascaracterísticas no que diz respeito à experiência do maternar que o romanceexplora.As Reinvenções do Maternar em NoahA temática da maternidade foi escolhida como elemento central desteestudo, tendo em mente que inúmeras problematizações sobre estaexperiência são discutidas na obra ficcional de Michèle Roberts, que tambémdesconstrói, com sensibilidade poética, os estereótipos com relação aomaternar. Como ela própria declara em Food Sex and God, a autora ―recria amãe dentro de nós, continuamente (ROBERTS, 1998:21), por meio de suasdiversas personagens.A escritora inglesa, filha de mãe católica francesa e pai protestanteinglês, foi educada em um convento durante grande parte de sua vida. Comoela mesma confessa em uma entrevista (RODRIGUEZ, 2003), Robertsmantinha uma relação conflituosa com a mãe; no entanto, constrói em suasobras, de forma admirável, a figura da avó como a matriarca contadora dehistórias. A autora, nessa mesma entrevista citada, diz ainda que seus livrossão como bebês, os quais ela engendra com pessoas diferentes, uns de seumarido (hoje, seu ex-marido), outros de sua avó e mais alguns de suas amigas,_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.84


explica-nos Roberts. Como se pode notar, a maternidade ou elementos ligadosa ela são recorrentes em seus textos ficcionais e não-ficcionais.Em Noah, a personagem central abandona sua carreira de bibliotecáriapara acompanhar o marido cientista em uma viagem à Veneza. Entretanto,após uma discussão sobre a esterilidade dessa protagonista, ela cai no GrandeCanal. Em seguida, ela se imagina como esposa de Noé e embarca em umaarca, para cuja viagem convida cinco sibilas do mundo contemporâneo. Nestaviagem, cada uma delas – identificadas por características e não por nomes:Desafiadora, Tagarela, Revisionista, Correta e Abandonada – narra suashistórias de vida como esposas/companheiras, mães e escritoras. Essashistórias ilustram diferentes formas de opressão sofridas pelas mulheres aolongo dos séculos: Desafiadora planeja abandonar sua família – marido e filhos– de forma a poder dedicar-se ao seu trabalho de escritora; Revisionista, mãedivorciada e escritora frustrada, tenta administrar a relação com sua filha emmeio aos preconceitos de sua nova condição de lésbica; Tagarela, mãe, nora eesposa dedicada, reflete sobre sua intenção ainda não revelada de não termais filhos e sobre seu desejo frustrado de escrever, considerado pela famíliacom condescendência apenas um hobby; Abandonada, solteira e solitária,busca um refúgio na escrita; Correta, sem filhos, produtora de best-sellers debaixa qualidade, dedica-se à sua linha de produção com afinco e determinação,como estratégia compensatória para sua falta, representada pela esterilidade.A única presença masculina é a de Gaffer (aquele que comete gafes), que seintromete no grupo das Sibilas e embarca nesta viagem, pois está convencidoda “impossibilidade das mulheres serem capazes de descobrir, muito menoscriar um novo mundo” (ROBERTS, 1987:55).A Senhora Noé se junta às Sibilas em uma viagem na Arca dasMulheres para entender a situação das mulheres no mundo em diversasépocas. Paralelamente a essa tarefa, as Sibilas se juntam à Senhora Noé paraque possam debater sobre a escrita de autoria feminina; para isso, logo após ojantar, cada uma delas deve contar a história de algumas mulheres queexistiram ou existirão. Para que possamos melhor analisar Noah, sob o pontode vista das experiências do maternar, teceremos breves reflexões sobre acondição da mulher e sua relação com a maternidade, bem como algumasimplicações disso ao longo dos tempos, culminando na maternidade percebidasob a perspectiva das mulheres.Desde a Antiguidade, textos filosóficos afirmam a inferioridade dasmulheres e justificam a consequente necessidade de sua submissão e controle.Para Aristóteles, a mulher é considerada personagem secundária na_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.85


concepção, um simples receptáculo. Segundo Rosemary Agonito, que faz umacompilação das idéias de pensadores importantes da humanidade sobre asmulheres em History of Ideas on Womem (1997), Aristóteles argumenta que amulher é um ser mutilado ou um homem incompleto. Na reprodução, o homemcontribui com a essência e a alma, enquanto que a mulher só fornece anutrição necessária para manter o embrião. Ou seja, é o homem, e não amulher, que cria a vida: “A mulher é um homem mutilado, e a catamenia ésêmen, apenas não pura; pois há apenas uma coisa que ela não tem, oprincípio da alma [...] As mulheres, então, fornecem a matéria, os homens oprincípio do movimento” (AGONITO, 1977:48). Essa “deficiência” tornaria,então, as mulheres mais fracas, incapazes de pensamento racional e,necessariamente, subordinadas ao homem. Dessa forma, para o filósofo, asmulheres são naturalmente inferiores aos homens e, por isso, devemsubmeter-se à autoridade masculina: “os homens são, por natureza,superiores, e as mulheres inferiores; um governa e o outro é governado”(AGONITO, 1977:51).A identificação das mulheres com a natureza e a consequentenaturalização dos comportamentos relacionados à maternidade foramdistorcidos e perpetuados de uma forma negativa para as mulheres, de acordocom os interesses do patriarcado. É o que ocorre, por exemplo, quandopensamos sobre o conceito de instinto materno. Segundo Badinter, a partir doséculo XVIII, além do discurso médico, o filosófico e o econômico passaram adefender de forma enfática que a mãe assumisse a responsabilidade de cuidardos filhos, agindo de acordo com o que era universalmente considerado seuinstinto natural de mãe, para diminuir a mortalidade infantil no interesse doEstado francês. Badinter afirma ainda que a defesa do instinto materno, noséculo XX, atingiu o clímax com a psicanálise Freudiana, especialmente, pormeio de seu ensaio intitulado A Feminidade (1958). Nesse texto, em particular,Freud atribui o desejo que toda mulher tem de ter um filho à inveja que amulher teria do órgão sexual masculino. Segundo Freud, o primeiro objetoamoroso do menino é a mãe e continua a sê-lo durante toda a vida. O meninopossui inicialmente um grande amor pela mãe; sente ciúmes e rivalidade emrelação ao pai, desenvolvendo, assim, o complexo de Édipo. Ao descobrir quea mãe não possui o órgão sexual masculino, o menino tem medo de vir a sercastrado como ela e abandona o complexo de Édipo. Não podendo eliminar opai para ficar com a mãe, o filho a abandona e se junta ao pai, que representao poder. Todavia, o menino volta a ter uma mulher como objeto amoroso que,para Freud, estaria substituindo o seu amor pela mãe. O primeiro objeto_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.86


amoroso da menina também é a mãe. No entanto, ao perceber que a mãe nãopossui o órgão sexual masculino, ao descobrir que, tal qual ela, a mãe tambémé castrada, a menina sente-se incompleta e repele seu amor à mãe, buscandoo amor do pai; com quem sonha em ter um filho que compensaria a ausênciado pênis. Assim, explica Freud “a mulher fica desvalorizada para a menina, omesmo que para o menino e talvez para o homem” (FREUD, 1958: 133); essainveja traz consequências para toda a vida das mulheres.Percebemos, dessa forma, que o argumento de Aristóteles sobre asmulheres como seres incompletos possui claro eco na teoria freudiana,correlação que mostra como certas idéias negativas construídas pelos homenssobre as mulheres podem perdurar por muitos séculos, com consequênciascomplexas e profundas. Compreendemos, assim, que as representaçõesrelacionadas à maternidade são por diversas vezes constituídas para reforçaruma “verdade” científica e universal, quando, realmente, expressa umaverdade misógina. Além disso, em várias áreas do conhecimento, podemosidentificar até mesmo um silenciamento dos aspectos relacionados àmaternidade. É o que pude observar nos estudos que fiz na área de literatura,encontrando lacunas, sinais de censura e de mitificação dos aspectosrelacionados às mães e às mulheres em geral.Diante das questões brevemente postas, acreditamos ser necessárioproblematizar e desconstruir os mitos patriarcais que envolveram e aindaenvolvem a maternidade, principalmente na medida em que novos conceitos sejuntam ao conceito de maternidade tradicional, como descrito pela professoraCristina Stevens em seu artigo Maternidade e Literatura: Desconstruindo Mitos:Por muito tempo a maternidade foi considerada um fato puramente biológico,fixado literal e simbolicamente nos limites do domínio privado e emocional. Osdiscursos religiosos, médicos e psicológicos que descreviam e, sobretudo,prescreviam esses papéis, foram bastante danosos para as mulheres. Hoje,debatemos a função e status da maternidade no espaço público, e suacomplexidade aumenta à medida que o sentido de maternidade se diversifica,uma vez que à mãe tradicional vem juntar-se a mãe adotiva, a mãe lésbica, ohomossexual que materna, a mãe de aluguel, a mãe adolescente, a mãesolteira, a mãe prisioneira, a mãe pobre, negra, a mãe biológica, etc.(STEVENS, 2003: 38). Neste livro, Stevens enfatiza que, na literatura, até,aproximadamente, os anos 70, houve escassas tentativas de retratar amaternidade como tema central e de analisar as distorções criadas pelopatriarcado sobre essa complexa experiência. A partir dessa época, começa a_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.87


se consolidar uma nova produção teórica sobre a maternidade sob a ótica dasmulheres.Ainda no que diz respeito à maternidade, a psicanalista NancyChodorow, em sua obra The Reproduction of Mothering (1973), argumenta queos comportamentos sociais tradicionais que envolvem a maternidade, ou seja,o fato de se atribuir às mulheres o cuidado com os filhos, não são naturais, massim resultado de valores e práticas sociais que são interiorizados nas primeirasrelações da criança com as pessoas que a cercam, sobretudo com a mãe; issodecorre porque a mãe quase sempre exerce a função do cuidado com os filhos.Esses papeis não são dados pela biologia, mas são, na verdade, construçõessociais, que, como tais, podem ser desconstruídas e reconstruídas. Assim,esses processos psicológicos dão origem a comportamentos que se perpetuame são responsáveis pela divisão não igualitária dos papéis gênero e pelaconseqüente dominação masculina.Segundo ela, são essas práticas de cuidados do filho pela mãe quefazem surgir o processo psicológico que conhecemos como natural: Ocomportamento e as características da personalidade adulta são determinados,mas não biologicamente deterministas. Entretanto, culturalmente, apersonalidade e o comportamento esperados não são simplesmente“ensinados”. Mais exatamente, certas características da estrutura socialsustentadas por crenças, valores e percepções culturais, são interiorizados pormeio das relações objetais sociais primárias da criança e da família. Essaorganização inconsciente ampla é o contexto no qual se dá o treinamento depapéis e a socialização intencional (CHO<strong>DO</strong>ROW, 1978: 76). Ao mostrar comoas funções de cuidado com os filhos são impostas às mulheres e internalizadaspor estas mulheres por meio de processos psicológicos e sociais específicos,Chodorow mostra como essas funções também podem ser destinadas aoshomens e que ambos devem exercer essas funções de forma compartilhada.Como a citação acima nos explica resumidamente, a reprodução dos padrõestradicionais da maternidade no mundo contemporâneo acontece por meio deprocessos psicológicos induzidos socialmente e que se reproduzem de formacíclica.O livro de Adrienne Rich, Of Woman Born (1981), também constitui ummarco nos estudos feministas sobre a maternidade. A partir de uma visão,sobretudo socioantropológica, Rich faz uma espécie de arqueologia daexperiência da maternidade a partir das óticas das mulheres. Ela demonstracomo a mãe reage às expectativas da sociedade em relação a seucomportamento, escrevendo até mesmo sobre uma alienação da maternidade,_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.88


no sentido de que muitas mulheres não têm uma participação ativa no trabalhode parto, em função das novas tecnologias médicas. Segundo Rich, desde aAntiguidade, as mulheres têm sido “ensinadas” sobre o que devem sentir. Alémdisso, Rich expõe a escassez de estudos e reflexões sobre a relação entremães e filhas, uma das razões que a motivou a escrever o referido livro. Richcompleta que “as mulheres têm sido mães e filhas, mas há pouco escrito sobreesse assunto; a grande maioria da literatura e das imagens da maternidadechega a nós filtrada através de uma consciência coletiva ou individualmasculina” (RICH, 1981:61).A complexidade das relações entre mães e filhas não foi devidamenteexplorada e o que conhecemos de maneira mais presente é mediado peloimaginário dominado pelo patriarcalismo. E é nesse contexto que Noah érelevante, pois além de problematizar as imagens sacralizadas com relação ámaternidade, a obra ainda possui uma diversidade de narrativas sobre arelação de mães e filhas, narrativas que foram sempre subestimadas, conformeressalta Rich.Com relação à temática da maternidade na literatura, E. Ann Kaplan, emMotherhood and Representation: The Mother in Popular Culture andMelodrama (1992), analisa as representações da mãe em textos literáriospopulares do século XIX, os chamados melodramas, nos Estados Unidos, suasinfluências européias e suas versões nos filmes de Hollywood na primeirametade do século XX. Ela analisa a mãe em três esferas de representação: ahistórica, ou seja, a mãe no seu papel institucional, socialmente construído; apsicanalítica, a mãe no inconsciente, por meio de quem o sujeito é constituído,articulada por Freud, na virada do século XIX para o XX; e a ficcional, a mãeem representações ficcionais, que combina a mãe posicionadainstitucionalmente e a mãe inconsciente.Kaplan enfatiza que sua análise foi produzida em um momento degrande transição nos conceitos de mãe, por causa das transformações nasrelações e nos discursos políticos, sociais e econômicos, da nova consciênciasobre diferenças étnicas na constituição dos sujeitos “mulheres”, sobre ainterseção entre raça e gênero, e por causa de novas descobertas científicasna área de gestação, reprodução e nascimento. Em sua análise histórica,Kaplan aponta três discursos sobre a mãe: o discurso rousseauniano, queengendra uma mãe que possa satisfazer os imperativos de uma nova ordemsocial estabelecida por instituições surgidas na Primeira Revolução Industrial; odiscurso darwiniano, marxista e freudiano, que trouxeram uma mãe construídapor mudanças sociais pós-romantismo e que chegou à Primeira Guerra_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.89


Mundial e ao entreguerras (nesse período, as mulheres entraram no mercadode trabalho, tiveram mais acesso à educação, conquistaram direitos, o que,segundo Kaplan, ameaçaram a família nuclear); e os discursos pós-modernosrecentes sobre as mães, que deram origem ao que ela chamou de mãe pósmodernista,que ainda está em construção, como resposta aosdesenvolvimentos sociais, dentre eles, avanços dos feminismos. o rápidocrescimento do capitalismo multinacional e a revolução tecnológica eeletrônica.É a partir dessas reflexões que temos Noah, romance que desafia eestimula o leitor a repensar a maternidade a partir de uma perspectiva quedesconstrói toda a mística atrelada ao maternar enquanto função imposta, como intuito de ressignificar essas imagens tradicionais. As histórias contadasnesse instigante romance tratam da complexa experiência do aborto, de “úteroscongelados, onde nenhum bebê cresce” (ROBERTS, 1987:28), daproblemática de filhos ilegítimos, adotivos, do controle sobre a gravidez, doinfanticídio e tantas outras temáticas que foram injustificadamente silenciadaspela literatura canônica.Em Noah, Roberts explora diversas experiências ligadas à maternidade.Por certo, nem todas suas personagens são mães; no entanto, todas essasmulheres possuem alguma vivência com relação à maternidade, nem que sejapela incapacidade de algumas delas em gerar filhos e filhas. É essa apreocupação da personagem contemporânea, cujo marido se chama Noah ereage enraivecido à esterilizadade de sua esposa: “eu sei o que você querdizer. Nós já passamos por isso antes. Todo mês nos últimos dois anos”(ROBERTS, 1987:9). Sequer sabemos o nome dessa mulher, que mais tardeserá líder na arca das mulheres; todavia, já conhecemos sua frustração, vistopor seu marido cientista como mero capricho. Essa impossibilidade de gerarnão será um impasse para essa mulher que, junto a outras, passará pelaexperiência de gestação na arca, desta vez, gestação de si mesma, conformemelhor analisaremos nesse capítulo. Por causa de uma discussão ainda sobrea ausência de filhos em seu casamento, a mulher se joga em um canal. É apartir desse ato que essa mulher passa a chamar-se Sra. Noé (Mrs. Noah) etem como principal objetivo guiar a arca das mulheres pelo mundo e pelos maisdiferentes tempos, para entender as condições de vida das mulheres nopassado e suas consequências no futuro (ROBERTS, 1987:32).Ao se juntarem à Senhora Noé, as mulheres poderão contar históriase produzir literatura, como podemos perceber na descrição dessaprotagonista: As mulheres virão à arca para buscarem um pouco de_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.90


paz e quietude, para pensarem em suas vidas e questioná-la. Asmulheres virão aqui para desenvolver suas habilidades, para discutirseu trabalho em progresso, para criticar e receber críticas, para dividirmedos, falhas e ideias. As mulheres se juntam à arca para soltar suaimaginação, para aprender a brincar novamente, para destruir(ROBERTS, 1987: 21/22).As mulheres estarão na arca para repensar suas vidas, questionar suamaneira de produzir literatura, pois todas as convidadas a integrar essa jornadasão ou almejam ser escritoras. Elas compartilharão momentos de troca deconhecimentos e de experiências enquanto estiverem na arca das mulheres.Diante da brevíssima biografia que mostramos de Michèle Roberts, bem comoda recorrência de imagens ligadas à maternidade que ela utiliza em seusromances, é clara a correspondência de uma arca ao útero materno. Essacomparação se torna mais nítida ao longo de toda a obra, em que percebemosque essas mulheres passam por uma jornada de autoconhecimento. Devemos,ainda, nos lembrar que a palavra gestação é de origem latina e significatransportar, o que reforça a imagem da arca como um espaço simbólico degestação e transformação dessas mulheres. Todas elas são transportadas etransformadas pela influência das várias narrativas de outras mulheres,contadas sobre e por elas mesmas, e sempre acrescidas de suas própriasexperiências quando não eram sibilas, mas mulheres comuns, frustradas ereprimidas.Outro tema recorrente é a crítica ao cristianismo relacionado àstemáticas da maternidade; no caso de Noah, a imagem presente é a da VirgemMaria, como símbolo de amor inesgotável e inabalável, de abdicação de seucorpo de mulher e total aceitação quanto ao sofrimento por seu único filho. ASenhora Noé constrói, no interior da arca das mulheres, uma capela, noentanto, diferentemente do que tradicionalmente entendemos desse espaço,ela é ecumênica e poderá ser usada tanto para praticar suas orações quantopara praticar a escrita (ROBERTS, 1987:40). Um dos quadros penduradosnessa capela é o da Virgem Maria com os braços abertos e a face cheia de dorcom seu filho morto no colo. A Senhora Noé escuta das paredes da capelacatólicos entoarem a ladainha 38 da Virgem Maria para que a viagem sejasegura. A líder da arca das mulheres não consegue repetir nenhum verso da38 Oração formada por uma série de invocações e respostas curtas e repetidas. Neste sentido,trata-se de uma oração ou súplica à Virgem Maria e aos santos, invocando-os pelos nomes eatributos simbólicos, a fim de rogarem a Deus pelos fiéis, com o responsório repetitivo: “Rogaipor nós!”_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.91


litania tradicional, então, ela se junta ao coro das feministas católicas queaparecem na capela e declamam uma versão bastante inovadora à Grandemãe:Deusa negra Companheira das sibilasAmante de suas difíceis filhasArca da vidaPrecioso navio de sangueSagrada pérolaVirgem do silêncioMeretriz da sabedoriaCaminho do leite e melPortão para o paraísoEsteja Conosco.Seios de mármoreAmante dos patriarcasOrelhas obstruídasBoca obstruída Grito contidoCarcereira de filhas [...]Não me deixe tornar isso.A litania construída pela senhora Noé e por todas as católicas feministasque aparecem na capela é uma clara crítica à imagem da Virgem Maria,construída pelo patriarcado, a qual estabelece parâmetros de como umamulher e, consequentemente, uma mãe, deve ser. Lembramos aqui deAdrienne Rich, que acrescenta à imagem da pietá a noção de espera; para ela,“as mulheres sempre estão à espera de algo: pelo nascimento de seus filhos,pela vinda de seus homens, pela palavra a ser proferida, pela menopausa”(1980: 39). A senhora Noé, ao declamar sua litania, vai contra as imagensligadas ao modelo de “mãe imaculada”, arraigado no imaginário ocidentalpatriarcal. Os versos em itálico marcam o refrão que é cantado em coro portodas as mulheres, culminando com o verso final, em que nenhuma dessasmulheres quer se tornar o modelo de mãe imposto pelo patriarcado. Elasquerem experienciar a maternidade, mas não querem fazer parte doscomportamentos invocados pela ladainha repetida há tanto tempo.Para Elizabeth Badinter, o amor maternal não se encontra inscrito naprofundidade da ‗natureza feminina‘, ao contrário, esse conceito de amormaterno existe em função das exigências e dos valores dominantes de umasociedade que determina os papéis respectivos do pai, da mãe, da criança.Esse amor, assim, está longe de ser instintivo, natural._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.92


Todavia, as mulheres grávidas eram tidas como invólucros sagrados. NaGrécia antiga, a casa da mulher grávida era considerada um lugar de asiloinviolável, um santuário onde até os criminosos encontravam abrigo. Já entreos Romanos, à porta das suas moradas, as grávidas suspendiam grinaldas oufolhas de louro para evitar visitas, ficando suas casas interditas aos própriosoficiais de justiça e credores. Entre os índios Guayaku do Paraguai, a grávidapossui numerosas virtudes mágicas, pois encontra-se estreitamente ligada aoseu filho (ainda por nascer) e este está em comunicação com o mundo dosespíritos; é-lhe atribuído o conhecimento de numerosos segredos, de prever ofuturo e de predizer a morte de parentes (Barbaut, 1990).Ainda no que diz respeito à maternidade, Roberts torna mais complexaessa experiência e associa à maternidade a outras imagens, mesmo quealgumas sejam representadas em tom irônico, como é o caso de um diálogotravado entre as sibilas e Gaffer, em que ele tenta convencê-las de que aescrita e a criatividade são dons típicos masculinos, ele continua: “Como umamãe pode saber algo sobre o crescimento humano? Qualquer idiota pode dar aluz. Escrever um livro, por exemplo, é um parto” (ROBERTS, 1987: 56). Éinteressante observar que, embora Gaffer não passe de uma marionete dosistema patriarcal, ele mesmo cita a aproximação do ato de escrever com oparto; imagem que será trabalhada por todas as sibilas durante todo oromance.Além das ricas imagens ligadas à temática da maternidade, Roberts nãodeixa de explorar outras tantas imagens referentes ao corpo feminino.Conforme podemos notar no capítulo anterior, a casa é usada pela autora demaneira constante para indicar o corpo das mulheres, bem como para refletirsobre a apropriação desses corpos. A senhora Noé, em um de seus devaneiossobre sua infância, nos relata que ela é uma casa com muitas janelas e muitasportas. Cada dia ela abre uma e espreita o que há lá dentro, comentando parasi mesma: “esse é o tempo do advento, da preparação” (ROBERTS, 1987: 63).É nítida a comparação que a autora faz por meio da voz de sua personagem; ocorpo da mulher é uma casa, no entanto, ainda desconhecida pela própriamoradora, que tenta se conhecer dia após dia. No fim da citação, apersonagem conclui que este é o advento. Trata-se de uma referência cristã,advento (do latim adventus, significa "chegada") é o primeiro tempo do Anolitúrgico, o qual antecede o Natal. Para os cristãos, é um tempo de preparaçãoe alegria, de expectativa, onde os fiéis, esperando o nascimento de JesusCristo, vivem o arrependimento e promovem a fraternidade e a Paz. Nossaprotagonista, por meio de um complexo processo de autoconhecimento na arca_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.93


das mulheres, espreitando seu corpo/casa, entra em um tempo de preparação,que culminará no Natal, ou melhor, de acordo com o próprio significado dapalavra, no (re)nascimento dela mesma, e não do homem que representa asalvação da humanidade.As implicações de ser ou não ser mãe são profundas em uma sociedademarcada por preceitos patriarcais. As mulheres se vêem presas em um labirintode estereótipos, de leitos de procusto 39 prontos para moldá-las em seus papeissociais. A Senhora Noé, em uma longa reflexão, grita uma exclamação há tantotempo contida: “Mães não são livres, tornar-se mãe é tornar-se prisioneira. Emconfinamento. É deixar para trás todas as imensas possibilidades. As mãesexistem apenas para comerciais de margarina” (ROBERTS, 1987: 69). Noentanto, a personagem continua sua reflexão e conclui que as mulheres quenão se transformam em mães, deixam de ser mulheres reais. Assim, mesmoindo contra às imposições patriarcais, elas caem em outro estereótipo demulheres, geralmente vistas como “secas e tristes, sempre arrependidas pornão terem engendrado filhos”. A reflexão, entretanto, não chega a umresultado, “então, eu não serei mãe. Então, eu serei mãe. Então, eu nãoconsigo achar a saída” (ROBERTS, 1987: 69).Em meio a essas reflexões da senhora Noé, há também todas as outraspersonagens que a acompanham, as Sibilas e Gaffer. Toda noite, após ojantar, uma das sibilas conta uma história, uma narrativa sobre mulheres. Emnenhuma ocasião sabemos quem profere a narrativa, sabemos apenas queessas histórias não podem ser mais silenciadas. A primeira narrativa contadapor uma das sibilas é sobre uma história que Gaffer não colocou no gênesis. Anarrativa é sobre João e sua esposa, os quais são aqui protagonistas doepisódio do dilúvio bíblico. Mais uma vez a protagonista feminina desse contonão tem nome, reconhecemo-la apenas como esposa de João. Roberts tentanos mostrar uma possível história do dilúvio sob o ponto de vista feminino,quando a esposa de João comenta com seu marido sobre os sonhos que ainvadem:Uma noite, eu sonhei. A Terra aparecia para mim como uma mulherse retorcendo de dor no parto. Ela jogava suas mãos para as copasdas árvores, que são seus cabelos. Ela mordia as montanhas, que39 Procusto era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Em sua casa, ele tinha uma cama deferro, que possuía seu tamanho exato, para a qual convidava todos os viajantes para sedeitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimentopara ajustá-los à cama, os que tinham com pequena estatura, eram esticados até atingirem ocomprimento suficiente. Ninguém sobrevivia, pois nunca uma vítima se ajustava exatamente aotamanho da cama._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.94


são seus braços, enquanto sua barriga mexia, provocandoterremotos. Sua bolsa estourou e as águas saindo dela setransformaram em uma grande enchente. Por nove meses, elacarregou a semente de uma nova vida e, agora, em meio às ondas, acriança está em seu seio. [...] Naquela noite, eu tive um segundosonho. Dessa vez, a Terra aparece novamente para mim como umamulher grávida, mas no início da gravidez. Dentro de seu ventre hátoda a criação, todas as formas de vida dançando e crescendo. João,eu e as crianças estamos lá também, nadando em sua barriga,esperando por nascer (ROBERTS, 1987: 74).Essa mulher conta a seu marido sobre seus sonhos e ele, por sua vez,por ordem de Deus, constroi a arca que, na verdade, foi ideia de sua mulher.Por meio de seus sonhos, podemos notar mais uma vez a imagem constantede que a arca representa o útero materno e que toda a jornada dentro da arcasimboliza a gestação, como já observamos. A esposa de João ressalta oaspecto do renascimento de todos que estão na arca, ao apontar que a viagemdurou “nove meses, a duração de uma gravidez” (ROBERTS, 1987: 82). Apósa cessação das chuvas, a esposa de João sente-se gestada novamente erenascida. Ela escolhe sua liberdade, ela renomeia os animais e vive com suasnoras no alto de uma montanha.Elas vivem em uma sisterhood, em solidariedade, compartilhando suasexperiências, sem torná-las hegemônicas. A segunda narrativa é sobre a vidade uma mulher que não foi casada; é a biografia ficcional de freira medievalque se torna santa, a Senhora Sabedoria (Lady Wisdom). Essa freira passa aquestionar tudo que é imposto a ela com respeito a toda espécie de pecado ehorror que é imputado ao corpo feminino: Nossos doutores nos dizem que ocorpo da mulher é como se fosse um pedaço de terra arada, pronto parareceber as sementes do homem. Ele quem dá à mulher o bebê, eles dizem.Mas eles estão errados. Essas sementes são misturadas no corpo da mulhercom suas próprias sementes (ROBERTS, 1987: 122).Conforme havíamos dito, mesmo mulheres que não experienciaram demaneira direta a maternidade, elas possuem alguma vivência no assunto, hajavista que seus corpos são marcados por sangues menstruais, útero emenopausa. A freira, cujo nome também não sabemos, – ela mesma se intitulaLady Wisdom – reconhece a importância de não anular seu corpo, pecaminoso,como assim os preceitos religiosos descrevem; “por meio do meu corpo, eu souparte do universo em sua constante mudança e transformação, e minha alma éa palavra que me diz isso” (ROBERTS, 1987: 123). A freira continua em suadança de epifania e encontra em seu corpo a criação; para ela, a alma passa_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.95


pelo processo de nascimento, atravessando um canal que une a terra aoparaíso, sendo o arco-íris a ponte para esse encontro, a aliança mostrada nodilúvio bíblico. A santa, segundo ela mesma diz, é exilada do céu, talvez jamaisseja aceita por causa de suas idéias transgressoras.Paralelamente às narrativas contadas toda noite pelas sibilas, há todosos dias o debate travado por elas sobre os mais diversos assuntos referentes àvida das mulheres e, especialmente dentre estes, a maternidade em todos osseus aspectos e suas implicações. Em um desses momentos de discussão, aSibila Tagarela relata que não possui mais amizades, pois todas suas amigastêm filhos, além disso, “as mães não são disponíveis. Como pode, assim, umaamizade sobreviver?” (ROBERTS, 1987: 139).A Sibila Correta acrescenta que sua mãe tinha amigas, que eram outrasmães. A Sibila Desafiadora desabafa que tem se sentido desconfortável pelofato que de não sentir falta de seus filhos. Afinal, essa sibila experiencia amaternidade, mas vai contra o instinto materno, também questionado porBadinter, conforme mencionados. As sibilas pedem uma história sobre umamãe; mas a próxima narrativa contará um infanticídio, realidade que faz partedessa experiência feminina, mas que a sociedade violentamente condena sempensar nas razões que levam uma mulher a este comportamento radical. Anarrativa que focalizará uma experiência de abandono conta a história de umamãe, uma mulher vitoriana, que enxerga todas as dificuldades em se ter umafilha em seu tempo. Essa mulher, também sem nome, é casada. Em uma noite,ela teve um sonho:Em meu sonho eu vejo Eva grávida. Ela enche sua mão de areia ecada grão vai escorrendo por entre seus dedos. Saindo carne,sangue e ossos. Adão a conforta dizendo que dois filhos é melhorque um. Eles chamaram seus filhos de Abel e Caim. [...] A mãe detodos nós desapareceu. É minha tarefa escavar para encontrá-la. Odeserto a engoliu (ROBERTS, 1987:154).O sonho que a protagonista dessa passagem tem sobre Eva parece nosanunciar o que virá. Eva, silenciada, desaparecida no deserto, não desejava terum de seus filhos. À protagonista cabe encontrar sua mãe, que não é Maria esim a pecadora Eva. Mesmo assim, o peso da maternidade é grande demaispara a nossa protagonista.Elizabeth, minha primogênita. É cruel fazer você aguentar tudo isso.Eu devo deixar você me esquecer, ou me inventar, em paz. Paravocê eu sou uma lacuna: ausência. Morta. Eu quero preencher esse_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.96


espaço de sua ignorância, escrever meu nome e oferecer a vocêminha história, que é sua também. Eu quero que você me herde.Uma mãe precisa de uma filha. Uma filha precisa saber quem é suamãe, para aceitá-la ou rejeitá-la (ROBERTS, 1987:170/171).Nesse episódio, temos a complexidade da relação entre mães e filha,outro assunto relativo á maternidade que também é pouco explorado sob aótica das mulheres. Rich diz que “a relação entre mães é filhas é uma tragédiaessencial” (1980: 236/238), pela qual devem passar. A mãe dessa históriaabandonará sua filha, no entanto, não é por essa condição que ela deixará deser mãe. Talvez seja por isso que ela escreve uma carta à sua filha, com ointuito de deixar de ser uma ausência, não ser uma lacuna, tal qual são asmães na literatura sob a perspectiva masculina no século XIX. Essa mãe sereafirma como tal e deixa um legado de memórias à pequena Elizabeth. Aindanessa linha de pensamento em retratar as mais diversas experiências relativasà maternidade, as sibilas contam a próxima história; a de uma jovem, que viveséculo XVIII, aproximadamente, e que é seduzida por um homem casado.Como fruto desse romance, a jovem engravida. Ela se vê obrigada a se tornarprostituta, passando fome, frio, além de sofrer violência. E é nesse contextoque ela dá a luz a uma menina, “ela olha para aquela pequena face, e apoiasuas mãos sobre ela. Ela a estrangula. Assim, ela não sentirá mais nada. Elatorce o pescoço de sua filha como se fosse o de uma galinha, sua cabeça vira.Ela enterra o corpo por entre o lixo” (ROBERTS, 1987: 203). A jovem desseconto acaba por ser enforcada por ter cometido infanticídio, sua história foiimortalizada em canções, entretanto, não sabemos se essas cançõesexpressam qualquer juízo de valor. Além disso, a única forma de as mulheresserem imortalizadas é por meio de narrativas orais, restam a elas apenascanções, nenhuma palavra escrita.Em mais um devaneio, a senhora Noé tenta entender porque ela quertanto uma criança e seu marido cientista simplesmente não quer. Para ela, aexplicação é que seu marido quer permanecer sendo a criança, ser cuidado porela, algo que não aconteceria se ele dividisse suas atenções com um bebê,“ele quer ser uma criança e não um pai” (ROBERTS, 1987: 213). No entanto,esse não é o fim para a senhora Noé, pois ela tece outras possibilidades paraatingir seu objetivo:Eu poderia engravidar dele e deixá-lo. Ou deixá-lo e engravidar deoutro homem. Ou até mesmo fazer uma inseminação artificial e,deliberadamente, me transformar em mãe solteira sem dar à criançaum pai. Pior ainda: roubar o bebê de outra mulher. Uma amiga morre_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.97


e eu adoto seu bebê. Esse pensamento vai embora, eu tento matá-lo.Eu serei mãe solteira. Muitas mulheres são. Por necessidade, quandoseus homens a abandonam. Por opção. A Virgem Maria era mãesolteira (ROBERTS, 1897: 214).Após esse devaneio, todos se juntam na arca para ouvir a última históriada jornada, um conto sobre uma mulher que fez novos amigos. A narrativa sepassa no submundo das crianças abandonadas, em tempos de um futuroorwelliano. Um garoto de rua, conhecido como Tartaruga, encontra um bebêem uma pilha de lixo. Ele a nomeia de Rata. Embora homem, Tartarugaassume o papel de mãe de Rata em uma época que a palavra “mãe” é umtabu, não deve ser pronunciada e nem mesmo pensada: Mulheres da classe Dsão subdivididas em criadoras, alimentadoras e rudes; isso se elas aindasangrarem. Se elas não sangrarem, dependendo da idade, são classificadasem buracos (pré-adolescentes) ou sacos (pós-menopausa). Mulheres declasses superiores são chamadas por nomes que ele não conhece. Ele nuncaencontrou nenhuma. A primeira ministra tem um desses nomes, A Grande Mãe(Big Mummy). Mas essas são palavras sagradas, reservadas somente a ela eraramente faladas. (ROBERTS, 1987: 253).Roberts cria um universo com características não tão distantes da nossasociedade patriarcal. As mulheres são divididas por suas capacidadesbiológicas e sua função de reprodução para o mundo masculino. E é nessecontexto quase que apocalíptico que a história de Tartaruga e Rata seaprofundará, pois com o tempo, Tartaruga decide abandonar Rata, que ainda éuma criança. Rata, de acordo com a classificação acima disponibilizada, setorna uma prostituta que seduzirá Tartaruga. A inversão edípica é o que dá otom na história: a mãe-homem (Tartaruga) é seduzida pela filha (Rata). Juntos,eles reescrevem o dicionário da cidade, colocando nele a palavra mãe, dessavez, com um significado completamente transgressor. E é com uma mãe que atrajetória da arca das mulheres acaba, quando assim fala a Senhora Noé,“Agora que estou grávida, eu tenho de cuidar de mim” (ROBERTS, 1987: 276).A senhora Noé engravida de ideias, de conhecimento. Após aexperiência da arca de conhecer outras narrativas de mulheres, ela renasce eacaba por gestar tantas outras experiências que decide narrar em forma deromance.Em Noah, o maternar se constitui de forma rica e complexa; lembramosaqui a contribuição Neumann (1999), psicólogo jungiano e antropólogo alemão,que trabalha com o arquétipo da “Grande Mãe”, por meio da análise de umvasto material mitológico e histórico de diferentes grupos culturais em_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.98


diferentes épocas, mostrando o caráter positivo desse arquétipo (A MãeBondosa) e o negativo (A Mãe Terrível, A Deusa Terrível etc.). Ele explora deforma detalhada como se desenvolveu, nos povos primitivos, a identificaçãodas mulheres à natureza e os mistérios advindos dessa identificação. Noahtambém explora alguns símbolos que merecem destaque, tendo em vista queestão em sintonia com a problemática das maternidades, assim como elucidamtemas ligados aos feminismos. A simbologia sempre presente e muito relevantecom relação à maternidade é a das águas, principalmente quando associada aseu aspecto nutritivo, elemento que faz com que a vida brote de onde é seco.Essa metáfora está relacionada à maternidade e também à produção deescrita, ou seja, com a imanência do útero e com a transcendência da criaçãoda palavra.“Minha vida é uma longa sede” (1987:81), fala a personagem Sara, outraSenhora Noé, fruto de uma narrativa contada por uma das sibilas da arca dasmulheres. Ela continua: “A água é minha mãe, minha amante. Meu elemento,que me dá liberdade para nadar para onde eu quiser. A água é minha comida eminha bebida. A água é meu deus” (1987:83). Essas duas falas sãoemblemáticas no romance, pois esclarecem o aspecto de transformação epoder que as águas exercem nas mulheres. Em todo o romance,acompanhamos a vida dessas mulheres antes de se juntarem à arca, uma vidaimprodutiva, algumas a achavam “seca”. Depois que a Senhora Noé e assibilas se juntam à jornada, elas voltam a produzir literatura e a vida dessasmulheres se inunda de narrativas. Dessa forma, as águas são representadascomo elemento nutritivo, bem como elemento libertador, tendo em mente quepromove fluidez e maleabilidade de noções antes não questionadas, tais quais,gênero e as condições de vidas das mulheres.Considerações FinaisEm 1980, Annette Kolodny fez uma reflexão sobre a crítica literáriafeminista e chegou à conclusão de que era ainda difícil definí-la como “umsistema coerente” ou “um conjunto unificado de metodologias” (KOLODNY,1997: 171). Segundo Kolodny, uma dos instrumentos mais importantes dosfeminismos foi a circulação de trabalhos de mulheres escritoras que foramperdidos ou ignorados, e que agora estavam sendo analisados e utilizadoscomo base para o questionamento do padrão literário estabelecido. Nessa linhade pensamento, Elaine Showalter contribui com o conceito de ginocrítica, que_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.99


usca entender “a psicodinâmica da criatividade feminina, sendo assim oestudo da mulher escritora, a trajetória da carreira feminina individual oucoletiva e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres”(SHOWALTER, 1993: 29/30).A presente artigo tentou contribuir com essa tendência ao darvisibilidade à produção ficcional de Michèle Roberts, especialmente à obra Thebook of Mrs. Noah. Em todos seus romances, a escritora inglesacontemporânea explora as formas de amor, as experiências e as perdas damaternidade também como metáfora, tal qual observamos anteriormente nesseestudo. Em nossa leitura dos romances de Roberts, percebemos que elesrepresentam uma tentativa de pensar para além da dualidade natureza/culturae possibilitam repensar a maternidade a partir de uma perspectiva diferenteque desconstroi a mística da maternidade enquanto identidade institucionalimposta e promove inovações no conteúdo e na forma de seus romances.As análises de suas obras apresentam não apenas reflexões e novasvisões sobre a temática da maternidade a partir da perspectiva da própria mãe,mas também critérios estéticos, narrativos e estilísticos diferentes das regrascanonizadas da tradição literária masculina. Para Kolodny, a releitura daprodução literária de autoria feminina levanta questionamentos sobre as razõespara o silenciamento dessa literatura e para o status diminuído desses mesmostrabalhos em relação à produção literária de autoria masculina.Particularmente, a releitura dos romances de Roberts, associada àscontribuições dos feminismos e estudos de gênero relacionados àsexperiências do maternar apresentadas nesta pesquisa, nos leva a refletirsobre como, sobretudo, os trabalhos ficcionais que retratam a relação mãe-filhasob o ponto de vista da mãe, têm sido excluídos do padrão literário tradicional.Em seus romances, especialmente em The Book of Mrs. Noah, MichèleRoberts aprofunda e diversifica a temática da maternidade como tema centralna literatura e, acima de tudo, sob a perspectiva da mulher e da própria mãe.Como bem observa Adrienne Rich, “maternidade e não-maternidade têm sidoconceitos tão cheios de significações para nós, precisamente porque qualquerum que sigamos se volta contra nós” (RICH, 1981: 253).Além disso, Roberts ressaltou uma relação em especial, dentre asmuitas que envolvem a maternidade: a relação entre mães e filhas, comoprocuramos demonstrar neste trabalho. Como vimos, a relação entre mãe efilha é de grande importância para o estudo da maternidade e tem sido foco deatenção de algumas teóricas feministas contemporâneas. Segundo Rich, nãosomos mães ou filhas; nós somos ambas, somos mulheres que, identificadas,_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.100


solidarizadas, proporcionamos umas às outras tipos de identificação realmenteexistentes entre mães e filhas.Em Noah, Michèle Roberts reconstroi ficcionalmente uma personagembíblica apenas nomeada pelo seu caráter relacional com o masculino: a esposade Noé, um dos grandes patriarcas do Antigo Testamento. Relacionandomaternidade e ficção, as personagens em Noah denunciam a opressão a queas mulheres são submetidas pela ideologia patriarcal e expressam seuspróprios pensamentos e ideais, que têm como essência a vontade de darvisibilidade às mulheres como seres livres e independentes; ao longo doromance, as personagens femininas envolvem-se em um corajoso e complexoprocesso de desconstrução de mitos patriarcais que as oprimem e as confinamno único papel de mãe. Dessa forma, essa pesquisa ajuda a enfatizar que, naspalavras de Rich, “a maternidade, no senso de uma relação intensa com umacriança em particular ou crianças, é uma parte do processo feminino; não éuma identidade para todo o tempo.” (RICH, 1981: 37) Segundo ela, a instituiçãoda maternidade precisa ser destruída. “Isso não significa abolir a maternidade.Significa a criação e o apoio à vida como qualquer outra atividade difícil, masque pode ser escolhida e não imposta.” (RICH, 1981: 279-280).Michèle Roberts parte de uma questão ainda relativamente poucodiscutida no presente – a maternidade – e a problematiza, lançando nova luzsobre a experiência materna na literatura. Além desta dimensão temáticarelevante para os feminismos, Roberts também inova na forma de seusromances; em Noah Roberts é especialmente criativa, construindo umanarrativa complexa, com múltiplos pontos de vista, em que há diversasnarradoras que contam outras tantas narrativas, formando a teia de Aracne.Para onde quer que olhemos, encontramos uma voz feminina, que é quasesempre também uma voz materna. Para entendermos melhor a rica estruturade Noah, foi necessário, principalmente, estudarmos o conceito de polifoniaproposto por Bakhtin, em "tessitura polifônica na qual confluem, seentrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outrostextos, outras vozes e outras consciências" (BAKHTIN, 1981:103).Ao ler os romances de Roberts, narrados por mulheres que contam suasexperiências de dor, anseios e frustrações, prazer, sonhos e felicidade e,assim, questionam os cânones falocêntricos dos homens que narram suasvidas heróicas ou as vidas de mulheres musas, santas ou diabólicas. O/Aleitor/a desenvolve novas estratégias interpretativas, que acabarão levando àaceitação de novas práticas de representação ficcional da experiênciafeminina, dando importância ao que durante tantos anos foi visto como_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.101


prosaico, insignificante. Assim, romances como Noah, por suas inovações,como as referentes à visibilidade da voz materna e da experiência da mulherna produção ficcional de autoria feminina, contribuem não apenas para adesconstrução de mitos patriarcais e para novas visões da maternidade, mastambém para uma reformulação dos padrões estéticos literários tradicionais.Roberts fragiliza, por meio das ricas e complexas temáticas do romance,os fundamentos do patriarcalismo, em que não há mais espaço para osbinarismos de gênero e as definições simplistas e rígidas perpetuadas nasociedade patriarcal. Roberts inova ao propor, através de narrativas nãolineares,um universo do que as maternidades podem ser, de como asmulheres podem experienciar as maternidades e a produção das narrativassobre elas próprias.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAGONITO, Rosemary. History of Ideas on Women. 1 ed. New York: Paragon,1977.BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno.Tradução de Waltensir Dutra. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 2a edição. São Paulo:Hucitec, 1981.BBC World Service. Acervo sobre Michèle Roberts. Disponível emhttp://www.bbc.co.uk/worldservice/arts/features/womenwriters/roberts_life.shtm.Acessado em maio/2006.BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1985.CHO<strong>DO</strong>ROW, Nancy. Estrutura Familiar e Personalidade Feminina. InROSAL<strong>DO</strong>, Michelle e LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.102


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O ‘EU’ E SEU TRATAMENTO SEMÂNTICA: UM EXERCÍCIO <strong>DE</strong> ANÁLISEGRAMATICALRenato Miguel BASSO (UFSCar)Resumo: O item ‘eu’ é tradicionalmente analisado como um dêitico ou umindexical, i.e., uma expressão que recebe seu valor a partir de um elemento docontexto, no caso, do agente (falante, escrevente) do contexto. Depois deapresentar a teoria de Kaplan (1989) sobre esse item – certamente a mais bemsucedida das teorias até agora propostas –, mostramos vários usos de ‘eu’ quenão são capturados por esse teoria. Na sequência, defenderemos que aanálise gramatical de itens corriqueiros pode se revelar como uma ferramentainteressante para a reflexão gramatical e o ensino de línguas.Palavras-chave: indexicais, pronomes pessoais, descrição definida,semântica, pragmáticaIntroduçãoMuitas vezes as palavras aparentemente mais simples são aquelas quecolocam os desafios mais complexos para as análises linguísticas. Prova dissoé a longa tradição já arquiteta sobre o estudo dos artigos definidos, cujaencarnação moderna começa com o texto “On Denoting”, do filósofo britânicoBertrand Russell, escrito em 1905. O estudo dessas palavras “inocentes” éinteressante por uma série de motivos: lançamos um olhar científico e analíticoa itens usados cotidianamente e sobre os quais dificilmente refletimos; aanálise desses itens permite mobilizar todo um arsenal de conceitos jáestabelecidos e averiguar e se eles conseguem dar conta do problema em tela,se precisam ser alterados ou se precisamos de ferramentas (i.e., conceitos)novas; além disso, na imensa maioria das vezes, esses itens corriqueiros estãopresentes em quase todas as línguas do mundo e seu estudo pode lançar luzsobre a própria arquitetura da linguagem natural.Com esses objetivos em mente, olharemos neste texto para o item ‘eu’,uma palavra, pelo menos do ponto de vista gramatical, supostamente bemcomportada,cuja contribuição linguística parece ser tão bem entendida que as_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.106


gramáticas e diversos manuais de linguagem sequer gastam muito tempo emsua análise. Ao longo deste texto, procuraremos mostrar como mesmo o item‘eu’ requer uma análise extremamente sofisticada e desafia certos postuladosbásicos que parecem explicar completamente tal item.Antes de começarmos, porém, uma pequena ressalva. É possível,obviamente, analisarmos o item ‘eu’ e seus diversos usos lançando mão deteorias discursivas e enunciativas, mas esse não é nosso objetivo aqui; antes,o que procuraremos fazer é descrever gramatical e semanticamente esse item,de modo a chegar à forma básica que ele deve ter e às regras necessárias queoperam sobre essa forma básica para gerar todas e apenas as interpretaçõespossíveis para esse item. Porém, mais do que chegar a uma explicação de ‘eu’,procuraremos mostrar como essa palavra aparentemente tão banal pode noslevar a questões muito interessantes, despertando nossa curiosidade sobre ofuncionamento dessa e demais outras palavras do português (e de outraslínguas), uma curiosidade que pode ser utilizada para o ensino de gramática.Sendo assim, o presente texto organiza-se como segue: na seçãoabaixo, apresentaremos uma primeira intuição sobre o item ‘eu’; feito isso, naseção 2, olharemos com mais cuidado sobre como essa intuição pode serencaixada numa teoria de escopo mais amplo, no caso, a teoria de indexicaisformulada por David Kaplan (1989). Nosso objetivo na terceira seção é mostrardiversos usos da palavra ‘eu’ que não podem ser capturados pela teoria deKaplan, totalizando 7 usos diferentes (dos quais a teoria de Kaplan, emprincípio, só dá conta de 1). Contudo, seria muito surpreendente que, de todosos pronomes pessoais de uma língua, (i) somente o ‘eu’ apresentasse tamanhaquantidade de interpretações e que (ii) de fato sejam 7 as interpretações e elasnão possam ser arranjados ou agrupadas em categorias mais gerais. Por isso,na seção 4 mostraremos que os outros pronomes pessoais (pelo menos ossingulares) apresentam os mesmos usos que ‘eu’ e proporemos umareorganização dos 7 usos em três categorias, que são encontradas para todosos pronomes. Finalmente, na seção 5 faremos um balanço do caminhopercorrido e uma pequena discussão sobre a relação entre reflexões desse tipoe o ensino de português.1. Uma primeira teoria sobre o item ‘eu’A palavra ‘eu’ é um exemplo prototípico de “dêitico” ou “indexical”, ouseja, um item que tem, entre outras propriedades, uma grande dependência_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.107


contextual – a princípio, o referente de ‘eu’, sua contribuição linguística, é ofalante e ela muda cada vez que um novo falante pronuncia ‘eu’. Tomemos osexemplos abaixo, em que temos como falante o João em (1) e a Maria em (2);a representação usando os parênteses angulares () mostra qual proposição(ou pensamento) está sendo expressa:(1) (João:) Eu tô com fome(1’) (2) (Maria:) Eu tô com fome(2’) Dado que (i) em (1) e (2) temos as mesmas palavras envolvidas – i.e., asequência ‘eu tô com fome’ –, (ii) o predicado envolvido não muda (‘estar comfome’), e (iii) ainda assim essa mesma sequência expressa duas proposiçõesdiferentes a depender de quem fala, podemos concluir que (iv) o item ‘eu’ ésensível a quem é o falante e o designa, ou seja, o referente de ‘eu’ é o falante.O par de exemplos (1) e (2) acima nos permite fazer a distinção entresentenças e proposições (ou pensamentos). Sentenças são sequências depalavras organizadas segundo a sintaxe de alguma língua e são gramaticais,assim sendo, como vimos temos a mesma sentença em (1) e em (2); por suavez, proposições são os pensamentos expressos por uma dada sentença;porém, como mostram o par (1) e (2) não podemos dizer que uma mesmasentença expressa sempre a mesma proposição, afinal, apesar de (1) e (2)representarem a mesma sentença, a proposição que elas expressam sãodiferentes, e a diferença reside justamente no fato de que a sentença ‘eu tôcom fome’ carrega um elemento cuja interpretação depende do contexto, oitem ‘eu’.Uma maneira elegante de capturarmos as diferenças e semelhançasentre o par (1)-(2) é postular que proposições são o resultado de proferimentos,e que proferimentos são sentenças (i.e., sequências de sons, sintatica esemanticamente bem formadas) relativizadas a um contexto de proferimento,algo que pode ser representado pelo par , no qual ‘s’ está por sentença e‘c’ por contexto. Note que agora, além de sentença e proposição, temostambém o conceito de proferimento (uma sentença relativizada a um contexto)– e tudo isso apenas para podermos analisar duas sentenças aparentementetão “simples”. Obviamente, falta ainda definir “contexto”, algo que só pode serfeito no interior de uma teoria especifica, como a que apresentaremos napróxima seção._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.108


Procedendo à análise com os conceitos dos quais dispomos, no caso de(1) e o (2), a sentença ‘s’ é a mesma, i.e., ‘eu tô com fome’, mas o contexto ‘c’é diferente, porque num deles, que podemos chamar de “c1”, temos o Joãocomo agente ou como aquele que fala, e no outro, que podemos chamar de“c2”, temos a Maria desempenhando esse papel. Dado que os pares para o caso de (1) e (2) são diferentes – temos para (1) e para(2) – conseguimos capturar o fato de que a mesma sentença (s) pode serusada para veicular duas proposições diferentes, e que o item sensível aocontexto é ‘eu’.Essa maneira de capturar essas intuições é relativamente simples e bemsucedida, porém ela gera consequências de longo alcance que nem sempre seconformam à nossa intuição. Um dos objetivos deste texto é mostrar que aanálise esboçada acima não dá conta de todos os usos que fazemos dapalavra ‘eu’, e é necessário uma outra teoria para lidar com esse item.Antes, porém, de vermos os problemas com essa primeira análise,bastante próxima a nossa interpretação intuitiva de ‘eu’ e ao que dizemmanuais e gramáticas, vejamos como essa primeira teoria pode ser encaixadanuma teoria semântica formal mais ampla – o modelo proposta pelo filósofoDavid Kaplan.2. A teoria de Kaplan para o item ‘eu’A teoria de indexicais de Kaplan (1989) foi formulada pela primeira vezem 1977, mas foi publicada apenas em 1989. O autor tentou dar conta dasemântica, da epistemologia e da metafísica que envolve os chamados itensindexicais – justamente os itens que, para receberem uma interpretação,dependem de informações contextuais. Ao lidar com esses termos, Kaplanacabou por definir termos básicos da filosofia da linguagem e da semântica,que são ainda hoje usados conforme ele propôs. Na primeira seção destetexto, já tivemos oportunidade de lidar com as definições de sentença(sequência de sons ou palavras sintatica e semanticamente bem formadas),proposição (pensamento veiculado por um proferimento, que pode ser avaliadoem termos de suas condições de verdade) e proferimento (sentença dita numdado contexto); o próximo passo é entender melhor a noção kaplaniana decontexto. É importante notar, antes de mais nada, que o que Kaplan entendepor contexto é algo bastante preciso que cumpre certas funções específicas;em sua teoria, contexto nada mais é do que uma série de informações nas_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.109


quais os falantes se apoiam ao usar certas expressões linguísticas (osindexicais). Um contexto é então uma unidade informacional que contém,segundo Kaplan, um agente (c a ), um ouvinte (c o ), um tempo (c t ), um lugar (c l ) eum mundo possível (c w ), e é representado como uma ê-nupla ordenada daforma . Para lidar com as informações contextuais, Kaplanpropõe a função caráter – uma função que toma um contexto e resulta numconteúdo; por sua vez, conteúdo é uma função que toma mundos possíveis eresulta em valores de verdade (para o caso de sentenças) e referentes (para ocaso de termos singulares). Podemos pensar também que o caráter é umaregra de uso associada a um dado item lexical, ao passo que o conteúdo é acontribuição proposicional do item lexical (como o sistema kaplaniano écomposicional, as mesmas considerações se aplicam a sentenças).Segundo a teoria de Kaplan, todos os itens linguísticos são interpretadospela função caráter e pela função conteúdo, porém, apenas os indexicais dãoresultados diferentes com relação ao caráter (porque são sensíveis aocontexto). Para o caso do indexical, ‘eu’, por exemplo, seu caráter é umafunção que resulta, a cada contexto, no falante ou agente daquele contexto, ouseja, [[eu]] = falante/agente de c = c a ; foi o que vimos com os exemplos (1) e(2), que repetimos abaixo usando a terminologia introduzida (no que segue,ignoraremos tempo e local do contexto):c1 = >(1) (João:) Eu tô com fomeCaráter de (1): = =Conteúdo de (1): = c1 = >(2) (Maria:) Eu tô com fomeCaráter de (2): = =Conteúdo de (2): =Para sabermos se as proposições expressas em (1) e (2) sãoverdadeiras ou falsas, é preciso considerá-las com relação aos mundospossíveis acessíveis; nesse caso, (1) é verdadeira se e somente se (sse) João_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.110


estiver com fome no mundo de consideração; o mesmo vale, mutatis mutandis,para (2).Assim, se considerarmos os mundos abaixo:w1 João, Pedro, Tiago, Maria estão com fome;w2 João e Pedro estão com fomew3 Maria está com fomeobteremos que a proposição expressa em (1), com o proferimento , éverdadeira nos mundo w1 e w2; e que a proposição expressa em (2), por suavez, é verdadeira nos mundos w1 e w3.Com a teoria de Kaplan, temos então duas funções que têm comoobjetivo fornecer a proposição veiculada pelas sentenças das línguas naturais.Essa teoria pode ser representada graficamente pelo esquema abaixo,adaptado de Schlenker (2009):Há várias nuances que a teoria de Kaplan apresenta, como, porexemplo, diferenciar indexicais como ‘eu’, ‘aqui’, ‘hoje’, etc. dos demonstrativos,chamando os primeiros de indexicais puros, pois sua interpretação dependesimplesmente de informações contextuais, dos segundos, chamados deindexicais impuros, pois sua interpretação depende também de apontamentosou gestos de ostensão para objetos presentes no contexto visual – mas não épossível expormos todas as nuances da teoria aqui (cf. BASSO et al., 2012;BRAUN, 2012; TEIXEIRA, 2012). Porém, é importante chamar a atenção paraduas características básicas dessa teoria, que serão desafiadas nas seçõesseguintes: a ideia de que os indexicais são termos diretamente referenciais e aideia de que o único contexto mobilizado para a interpretação dos indexicais éo contexto de fala, em contraste, por exemplo, com o contexto de fala relatadaou reportada._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.111


Com a primeira dessas ideias, Kaplan captura o fato de que acontribuição proposicional de um indexical (que é um termo singular) é umindivíduo e nada mais, ou seja, para uma sentença que contém a palavra ‘eu’,por exemplo, a contribuição proposicional de ‘eu’ será o agente/falante docontexto e nenhum de suas propriedades (descritivas). Essa concepçãoacarreta que os indexicais são termos rigidamente referencias no sentido deKripke (1981). Ainda segundo Kaplan, o único contexto que pode ser utilizadopara o estabelecimento da contribuição proposicional de indexicais é o contextode proferimento – qualquer operador que controla o contexto de avaliação dosindexicais, segundo o autor, é um operador-monstro, e Kaplan diz que taisoperadores não existem. Essa assunção foi criticada por inúmeros autores eserá novamente aqui.Em resumo, para Kaplan o item ‘eu’ tem a seguinte representação (éimprescindível notar que estamos simplificando ao máximo a teoria de Kaplan):F: [[eu]] = c a o item ‘eu’, com relação a um contexto c tem como referente oagente do contexto (c A )Com a teoria de Kaplan, um poderoso instrumento para o entendimento dosindexicais nas línguas naturais, passemos aos diversos usos de ‘eu’,mostrando os limites dessa teoria.3. Os vários usos do ‘eu’ e a teoria padrãoO emprego de ‘eu’ que vimos para os casos em (1) e (2) não é o únicoque encontramos para esse item. Na verdade, é possível, em princípio,identificar (pelo menos) 7 diferentes usos de ‘eu’, que chamaremos de “usoreferencial”, “uso impróprio”, “uso metaficcional”, “uso metonímico”, “usodescritivo”, “uso como variável” e “uso genérico”; esse usos serão analisados,na ordem em que foram apresentados, nas seção 3.1 a 3.7, juntamente comuma avaliação de como a teoria de Kaplan poderia dar conta deles –argumentaremos que, conforme originalmente formulada, essa teoria dá contaapenas do uso referencial. Na seção 4, conforme dissemos na introdução,reduziremos esses 7 usos a apenas 3, que são encontrados também nosoutros pronomes._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.112


3.1 Uso referencialO uso referencial é aquele exemplificado pelas sentenças (1) e (2) e é,talvez, o uso mais comum de ‘eu’. Podemos identificá-lo em todos os exemplosabaixo, lembrando que sua característica principal é referir-se ao agente,falante ou escrevente do contexto:(3) Eu não quero tomar banho.(4) Eu não estou com vontade de estudar.(5) Deixa eu quieto!(6) Me passa cola pra prova...Para todos esses casos, seguindo a teoria de Kaplan, saber quem é oagente, falante ou escrevente do contexto basta para determinar quem é o ‘eu’e ele se refere ao agente, falante ou escrevente do contexto devido ao seucaráter e não por conta de alguma propriedade ou característica de seureferente. Em outras palavras, a fórmula [[eu]] = c a dá conta e esgota o usoreferencial; todos os casos que veremos na sequência, por sua vez, não cabemnessa fórmula.3.2 Uso impróprioUsos impróprios são aqueles em que o agente, falante ou escrevente docontexto – aquele que realiza o item ‘eu’ – não é seu referente. Um exemploparticularmente claro é aquele em que alguém (João) escreve um bilhete comos dizeres ‘ME CHUTE’ e cola nas costas do Pedro. Mesmo para os que viramJoão escrever o bilhete, e, portanto, empregar o ‘eu’, ser seu agente, oreferente de ‘eu’ será Pedro – é ele que receberá os chutes caso as pessoasresolver seguir o que está escrito.Outro exemplo, um pouco mais elaborado, é o seguinte: suponhamosum corredor com salas de professores, de modo que as portas fiquem de frenteuma para a outra. O professor João não está em sua sala, a sala A. Por suavez, o professor Pedro, cuja sala, a B, que fica de frente à sala do professorJoão, está e gosta de trabalhar com a porta aberta. A partir de um certomomento, estudantes começam a bater na porta da sala A, na esperança deconversar com o professor João, sem saber que ele está viajando. Isso ocorrealgumas vezes até que acaba irritando o professor Pedro que então escreve o_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.113


seguinte recado num pedaço de papel e o cola na sala A: ‘Eu não estou aquiagora’. A ideia funciona e os alunos, ao lerem o bilhete, vão embora sem baterà porta e sem incomodar o professor Pedro 40 .Intuitivamente, tudo parecer funcionar bem e concordamos que oreferente de ‘eu’ para o bilhete em questão é João, ou ao menos concordamosque é assim que os estudantes se comportariam. Porém, a teoria de Kaplannão nos dá esse resultado: se a função caráter de ‘eu’, ao tomar comoargumento um contexto, resulta no agente do contexto (c a ), é óbvio que oagente é Pedro, e logo o conteúdo (referente) de ‘eu’ nesse contexto é Pedro enão João – algo que claramente não captura nossa intuição e interpretação.Para tornar as coisas ainda mais complicadas para a teoria de Kaplan,suponhamos também que Pedro não esteja sozinho em sua sala, mas estátrabalhando com um aluno, o José. Suponhamos que José tenhaacompanhado tudo o que descrevemos; notadamente, ele viu que foi Pedroque escreveu o bilhete e o colou na porta da sala do professor João. Éinteressante notar que, mesmo do ponto de vista de José, é contra-intuitivodizer que o referente de ‘eu’ é Pedro, ou seja, é contra-intuitivo dizer que asentença colada na porta da sala A expressa a proposição (estruturada).Fundamentalmente, o que temos aqui é que o referente de ‘eu’ não é c a ,ou seja, o agente/falante/escrevente do contexto, e a fórmula F não funcionapara esses casos. Há, porém, diversas formas de resgatar a teoria kaplaniana,mas todas elas têm que dissociar o referente de ‘eu’ doagente/falante/escrevente de ‘eu’ e estabelecer, de alguma outra forma, comosabemos quem é o referente de ‘eu’, já que ele não é mais o agente docontexto. Seja qual for a melhor saída, ela levará a uma reformulação da teoriade Kaplan para o caso do item ‘eu’. Mais sobre esse uso pode ser encontradoem Basso (2010), Corazza et al. (2002), Predelli (1998), Perry (2003) eRomdenh-Romluc (2006).3.3 Uso metaficcionalO uso metaficcional de ‘eu’ foi extensamente analisado por Basso eTeixeira (2011) e Teixeira (2012), e aqui nos interessa apenas apontar suaexistência, seus contornos gerais e os problemas que coloca à teoria padrãosobre os indexicais.40 Exemplo adaptado de Corazza et al. (2002, p. 5)._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.114


Como sempre, imaginemos o seguinte contexto: depois de uma peça deteatro, que envolvia apenas duas atrizes, uma repórter perguntar para uma dasatrizes ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fosse maisengraçada?’; a atriz responde ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’. O pontointeressante é que o segundo ‘eu’ da resposta da atriz tem como referente nãoa atriz, mas a personagem que ela interpreta. Para que isso fique mais claro,vamos imaginar que as atrizes se chamam Ana e Maria, e as personagens queelas interpretam se chamam, respectivamente, Sandra e Sonia. Considerandoisso, e supondo que a pergunta tenha sido feita à Ana, podemos parafrasear apergunta da repórter e a resposta de Ana como abaixo:pergunta: ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fossemais engraçada?’‘O que Ana (=c o ) acha que poderia mudar na peça para que ela fossemais engraçada?’resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’‘Ana (=c a ) acha que Sandra (=??) podia ser mais rica’O problema é que essa paráfrase e a interpretação que ela revela nãoestão disponíveis para a teoria padrão: justamente porque ‘eu’ é c a , e ocontexto tem Ana como agente/falante, a única interpretação possível é aabaixo:resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’‘Ana (=c a ) acha que Ana (=c a ) podia ser mais rica’Essa interpretação, apesar de possível, não faz muito sentido ou não é umaresposta relevante para a pergunta da repórter. Seja como for, a primeiraparáfrase está disponível, mas a teoria de Kaplan não tem como gerá-la,simplesmente porque a teoria postula que o único contexto possível mobilizadopara a interpretação dos indexicais é o contexto de proferimento, e em talcontexto Ana é sempre o agente/falante.Uma saída possível, adotada por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira(2012), é postular um operador-monstro, que manipula o contexto de modo queo primeiro ‘eu’ é fixado no contexto de proferimento e tem como referente seuagente – Ana; mas o segundo ‘eu’ é fixado no contexto da ficção relevante (apeça de teatro) e tem como referente seu agente – Sandra. A explicitaçãoformal dessa proposta e suas consequências não são totalmente óbvias e têm_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.115


amificações bem interessantes, mas que fogem aos objetivos deste texto.Porém, mais uma vez, resta notar que a fórmula F não pode ser a palavra finalsobre o ‘eu’, desta vez porque o contexto, às vezes e sob certas condições,pode ser controlado 41 .3.4 Uso metonímicoO uso metonímico do item ‘eu’ é ilustrado pela sentença abaixo:(7) Eu tô estacionado na garagem.Com (7), sabemos que o falante, através de ‘eu’, refere-se ao seu carro. Hádiversas explicações para que o acontece aqui, e mesmo o uso do termo“metonímico” não é consensual, pois há autores que acreditam que ainterpretação sugerida para (7) não envolve um processo metonímico. Sejacomo for, novamente, e de modo semelhante ao que vimos para o “usoimpróprio”, a interpretação de ‘eu’ para esse caso não resulta da simplesaplicação de F. Nunberg (1993, 2004) e Mount (2008) apresentaminteressantes discussões sobre este uso de ‘eu’.3.5 Uso descritivoOs usos descritivos colocam sérios problemas para um dos principaispilares da teoria de Kaplan: a ideia de que a contribuição proposicional de umindexical (sendo um termo singular) é um indivíduo, ou seja, eles são termosdiretamente referenciais que se referem a indivíduos sem levar em contanenhuma propriedade ou característica desses indivíduos. Tendo isso emmente, tomemos a sentença abaixo, dita em 2012 por Dilma Rousseff, e aanalisemos segundo a teoria kaplaniana:(8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.41 Seria possível argumentar que o uso metaficcional é, na verdade, uma instância do usodescritivo, que veremos na seção 2.5. Contudo, essa saída não é viável pois a aplicação douso descritivo geraria, para ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’, a seguinte paráfrase ‘Anaacha que a atriz que interpreta Sandra (e Ana é uma dessas atrizes) pode ser mais rica’, quenão captura nossa interpretação da sentença._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.116


A Constituição dá a palavra final a c a =Num primeiro olhar, essa análise parece correta e a proposição expressa éverdadeira nos mundos possíveis em que a Constituição dá a palavra final paraDilma Rousseff. Consideremos então os seguintes mundos possíveis:w1 a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente doBrasilw2 a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista delojaw3 a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidentedo Brasilw4 a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconistade lojaO ponto interessante é que, segundo a teoria de Kaplan, a proposiçãoexpressa pela sentença (8) é verdadeira nos mundos w1 e w2, e falsa nosmundos w3 e w4, pois basta que a Constituição dê a palavra final ao indivíduonomeado Dilma Rousseff para que a proposição seja verdadeira,independentemente de quaisquer características de Dilma Rousseff 42 . Ora, issoclaramente vai contra nossa intuição, pois diremos que apenas o mundo w1deve ser levado em consideração, diremos que a Constituição dá a palavrafinal para Dilma Rousseff porque ela é a presidente do Brasil, ou enquanto elafor a presidente do Brasil. Mas, como esperamos ter mostrado, não é esse oresultado a que chega a teoria tradicional. Uma paráfrase mais adequada para(8) seria como abaixo:(8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.A constituição dá a palavra final ao presidente do Brasil e Dilma Rousseff(quando profere (8)) é a presidente do BrasilPara dar conta dessa paráfrase, precisamos de uma teoria de indexicais queleve em conta as propriedades dos referentes desses itens, pelo menos emalguns casos. O mesmo ponto pode ser feito através do exemplo de Nunberg42 É importante lembrar que isso se dá porque, na teoria de Kaplan, o contexto de proferimentodetermina, exclusiva e exaustivamente, o referente, que em todos os casos do exemplo (8)será Dilma Rousseff porque ela é c a ._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.117


(1993), adaptado abaixo. Imagine um prisioneiro condenado à morte, chamadoJoão; em sua última noite, ele diz ao guarda de plantão:(9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição.A análise kaplaniana resulta, muito grosso modo, na proposição:Essa proposição expressa que João, tradicionalmente, tem direito a uma últimarefeição – algo que simplesmente não faz sentido, pois ninguém, por definição,faz tradicionalmente uma última refeição, já que se trata de uma últimarefeição. Uma paráfrase mais razoável para (9) seria:(9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição.Os condenados à morte têm, tradicionalmente, direito a uma última refeição eJoão é um condenado à morte.É interessante notar que a paráfrase que oferecemos para (9) segue, em linhasgerais, o caso em (8), e ambas mostram que a fórmula F estabelece umarelação direta demais: é necessário levar em conta, em alguns casos, aspropriedades dos referentes.3.6 Uso como variávelO uso de ‘eu’ como uma variável aparece na literatura desde 1989 (cf.PARTEE, 1989), e desde então tem sido tratado de diversas maneiras. Paraentender esse uso, imaginemos um contexto em que temos João, Pedro eMaria, e que cada um deles tenha filhos; a Maria diz (10), cuja análisekaplaniana é mostrada logo abaixo – grosso modo, em (10’) temos umarepresentação com o caráter do indexical, e em (10’’), o conteúdo.(10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.(10’) Só c a pode tomar conta dos filhos de c a(10’’) Só Maria pode tomar conta dos filhos da Maria_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.118


Nessa interpretação, o João não pode tomar conta dos filhos de Maria e nem oPedro, pois somente a Maria pode tomar conta dos filhos da Maria. Contudo,há uma outra interpretação para a sentença (10) proferida pela Maria, cujaparáfrase está em (11), e que não pode ser gerada pela teoria padrão sobre‘eu’:(10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.(11) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios filhosNessa interpretação, Maria pode tomar conta dos filhos de Maria, e João ePedro também podem tomar conta dos filhos de Maria, mas João não podetomar conta dos filhos de João e nem Pedro pode tomar conta dos filhos dePedro. Os esquemas abaixo ajudam a visualizar essas duas interpretações –note que representamos apenas algumas das intepretações possíveis para nãopoluir demais a imagem:MariaJoãoPedroMariaJoãoPedroINTERPRETAÇÃO (10’’)tomar contaXXINTERPRETAÇÃO (11)tomar contaXXfilhos da Mariafilhos do Joãofilhos do Pedrofilhos da Mariafilhos do Joãofilhos do Pedro3.7 Uso genéricoO uso genérico pode ser exemplificado pelas sentenças abaixo: assistindo uma partida de futebol, alguém diz, depois de ver um gol feitoperdido:(13) Esse gol até eu fazia!_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.119


como comentário sobre o desempenho de um time que jogou muito mal,alguém diz:(14) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado...Os ‘eu’s presentes em (13) e (14) podem receber uma interpretação segundo aqual não se referem ao falante (agente do contexto) nem a ninguém emparticular, mas sim a qualquer um – para (13), não interessa quem seja, faria ogol, e para (14), não interessa quem seja, se quiser ganhar esse alguém temque entrar motivado.A teoria de Kaplan não tem meios de capturar essa interpretação semalterações drásticas simplesmente porque a única coisa que diz sobre ‘eu’ é afórmula F. Mais sobre o uso genérico de ‘eu’ pode ser visto nos trabalhos deZobel (2010, 2011).3.8. Pequeno balançoSeis dos sete usos que vimos nas seções 3.1-3.7 desafiam a teoria deKaplan, pois (i) o referente de ‘eu’ não é (simplesmente) o agente do contexto(seções 3.2 e 3.4); (ii) o contexto relevante para a fixação do referente de ‘eu’não é (unicamente) o contexto de proferimento (seção 3.3); (iii) oestabelecimento do referente de ‘eu’ e das condições da verdade daproposição expressa levam em conta propriedades ou características doreferente (seção 3.5), o que fere um dos princípios fundamentais da teoriakaplaniana; e finalmente, (iv) ‘eu’ não se refere a nenhum indivíduo mas simfunciona como uma variável ligada, seja porque expressa uma propriedade ouatua numa sentença genérica (seções 3.6-3.7).É importante salientar que as interpretações de 3.1 a 3.4 podem ser“salvas” numa teoria kaplaniana desde que certos ajustem sejam feitos, o que,em parte, descaracteriza essa teoria. Os casos em 3.5 a 3.7, por sua vez,apresentam desafios mais sérios à teoria e demandam outro tipo de ajuste, oque dificulta sobremaneira qualquer tentativa de explicar com a teoria deKaplan todos os usos de ‘eu’. Dado que concluir que há mais de um ‘eu’ nalíngua não é a melhor alternativa dos mundos, a situação descrita até aquipede por uma outra teoria sobre indexicais e sobre ‘eu’ em particular, e é parauma tal teoria que nos voltamos na sequência. Porém, antes disso,mostraremos que os usos de ‘eu’ podem ser reduzidos a três e que esses trêsusos podem, também, ser observados em todos os pronomes._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.120


4. Reduzindo os usos de ‘eu’ e as interpretações dos pronomes pessoaisA proposta que faremos nesta seção é que os usos 3.1 a 3.4 podem seragrupados sobre o rótulo de “uso referencial”, o que vimos em 3.5 é o “usodescritivo” e o que vimos nas seções 3.6 e 3.7 são o “uso como variável”. Aideia é que com o uso referencial o que há como contribuição proposicional ésimplesmente um indivíduo e nada, ainda que ele não seja o agente docontexto (pode ser um outro indivíduo, como nos casos de 3.2 e 3.4, ou podeser o agente de outro contexto que não o de proferimento, como em 3.3) –nesses casos, o problema parece ser o fato de que não temos um regra quefuncione para o estabelecimento do referente em todos os casos; por sua vez,no uso descritivo, a contribuição proposicional não é simplesmente umindivíduo, mas também uma propriedade ou característica exemplificada peloindivíduo (caso 3.5); finalmente, no uso como variável o pronome ‘eu’ contribuipara a proposição com uma variável, não com um indivíduo (específico) e nemcom uma descrição mais um indivíduo.Se isso estiver correto, o que precisamos é de uma teoria que conceba oitem ‘eu’ de modo que ele possa receber essas três interpretações. Porém, nãoseria interessante ter uma teoria apenas para o item ‘eu’, e é por isso queanalisaremos rapidamente na sequência os pronomes ‘ele’ e ‘você’, com oobjetivo de mostrar que esses três usos também são encontrados para essespronomes, com a expectativa – a ser ainda verificada – que é possível estenderas considerações feitas aqui também para os pronomes plurais. No que segue,não faremos uma apresentação exaustiva, que passe pelos 7 casos vistos naseção 3, mas apenas por alguns deles.4.1 As interpretações de ‘ele’ e ‘você’As sentenças (15) e (16) abaixo ilustram usos referencias canônicos, aopasso que as sentenças (17) e (18) são exemplos de uso metonímicos:(15) Olha o João ali! Ele chegou cedo hoje!(16) Presta atenção no que eu falo pra você!(alguém apontando para a chave de um carro:)(17) Ele tá lá atrás, na saída da loja._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.121


(18) Onde você está estacionado?O uso descritivo desses pronomes pode ser um pouco mais difícil de visualizar.Um caso famoso na literatura aparece em Recanati (2005) e Elbourne (2008), ese dá no seguinte cenário: duas pessoas estão conversando e uma delasaponta para o atual Papa, Bento XVI, que é alemão, e diz:(19) Ele costumava ser italiano.Ora, a paráfrase correta para (19) não é (20), mas sim (21):(20) Bento XVI (i.e., Joseph Ratzinger) costumava ser italiano.(21) O Papa costumava ser italiano.O que temos aqui, grosso modo, é o acionamento da propriedade oucaracterística que o referente representa; logo, a contribuição proposicional de‘ele’, em (19), não pode ser simplesmente um indivíduo.Para o caso de ‘você’, podemos imaginar uma situação em que há umaempresa, cujo presidente é sempre o membro mais velho da família que é donadessa empresa, e é o presidente quem toma as decisões importantes; numareunião, um dos executivos aponta para o (atual) presidente e diz:(22) É sempre você quem toma as decisões importantes.Mais uma vez, a paráfrase mais adequada para (22) não é uma que envolvasomente o indivíduo que é o presidente atual, mas também a propriedade deser presidente, como sugerido pela paráfrase em (23):(23) É o presidente que sempre toma as decisões importantes.Para o caso do uso como variável (genérico ou não), podemos tomar assentenças abaixo:(24) Todo homem sabe o que ele deve fazer.(uma professora diz, em tom de bronca, para seus alunos)(25) Para conseguir um bom emprego, você precisa saber ler e escreverdireitinho._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.122


‘Ele’ e ‘você’ em (24) e (25) não são nem referenciais nem descritivos.Com essa pequena bateria de exemplos, esperamos ter mostrados quemesmo ‘ele’ e ‘você’ podem, portanto, ter as mesmas interpretações que ‘eu’ eassim colocam os mesmos desafios para quem quiser analisá-los.5. Descrição gramatical: ainda um convite à pesquisa e ao ensinoAo leitor que chegou até aqui, uma nota importante: não apresentaremosuma proposta de solução para o item ‘eu’ (e os demais pronomes) e suasinterpretações; é certo que existe mais de uma maneira de solucionar esseaparente quebra-cabeça (para o leitor interessado, cf. Nunberg, 1993; Basso,no prelo). Porém, nosso objetivo aqui é outro: mostrar que a análise cuidadosade uma palavra corriqueira e (superficialmente) banal pode levar aquestionamentos interessantes e tornar o estudo da gramática algo muitoinstigante.A descrição de ‘eu’ que fizemos neste texto é um tanto complexa e valea pena retomar seus passos: começamos com uma intuição muito singelasobre o papel de ‘eu’, e, através da análise dos exemplos (1) e (2), precisamoschegar a noções muito sofisticadas (sentença, proposição, proferimento,contexto, etc.). Nosso próximo passo foi mostrar que essa intuição pode sercapturada por uma teoria formal extremamente bem elaborada e assim aliada auma teoria semântica mais ampla, com grandes pontos de encontro com asintaxe e a pragmática.Através de exemplos e contextos (num sentido amplo) comuns,procuramos mostrar que nossa primeira intuição sobre ‘eu’, bem como a teoriaque a endossa, não podem dar conta de todos os seus usos. Um segundopasso foi mostrar que, na verdade, ‘eu’ não é tão idiossincrático assim e queoutros pronomes têm os mesmos usos, e portanto é preciso pensarmos numateoria que dê conta desses usos – sempre lembrando que, em princípio,nossas intuições é que são a principal baliza segundo a qual uma teoria deveser avaliada.Mas o que um estudo tão técnico e intrincado de algo tão específicoquanto o item ‘eu’ pode ter a ver com pesquisa e ensino? Muita coisa, naverdade. O ponto principal é que as ferramentas analíticas usadas paraformular a teoria kaplaniana, que captura nossa primeira intuição sobre ‘eu’, eos tipos de raciocínio utilizados para depois mostrar os limites dessa intuição (eda teoria que a endossa) não são qualitativamente diferentes do que_____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.123


precisamos para analisar os fenômenos e as teorias de outras disciplinas,como a física, a química, a geografia, etc. – com a grande vantagem de quetodos, sem exceção, têm acesso ao dado linguístico, pois somos (em princípio)falantes, e não necessitamos de um laboratório ou ir a campo para aplicarmose testarmos nosso raciocínio, como pode ser para outras disciplinas. O olharanalítico, talvez uma das coisas mais importantes, menos valorizadas e maismal aprendidas pelos nossos alunos, é o que une desde uma análisegramatical até a formulação de uma lei física. Tomar posse de um olhar comoesse nos livra de várias amarradas de preconceitos e receios, pois, com essapostura, o que importa é a formulação clara de uma regra e sua resistênciafrente aos fenômenos que procura abarcar. Mas por que é tão difícil termosuma postura como essa frente à linguagem? Por que ainda consideramos alinguagem, na imensa maioria das vezes, como algo pronto, cujas regrasdevem simplesmente ser aprendidas e/ou decoradas? Por que a análisegramatical de fenômenos de nossa língua materna parece não servir para seuensino e aprendizagem? A resposta a essas perguntas, por mais interessante eimportante que seja, nos levaria para muito longe.O que temos a dizer aqui é algo bem mais modesto: a análise da línguaque falamos pode ser um instrumento para ficarmos curiosos sobre nossalíngua e essa curiosidade pode nos levar a querer aprender mais. É umapostura certamente romântica, mas também certamente vai contra asexpectativas que um aluno tem sobre as aulas de português – o quão maisinstigante pode ser aprender sobre os meandros do pronome ‘eu’ do que sobrecertos tipos de construções que ele nunca usou e provavelmente nunca usará?E por que a análise de itens corriqueiros que seja instigante e surpreendentenão pode levar o aluno a querer saber mais e adotar os mecanismos de análiseusados em outras disciplinas também na aula de português? E talvez tudo issosirva para vencer barreiras com relação ao que aprender nas aulas deportuguês.É com essa nota em tom esperançoso e indagar que encerramos estetexto._____________________________________________________Anais do 10º Encontro de Letras da UCB – ISSN: 2175-6686Os textos são de inteira responsabilidade dos autores.124


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AGRA<strong>DE</strong>CIMENTOSREALIZAÇÃOOutubro2012

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