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Um marco<br />
na história<br />
da Igreja
Imagem de<br />
Nossa Senhora<br />
Auxiliadora,<br />
venerada por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
na Igreja<br />
do Sagrado<br />
Coração<br />
de Jesus,<br />
em São Paulo<br />
N<br />
ossa Senhora é a Auxiliadora por excelência.<br />
É quem acode a todos, de todos<br />
os modos, em todas as circunstâncias<br />
e em todos os lugares. Para agir com tal<br />
largueza, só Alguém de uma riqueza fabulosa, e<br />
de uma bondade ainda mais extraordinária que<br />
essa riqueza, jamais se cansando de ajudar e de<br />
perdoar.<br />
E o perdão é um dos seus dons imensamente<br />
preciosos, de tal modo que, depois de haver perdoado<br />
muito, Ela ainda tem um sorriso de piedade<br />
para quem A ofendeu, quando este A invoca<br />
e suplica misericórdia.<br />
Mais. Ela vem em auxílio da alma que não<br />
pede, da alma que não vê, da alma que não quer,<br />
e a socorre, a bem dizer, pelas costas, alcançandolhe<br />
uma graça que a faz se sentir tocada de amor,<br />
de reverência, de gratidão, de força para rogar novos<br />
auxílios. Sua maternal solicitude é uma espécie<br />
de roldana que leva até o Céu...
Sumário<br />
Na capa, Jacinta e rancisco,<br />
os dois pastorinhos<br />
beatificados este mês pelo<br />
Papa João Paulo II, e a<br />
imagem peregrina de Nossa<br />
Senhora de átima.<br />
Ao fundo, a Basílica de<br />
átima, em Portugal<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
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36<br />
EDITORIAL<br />
Jacinta e rancisco<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Presidente da Ação Católica<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Vida de Advogado – I<br />
DONA LUCILIA<br />
Educando os filhos<br />
pela narração de histórias<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
O “Magnificat”, cântico<br />
de jubilosa despretensão<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Internacionalismo x nacionalismo<br />
A solução medieval<br />
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
Como vencer a crise contemporânea?<br />
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
átima<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Mistérios e encantos do passado...<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
O poder da voz de Maria<br />
3
Jacinta e rancisco<br />
Editorial<br />
“queiram, a verdadeira aurora dos tempos<br />
é um marco novo na própria história<br />
da Igreja. átima é, queiram ou não<br />
“átima<br />
novos, cujos albores despertaram no momento em que<br />
Nossa Senhora baixou à terra e comunicou a três pastorinhos<br />
as lições severas sobre o crepúsculo de nossos<br />
dias, e as palavras esperançosas sobre os dias de bonança<br />
que a Misericórdia Divina prepara para a humanidade<br />
quando esta finalmente se arrepender.”<br />
Nestas palavras, brotadas do mais fundo do coração,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> resumia seu entusiasmo e veneração<br />
pelas aparições e mensagem da Santíssima Virgem<br />
em 1917, que ele nutria igualmente pelas três crianças<br />
escolhidas para serem as mensageiras.<br />
Agora, na mesma átima onde o timbre santíssimo<br />
e virginal da voz da Mãe de Deus ecoou há 83 anos, o<br />
Vigário de Cristo proclama as virtudes heróicas de dois<br />
dos pastorinhos, Jacinta e rancisco. Por terem morrido<br />
tão jovens — dez e onze anos, respectivamente<br />
— sua beatificação constituiu outro marco na história<br />
da Igreja: pela primeira vez são elevadas à honra dos<br />
altares duas crianças dessa idade, por uma causa que<br />
não seja a do martírio. E, glorificando-os, o Papa João<br />
Paulo II manifesta uma vez mais seu alto apreço pelos<br />
acontecimentos vividos pelos novos bem-aventurados,<br />
juntos com a Irmã Lúcia, freira carmelita ainda viva.<br />
Tal beatificação foi intensamente desejada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>. Em várias oportunidades, ao longo das décadas,<br />
ele, assim como destacou sua convicção a respeito<br />
da veracidade de átima, fê-lo também sobre a heroicidade<br />
de virtudes dos dois videntes falecidos na<br />
infância, os quais almejava ver elevados à honra dos<br />
altares. Entre os aspectos de alma dos dois pequenos<br />
que mais o enlevavam, estava o fato de terem aceitado<br />
o convite de Nossa Senhora para difíceis missões:<br />
a de Jacinta era rezar e sofrer pela conversão dos<br />
pecadores; a de rancisco, reparar a tristeza de Nosso<br />
Senhor e de Nossa Senhora pelos pecados do mundo.<br />
Considerava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> que o sacrifício de ambos<br />
os tornava nossos intercessores especiais no Céu, obtendo-nos<br />
graças para atendermos ao apelo da Santíssima<br />
Virgem por sacrifício e reparação.<br />
É preciso haver pessoas que contribuam com sua<br />
dor para que germinem nos corações as palavras de<br />
Nossa Senhora, exortando os homens à conversão.<br />
Todas as grandes obras de Deus se fazem com a participação<br />
de almas que lutam, rezam e sofrem. E acima<br />
dos nossos sofrimentos, quer Deus a retidão e a<br />
pureza, quer almas contritas e humilhadas, que renunciam<br />
a toda forma de orgulho, vanglória e vaidade. “E<br />
isto exatamente nos é dito pelo sacrifício de Jacinta. Devemos,<br />
portanto, pedir a ela que nos alcance de Nossa<br />
Senhora esse senso de sofrimento, indispensável para<br />
que qualquer católico seja verdadeiramente um fiel generoso<br />
e dedicado” — aconselhava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Quanto à missão reparadora de rancisco, é preciso<br />
considerar que, de 1917 até hoje, o oceano de<br />
pecados não fez senão avolumar-se escandalosamente.<br />
Ora, se assim cresceu a ofensa, deve crescer na<br />
mesma proporção a reparação, alimentando nossa<br />
indignação pelos ultrajes infligidos ao Coração Imaculado<br />
de Maria e acrisolando nosso desejo de sermos<br />
instrumentos de Nossa Senhora para a implantação<br />
de seu Reino sobre a terra. A tal nos exortava<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, dizendo: “Devemos pedir a rancisco que<br />
nos obtenha esse ardoroso anelo de reparar o Coração<br />
Imaculado de Maria e, por meio d’Ele, o Coração Sagrado<br />
de Jesus”.<br />
Sirvam-nos essas palavras como tema de meditação<br />
e estímulo nesta tão jubilosa ocasião.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Presidente da Ação Católica<br />
Em 12/05/1940, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tomou posse do<br />
cargo de presidente da Junta Arquidiocesana<br />
da Ação Católica de São Paulo. Ele<br />
mesmo conta:<br />
O Arcebispo, Dom José Gaspar, mandara-me<br />
convidar para ir falar com ele. No início da conversa,<br />
disse-me:<br />
— Vou constituir a Ação Católica aqui e desejo<br />
que o senhor seja o presidente da Junta Arquidiocesana.<br />
Caso aceite este convite, peço que me<br />
indique os nomes que devem constituir essa Junta.<br />
— Como não, Sr. Arcebispo, com todo o gosto!<br />
Estou aqui para servi-lo.<br />
Indiquei todos os membros do nosso grupo do<br />
Legionário e Dom José aceitou. Recebendo-nos<br />
depois, deu-nos esta palavra de ordem: “Vocês,<br />
que são os líderes marianos, atraiam para a Ação<br />
Católica todos os expoentes das Congregações<br />
Marianas!”<br />
Considerava-se que a Ação Católica recebera um<br />
mandato de fazer apostolado, por força do qual lhe<br />
ficavam subordinadas todas as associações leigas<br />
católicas. Sabedor da importância capital das Congregações<br />
Marianas no apostolado dos leigos, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, quando<br />
líder da Ação<br />
Católica em São<br />
Paulo. Ao lado, a<br />
cerimônia de<br />
posse da Junta<br />
Arquidiocesana da<br />
Ação Católica<br />
paulista (<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
é o primeiro, da<br />
direita para a<br />
esquerda)<br />
<strong>Plinio</strong> notava com quanto cuidado era preciso atuar,<br />
de modo que elas, assim como as outras associações,<br />
não se vissem sufocadas. Procurando incentivá-las,<br />
pediu a D. José Gaspar que publicasse uma<br />
declaração regulando as relações entre todas, garantindo-lhes<br />
a necessária autonomia para continuarem<br />
a florescer.<br />
Graças a um gesto de inspirada sabedoria do<br />
Exmo. e Revmo. Sr. Arcebispo Metropolitano —<br />
pôde escrever <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no “Legionário” (10/8/1941)<br />
— as relações entre a Ação Católica e as associações<br />
auxiliares já foram definidas de modo lapidar.<br />
[...] De acordo com esse documento, a Ação<br />
Católica só pode lucrar com o desenvolvimento<br />
das associações auxiliares, que não são para ela<br />
apenas valiosas colaboradoras, mas preciosa sementeira<br />
de membros.<br />
Embora escolhido para presidir a Ação Católica<br />
por três anos — tempo estipulado nos estatutos<br />
— <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ficará no cargo até 1945.<br />
5
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
VIDA DE ADVOGADO – I<br />
6
Nascido de uma estirpe de advogados (bisavô, avô e pai exerceram com muito sucesso<br />
essa profissão), parece natural que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> também trilhasse o caminho de um<br />
homem de leis. Com efeito, ele optou pela carreira de Direito. Como se saiu nela? Como<br />
conjugou sua vida profissional com seu intenso desejo de se dedicar ao apostolado católico?<br />
Ele próprio responde a estas e a outras questões correlatas.<br />
Tenho inclinação natural para<br />
a advocacia, por haver sido<br />
educado numa família de advogados.<br />
Toda pessoa tende naturalmente<br />
a corresponder a uma transmissão<br />
de caracteres físicos e morais<br />
acentuada pelo ambiente. Suponhamos<br />
que eu fosse transplantado de<br />
modo artificial para um círculo de financeiros,<br />
entendidos em preço de<br />
sapatos, qualidade de graxas, alta do<br />
couro, etc. Tornar-me-ia um homem<br />
meio engarrafado, porque as aptidões<br />
naturais que em mim jazem num estado<br />
germinativo teriam ficado sem a<br />
possibilidade de se expandir. No momento<br />
em que eu quisesse fazer um<br />
rodeio de frases bem feito, uma argumentação<br />
sutil, não encontraria nas<br />
graxas e nos sapatos matéria para tal.<br />
O resultado é que eu poderia talvez<br />
até dar um bom comerciante, mas haveria<br />
algo de irremediavelmente trincado<br />
em minha pessoa.<br />
As forças profundas de minha hereditariedade<br />
pediam que eu fosse<br />
advogado e intelectual; do contrário,<br />
as circunstâncias da vida teriam esmagado<br />
este apelo do meu ser, e me imposto<br />
uma personalidade artificial.<br />
Abraçando a advocacia, tudo o que<br />
em mim havia em estado embrionário,<br />
desabrochou, floresceu e realizou<br />
o pouco que podia realizar.<br />
Numa família onde existe, pois, hereditariedade<br />
de alma, de corpo e de<br />
atmosfera moral, encontramos todo<br />
um ambiente espiritual que acentua o<br />
efeito dessa hereditariedade. Mas esta<br />
última é uma força<br />
cheia de mistérios, da qual é próprio<br />
ter exceções, por vezes berrantes, outras<br />
vezes gloriosas: há homens que<br />
brilhantemente rompem a crosta das<br />
disposições familiares, para virem a<br />
ser qualquer coisa de muito mais alto.<br />
Porém, a regra geral permanece intacta.<br />
No tempo de estudante, uma<br />
opção definitiva<br />
Quando eu estava nos derradeiros<br />
anos da aculdade de Direito, costumava<br />
freqüentar a casa de um advogado<br />
cuja família mantinha assíduo<br />
relacionamento com os meus. Aman-<br />
A velha aculdade de Direito<br />
onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se formou<br />
(detalhe). Na página anterior, o<br />
novo bacharel vestido da<br />
tradicional beca<br />
7
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
tes da boa culinária e da mesa farta,<br />
sabiam preparar um esplêndido cuscuz.<br />
Conhecedores de minha predileção<br />
por esse prato, quando o faziam<br />
gentilmente me convidavam para saboreá-lo<br />
com eles.<br />
Por causa de minha posição decididamente<br />
católica, o dono da casa provocava<br />
discussões acaloradas comigo.<br />
Aproveitando-se das relações de família<br />
e do fato de eu ser bem mais<br />
moço que ele, dizia-me algumas coisas<br />
bastante rudes. De minha parte,<br />
redargüia à altura, desconsiderando a<br />
diferença de idade.<br />
Lembro-me de que, certa feita, enquanto<br />
eu conversava com a esposa<br />
dele, notei-o com o olhar fixo em<br />
mim. De súbito, ele nos interrompeu:<br />
— <strong>Plinio</strong>, o que você vai fazer na<br />
vida?<br />
— Ora, vou advogar... Estou me<br />
formando em Direito.<br />
— Se eu o convidasse para trabalhar<br />
no meu escritório de advocacia,<br />
você não aceitaria, não é?<br />
Procurei esquivar-me de uma resposta,<br />
mas ele voltou à carga:<br />
— Eu sei bem por que você não<br />
aceitaria. Você pensa que sou ladrão,<br />
e não quer perder sua alma trabalhando<br />
no meu escritório...<br />
Dei risada:<br />
— É isto mesmo!<br />
Pelo seu modo de ser, eu percebia<br />
que ele não fazia nada além do costumeiro<br />
em alguns dos bons escritórios<br />
de advocacia daquele tempo. Acontece,<br />
porém, que vários desses procedimentos<br />
eram proibidos pela Moral<br />
católica.<br />
Ele continuou:<br />
— Vou lhe dizer uma coisa: com<br />
essa sua honestidade imposta pela<br />
Igreja Católica, seu escritório de advocacia<br />
vai ficar entregue às moscas.<br />
Não há outra saída para você senão<br />
tornar-se juiz. Este será seu futuro:<br />
fazer um concurso, ser nomeado para<br />
uma pequena cidade e passar ali dez<br />
anos. Na melhor das hipóteses, quando<br />
ficar velho será promovido a desembargador.<br />
É o máximo que atingirá.<br />
Você será, portanto, um homem<br />
obscuro e apagado...<br />
Vista da<br />
rua Libero<br />
Badaró, em<br />
São Paulo,<br />
onde<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
abriu seu<br />
primeiro<br />
escritório de<br />
advocacia<br />
Pensei comigo: “Ele tem razão!<br />
Agora preciso escolher: o desprezo, o<br />
isolamento, a pobreza, ou... a perdição<br />
de minha alma”. oi uma luta que<br />
travei. Nossa Senhora me ajudou e<br />
optei pela pobreza e pelo isolamento.<br />
Naquele momento, eu retruquei:<br />
— <strong>Dr</strong>. ulano, se acontecer o que o<br />
senhor prediz, dou por bem acontecido,<br />
porque terei cumprido a Lei de<br />
Deus. Violar essa Lei, eu não quero!<br />
Em todo caso, Nossa Senhora me<br />
protegerá. Se for desígnio d’Ela, não<br />
será esse o futuro que me espera.<br />
Ele deu uma risada e disse:<br />
— Isso... Você e Nossa Senhora,<br />
Nossa Senhora e você... Chegada a<br />
hora “H”, você verá que Nossa Senhora<br />
não lhe protege, porque Ela<br />
não existe...<br />
Eu contrapus:<br />
— Eu confio n’Ela; o senhor, não.<br />
Trata-se de meu futuro, é o que vou<br />
fazer. — Como quem dissesse: “Não<br />
se meta na minha vida, faço o que<br />
quero”.<br />
O primeiro escritório e o<br />
primeiro cliente<br />
Tendo-se formado em dezembro de<br />
1930, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não se apressou em<br />
exercer a profissão de advogado: de<br />
um lado, porque queria ter mais tempo<br />
livre para suas múltlipas atividades<br />
no Movimento Católico; de<br />
outro, porque até então sua família<br />
gozava de uma folgada situação financeira.<br />
Contudo, tempos depois, em vista<br />
de negócios catastróficos de um parente,<br />
que arruinaram as finanças<br />
da família, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> decidiu ter<br />
chegado a hora de passar a advogar.<br />
Em 23 de março de 1932, inscreveuse<br />
na OAB e no mesmo mês abriu seu<br />
escritório de advocacia, na Rua Líbe-<br />
8
o Badaró, centro de São Paulo. Pouco<br />
depois, surgia a clientela.<br />
Lembro-me do primeiro cliente de<br />
advocacia que tive, um francês, Monsieur<br />
Balerdi. Ele tinha inventado<br />
uma fórmula de sorvete chamada<br />
“flan”, ou, quando acrescentava um<br />
ovo a mais, “superflan”. Vendia seus<br />
produtos em feiras de diversões, circos<br />
e lugares semelhantes, com não<br />
pequeno êxito.<br />
Ora, um outro francês pegou a fórmula<br />
e começou a fabricar um sorvete<br />
idêntico. Monsieur Balerdi, sentindose<br />
lesado, decidiu abrir um processo<br />
contra o concorrente. Este último negava<br />
ser fautor de qualquer imitação,<br />
aduzindo o argumento de que sua invenção<br />
não levava a marca “flan”...<br />
oi-me extremamente enfadonho<br />
advogar para provar que o sorvete<br />
“flan” não pertencia a um, mas a outro.<br />
Afinal, acabei conseguindo que<br />
chegassem a um acordo.<br />
Certas reflexões me tomaram o espírito<br />
naqueles dias: “Meu Deus!...<br />
quantos negócios de advocacia sem<br />
nenhuma graça ainda terei de pegar?<br />
Será que chegarei ao fim de minha vida<br />
pleiteando causas sobre ‘flan’ e<br />
‘superflan’? Não nasci para coisas<br />
desse tipo! Toda a minha alma se volta<br />
para outra direção.”<br />
Entretanto, Nossa Senhora não me<br />
faltaria com seu maternal auxílio: acabei<br />
por ter um escritório de advocacia<br />
movimentado, muito honesto — porque<br />
me procuraram os principais clientes<br />
eclesiásticos de São Paulo — proporcionando-me<br />
o dinheiro suficiente<br />
para uma existência digna e honrosa.<br />
O abade de São Bento pede<br />
conselho ao jovem advogado<br />
Vem a propósito mencionar um fato<br />
bastante curioso, ocorrido naqueles<br />
meus primórdios de advocacia.<br />
Como o escritório levaria certo tempo<br />
para granjear mais clientes, sobravam-me<br />
algumas horas livres, as quais<br />
aproveitava para ir rezar na igreja do<br />
Mosteiro de São Bento, a um quarteirão<br />
de distância. Agradava-me fazer<br />
minhas orações diante de uma bela<br />
imagem da Imaculada Conceição, em<br />
estilo colonial.<br />
Essa imagem ficava perto de um<br />
confessionário utilizado pelo abade.<br />
Eu só o conhecia de vista, e por uma<br />
vez ou outra que me confessei com<br />
ele. Qual não foi minha surpresa<br />
quando, certo dia, estando ali a rezar,<br />
aproxima-se de mim um irmão leigo e<br />
me diz:<br />
— Dom abade manda pedir ao senhor<br />
que, antes de ir embora, suba<br />
até a cela dele.<br />
Terminei calmamente minhas orações<br />
e, após perguntar em que andar<br />
era a tal cela, subi até lá. O abade me<br />
recebeu muito amavelmente. Era um<br />
alemão de altura plutôt média, olhos<br />
azuis muito simpáticos, francos e direitos.<br />
ez-me sentar e me disse:<br />
— Eu tenho um confessionário<br />
num lugar da igreja de onde vejo o senhor<br />
sempre rezar a Nossa Senhora.<br />
Como o senhor é muito devoto d’Ela,<br />
quero deixar nas suas mãos a resolução<br />
de um assunto muito importante.<br />
Aqui está um papel...<br />
E me estendeu uma folha na qual<br />
se podia ler, escrita em letras grandes,<br />
sua renúncia às funções abaciais, colocadas<br />
por ele à disposição de uma<br />
autoridade superior. Em seguida, disse-me:<br />
— Não vou lhe dar as razões disso,<br />
nem lhe dizer nada a mais. Quero<br />
apenas que o senhor diga se acha que<br />
devo pedir demissão ou não.<br />
Minha surpresa cresceu. Ele seria<br />
um homem de seus quase setenta<br />
anos, e eu, um moço com pouco mais<br />
de vinte. Sem falar que se tratava do<br />
abade de uma Ordem muito importante,<br />
superior de um mosteiro histórico<br />
em São Paulo, etc. Ele insistiu:<br />
— Se o senhor me disser: “Sim,<br />
peça demissão”, restitua-me o papel<br />
para eu encaminhá-lo a quem de di-<br />
Acima, panorama do centro de São Paulo, destacando-se o Mosteiro<br />
de São Bento; à direita, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ao lado de D. Domingos de Silos,<br />
durante uma conferência, pouco tempo depois de se conhecerem<br />
9
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
reito. Se o senhor achar que não, pode<br />
rasgá-lo já.<br />
Pensei: “Este homem, que manifesta<br />
tanta confiança em mim por<br />
eu ser devoto de Nossa Senhora, é<br />
melhor que permaneça nesse cargo<br />
decisivo”. Não revelei a ele o que me<br />
andava pela cabeça. Ainda meio perplexo,<br />
respondi:<br />
— Dom abade, eu o aconselho a<br />
não renunciar.<br />
Ele me pediu que rasgasse o papel,<br />
e depois me dirigiu um amável “muito<br />
obrigado!” — como quem diz: “Era<br />
só isso, pode ir embora”.<br />
Levantei-me e desci. Mais tarde,<br />
eu o revi em casa de um conhecido,<br />
de cuja esposa ele era diretor espiritual.<br />
Conversamos de maneira<br />
bastante cordial, mas sem a<br />
menor referência a esse fato.<br />
Compreende-se, pois se passara<br />
em caráter confidencial.<br />
Dom Domingos continuou<br />
como abade e faleceu nessa<br />
função. Ele era, evidentemente,<br />
um devoto de São Luís<br />
Grignion, e este santo nos ensina<br />
como as almas chegadas a<br />
Nossa Senhora são muito preferidas<br />
por Ela. Ora, o superior<br />
beneditino percebia minha<br />
devoção à Santíssima Virgem<br />
— às vezes eu rezava o<br />
rosário inteiro diante daquela<br />
imagem — e me julgou merecedor<br />
daquela predileção apontada<br />
por São Luís Grignion. E,<br />
portanto, também iluminado<br />
por Ela o suficiente para resolver<br />
o seu caso. Quero crer<br />
que assim o foi, para o bem da<br />
alma dele e das de seus monges.<br />
Cargos são instáveis –<br />
o melhor é advogar<br />
No fim de 1932, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
foi nomeado pelo Arcebispo<br />
de São Paulo secretário-geral<br />
da LEC (Liga Eleitoral Católica),<br />
que acabara de se formar,<br />
e indicado candidato a<br />
deputado constituinte, ganhando<br />
as eleições com uma ampla<br />
margem de votos sobre o segundo<br />
colocado. No meio dos incontáveis<br />
compromissos que a campanha eleitoral<br />
e os trabalhos na Câmara lhe<br />
trouxeram, mal lhe sobrou tempo<br />
para cuidar do escritório de advocacia.<br />
Contudo, ao terminar o ano de<br />
1934, findava seu mandato parlamentar.<br />
Embora, nesse ínterim, tivesse<br />
sido nomeado professor de três<br />
instituições universitárias, decidiu<br />
ser mais prudente dar movimentação<br />
aos labores advocatícios.<br />
Eu era professor catedrático de História<br />
da Civilização, do Colégio Universitário<br />
da aculdade de Direito da<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> andando<br />
pelo centro da<br />
capital paulista<br />
Universidade de São Paulo. Era uma<br />
boa profissão, bem remunerada, vitalícia<br />
e inamovível. Era também professor<br />
da aculdade Sedes Sapientiae,<br />
das Cônegas de Santo Agostinho e,<br />
mais tarde, da aculdade São Bento.<br />
Eu pensava comigo: “ui contemplado<br />
com bons cargos. Mas, cargos,<br />
um homem como eu os perde por<br />
qualquer razão. Tenho de conseguir<br />
uma advocacia pessoal, de modo que,<br />
caso me venham a faltar aqueles ofícios,<br />
não me falte a clientela do escritório.<br />
Portanto, vou tentar obter<br />
muitos clientes e equilibrar-me de<br />
maneira a me sobrarem, não os dias,<br />
mas as noites livres, a fim de dedicálas<br />
ao apostolado.”<br />
E foi o que procurei fazer.<br />
Organizei assim meu horário:<br />
de manhã, comunhão; depois,<br />
voltar para casa e preparar as<br />
aulas que daria à tarde... Naquele<br />
tempo, meus deslocamentos<br />
eram quase todos feitos<br />
de bonde, pois ônibus não<br />
os havia, e os táxis eram pouco<br />
freqüentes em São Paulo. Resultado,<br />
grande parte da tarde<br />
era consumida nos trajetos entre<br />
uma faculdade e outra.<br />
Compensava-me, entretanto,<br />
o fato de meu escritório de<br />
advocacia ficar perto da aculdade<br />
de Direito, de maneira<br />
que, às vezes, acabadas as aulas<br />
naquela, eu ia atender meus<br />
clientes. Tarefa a que eu me<br />
dedicava igualmente nas tardes<br />
em que não lecionava. Tudo<br />
isso representava meu tempo<br />
inteiramente tomado.<br />
No fim do dia eu vinha para<br />
casa, para ler antes do jantar e<br />
preparar as aulas do dia seguinte.<br />
Após a refeição, podia<br />
me dedicar ao apostolado até<br />
a meia-noite, hora em que voltava<br />
para minha residência.<br />
Na manhã seguinte, recomeçava<br />
a mesma faina...<br />
(Continua no próximo<br />
número)<br />
10
DONA LUCILIA<br />
Educando os filhos<br />
pela narração de histórias<br />
Sobressaindo entre os excelentes atributos com que<br />
a Providência ornou sua alma de mãe e educadora,<br />
o fino senso psicológico de Dª Lucilia lhe proporcionava<br />
adequado conhecimento dos filhos e dos sobrinhos.<br />
Conhecimento este que ela sabia aplicar, de modo<br />
todo especial, no momento de lhes contar alguma história.<br />
Razão pela qual não nos é difícil compreender como, em<br />
tempos idos, as crianças se apinhavam alegres ao seu redor,<br />
pedindo-lhe mais uma narração.<br />
Todas as noites de quinta-feira, a maior parte da família<br />
se reunia na residência de Dª Gabriela para um longo e cerimonioso<br />
jantar. Os pequenos tomavam a refeição numa<br />
11
DONA LUCILIA<br />
dependência secundária, e naturalmente acabavam antes<br />
dos adultos. Nesse momento, estando a casa cheia de<br />
meninos, estes chamavam Dª Lucilia:<br />
— Queremos histórias de tia Lucilia! Queremos histórias<br />
de tia Lucilia!<br />
Ela, embora muito carinhosa, fazia valer o princípio de<br />
que os mais velhos não são interrompidos pelos mais<br />
moços. Assim, estes não podiam entrar na sala de jantar<br />
enquanto aqueles não terminassem. Do lado de fora,<br />
através da porta entreaberta, os pequenos passavam a dirigir<br />
agradinhos a Dª Lucilia, para obter que fosse logo estar<br />
com eles. Ela não respondia e, tranqüilamente, continuava<br />
a comer. Quando acabava, dizia muito comprazida:<br />
— Vou para o escritório e conto uma história para<br />
vocês.<br />
O aposento ficava apinhado de crianças, todas encantadíssimas,<br />
à espera de mais uma atraente descrição.<br />
Enquanto na sala de jantar os adultos prosseguiam a<br />
conversa sobre assuntos da atualidade, Dª Lucilia se recostava<br />
numa chaise longue do escritório do esposo, e os<br />
meninos, literalmente, se empoleiravam em torno dela, até<br />
mesmo atrás de sua cabeça.<br />
A história do nobre manco<br />
Como já tivemos ocasião de observar (cf. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”<br />
nº 10), Dª Lucilia modelava suas descrições no intuito de<br />
favorecer a maturação do espírito de seus jovens ouvintes,<br />
o que constituía um dos principais atrativos de suas<br />
histórias. Levada por maternal carinho, procurava ela incutir-lhes<br />
o amor ao cumprimento do dever e a admiração<br />
pelos atos belos e louváveis. E, em certas ocasiões,<br />
aproveitava os contos para dar às crianças uma lição de<br />
caráter moral e religioso.<br />
O do nobre manco, fato que se havia passado no Ancien<br />
Régime, era característico. Assim descrevia ela:<br />
A pequena distância de uma estalagem, à beira de uma<br />
estrada, conversavam animadamente alguns rapazes do povo<br />
miúdo, fortes, saudáveis e bem dispostos.<br />
Em certo momento aproximou-se uma carruagem puxada<br />
por cavalos brancos, magnificamente ajaezados, e parou diante<br />
da casa. Os ornatos dourados do coche, o brasão pintado<br />
em suas portas, os finos cristais das janelas, os postilhões<br />
vestidos de libré, tudo, enfim, denotava a nobre origem do<br />
ocupante daquele belo veículo.<br />
Saltam em terra os lacaios: um segura com força os cavalos,<br />
outro, ligeiro, corre a abrir a porta, enquanto um terceiro<br />
estende a escadinha até o chão. Os rapazes se apressam, curiosos,<br />
para ver quem era o feliz viajante. Através das cortinas<br />
de damasco vermelho, entreabertas, distinguem o busto de<br />
um jovem de bela aparência que se prepara para sair. Com<br />
elegante gesto, este se cobre com seu tricórnio ornado de<br />
plumas e, lentamente, desce da carruagem... apoiado,<br />
porém, em muletas, pois tinha um pé cortado.<br />
Os jovens, então, caíram em si. Quão pouco<br />
vale o dinheiro, e quão pouco valem as aparências<br />
da terra! Eles, por não terem nenhum pé<br />
amputado, eram mais felizes do que o nobre<br />
manco em meio de toda a sua opulência.<br />
Os Três Mosqueteiros<br />
Vendo Dª Lucilia aproximar-se o<br />
fim da infância de seus filhos e sobrinhos,<br />
julgou adequado<br />
incutir-lhes<br />
o gosto pela literatura.<br />
Sem descurar<br />
daquele seu grande<br />
empenho em fazer<br />
crescer o espírito analítico<br />
das crianças, nas<br />
quais começavam a despontar<br />
as primeiras manifestações<br />
de preferências<br />
ou repulsas, já próprias à<br />
adolescência.<br />
12
Assim, os enredos por ela elaborados sempre terminavam<br />
de modo exemplar: o personagem era premiado<br />
por sua virtude ou, quando derrotado, ela o descrevia em<br />
seu isolamento, na tranqüilidade majestosa de uma consciência<br />
limpa — outro tipo de prêmio do qual, com maestria,<br />
ela sabia realçar os aspectos aprazíveis e gloriosos.<br />
Supérfluo será dizer que os resumos feitos por Dª Lucilia<br />
excluíam qualquer forma de episódios ou detalhes atentatórios<br />
à moral. Para fixar a atenção das crianças naqueles<br />
longínquos tempos prenunciativos de um apogeu cinematográfico,<br />
era preciso que a história fosse novelesca,<br />
recheada de aventuras imprevistas e sensacionais. Se o<br />
tema escolhido fosse diverso, elas logo se alheavam da narração,<br />
que só continuavam a ouvir de olhos distraídos e<br />
distantes.<br />
Nessas circunstâncias, a escolha de Dª Lucilia não podia<br />
recair sobre tema mais apropriado do que Os Três Mosqueteiros,<br />
um dos famosos romances de Alexandre Dumas,<br />
cujas passagens inconvenientes eram por ela censuradas<br />
com todo o cuidado.<br />
A história também se desenrolava em pleno Ancien<br />
Régime, no reinado de Luís XIII. Dª Lucilia, rodeada de<br />
seus pequenos ouvintes, ia pintando na imaginação deles,<br />
com vivas cores, através de suas harmoniosas palavras,<br />
aquela remota época como um período áureo, em que o<br />
Ocidente estava para atingir um ápice de bom gosto, de<br />
boas maneiras, de elegância e de nobreza de atitudes.<br />
Depois da atraente introdução, os meninos, com sua<br />
imaginação presa, já estavam ávidos de ouvir Dª Lucilia<br />
descrever a personalidade de cada um dos mosqueteiros,<br />
com suas virtudes e defeitos. Os quatro mosqueteiros<br />
eram gentis-homens característicos de seu tempo e ela<br />
procurava, ressaltando esse aspecto, incentivar as<br />
crianças a tomarem suas qualidades cavalheirescas<br />
como modelo.<br />
Porém, mais belo do que a descrição sobre os<br />
valentes mosqueteiros era o aparente contraste<br />
entre a narradora e aqueles heróis: ela, suave,<br />
delicada, afável; eles, acostumados aos perigos,<br />
ao risco, às rudezas próprias da guerra. As<br />
palavras de Dª Lucilia eram tão expressivas que<br />
despertavam nos inocentes corações de seus<br />
ouvintes o entusiasmo por feitos heróicos, realizados<br />
por esses insignes batalhadores, entretanto<br />
exímios em brilhar nos salões, com<br />
suas reverências, rendas e panaches.<br />
Excelente educadora, analisava ela<br />
os personagens sob o ponto de vista da<br />
moral católica. Como juiz imparcial, reprovava<br />
com severidade o que neles<br />
merecia censura, e exaltava as virtudes e<br />
outros predicados dignos de louvor.<br />
Quando falava da probidade e correção de Athos, deixava<br />
transparecer sua própria integridade moral. Ao pintar<br />
a coragem de D’Artagnan, fazia-o com tanta admiração<br />
que os meninos pareciam notar o heróico vento da<br />
intrepidez acariciar-lhes a face.<br />
De outro lado, Dª Lucilia procurava mostrar-lhes como<br />
era rejeitável o “ideal” de um Porthos, cuja preocupação<br />
primordial consistia no gozo da vida, e explicava o que<br />
havia de superior na carreira intelectual, na preeminência<br />
do espírito sobre a matéria. inalmente, fazia reluzir aos<br />
olhos das crianças o que havia de mais elevado no tipo humano<br />
de um valente Aramis, eclesiástico e guerreiro.<br />
Com a mente povoada de feitos de armas, grandes<br />
heróis, épocas de esplendor e de fidalguia, mas especialmente<br />
enlevadas com aquela atraente narradora, as crianças<br />
aguardavam, não sem impaciência, o próximo dia em<br />
que ela daria seguimento ao conto.<br />
Assim, em sucessivos e animados encontros, Dª Lucilia<br />
chegou ao epílogo da história, enriquecendo-a sempre de<br />
novos pormenores. Como fecho daquela aventura, descreveu<br />
aos pequenos o que ela, na sua rica e virtuosa imaginação,<br />
pensava ter sucedido a cada um dos briosos mosqueteiros.<br />
O Conde, o Bispo, o “parvenu” e...<br />
Athos, amadurecido pelos reveses da vida, aperfeiçoado<br />
pelo ofício militar, retirou-se para o antigo feudo de sua<br />
13
DONA LUCILIA<br />
família, onde passou a morar só, envolto em sua nobre e<br />
melancólica tristeza.<br />
Era de ouvir como Dª Lucilia pintava aos olhos das<br />
crianças uma tarde no castelo de Athos, quando este, terminados<br />
seus afazeres no campo, se recolhia ao aconchego<br />
de sua morada. Segundo Dª Lucilia, ele atravessava um<br />
pátio interno, adornado de trepadeiras e plantas aromáticas,<br />
em cujo centro se erguia um gracioso chafariz.<br />
Assim continuava ela a narração:<br />
Quem, naquele sereno crepúsculo, espreitasse por entre as<br />
cortinas do salão nobre do castelo, surpreenderia o Conde de<br />
la ère andando de um lado para outro, entregue a profundas<br />
meditações. Chegado o momento do jantar, o Conde se<br />
dirigia à sua grande sala de refeições, onde, à bruxuleante luz<br />
das velas, degustava saborosos pratos e requintados vinhos.<br />
Dentro em pouco, todo o castelo estava imerso no silêncio,<br />
entrecortado apenas pelo ecoar dos passos do Conde que,<br />
novamente, palmilhava o solo de seus ancestrais. Afinal,<br />
recolhia-se ele também a seus aposentos. E quando sua luz se<br />
extinguia, era escuridão em todo o feudo...<br />
Desse modo, de acordo com o senso poético de Dª Lucilia,<br />
transcorria a vida de Athos. Em seguida, narrava ela<br />
o que acontecera ao elegante Aramis:<br />
Satisfazendo seus mais ardentes anseios, abandonou a<br />
carreira militar e tomou ordens num convento. A seriedade<br />
coerente e profunda dos estudos eclesiásticos veio assim somar-se<br />
às suas qualidades de tato e de tino no tratar com as<br />
pessoas, predicados estes preciosos para um zeloso pastor de<br />
almas. Assim, Aramis não tardou a atrair sobre si a atenção<br />
de seus superiores, o que, dentro de pouco tempo, ocasionou<br />
sua elevação ao episcopado. Passou assim ele a viver<br />
num pequeno castelo de uma diocese, no interior<br />
da rança.<br />
Depois de ter apresentado às crianças a<br />
dignidade da vida particular de Athos e a<br />
grandeza da condição eclesiástica de Aramis,<br />
Dª Lucilia se voltava, uma vez mais,<br />
para aquele a quem os pequenos não deviam<br />
imitar: o vaidoso Porthos...<br />
Contava-lhes que, fiel a uma concepção<br />
mais bem materialista da vida,<br />
Porthos também abandonou a carreira<br />
militar em troca da fortuna<br />
que lhe prometia uma rica viúva<br />
e, nunca dispensando os prazeres<br />
da mesa, tornou-se ainda mais<br />
avantajado de físico. Passou a ostentar<br />
um luxo desmesurado, bem ao contento<br />
de suas pretensões. Assim, comprou<br />
um castelo que enfeitou e engalanou com um<br />
gosto muito discutível. Adquiriu também uma<br />
carruagem, em cuja porta mandou fixar, esculpida<br />
em madeira e revestida de ouro, uma figura mitológica<br />
tocando uma cornetinha, que era o símbolo de<br />
Monsieur de Porthos.<br />
... D’Artagnan!<br />
— E D’Artagnan?! — perguntavam as crianças.<br />
Com sua invariável amenidade, Dª Lucilia respondia:<br />
Ele foi o único que continuou na carreira das armas.<br />
Combateu em diversas batalhas, e alcançou, por sua coragem<br />
e dedicação, o marechalato de rança.<br />
Havia muito tempo que os quatro amigos não se encontravam,<br />
quando uma arriscada circunstância exigiu que eles<br />
se reunissem em torno de D’Artagnan. Então Athos, Porthos<br />
e o Bispo Aramis vieram socorrer seu antigo companheiro.<br />
oi a última vez em que foram vistos juntos.<br />
Pouco depois, numa guerra contra os holandeses, comandando<br />
as tropas francesas que faziam cerco à cidade de<br />
Maastricht, D’Artagnan, atingido por um tiro, caiu do cavalo.<br />
Estava morto...<br />
Era o desfecho de uma maravilhosa história, que trouxera<br />
o juveníssimo auditório, ao longo de várias noites,<br />
suspenso dos lábios de Dª Lucilia. Assim, ela formava seus<br />
filhos e sobrinhos, recomendando-lhes imitar a nobreza de<br />
sentimentos, a abnegada dedicação, a desinteressada fidelidade<br />
a uma causa superior, que constituíam o verdadeiro<br />
ornato daqueles heróicos personagens.<br />
(Transcrito, com adaptações,<br />
da obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />
14
DR. PLINIO COMENTA...<br />
N<br />
umerosas são<br />
as belíssimas<br />
considerações<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a respeito de<br />
Nossa Senhora já estampadas<br />
nestas páginas.<br />
Contudo, elas não constituem<br />
senão ínfima porção<br />
de um sublime e inesgotável<br />
acervo, no qual<br />
encontramos comentários<br />
inéditos a respeito da canção<br />
composta pela própria<br />
Mãe de Deus.<br />
A Visitação, por Dieric Bouts<br />
O “Magnificat”,<br />
cântico de jubilosa despretensão<br />
A<br />
Após haver recebido a excelsa comunicação de<br />
que seria a Mãe do Salvador, Nossa Senhora<br />
apressou-se em partir ao encontro de Santa Isabel,<br />
nas montanhas da Judéia. Ao chegar, exaltada por sua<br />
prima e profundamente reconhecida pelo ápice de dons<br />
com que fora galardoada, Maria entoou seu imortal Magnificat.<br />
Deus, autor da grandeza de Nossa Senhora<br />
O pensamento fundamental desse cântico poderia ser<br />
assim expresso por Nossa Senhora: “Deus realizou em<br />
mim coisas extraordinárias, as quais são obra d’Ele e não<br />
minha. Não sou a autora de toda essa grandeza. oi Ele<br />
que houve por bem depositá-la em mim, e Eu a aceitei em<br />
15
DR. PLINIO COMENTA...<br />
obediência aos seus superiores desígnios. Essa grandeza,<br />
portanto, enquanto habita em mim tornou-se minha, mas<br />
a causa dela vem de fora e do alto. Por mim mesma, não<br />
sou senão uma pequena criatura.”<br />
De fato, embora concebida sem pecado, e tendo correspondido<br />
à graça do modo mais perfeito possível, Nossa Senhora<br />
era uma mera criatura, e assim tais grandezas não<br />
podiam ter origem na natureza d’Ela. Provinham-Lhe de<br />
Deus Nosso Senhor. Este é o pensamento despretensioso<br />
e fundamental do Magnificat.<br />
Cabe aqui uma aplicação a nós, filhos e devotos de<br />
Maria, que tanto desejamos imitá-La. Se era essa a posição<br />
que a Imaculada tomava em face de suas excelências, a fortiori<br />
deve ser a nossa diante das graças que Deus nos concede,<br />
a nós que somos pecadores a dois títulos. Primeiro,<br />
porque concebidos no pecado original; segundo, porque<br />
agravamos essa condição com as faltas perpetradas em<br />
nossa vida, de sorte que, mesmo perseverando no estado<br />
de graça, trazemos conosco o fardo dos pecados que outrora<br />
cometemos.<br />
De outro lado, as honras que possam nos caber são incomparavelmente<br />
menores que as de Nossa Senhora. Desse<br />
modo, é preciso nos esforçarmos em adquirir o mais elevado<br />
grau de despretensão ao nosso alcance. Não incorramos<br />
no erro dos presunçosos, que julgam inerentes à sua<br />
própria natureza, e não a um dom ou misericórdia de<br />
Deus, todas as suas qualidades e aspectos bons.<br />
Pelo contrário, compenetremo-nos de que todo o bem<br />
existente em nós é dado e favorecido pela graça divina,<br />
embora conte com nossa voluntária aceitação e nosso empenho<br />
em desenvolvê-lo. São qualidades e talentos que<br />
não nasceram de nossa natureza decaída, mas foram nela<br />
depositados pela generosidade do Criador. Se formos despretensiosos,<br />
teremos consciência disso, não nos embevecendo<br />
com o que devemos a Deus.<br />
Esse é, precisamente, o ensinamento que nos deixou<br />
Nossa Senhora, quando elevou aos céus o seu Magnificat.<br />
Alegre e contínua retribuição a Deus<br />
Diz Ela: “A minha alma engrandece o Senhor”. Ou seja,<br />
canta, vê, admira, ama e proclama com amor a grandeza<br />
de Deus, Aquele que domina, Aquele que pode, Aquele<br />
que é tudo.<br />
“E o meu espírito exulta em Deus meu Salvador”.<br />
Então a alma d’Ela se transporta em santas alegrias,<br />
porque Deus “lançou os olhos sobre a baixeza de sua serva”,<br />
e por isso “de hoje em diante, todas as gerações me<br />
chamarão bem-aventurada”.<br />
Nossa Senhora proclama a magnitude de Deus por ter<br />
deitado o olhar sobre Ela, por Lhe ter conferido uma tal<br />
excelência que todas as nações passariam a aclamá-La como<br />
bem-aventurada. E ao reconhecer que isto Lhe vem<br />
d’Ele, seu espírito atinge o ápice da alegria!<br />
Grupo escultural no pórtico da Catedral de Reims<br />
Como não ver nessa atitude a perfeição da despretensão?<br />
Nada de falsa e dolorosa probidade: “Ó Senhor! como<br />
gostaria de dizer que tudo vem de mim, mas sou obrigada<br />
a declarar o contrário”, etc. Não! — “Meu espírito<br />
exulta em proclamar que veio de Vós”.<br />
Ao mesmo tempo, porém, Ela afirma a glória que Deus<br />
Lhe outorgou: “Todas as gerações me chamarão bemaventurada”.<br />
A palavra bem-aventurada encerra um matiz<br />
que a faz designar uma pessoa não apenas nimbada de felicidade,<br />
mas também aquela que alcançou êxito em todas<br />
as suas realizações. Portanto, acertar na vida, ser bemaventurado,<br />
é tornar-se santo e servir a Deus.<br />
E Nossa Senhora continua a cantar: “Porque fez em<br />
mim grandes coisas Aquele que é poderoso, e cujo nome é<br />
santo”. O adjetivo poderoso tem aí todo o cabimento, pois<br />
Ela se reconhece objeto de maravilhas tais, que só um Ser<br />
onipotente as poderia operar. Ora, Maria se sabia não-<br />
16
uma imensa série de misericórdias que, desde o início até<br />
o fim do mundo, alcança os que têm o temor de Deus.<br />
Pode-se dizer que este seria o Everest, o ponto muitíssimo<br />
mais alto da compaixão divina, acima de um universo de<br />
montículos, colinas, montes e montanhas de misericórdias<br />
que ao longo da história têm sido espargidas sobre os homens.<br />
É como se Maria Santíssima dissesse: “Essa misericórdia<br />
é ainda mais bela porque é o marco central de um<br />
incontável número de excelsas benevolências dispensadas<br />
por Ele, o Rei, o Deus, o Pai de todas as misericórdias”.<br />
A soberba é causa de decadência<br />
(à esquerda, a Anunciação; à direita, a Visitação)<br />
onipotente. Logo, proclamava que apenas Deus podia ter<br />
feito n’Ela aquelas “grandes coisas”.<br />
É um modo indireto de dizer: “O que foi realizado<br />
comigo é tanto que eu, simples escrava, por mim mesma<br />
jamais o teria alcançado. O Todo-Poderoso, cujo nome é<br />
santo, fez essas maravilhas, essas excelências que só poderiam<br />
sair de suas divinas mãos”. Em última análise, tratase<br />
de uma contínua e alegre retribuição a Deus da grandeza<br />
d’Ela.<br />
Uma cordilheira de misericórdias<br />
“E cuja misericórdia se estende de geração em geração,<br />
sobre aqueles que O temem”.<br />
Nossa Senhora manifesta neste trecho a idéia de que a<br />
misericórdia da qual Ela foi objeto é o lance supremo de<br />
Continua a Santíssima Virgem: “Manifestou o poder de<br />
seu braço; transtornou aqueles que se orgulhavam nos<br />
pensamentos de seu coração”.<br />
Ou seja, ao passo que estende sua misericórdia aos que<br />
O temem, Nosso Senhor mostra o poder de seu braço confundindo<br />
os desígnios dos soberbos. Quem são estes? Os<br />
que se vangloriam e se exibem pretensiosos em relação a<br />
Deus, que não consideram a grandeza d’Ele, nem Lhe têm<br />
temor. E que, portanto, não O amam. Para estes não há<br />
misericórdia. Então Deus os humilha, os quebra, os dissipa,<br />
mostrando sua força.<br />
Essa atitude de Nosso Senhor com os que se afirmam<br />
independentes d’Ele é um belo convite para estabelecermos<br />
uma filosofia da história. Para isto, temos de observar<br />
não só os acontecimentos históricos, mas também os fatos<br />
de nossa vida cotidiana, e neles verificar a confirmação<br />
desta regra: os homens tementes a Deus, conscientes de<br />
que não valem nada, atribuindo seus predicados e aptidões<br />
à misericórdia divina, progridem na vida espiritual.<br />
Os que são voltados a adorar-se a si próprios, a considerar<br />
tudo quanto têm como vindo deles mesmos, estes são os<br />
soberbos que Deus dissipa, e declinam na prática da virtude.<br />
Quantas vezes não observamos, nessa ou naquela alma,<br />
um processo de decadência cuja causa é a pretensão? Em<br />
determinado momento, a pessoa começou a se embevecer<br />
consigo mesma: “Que maravilhosa, grande e estupenda<br />
criatura sou eu, considerada nos predicados morais de minha<br />
natureza!” É o primeiro passo de uma lamentável deterioração.<br />
Portanto, Nossa Senhora lança o princípio: os soberbos<br />
não vão para a frente, enquanto progridem os que temem<br />
a Deus. Donde tudo nos coloca em relação a Ele numa<br />
postura de inteira despretensão.<br />
O triunfo dos humildes<br />
“Depôs do trono os poderosos, e exaltou os humildes.”<br />
Temos aqui uma seqüência do pensamento anterior. O<br />
poderoso é o que atribui a si todo o poder, que precede a<br />
17
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Deus e não O teme, julgando-se capaz de tudo fazer sem<br />
Ele. Esse é deposto de seu trono, ou seja, daquilo do que<br />
se ensoberbece. O humilde, pelo contrário, é glorificado e<br />
favorecido por Nosso Senhor, obtém resultados nas suas<br />
ações, na sua vida interior, no seu apostolado, etc.<br />
Completando essa linha de pensamento, Maria acrescenta:<br />
“Cumulou de bens os famintos, e despediu os ricos<br />
com as mãos vazias”.<br />
Os famintos são os necessitados, os que se abaixam<br />
diante de Deus e Lhe suplicam auxílio. Estes são atendidos,<br />
e saem repletos de bens. Os ricos são os orgulhosos,<br />
aqueles que se aproximam de Nosso Senhor dizendo não<br />
precisarem de nada. Então são mandados embora sem receberem<br />
qualquer benefício.<br />
Cumpre-se a promessa do Messias<br />
Em seguida, a Santíssima Virgem faz uma referência à<br />
exaltação do Povo Eleito, por nele ter se verificado a Encarnação<br />
do Verbo. Diz Ela: “Tomou cuidado de Israel, seu<br />
servo, lembrado da sua misericórdia; conforme tinha dito a<br />
nossos pais, a Abraão, e à sua posteridade para sempre”.<br />
Com efeito, Deus havia misericordiosamente prometido<br />
que o Messias, seu ilho unigênito, se encarnaria e nasceria<br />
do povo de Israel. Ele se lembrou de sua promessa,<br />
gerando Jesus Cristo nas entranhas puríssimas de Maria.<br />
A Igreja, muito belamente, completa esse hino maravilhoso<br />
com o “Glória ao Pai, ao ilho e ao Espírito Santo;<br />
assim como era no princípio, agora e sempre, pelos séculos<br />
dos séculos. Amém”.<br />
Esta seria uma interpretação do<br />
Magnificat como o cântico da despretensão<br />
jubilosa de Nossa Senhora.<br />
“Minha alma engrandece<br />
a Igreja Católica!”<br />
“Como eu gostaria de cantar: minha alma engrandece a Santa Igreja Católica!” —<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> contemplando a maravilhosa fachada da Catedral de Notre-Dame de Paris<br />
Para concluir, cabe ainda um último<br />
desdobramento dessas considerações.<br />
Como eu gostaria de, com toda<br />
a alma, poder cantar o Magnificat<br />
em relação à Igreja Católica! Como<br />
é verdadeiro dizer: Magnificat<br />
anima mea Ecclesiam, et exultavit<br />
spiritus meus, in matre salutari mea<br />
— A minha alma engrandece a<br />
Igreja Católica e o meu espírito<br />
exulta na Igreja minha mãe!<br />
E assim por diante, que lindíssima<br />
paráfrase do Magnificat poderíamos<br />
fazer contemplando a Igreja,<br />
que é a Arca da Aliança, a imagem<br />
visível de Deus e de Nossa Senhora<br />
na terra.<br />
Sirvam, pois, estas palavras de<br />
incentivo para que reportemos todos<br />
os nossos dons, nossas virtudes<br />
e predicados a Deus em Jesus, a Jesus<br />
em Maria, e a Maria na Santa<br />
Igreja Católica Apostólica Romana,<br />
da qual nos vem tudo o que<br />
temos de bom. Dessa maneira, o<br />
enlevo, o encanto, o entusiasmo, a<br />
fidelidade, a dedicação de nossa vida,<br />
nossa alma e nosso sangue sejam<br />
inteiramente oferecidos para o<br />
serviço e glorificação da Esposa<br />
Mística de Cristo. v<br />
18
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Iluminura medieval representando a construção de quatro novas cidades<br />
Internacionalismo x Nacionalismo<br />
– A solução medieval –<br />
D<br />
ilemas tão atuais como este, causas de intermináveis polêmicas e profundo<br />
antagonismo em nossa época de “aldeia global”, receberam respostas originais<br />
na Idade Média. Porém — note-se —, dadas não por institutos de planejamento,<br />
gabinetes governamentais ou ONGs, mas pela vida orgânica e rotineira da população,<br />
sujeita à benéfica influência do espírito católico.<br />
A tal propósito, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> destaca a peculiar organização política medieval.<br />
19
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Adesagregação do mundo<br />
ocidental partiu de um ponto<br />
inicial de equilíbrio que<br />
foi a Idade Média, período histórico<br />
feito da justaposição harmônica de<br />
tendências opostas as quais, no mundo<br />
contemporâneo, de fato dão lugar<br />
a furiosas batalhas.<br />
Consideremos então, em linhas gerais,<br />
de que modo a civilização medieval<br />
realizou tal síntese.<br />
Entrelaçamento de<br />
estados e regiões<br />
Erguida nos limites da<br />
rança com a Alemanha,<br />
esta fortaleza dez vezes<br />
secular foi testemunha<br />
de uma época em que<br />
eram instáveis e<br />
indefinidas as fronteiras<br />
dos estados e países<br />
Comecemos por analisar como a<br />
Idade Média se situava perante as noções<br />
de nacionalismo e internacionalismo.<br />
Em nossos dias, o contraste entre<br />
estes dois conceitos tem gerado acerbos<br />
confrontos. Por exemplo, na Europa<br />
contemporânea, pessoas há que se<br />
deleitam com a idéia da União Européia,<br />
e que já viam na comunidade<br />
econômica constituída em torno do<br />
carvão e do aço [precursora da CEE]<br />
um elemento prenunciativo dessa unidade.<br />
Elas confiam no exército unificado,<br />
na moeda comum, na fusão de toda<br />
a Europa para formar um só Estado.<br />
Entretanto, se de um lado existe<br />
grande entusiasmo por essa idéia, de<br />
outro há pessoas que nutrem verdadeiro<br />
horror à concepção de uma Europa<br />
unida, afirmando o princípio do<br />
nacionalismo. Nacionalismo este que,<br />
no século XX, apresentou-se com extrema<br />
violência no caso da Alemanha<br />
nazista, sendo um dos pretextos para<br />
a Segunda Guerra Mundial. Tratavase,<br />
na verdade, de uma hipertrofia do<br />
nacionalismo, ou seja, o ideal de uma<br />
nação englobando todas as outras e<br />
estendendo seu domínio sobre a terra.<br />
Na Idade Média, porém, o equilíbrio<br />
entre nacionalismo e internacionalismo<br />
era realmente admirável.<br />
Em primeiro lugar, porque os medievais<br />
não entendiam o significado<br />
de nação como nós o compreendemos<br />
hoje, quer dizer, um bloco completamente<br />
definido que absorve em si todas<br />
as relações, e fora do qual se desenvolvem<br />
outros mundos.<br />
Tome-se, por exemplo, a rança da<br />
Idade Média. Ela tinha fronteiras<br />
com o Sacro Império Romano, a Itália<br />
e a Espanha. Ora, em todos esses<br />
limites havia regiões que nem eram<br />
bem francesas, nem bem alemãs, ou<br />
italianas ou espanholas. Eram feudos<br />
situados nas fímbrias do território<br />
francês, porém mantinham relações<br />
de dependência com o Imperador do<br />
Sacro Império. Ou o contrário: feudos<br />
alemães do Sacro Império que<br />
tinham contratos de vassalagem com<br />
o rei da rança.<br />
O mesmo se dava com o Ducado<br />
da Sabóia e os pequenos estados ao<br />
longo da fronteira franco-italiana. E<br />
de um modo ainda mais visível, o fato<br />
se repetia na divisa espanhola, onde<br />
havia o Reino de Navarra, resquício<br />
de um antigo reino existente nas duas<br />
vertentes dos Pirineus, e que vinha a<br />
ser um diminuto estado semi-espanhol<br />
e semifrancês.<br />
O último vestígio dessa tradição de<br />
dupla nacionalidade nas fronteiras é a<br />
pequena República de Andorra, que<br />
tem à sua frente dois chefes: o Presidente<br />
da República rancesa e o Bispo<br />
de Urgel, na Espanha. Ela é, portanto,<br />
meio francesa, meio espanhola,<br />
20
governada por dois co-dirigentes para<br />
assegurar uma espécie de mista nacionalidade<br />
a esse país de fronteira, sem<br />
lesar os direitos da rança e tampouco<br />
os da Espanha.<br />
ronteiras indefinidas e<br />
instáveis<br />
Cumpre notar que essa situação de<br />
indefinição de fronteiras era, na Idade<br />
Antigos feudos do<br />
Sacro Império<br />
apresentam,<br />
ainda hoje,<br />
típicas<br />
paisagens do<br />
regionalismo<br />
medieval<br />
(Ao lado e<br />
abaixo,<br />
aspectos do<br />
Tirol italiano)<br />
Portanto, o Estado medieval não<br />
era um bloco definido. Antes, muito<br />
indefinido e instável: seus limites e<br />
carta política, constituídos em cima<br />
de uma certa base, facilmente podiam<br />
se alterar pelo enlace matrimonial de<br />
um príncipe ou princesa que, como<br />
dote, levava ou trazia consigo uma<br />
província, um feudo, etc. Eram estados<br />
“desmontáveis”, ligados e desligados<br />
ao sabor das combinações de família.<br />
Média, agravada pelo sistema feudal.<br />
Pois aquelas famílias nobres freqüentemente<br />
se casavam com soberanos<br />
estrangeiros ou com a nobreza de outro<br />
país, pelo que não era raro encontrar,<br />
por exemplo na rança, feudos<br />
subordinados ao rei da Inglaterra. E<br />
este, por sua vez, prestava homenagem<br />
ao monarca francês pelos feudos<br />
que possuía em seu território.<br />
Por outro lado, dava-se o fato de<br />
um só rei ser, ao mesmo tempo, soberano<br />
de dois reinos separados por<br />
longa distância. Era o que se verificava<br />
no sul da Itália, onde o reino de<br />
Nápoles pertencia à casa de Aragão,<br />
da Espanha. Tal casa tinha domínio<br />
sobre as duas monarquias. Assim,<br />
uma sucessão dinástica assegurava a<br />
unidade de vários reinos.<br />
Religião: o elo da unidade<br />
O que, então, representava verdadeiro<br />
valor?<br />
Era, para cada homem, a sua própria<br />
vida. Quer dizer, o indivíduo se<br />
interessava, em primeiro lugar, por si,<br />
pelos seus negócios, pela sua indústria,<br />
sua classe, sua terra, pela sua<br />
profissão. Em segundo lugar, interessava-se<br />
pelo seu município e, muito<br />
mais remotamente, pela sua província.<br />
A nação era uma entidade relativa,<br />
boiando pelos páramos. E o rei,<br />
por sua vez, para ele personalizava<br />
(de maneira muito vaga) o país; porém,<br />
não como alguém ligado a uma<br />
entidade abstrata e coletiva, mas enquanto<br />
associado à terra dele, indivíduo,<br />
sobre a qual o monarca tinha o<br />
senhorio direto.<br />
21
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Quer isto significar que não havia uma certa<br />
noção de país? Em que sentido se entende, por<br />
exemplo, Santa Joana d’Arc expulsando os ingleses<br />
da rança?<br />
Cumpre notar que a arrebatadora epopéia de<br />
Santa Joana d’Arc foi levada a cabo para conservar a<br />
existência da rança, contra a qual intentavam os ingleses.<br />
A missão dela se compreendia num período<br />
em que os britânicos se serviram do fato de terem<br />
feudos na rança, não mais para aceitarem a equilibrada<br />
situação de súditos e vassalos da coroa francesa,<br />
em território desta, mas para dominarem o país<br />
vizinho e fazerem dele um prolongamento da Inglaterra.<br />
Era, pois, uma espécie de investida nacionalista<br />
dos ingleses contra a rança, com esteio no<br />
abuso de uma situação feudal em si mesma delicada.<br />
Santa<br />
Joana d’Arc<br />
Artífices medievais construindo igrejas — A religião católica era o<br />
fator que conferia solidez e unidade à civilização da Idade Média<br />
Então aparecia aí, realmente, a<br />
idéia de nação (no caso, a francesa)<br />
como um todo que é preciso<br />
manter face aos seus invasores.<br />
Mas esse país, essa unidade<br />
grande era considerada<br />
pelo indivíduo enquanto realizada<br />
na sua pequena terra,<br />
de tal maneira que, na rança, engendrara-se<br />
uma mesma palavra para designar<br />
o Estado e a região a que pertencia<br />
cada um: le pays. Assim, para<br />
o francês, a pátria era a projeção de<br />
uma realidade que ele sentia e conhecia<br />
no seu respectivo pays.<br />
Poder-se-ia perguntar, então, o que<br />
conferia à sociedade medieval a sua<br />
impressionante solidez. Mapas e fronteiras<br />
tão fluidos, costumes, culturas,<br />
linguagens e dialetos tão diversos, e entretanto<br />
uma unidade poderosa! Tão<br />
forte que os estranhos àquele corpo<br />
da Cristandade — ou seja, os pagãos e<br />
os hereges — sentiam ali um organismo<br />
pujante, como também sentiam o<br />
árduo que era estar fora dele.<br />
Temos aí a resposta: aquela solidez,<br />
aquela unidade era de caráter religioso,<br />
que tinha seus reflexos políticos<br />
e abrangia todas as nações cristãs.<br />
Razão pela qual nunca se dizia, por<br />
exemplo, “ulano, o homem mais rico<br />
da rança”, mas “o homem mais rico<br />
da Cristandade”. Nunca se afirmava:<br />
“Beltrano é o maior rei do mundo”, e<br />
sim “o maior soberano da Cristandade”.<br />
Porque esta era o autêntico valor<br />
22
e a verdadeira base da unidade medieval.<br />
Então, enquanto a fluidez determinava<br />
a nota característica do nacional<br />
e do regionalismo, esse conceito de<br />
Cristandade marcava o tônus internacional.<br />
Vê-se como toda essa concepção se<br />
espatifou! Hoje, ou se propugna o supranacionalismo,<br />
com o desaparecimento<br />
das nações, ou se permite que<br />
existam nações com ideal nacionalista<br />
hipertrofiado. Haja vista a famosa rivalidade<br />
franco-alemã, que reiteradas<br />
vezes tem lançado o mundo em sangrentas<br />
guerras. Infelizmente, não mais<br />
se tem idéia daquela posição de harmonia<br />
que a Cristandade medieval<br />
conheceu.<br />
Universalidade e<br />
regionalismo<br />
Decorrência desse equilíbrio entre<br />
o nacional e o internacional, havia também<br />
na Idade Média duas categorias<br />
de pessoas: aquelas que viajavam e as<br />
que permaneciam em suas respectivas<br />
cidades. As primeiras<br />
constituíam a minoria,<br />
pois em geral o grosso<br />
das populações era<br />
muito estável, não chegando<br />
a conhecer sequer<br />
as províncias próximas.<br />
Entre as que viajavam,<br />
existiam estudantes, padres,<br />
missionários, peregrinos,<br />
etc., porém aquele<br />
que mais se deslocava<br />
era o rei, itinerante<br />
por natureza. Exatamente<br />
pelo fato de a idéia de<br />
nacionalismo ser realizada<br />
em cada lugar, o<br />
soberano deveria estar<br />
transitando pelas diversas<br />
regiões, sem se estabelecer<br />
numa capital.<br />
Aliás, o contrário de hoje,<br />
quando os governantes<br />
passam a maior parte<br />
de seu tempo nas capitais,<br />
recebendo aí os que<br />
necessitam tratar com<br />
eles.<br />
Temos, uma vez mais, a maravilhosa<br />
harmonia medieval, onde a universalidade<br />
era muito garantida por essa<br />
gente que viajava, e o localismo assegurado<br />
pelas pessoas que se mantinham<br />
fixas nos seus lugares.<br />
Vem a propósito notar que a derradeira<br />
e mais bonita manifestação<br />
desse dueto regionalismo-cosmopolitismo<br />
foi o Império Austríaco, com<br />
aquele conglomerado de povos que<br />
acabou sendo desfeito pelo Tratado<br />
de Versailles, após a Primeira Grande<br />
Guerra.<br />
Harmonia entre a cidade<br />
e o campo<br />
Por fim, consideremos outro interessante<br />
aspecto da organização medieval,<br />
que é o harmonioso convívio<br />
entre a cidade e o campo. Com efeito,<br />
A harmoniosa relação entre campo e cidade era outra das<br />
admiráveis características da cristandade medieval<br />
verifica-se na Idade Média a existência<br />
de aglomerações populacionais<br />
grandes o suficiente para desenvolverem<br />
uma vida própria, sem nenhuma<br />
das características inerentes ao cotidiano<br />
campestre.<br />
Tome-se, por exemplo, certas cidades<br />
do interior brasileiro onde, ainda<br />
em nossos dias, sente-se a influência<br />
da circunvizinha vida do campo. Há<br />
uma atmosfera bucólica que domina e<br />
impregna a localidade, na qual entretanto<br />
se desenrola todo um existir urbano.<br />
É, mais ou menos, a situação<br />
que se conheceu na Idade Média. Cidades<br />
grandes, contudo sem a tendência<br />
de produzir a fuga do campo.<br />
Nelas viviam quem tinha razões naturais<br />
para isto, enquanto o camponês<br />
não tinha horror ao ambiente em que<br />
nascera e se estabelecera. Ali permanecia,<br />
laborioso e satisfeito. O problema<br />
da evasão do campo não se menciona<br />
na história da Idade Média.<br />
Ademais, não se tratando de urbes<br />
exageradamente grandes, mantinham<br />
elas uma constante relação com o<br />
meio campestre. O lavrador das vizinhanças<br />
visitava com freqüência<br />
a cidade, e o habitante<br />
desta saía amiúde<br />
para o campo. Essa permuta<br />
mantinha na cidade<br />
uma atmosfera de naturalidade<br />
que o puro urbanismo<br />
de hoje parece ter<br />
suprimido completamente.<br />
Daí uma certa rusticidade<br />
da vida citadina na<br />
Idade Média. Mas daí também<br />
a grande e benéfica<br />
harmonia entre a existência<br />
campestre e a metropolitana,<br />
uma vez que esta<br />
última, sem nenhuma<br />
influência da primeira, parece-me<br />
desligada de seu<br />
equilíbrio próprio e normal.<br />
Eis mais uma das sapienciais<br />
ordenações da<br />
estrutura medieval, cujos<br />
ensinamentos e imitação<br />
muito aproveitariam a este<br />
desagregado mundo<br />
moderno... v<br />
23
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
Como vencer<br />
a crise<br />
contemporânea?<br />
Enquanto o homem não se deixar<br />
reformar por uma profunda ação da<br />
Igreja, será vã qualquer tentativa de<br />
restauração da ordem social<br />
(refugiados da Guerra de Kosovo; ao<br />
fundo, a cúpula de São Pedro)<br />
24
E<br />
m seus tempos de faculdade, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fundara a Ação Universitária<br />
Católica. Anos depois, já formado, continuava a orientar a juventude<br />
universitária, tanto através de conferências e palestras<br />
como pelas páginas do jornal “A.U.C.”. A denúncia aqui estampada é de<br />
1935.<br />
Para solucionar a crise contemporânea que tortura<br />
a humanidade, faz-se necessária uma atuação<br />
fundamentalmente moral e acima das nações —<br />
supranacional — que atinja diretamente o indivíduo e a<br />
sociedade. Sem esta ação, toda a ordem nacional será instável.<br />
Há, pois, uma obra supranacional (que distinguimos<br />
das relações internacionais, que mais se estendem entre<br />
nações, do que propriamente acima delas) a ser feita, e<br />
que só a Igreja Católica poderá levar a termo. É isto, precisamente,<br />
que passaremos a demonstrar.<br />
O único meio de se resolverem os problemas supranacionais<br />
é a realização de uma ação social una, que se estenda<br />
sobre o mundo inteiro, procurando trabalhar, ao<br />
mesmo tempo, o indivíduo e a sociedade, com real eficiência<br />
construtora.<br />
Ora, uma ação mundial una exige um pensamento uno<br />
no mundo inteiro, pois a unidade de ação pressupõe necessariamente<br />
a unidade de pensamento. E aqui esbarramos<br />
com o obstáculo<br />
insuperável para qualquer<br />
força que não a Igreja.<br />
país a influência de ideologias políticas, religiosas ou sociais<br />
[...] malsãs que destroem o Estado, pela corrupção<br />
moral e intelectual de seus próprios cidadãos. [...]<br />
Contra tais forças intelectuais que superam os canhões,<br />
o Estado moderno nada pode. Mesmo uma coligação de<br />
Estados, se agir sem a Igreja, nada poderá. A este respeito,<br />
a história nos apresenta um exemplo interessante. É a Santa<br />
Aliança, nascida de uma coligação de príncipes cristãos<br />
contra o espírito de revolução que ameaçava o mundo inteiro.<br />
Salvo em relação à Espanha, cuja ordem política foi<br />
restaurada, esta coligação formidável fracassou.<br />
É que se procurou combater com armas políticas um<br />
mal principalmente moral, cuja solução dependia muito da<br />
ação da Igreja sobre o indivíduo e a sociedade. Mas a Igreja<br />
era tiranizada, por isso a coligação de Estados onipotentes<br />
falhou.<br />
Portanto, um Estado ou uma coligação de Estados é impotente<br />
para resolver, por meio de uma ação supranacional,<br />
a crise contemporânea.<br />
Solução depende da<br />
ação da Igreja<br />
Comecemos pelo Estado.<br />
A estreita ligação que<br />
a vida moderna estabelece<br />
entre todos os Estados<br />
dá aos problemas que<br />
neles se agitam extensão<br />
mundial. O livro, o jornal,<br />
o cinema e o rádio espalham<br />
pelo mundo a influência<br />
intelectual de<br />
qualquer pensador de<br />
nossos dias. Os meios fáceis<br />
de comunicação e o<br />
entrelaçamento dos interesses<br />
comerciais, assim<br />
como o prestígio artístico<br />
e cultural de certos povos,<br />
possibilitam em qualquer<br />
“Encontro dos soberanos da Áustria, Prússia e Rússia” – O pacto da Santa Aliança,<br />
assinado por eles em setembro de 1815, redundou num inglório fracasso, por ter<br />
ignorado a ação da Igreja sobre o indivíduo e a sociedade<br />
25
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
Cumpre reformar antes o homem<br />
Analisemos agora o indivíduo e a sociedade,<br />
sobre os quais se deve exercer a ação supranacional<br />
de que já falamos.<br />
O que logo nos impressiona é que a sociedade de hoje<br />
vive habitualmente em luta. Esta reveste as formas mais<br />
variadas, segundo se dá entre raças, entre nações, entre<br />
classes ou no seio da família. Contudo, se quisermos remontar<br />
à causa de tantas lutas, podemos dizer que os homens<br />
lutam porque não se amam; e não se amam porque<br />
nada, na mentalidade do homem moderno, existe que o<br />
leve ao amor do próximo.<br />
Assim, uma conclusão se impõe: enquanto a reforma<br />
não atingir o homem, será vã qualquer tentativa de restauração<br />
da ordem social. Atingido o âmago da ferida social,<br />
ter-se-á andado para a sua cura. [...]<br />
Reforma moral: obra da Igreja<br />
Uma das grandes obras da Igreja, que será sempre o<br />
terreno em que fracassarão os que procurarem imitá-la<br />
para combatê-la, é a reforma moral do homem.<br />
A ordem na sociedade é realizada por um processo ascendente,<br />
que consiste em instaurar a ordem no indivíduo,<br />
para projetá-la daí sobre a família e sobre a sociedade.<br />
Em virtude de sua infalibilidade, a Igreja retira ao fiel o<br />
direito do livre-exame, impondo-lhe uma rigorosa disciplina<br />
intelectual. Esta disciplina não é um sacrifício contrário<br />
à razão, mas uma conclusão da própria razão que, reconhecendo<br />
na Igreja o caráter divino, deve dobrar-se à sua<br />
autoridade.<br />
A Igreja prova que Cristo é Deus, e que Ele instituiu infalível<br />
a sua Igreja. Daí se segue que a adesão inteligente<br />
do fiel, se faz sacrificando ele apenas a sua<br />
arrogância, e não a sua independência intelectual,<br />
como disse orster, protestante<br />
ilustre, ex-reitor da Universidade de<br />
Berlim.<br />
Desta disciplina decorre uma unidade de espírito admirável;<br />
uma só moral e uma só crença se estendem pelo<br />
mundo todo, onde quer que existam católicos, e uma<br />
grande sociedade supranacional, a Igreja, governa as almas,<br />
dirigindo-as para a eternidade, influindo beneficamente<br />
nos destinos temporais dos povos. Pela sua perfeita<br />
unidade de pensamento e de ação, a Igreja se apresenta<br />
como única capaz de uma ação supranacional.<br />
Para reformar o homem, a Igreja ensina o amor ao<br />
próximo pelas suas regras de é e de Moral, e se incumbe<br />
de fazê-las praticar livremente pelos seus filhos. Para isto<br />
ela apresenta ao espírito humano os mais fortes argumentos<br />
que o possam impelir à prática do bem e afastar da<br />
prática do mal. Ela move ao bem a liberdade humana; e<br />
uma sociedade orientada pelos princípios católicos estará<br />
a salvo das lutas entre os seus membros.<br />
Portanto, concluindo, parece-nos que de todas as ações<br />
desenvolvidas no mundo moderno, nenhuma supera em<br />
importância e oportunidade a ação social da Igreja. Daí se<br />
infere que todos os católicos devem prestar a esta obra a<br />
máxima colaboração sem, contudo, negligenciar a respeito<br />
da vida política do Estado. Agir de tal forma é defender a<br />
causa da Igreja que, em última análise, é também a da Pátria,<br />
encarada nos seus mais profundos interesses.<br />
(Excertos do artigo publicado no “A.U.C.”,<br />
nº 18-19, setembro-outubro de 1935.<br />
Título e subtítulos nossos.)<br />
<strong>26</strong>
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
átima<br />
M<br />
aio de 1944. A Segunda Guerra Mundial convulsionava<br />
largas regiões do globo. Havia pouco, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
tomara conhecimento da mensagem de Nossa Senhora<br />
em átima, vendo logo, na correspondência da humanidade<br />
a ela, o único meio de interromper a decadência da civilização. O<br />
jovem líder católico utilizou, então, as páginas do “Legionário”<br />
para analisar pela primeira vez os acontecimentos da Cova da<br />
Iria. Pôs empenho em destacar a integridade moral de Lúcia e dos<br />
Bem-aventurados Jacinta e rancisco, como ponderável argumento<br />
em prol da autenticidade das aparições.<br />
Peregrinos<br />
diante do<br />
Santuário<br />
de átima, Portugal<br />
27
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
H á<br />
pouco menos de 30<br />
anos, a primeira conflagração<br />
mundial caminhava<br />
para seu declínio. Contido o ímpeto<br />
inicial da invasão teutônica, os<br />
franceses se dispunham a reconquistar<br />
o território perdido. Para os políticos<br />
de alto bordo e os observadores<br />
militares, já não era duvidoso o êxito<br />
final da luta. Toda a estratégia alemã<br />
se baseara na esperança do triunfo da<br />
blitzkrieg (guerra relâmpago). A primeira<br />
cartada se jogaria com imensas<br />
possibilidades de êxito. Mas era a única.<br />
Os alemães a tinham perdido. O<br />
resto, para os aliados, era apenas<br />
questão de tempo. Os financistas, os<br />
sociólogos, os politiqueiros, já começavam<br />
seu burburinho de antecâmaras<br />
e bastidores, para saber como o<br />
mundo se reorganizaria no após-guerra.<br />
E isto enquanto nos campos de<br />
batalha a luta ainda ia acesa, e os canhões<br />
germânicos troavam não muito<br />
longe de Paris.<br />
Esse burburinho tinha real importância.<br />
Tinha, mesmo, muito mais importância<br />
do que o troar dos canhões.<br />
Nos campos de batalha, se liquidava<br />
uma guerra já decidida in radice. Nos<br />
gabinetes, não se liquidava uma guerra,<br />
mas se elaborava uma nova era. O<br />
futuro já não estava na retranca das<br />
metralhadoras, mas nos pourparlers<br />
[negociações] dos bacharéis e dos técnicos.<br />
Grande fato da história<br />
contemporânea<br />
Quando começavam a delinear-se<br />
apenas, timidamente, as primeiras linhas<br />
desse mundo novo, verificou-se<br />
um dos fatos mais consideráveis da<br />
história contemporânea. Em nosso<br />
mundo são muitos os céticos que não<br />
acreditam nesse fato. Os que não são<br />
céticos são tímidos, e não ousam proclamar<br />
os fatos em que acreditam.<br />
Uns por falta de é, outros por falta<br />
de coragem, não ousam incorporar à<br />
história contemporânea esse acontecimento.<br />
Mas, os mais graves motivos<br />
sobre que a inteligência humana pode<br />
basear-se aí estão patentes, a atestar<br />
que Nossa Senhora baixou dos céus à<br />
terra, e que manifestou a três pequenos<br />
pastores de um recanto ignorado<br />
e perdido do pequeno Portugal, as<br />
condições verdadeiras, os fundamentos<br />
indispensáveis para a reorganização<br />
do mundo. Ouvida essa mensagem,<br />
a humanidade encontraria verdadeiramente<br />
a paz. Negada, ignorada<br />
essa mensagem, a paz seria falsa e<br />
o mundo emergirá em nova guerra. A<br />
guerra veio. A guerra aí está. Cogitase<br />
agora, como há 30 anos atrás, de<br />
reorganizar novamente o mundo. Nenhum<br />
momento é mais oportuno do<br />
que este, para recordar a aparição de<br />
Nossa Senhora em átima. E isto tanto<br />
mais quanto, há precisamente três<br />
dias, a Igreja celebrou a festa litúrgica<br />
de Nossa Senhora de átima.<br />
Analisemos primeiramente o fato.<br />
Lúcia, rancisco e Jacinta<br />
eram três pastores como<br />
Os três pastorinhos,<br />
no quintal da casa do pai<br />
de Lúcia<br />
28
os há tantos em Portugal. Educados<br />
em zona inteiramente isolada dos miasmas<br />
contemporâneos, conservam intacta<br />
a flor de sua inocência batismal,<br />
e, à falta de cartilhas e de grupos escolares,<br />
desenvolviam sua personalidade,<br />
sua formação, sua virtude, em<br />
contato com as belezas do campo,<br />
com os encantos da arte e da música<br />
popular de sua terra, com a suave austeridade<br />
dos ensinamentos cristãos recebidos<br />
dos lábios de suas mães, ou<br />
do singelo e piedoso magistério do<br />
Pároco da aldeia. Neles, como em todos<br />
os filhos da Igreja, era generoso o<br />
ânimo com que lhe correspondiam.<br />
Não passavam porém de três excelentes<br />
crianças, que cumpriam seus deveres,<br />
rezavam com uma piedade sincera<br />
à qual não era alheia por vezes<br />
certa preguiça, e passavam seus dias<br />
guardando conscienciosamente os rebanhos<br />
paternos.<br />
oi num dia destes, igual a todos os<br />
outros, que se manifestou para eles a<br />
primeira aparição, à qual depois muitas<br />
outras se seguiram. Eram crianças<br />
tão extremamente simples e ignorantes,<br />
que seriam incapazes de forjar<br />
qualquer quimera que por fim os sugestionasse.<br />
Quando vieram as primeiras<br />
aparições, nem sabiam com<br />
Quem tratavam. Descrevendo maravilhados<br />
a Pessoa que lhes aparecera,<br />
retratavam por suas palavras uma figura<br />
de uma elegância, uma majestade,<br />
uma nobreza que sua imaginação<br />
de pequenos pastores nunca teria podido<br />
forjar gratuitamente.<br />
Autenticidade dos três<br />
mensageiros<br />
Imediatamente se abateu sobre eles<br />
uma verdadeira perseguição. Estiveram<br />
na cadeia, foram ameaçados de<br />
morte, e até conduzidos ao lugar de<br />
seu suposto suplício; portaram-se com<br />
a dignidade dos mártires do Coliseu.<br />
Depois, foram objeto dos agrados indiscretos<br />
e frenéticos da multidão.<br />
Conservaram-se, no meio deste triunfo,<br />
sóbrios, simples, desinteressados<br />
como um Cincinato 1 . Interrogados muitas<br />
vezes em separado, com mil artifícios<br />
destinados a induzi-los ao exagero,<br />
ou à diminuição da verdade,<br />
sempre souberam conservá-la íntegra.<br />
Dois deles morreram ainda na<br />
infância, Jacinta e rancisco. Jacinta<br />
profetizou sua morte, quando<br />
nada faria suspeitar um fim<br />
tão prematuro. E ao morrer como<br />
dissera, fê-lo afirmando<br />
a verdade das revelações.<br />
rancisco também testemunhou<br />
a verdade do<br />
que vira, até morrer. Lúcia<br />
não morreu, mas<br />
tomou o hábito religioso.<br />
Pertence hoje<br />
à Congregação<br />
das beneméritas<br />
A Virgem de átima e seu Imaculado Coração cravado de espinhos<br />
Irmãs Dorotéias [transferiu-se depois<br />
para o Carmelo], e com sua responsabilidade<br />
de Esposa de Jesus Cristo<br />
confirma plenamente na idade adulta<br />
as afirmações que fizera em sua juventude.<br />
Ela estaria em pecado mortal,<br />
se não desmentisse as visões, no<br />
caso de as ter falseado de parceria<br />
com seus pequenos primos. Ela recebe,<br />
entretanto, continuamente o Santo<br />
Sacramento com a tranqüilidade<br />
dos justos. Essas são as testemunhas.<br />
O selo do martírio, o prestígio da inocência,<br />
a dignidade do hábito religioso,<br />
lhes asseguram a veracidade.<br />
Realmente, quando, diante de uma<br />
multidão calculada em milhares de<br />
pessoas, os pequenos pastores sustentavam<br />
que estavam vendo Nossa Senhora,<br />
não mentiam. Tudo em sua vida<br />
no-lo atesta. Até sua ignorância<br />
serve de credencial a esses pequenos<br />
arautos. Crianças que ao tempo das<br />
aparições nem sabiam quem é o Papa,<br />
não poderiam inventar o que disseram,<br />
como um analfabeto não inventa<br />
uma teoria de trigonometria, ignorando<br />
até as quatro operações da aritmética.<br />
Majestade e beleza da<br />
Senhora<br />
Examinados os mensageiros, analisemos<br />
a Senhora que lhes deu a mensagem.<br />
aça-se um teste: tomem-se<br />
29
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
várias crianças em separado, e mande-se-lhes<br />
que fantasiem a título de<br />
composição literária uma aparição de<br />
Nossa Senhora, descrevendo seu semblante,<br />
seu traje, suas expressões fisionômicas,<br />
seus gestos, anotando-lhe<br />
as palavras, o que sairia de tudo isto?<br />
Quanta coisa infantil, quanta concepção<br />
grotesca, quanto pormenor francamente<br />
ridículo!<br />
O nível de instrução das crianças<br />
de átima era incomparavelmente<br />
inferior ao de uma criança de cidade.<br />
Não conheciam teatros nem cinemas,<br />
não tinham visto livros com figuras<br />
representando rainhas, senhoras<br />
de corte dos tempos antigos, etc.<br />
Não tinham, pois, outra idéia de beleza,<br />
elegância e distinção, que não a<br />
que filtrava até elas — em que luscofusco!<br />
— através dos tipos femininos<br />
que viam em redor de si na aldeia.<br />
Não possuíam a menor noção da beleza<br />
própria aos vários coloridos e a<br />
suas respectivas combinações. Tudo<br />
isto não obstante, a Senhora que<br />
lhes aparece, eles a descrevem com<br />
pormenores suficientes para se ver<br />
que era uma figura de sublime beleza,<br />
trajada com uma rara majestade<br />
e simplicidade. Senhora, aliás, tão<br />
diferente de tudo quanto eles conheciam<br />
em matéria de imagens,<br />
que não suspeitariam que fosse Nossa<br />
Senhora, e nem sequer uma Santa.<br />
oi só quando a Senhora se declarou,<br />
que souberam com Quem tratavam.<br />
Lúcia, rancisco e Jacinta, pouco antes da última aparição de Nossa Senhora,<br />
em outubro de 1917<br />
Essa Senhora lhes disse coisas<br />
muito elevadas. alou-lhes da guerra,<br />
falou-lhes do Papa (que Jacinta, a<br />
menor, não sabia que existisse), faloulhes<br />
da pureza dos costumes e do respeito<br />
aos domingos, falou-lhes de<br />
política e de sociologia. E essas crianças<br />
repetem a mensagem com uma<br />
fidelidade extraordinária!<br />
Realmente, como diz a Escritura,<br />
Deus tira para si, “da boca das crianças,<br />
um louvor perfeito”.<br />
Mensagem absolutamente<br />
ortodoxa<br />
É o momento de considerarmos a<br />
mensagem. Antes de tudo, notemos<br />
que ela é absolutamente ortodoxa.<br />
Não é fácil inventar uma mensagem<br />
ortodoxa. Muito figurão “católico”<br />
que serve para discursos de inauguração,<br />
de luto, etc., etc., etc., toma um<br />
cuidado tremendo para não preparar<br />
um discurso que cheire a heresia... e<br />
solta duas ou três heresias em seu discurso.<br />
Ora, todas, absolutamente todas<br />
as palavras da Senhora aos pequenos<br />
Pastores são de uma ortodoxia<br />
absoluta. Tratando temas complexíssimos,<br />
Ela nem uma só vez erra em<br />
doutrina. Positivamente, isto não poderia<br />
ser invenção de pequenos pastores.<br />
Mas há mais. A mensagem da Senhora,<br />
que sobreveio precisamente no<br />
momento crucial em que se preparava<br />
o após-guerra, desprezando as manifestações<br />
aparatosas de falso patriotismo<br />
e de cientificismo dos “técnicos”,<br />
colocou com grande simplicidade<br />
todas as coisas em seus termos únicos<br />
e fundamentais. A guerra fora um<br />
castigo do mundo, por sua impiedade,<br />
pela impureza de seus costumes, por<br />
seu hábito de transgredir os domingos<br />
e dias santos. Isto resolvido, todos os<br />
assuntos se resolveriam por si. Isto<br />
não resolvido, todas as soluções nada<br />
resolveriam... E se o mundo não ouvisse<br />
a voz da Senhora, se ele não respeitasse<br />
esses princípios, nova conflagração<br />
viria, precedida de fenômeno<br />
celeste extraordinário. E essa confla-<br />
30
“Uma Senhora<br />
de sublime<br />
beleza, trajada<br />
com uma<br />
rara majestade e<br />
simplicidade...”<br />
gração seria muito mais terrível que a<br />
primeira.<br />
Desprezo, mais pecados e<br />
novo castigo<br />
Reuniram-se os técnicos .... et convenerunt<br />
in unum adversus Dominum<br />
[e decidiram por unanimidade contra<br />
o Senhor]. Construíram uma paz sem<br />
Cristo, uma paz contra Cristo. O<br />
mundo se afundou ainda mais no pecado,<br />
a despeito da mensagem de<br />
Nossa Senhora. Em átima, os milagres<br />
se multiplicavam, às dezenas, às<br />
centenas, aos milhares. Ali estavam<br />
eles, acessíveis a todos, podendo ser<br />
examinados por todos os médicos de<br />
qualquer raça ou religião. As conversões<br />
já não tinham número. E, tudo<br />
isto não obstante, ninguém dava ouvidos<br />
a átima. Uns duvidavam sem<br />
quererem estudar. Outros negavam<br />
sem examinar. Outros criam mas não<br />
tinham coragem de o dizer. A voz da<br />
Senhora não se ouviu. Passaram-se<br />
mais de vinte anos. Um belo dia, sinais<br />
estranhos se viram no céu... Era<br />
uma aurora boreal, noticiada por todas<br />
as agências telegráficas da terra.<br />
Do fundo de seu convento, Lúcia escreveu<br />
a seu Bispo: era o sinal, e dentro<br />
em breve a guerra viria. A guerra<br />
veio dentro em breve. Ela está aí, e<br />
hoje se cuida novamente de “reorganizar<br />
o mundo”, aos últimos clarões<br />
desta luta potencialmente já vencida.<br />
Não endureçamos nossos<br />
corações...<br />
“Si vocem ejus hodie audieritis, nolite<br />
obdurare corda vestra — se hoje<br />
ouvirdes sua voz, não endureçais vossos<br />
corações”, diz a Escritura. Inscrevendo<br />
a festa de Nossa Senhora de<br />
átima no rol das celebrações litúrgicas,<br />
a Santa Igreja proclama a perenidade<br />
da mensagem de Nossa Senhora<br />
dada ao mundo através dos pequenos<br />
pastores. No dia de sua festa,<br />
mais uma vez a voz de átima chegou<br />
a nós: não endureçamos nossos corações,<br />
porque só assim teremos achado<br />
o caminho da paz verdadeira.<br />
(Transcrito do “Legionário”, nº 614,<br />
14/5/1944. Subtítulos nossos.)<br />
1) Romano célebre pela simplicidade e<br />
austeridade de seus costumes.<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Mistérios<br />
e encantos do<br />
passado...<br />
Como é belo o passado! E como têm sua beleza própria as construções e monumentos<br />
transformados pelo volver dos séculos! De tal sorte que, se oferecessem<br />
restituir-lhes sua aparência primitiva, quando apenas saídos das<br />
mãos de seus artífices, tal proposta deveria ser tomada como insulto. Ainda que<br />
os anos e as intempéries tenham corroído as pedras, enegrecido os muros, coberto<br />
de vetusta pátina tetos e paredes, não importa: aquilo tornou-se mais bonito.<br />
Exemplo? Veneza.<br />
32
33
Atrás de majestosos portais, escadas<br />
que ao subir se perdem na penumbra,<br />
no mistério. A escadaria cambaia<br />
e meio inclinada, cujos degraus<br />
cansados e enfraquecidos certamente<br />
rangem quando neles se pisa, a escadaria<br />
que há muito não vê vassoura<br />
e não recebe o adorno de uma prestigiosa<br />
passadeira vermelha, fala<br />
entretanto de um passado longínquo,<br />
lamenta saudosas glórias.<br />
Tem-se a impressão de que, a<br />
qualquer momento, durante a noite,<br />
Igrejas-palácios, palácios-igrejas que<br />
conservam restos de dignidade e pulcritude;<br />
casas delabrées, escalavradas<br />
pelas injúrias do tempo, mas cujos antigos<br />
esplendores ainda se ufanam de<br />
se manifestar. Paredes que perderam<br />
o revestimento, velhos tijolos aparentes,<br />
emoldurados por colunas e esculturas<br />
que lhes emprestam uma nota<br />
de seriedade, de gravidade e de nobreza.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> admirando a paisagem<br />
de Veneza, em 1988<br />
34
descerão por ela num conciliábulo profundo<br />
as pessoas que aí viviam, para saírem correndo<br />
e tomarem gôndolas, depois de transmitida<br />
uma palavra de ordem e de executada uma<br />
conspiração.<br />
Nas entradas dos canais, gôndolas vazias<br />
parecem dormitar à espera de tripulação,<br />
amarradas a estacas de formas incertas, fincadas<br />
no fundo do mar raso, à maneira de<br />
uma floresta de linhas e silhuetas que querem<br />
exprimir não se sabe o quê. No topo de algumas<br />
delas vêem-se lampadários de vidros policromados,<br />
cintilantes durante a noite para<br />
sinalizar que não esbarrem, porque ali estão<br />
algumas das gôndolas de Veneza!<br />
Catedral de<br />
São Marcos<br />
Palácio dos Doges<br />
E as cúpulas da gloriosa Catedral de São Marcos,<br />
encimadas por cruzes de uma fantasia magnífica, leves<br />
e poéticas a ponto de darem a impressão de que,<br />
ao bater o vento, seus adereços de metal começarão<br />
a se agitar e a tocar música pelos ares!<br />
E o célebre Palácio dos Doges, com seu estilo ogival<br />
caracteristicamente veneziano, apoiado sobre um<br />
leve rendilhado de pedras que confere ao conjunto<br />
um efeito de agradável distensão. Ele é frágil, delicado,<br />
maravilhoso, e pode perdurar pelos séculos afora,<br />
do mesmo modo como tem se sustentado há centenas<br />
e centenas de anos, sem o menor perigo.<br />
Veneza, um extraordinário exemplo dos mistérios,<br />
atrativos e encantos do passado... v<br />
35
O poder<br />
da voz de<br />
Maria<br />
Ao som da<br />
voz de<br />
Maria<br />
Santíssima, São João<br />
Batista, ainda no<br />
seio materno, estremeceu<br />
de júbilo e,<br />
segundo os teólogos,<br />
nesse mesmo instante<br />
foi purificado da<br />
mancha original.<br />
Este fato nos revela<br />
a poderosa intercessão<br />
de Maria. O<br />
eco de sua voz transformou<br />
um homem, conferindo-lhe um eminente grau de santidade. Eis o que<br />
devemos esperar da Santíssima Virgem: que a sua voz fale no íntimo de nossas<br />
almas, e que, de um momento para outro, esse timbre imaculado nos santifique,<br />
concedendo-nos uma virtude que anos de lutas e de trabalhos não nos<br />
proporcionaram.<br />
Por isso, todo aquele que tenha algum desânimo, tristeza ou perplexidade na<br />
vida espiritual pode fazer sua a prece que a liturgia tomou das palavras do<br />
centurião a Jesus (Lc VII, 6-7) e dirigir-se a Maria Santíssima: “Senhora, eu<br />
não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e a minha alma<br />
será transformada, de um momento para outro, se Vós assim o quiserdes”.