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Revista Curinga Edição 17

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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<strong>Revista</strong> <strong>Curinga</strong>: Podemos gravar a<br />

entrevista e tirar uma foto para divulgação<br />

na revista?<br />

Caboclo D’Água: NÃO!<br />

O Caboclo D’Água procura se atirar novamente<br />

no rio de onde surgiu. Sua voz é rouca pelo<br />

pouco uso e as palavras saem atropeladas, dificultando<br />

sua compreensão.<br />

RC: Tudo bem! Sem fotografias ou<br />

gravações! O senhor pode explicar o motivo<br />

de não gostar de ser fotografado?<br />

A minha pergunta parece um tanto quanto<br />

óbvia ao animal. Ele se vira de forma brusca, e<br />

começa a responder rapidamente.<br />

CA: Os humanos são todos iguais.<br />

Mesquinhos. Só pensam em dinheiro.<br />

Se colocarem a minha foto na revista<br />

de vocês, logo o povo vai começar a me<br />

caçar de novo. E caçar em troca de quê?<br />

Dinheiro. Tudo o que é incomum para os<br />

humanos vira atração e fonte de dinheiro.<br />

Até os meteoritos! Quando caem na terra<br />

são vendidos a altos preços. Os humanos<br />

conseguem achar esses fragmentos.<br />

Qualquer coisa que caia nas mãos imundas<br />

de vocês, humanos, vira moeda. Isso<br />

me dá nojo. O mesmo nojo e repulsa que<br />

vocês têm de mim. Os meteoritos que não<br />

são vivos não sofrem, mas os animais que<br />

os olhos de vocês não acreditam, sim. Os<br />

extraterrestres, coitados, vivem na mira<br />

dos gananciosos. Eu e minha família nem<br />

se fala. Somos perseguidos há gerações.<br />

RC: Então o senhor tem família?<br />

CA: Mas é claro! Como você pensa,<br />

criatura, que somos vistos em tantos lugares<br />

diferentes? No Dilúvio foi aquele<br />

aguaceiro. Cada um por si. Você sabe da<br />

história? Um par de cada espécie. Viemos<br />

cá. Escolhemos viver nas curvas dos rios<br />

da região porque preferimos ficar escondidos,<br />

mas os intrusos humanos teimam<br />

em nos pertubar e correr atrás de mim e<br />

da minha família. Direto um quer uma<br />

foto. Que nem você.<br />

RC: Você vai me comer?<br />

CA: Prometi que ia te dar uma entrevista.<br />

Não que ia te comer. Uma humana<br />

magrela, pequena e enxerida não me<br />

interessa. Bancando a esperta com esse<br />

ramo de hortelã no bolso - Fico assustada<br />

com essa revelação e ele percebe. - Se posso<br />

ver a noite, como não veria dentro do seu<br />

bolso encardido, criatura da ganância?<br />

Além disso, acabei de encher a barriga.<br />

Comi um bode.<br />

O Caboclo D’Água bate na barriga peluda e redonda.<br />

Solta um arroto que me deixa completamente<br />

surda por alguns segundos.<br />

RC: Mas você não come só tripas?<br />

CA: Se você come uma galinha e não<br />

come as tripas dela significa que você comeu<br />

ou não a galinha?<br />

RC: Boa resposta. Tenho uma dúvida.<br />

CA: É só isso que você tem?<br />

RC: Ouvimos que você tinha se mudado<br />

por causa do rompimento da barragem<br />

de Fundão.<br />

CA: Já falei que os humanos são gananciosos?<br />

Não percebem a hora de parar!<br />

DE PARAR!<br />

Fico assustada com esse grito repentino. O Caboclo<br />

D’Água está furioso.<br />

CA: Os animais não. Somos mais<br />

atentos que vocês aos sinais da natureza.<br />

Sentimos a natureza avisando que não<br />

suportava mais tanta crueldade com suas<br />

montanhas, seus rios. Ela iria sucumbir.<br />

Ela avisou. Alguns dias antes do rompimento<br />

da barragem de Fundão eu vi um<br />

funcionário filmando os bichos fugindo<br />

da área que logo seria invadida pela lama.<br />

TOLO! Vê os animais desesperados pela<br />

tela, mas nada de agir. Vocês, criaturas, só<br />

agem depois que o estrago já foi feito. Eu<br />

levei minha família para outra direção,<br />

mas continuo na região.<br />

RC: Você pretende voltar para o Rio<br />

Doce um dia?<br />

CA: Não. O estrago que fizeram no<br />

Rio Doce não tem reparo. Não dá para<br />

contabilizar o que vocês estragaram,<br />

nem hoje, nem nunca. Outros animais<br />

também fugiram pra nunca mais voltar.<br />

Os que conseguiram sair dali, claro. Não<br />

posso nem imaginar quantos morreram<br />

naquele lamaçal. Tantas espécies que,<br />

como eu, sobreviviam das águas do Doce,<br />

nunca vão contar essa história, porque a<br />

história deles acabou. Eu nasci do Dilúvio,<br />

mas não foi de um dilúvio de lama.<br />

O meu Dilúvio aconteceu para garantir o<br />

futuro. Foi com água. Já esse foi de lama<br />

e da lama não sai vida, só morte.

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