REVISTA UNICAPHOTO ED. 12
Revista do curso de fotografia da Unicap
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REPORTAGEM<br />
A fotografia<br />
como imagem<br />
TEXTO Marina Feldhues<br />
A imagem tem vida. É aquilo que vemos e que nos olha de volta. Ela é portadora do “pensamento<br />
de seu autor e principalmente da cultura” (1) . Didi-Huberman, por sua vez, aponta a imagem como<br />
lugar de “trocas e de conversões recíprocas entre espaços e tempos heterogéneos. Lugares feitos<br />
de atos que se repetem e, no entanto, que constantemente diferem. Ritmos, portanto” (2) . Etienne<br />
Samain (3) , por sua vez, diz que a imagem não é nem pensamento único, nem memória acabada.<br />
Ela é necessariamente incompleta.<br />
“Nela (na imagem) se cruzam autores, uma sociedade, um momento histórico, uma técnica, um<br />
objeto representado e tantos outros olhares dedicados a ela ao longo do tempo e, assim, outras<br />
sociedades..., coisas que não são necessariamente solidárias entre si na produção de um sentido<br />
comum.” (3)<br />
A imagem é o entrelaçamento de várias camadas de tempo, de lugares, de memórias, de culturas, de<br />
olhares, de sentidos e de afetos. Por isso, a imagem é múltipla, é um acontecimento, é um processo<br />
que não tem um sentido garantido, único e verdadeiro; é falsa, é fluxo, é movimento. É um lugar<br />
de encontros e disputas, de repetições e diferenças, é ritmo, como bem assinalou Didi-Huberman.<br />
“A imagem é uma respiração fundamental da nossa relação com o mundo e conosco, ou seja,<br />
também da nossa relação com o espaço e o tempo, com o corpo e a linguagem, com o pensamento<br />
e o inconsciente, com o luto e o desejo. Mas essa respiração não é fundamental senão quebrando<br />
o curso das nossas respirações normais: ela então será o élan que excede as possibilidades dos<br />
nossos pulmões ou, pelo contrário, abrandamento e o silêncio que se impõem sob o efeito de uma<br />
stimmung particular. É o ritmo no momento em que se apoderando de tudo, se estende para além<br />
de qualquer medida.” (4)<br />
A imagem, dessa forma, é aquilo que rompe, que arrebenta, que nos tira de um fluxo temporal<br />
comum de existência, e nos joga noutro tempo, ou nos insere num vazio, podemos pensar numa<br />
dimensão de pura presença, ou de puro presente. Segundo Deleuze, a imagem “não se define pelo<br />
sublime de seu conteúdo, mas pela sua forma, ou seja, pela sua ‘tensão interna’ ou pela força que<br />
mobiliza para produzir o vazio ou abrir buracos, descerrar o estreitamento das palavras” (6). A<br />
partir desse entendimento, Didi-Huberman vai dizer que a imagem é “processo” e não “objeto”, “é<br />
algo do espaço e do tempo que ‘se insere na linguagem’ como uma ‘fantástica energia potencial’<br />
que, em todos os sentidos do termo, detona o contexto em que intervém” (7) . Rancière nos ajuda a<br />
complementar o entendimento sobre essa potência de ruptura das imagens ao acrescentar que as<br />
imagens possuem a capacidade de mostrar e de significar, são “o atestado da presença e o testemunho<br />
da história” (8) . As imagens são “operações que vinculam e desvinculam o visível e sua significação,<br />
ou a palavra e seu efeito, que produzem e frustram expectativas” (9), são, portanto, relações entre o<br />
que se vê e o que se diz. Rancière vai dizer que existe a “relação simples”, mimética, de produção<br />
de semelhanças em relação a um objeto tido por original. E há as relações mais complexas, que<br />
Rancière chama de arte, nas quais as imagens produzem dessemelhanças (10) . Por último, Rancière<br />
acrescenta uma terceira relação, a da arquissemelhança, “a semelhança que não fornece a réplica<br />
de uma realidade, mas o testemunho imediato de um outro lugar, de onde ela (a imagem) provém”<br />
(11) . Assim, para além do clichê, da imagem mimética, reduzida a cópia de algo, as “imagens da arte<br />
se redefiniriam na relação móvel da presença bruta com a história cifrada” (<strong>12</strong>) .<br />
“A fotografia não se tornou uma arte porque aciona um dispositivo opondo a marca do copo à sua<br />
cópia. Ela tornou-se arte explorando uma dupla poética da imagem, fazendo de suas imagens,<br />
simultânea ou separadamente, duas coisas: os testemunhos legíveis de uma história escrita<br />
nos rostos ou nos objetos e puros blocos de visibilidade, impermeáveis a toda narrativização, a<br />
qualquer travessia de sentido (...). A fotografia tornou-se uma arte pondo seus recursos técnicos a<br />
serviço dessa poética dupla, fazendo falar duas vezes os rostos dos anônimos: como testemunhas<br />
mudas de uma condição inscrita diretamente em seus traços, suas roupas, seu modo de vida;<br />
e como detentores de um segredo que nunca iremos saber, um segredo roubado pela imagem<br />
mesma que nos traz esses rostos.” (13)<br />
Dessa forma, quando falamos em uma imagem fotográfica única, ou individual, estamos mais<br />
apontando o seu formato de visualização do que sua essência, que é múltipla, heterogênea. A<br />
fotografia pode ser pensada apenas como o clichê mimético, um mero fragmento de visualidade,<br />
representação de um objeto fotografado; ou em sua potência artística, como portadora de tensões,<br />
de intensidades de ruptura (no sentido trazido por Deleuze e Didi-Huberman), ou ainda em sua<br />
potencialidade de oscilação entre a ruptura, promovida pela pura presença da imagem e o enigma,<br />
como testemunho de uma história (Rancière).<br />
A essa potência imagética de que as fotografias podem vir a ser detentoras, para além do mero clichê,<br />
somasse, a compreensão das fotografias em sua materialidade. Soulages diz que uma fotografia é<br />
caracterizada materialmente por quatro elementos: as cores, as formas identificadas na imagem,<br />
o material ou suporte, o formato. A fotografia “é a interação desses quatro elementos materiais e<br />
da possibilidade, mais ou menos grande de imaginar o(s) fenômeno(s) fotografado(s) ou alguma<br />
outra coisa que caracteriza uma foto determinada” (14). Assim, quando pensamos nas fotografias,<br />
pensamos não apenas na sua potencialidade imagética, figurativa, mas também em sua dimensão<br />
material. Cada fotografia se mostra então como um lugar de múltiplos encontros e possibilidades.<br />
1 ENTLER In SAMAIN, 20<strong>12</strong>, p. 133.<br />
2 DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 166.<br />
3 SAMAIN, 20<strong>12</strong>, p. 34.<br />
4 ENTLER in SAMAIN, 20<strong>12</strong>, p. 133.<br />
5 DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 166.<br />
6 DELEUZE, 1992.<br />
7 DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. <strong>12</strong>8.<br />
8 RANCIÈRE, 20<strong>12</strong>, p. 36.<br />
9 RANCIÈRE, 20<strong>12</strong>, p. 13.<br />
10 Ibid, p. 15 – 16.<br />
11 Ibid, p. 17.<br />
<strong>12</strong> Ibid, p. 26.<br />
13 Ibid, p. 20 e 23 – 24.<br />
Bibliografia<br />
SAMAIN, Etienne (org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora Unicamp, 20<strong>12</strong>.<br />
DIDI-HUBERMAN, Georges. Falenas: ensaios sobre a aparição, 2. Tradução de António Preto, Eduardo Brito, Mariana Pinto dos Santos, Rui<br />
Pires Cabral e Vanessa Brito. Lisboa: KKYM, 2015a.<br />
DELEUZE, Gilles. O que é um conceito? In: _______. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro:<br />
Ed. 34, 1992, p. 25 – 48.<br />
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução de Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 20<strong>12</strong>.<br />
<strong>UNICAPHOTO</strong><br />
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