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o nosso setor, corredor, fileira e assento. Nunca houve mesmo, nem nos velhos

tempos da monarquia. Vimos um lugar decente onde se podia sentar, à esquerda

do meio do campo, embora tenham sido necessários alguns encontrões e

cotoveladas por parte de Farid.

Lembrei de como o gramado era verdinho nos anos 1970, quando baba me trazia

aqui para ver jogos de futebol. Agora, o campo era um caos. Havia buracos e

crateras por todo canto, com destaque para um ou dois bem profundos logo atrás

das traves do gol que ficava na direção sul. E não tinha grama nenhuma; só terra.

Quando os dois times finalmente entraram em campo — todos usando calças

compridas, apesar do calor

— e o jogo começou, ficou difícil acompanhar a bola no meio das nuvens de

poeira que os jogadores levantavam com os pés. Jovens talib, munidos de

chicotes, perambulavam pelos corredores batendo em qualquer um que torcesse

alto demais. Assim que o apito anunciou o fim do primeiro tempo, a encenação

começou. Duas picapes vermelhas e empoeiradas, como aquelas que tinha visto

circulando pela cidade desde que cheguei, entraram pelos portões do estádio. A

multidão se levantou. Na cabine de uma das picapes, havia uma mulher usando

uma burqa verde, e, na outra, um homem de olhos vendados. Os veículos deram

a volta na pista, lentamente, como se pretendessem deixar que a multidão os

visse bem. E produziram o efeito esperado: as pessoas espichavam o pescoço,

apontavam, ficavam na ponta dos pés. Ao meu lado, o pomo-de-adão de Farid

subia e descia enquanto ele murmurava uma prece bem baixinho.

As picapes vermelhas entraram no campo, dirigiram-se para uma das suas

extremidades, erguendo duas nuvens de poeira e com o sol refletindo em suas

calotas. Um terceiro veículo foi ao seu encontro na ponta do campo. A cabine

deste último estava cheia de alguma coisa e, de repente, compreendi a função

daqueles dois buracos atrás do gol. Descarregaram o conteúdo da terceira

picape. A multidão murmurou por antecipação.

— Quer ficar? — perguntou Farid muito sério.

— Não — disse eu. Nunca na vida quis tanto estar longe de um lugar quanto

naquele momento. — Mas temos que ficar.

Dois talib, com os seus Kalashnikovs pendurados nos ombros, ajudaram o

homem de olhos vendados a descer da primeira picape e dois outros fizeram o

mesmo com a mulher de burqa verde. Os joelhos da mulher fraquejaram e ela

desabou no chão. Os soldados a ergueram, mas ela caiu de novo. Quando

tentaram erguê-la outra vez, ela começou a gritar e a espernear. Enquanto viver,

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