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perambulávamos pelas estreitas ruelas apinhadas de fileiras e mais fileiras de

minúsculas barracas comprimidas umas às outras. Baba dava a cada um de nós

dez afeganes por semana e gastávamos tudo em Coca-Cola quente e sorvete de

água-de-rosas com cobertura de pistache torrado.

Durante o ano letivo, tínhamos uma rotina diária. Enquanto eu me levantava a

duras penas e ia me arrastando até o banheiro, Hassan já tinha se lavado, rezado

as namaz matinais junto com Ali e preparado meu café da manhã: chá preto

quente, com três torrões de açúcar, e uma fatia de naan torrado com minha

geléia favorita, de cereja ácida, tudo isso muito bem arrumado na mesa da sala

de jantar. Enquanto eu comia e reclamava do dever de casa, Hassan fazia minha

cama, engraxava meus sapatos, passava as roupas que eu ia usar naquele dia,

arrumava meu material escolar. Eu o ouvia cantando no saguão enquanto

passava roupa, entoando velhas cantigas hazara com sua voz nasalada. Então,

baba e eu saíamos no seu Ford Mustang preto — um carro que atraía olhares

invejosos por onde quer que passasse, já que era o mesmo modelo que Steve

McQueen dirigia em Bullit, filme que ficou seis meses em cartaz em um cinema

de Cabul. Hassan ficava em casa e ajudava Ali nas tarefas diárias: lavar à

mão toda a roupa suja e estendê-la no quintal para secar, varrer a casa, ir ao

bazaar para comprar naan fresco, marinara carne para o jantar, regar o

gramado. Depois da aula, Hassan e eu passávamos a mão em um livro e

corríamos para uma colina arredondada que ficava bem ao norte da propriedade

de meu pai em Wazir Akbar Khan. Havia ali um velho cemitério abandonado,

com várias fileiras de lápides com as inscrições apagadas e muito mato

impedindo a passagem pelas aléias. Anos e anos de chuva e neve tinham

enferrujado o portão de grade e deixado a mureta de pedras claras em ruínas.

Perto da entrada do cemitério havia um pé de romã. Em um dia de verão, usei

uma das facas de cozinha de Ali para gravar nossos nomes naquela árvore:

"Amir e Hassan, sultões de Cabul." Essas palavras serviram para oficializar o

fato: a árvore era nossa. Depois da aula, Hassan e eu trepávamos em seus galhos

e apanhávamos as romãs encarnadas. Depois de comer as frutas e limpar as

mãos na grama, eu lia para Hassan.

Sentado ali, com as pernas cruzadas e o jogo de sol e sombra da folhagem do pé

de romã no rosto, Hassan arrancava distraído pedacinhos de grama do chão

enquanto eu ia lendo as histórias que ele não podia ler sozinho. Pois Hassan

cresceria analfabeto como Ali e a maioria dos hazaras: isto já estava decidido

desde o minuto em que nasceu, talvez até mesmo desde o instante em que foi

concebido no útero nada receptivo de Sanaubar — afinal, para que um criado

precisaria da palavra escrita? Mas, apesar de ser analfabeto, ou quem sabe até

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